Divina Comédia - Inferno VI-XI

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CANTO VI



No terceiro círculo estão os gulosos, cuja pena consiste em ficarem prostrados debaixo de uma forte chuva de granizo, água e neve, e ser dilacerados pelas unhas e dentes de Cérbero. Entre os condenados Dante encontra Ciacco, florentino, que fala com Dante acerca das discórdias da pátria comum.



DO soçobro tornando a aflita mente,
Que da cópia infelice contristado
3 Havia tanto o padecer pungente,

Achei-me novamente circundado
De outros míseros, de outras amarguras,
6 Que via em toda parte, ao longe e ao lado.

Sou no terceiro círculo, onde escuras,
Eternas chuvas, gélidas caíam,
9 Pesadas, sempre as mesmas, sempre impuras.

Saraiva grossa, neve, água desciam
Desse ar pelas alturas tenebrosas:
12 No chão caindo infeto odor faziam.

Latia com três fauces temerosas,
Cérbero, o cão multíface e furente,
15 Contra as turbas submersas, criminosas.

Sangüíneos olhos tem, o ventre ingente,
Barba esquálida, as mãos de unhas armadas;
18 Rasga, esfola, atassalha a triste gente.

Uivam à chuva, quais lebréus, coitados!
Mudam de lado sem cessar, buscando
21 Defensa e alívio, as almas condenadas.

Cérbero, o grão réptil, nos divisando
Os dentes mostra, as bocas escancara,
24 De sanha os membros todos convulsando.

Meu Guia, as mãos abrindo, se prepara:
Enche-as de terra, e às guelas devorantes
27 Lança da fera essa iguaria amara.

Qual mastim, que em latidos retumbantes
Brada de fome, e, apenas a sacia
30 Devorando, aquieta as iras de antes:

Tal, aplacando a fúria, parecia
O demônio que as almas atordoa:
33 Surdez de ouvi-lo o mal lhes pouparia.

O solo, onde pisamos, se povoa
Das sombras, que essas chuvas derrubavam:
36 Forma e aparência tinham de pessoa.

Sobre a terra estendidas, a alastravam;
Mas uma surge, súbito sentada,
39 Aos passos que adiante nos levavam.

“Tu” — disse — “que és guiado pela estrada
Do inferno, vê se acaso me conheces:
42 Nasceste antes de eu ser nesta morada”.

Tornei-lhe: “A grande angústia em que padeces,
Tua feição lembrar-me não consente:
45 Inota face aos olhos me ofereces.

“Quem és que em tal lugar tão duramente
Pelos pecados teus stás dando a pena?
48 Se há maior, nenhuma é tão displicente”. —

— “Em tua pátria” — responde — “que tão plena
Já é de inveja, que transborda o saco,
51 Existência gozei leda e serena.

“Vós, Florentinos, me chamastes Ciacco:
Por ter da gula a intemperança amado,
54 À chuva peno enregelado e fraco.

“Mas sou nesta miséria acompanhado;
Pois quantos aqui estão de igual castigo
57 Punidos foram por igual pecado”. —

— “Com dor sincera” — lhe falei — “te digo
Que esse tormento o peito me enternece.
60 Saberás se os partidos a perigo

“Florença levarão, que já padece?
Algum justo ali vive? A que motivo
63 A cizânia se deve, que ali cresce?” —

— “Virão a sangue após ódio excessivo;
E o partido selvagem triunfante
66 O outro lançará feroz e esquivo.

“Três sóis passados, chegará o instante
De ser pelos vencidos suplantado,
69 Que esforça alguém, que aos dois faz bom semblante.

“Por algum tempo o vencedor ousado
A cerviz calcará do outro partido
72 Que se aflige oprimido e envergonhado.

“Justos há dois: ninguém lhes presta ouvido.
Três brandões — Avareza, Orgulho, Inveja,
75 Incêndio têm nos peitos acendido”. —

Assim a flébil narração boqueja.
Eu lhe respondo: “A informação completa;
78 Favor farás a quem te ouvir almeja.

“Farinata e Tegghiaio, de alma reta,
Jacopo Rusticucci, Mosca, Arrigo,
81 E os mais que da virtude o amor inquieta,

“Onde estão? Diz e franco sê comigo!
Saber qual seja anelo a sorte sua:
84 Stão no céu, ou no inferno têm castigo?” —

“Entre os que sofrem punição mais crua
Estão, por seus maus feitos, lá no fundo:
87 Se lá desces, verão a face tua.

“Quando tomares ao saudoso mundo,
De mim aviva aos meus o pensamento...
90 Não mais: volto ao silêncio meu profundo” —

Os olhos que não tinham movimento,
Torcendo fita em mim; já curva a frente
93 E cai entre os mais cegos num momento.

E disse, o Vate: “Em sono permanente
Hão de aguardar a angélica chamada,
96 Quando os julgar severo o Onipotente.

“Cad’um, a triste sepultura achada,
Ressurgindo na carne e na figura,
99 Voz ouvirá pra sempre reboada”. —

A passo lento assim pela mistura
Das sombras e da chuva caminhando,
102 Falávamos da vida, que é futura.

— “Mestre” — lhe disse então — “irá medrando
Depois da grã sentença esse tormento?
105 Igual pungir terá? Será mais brando?” —

— “Do teu saber recorre ao documento:
Verás que ao ente quando mais se eleva
108 Do bem, da dor mais cresce o sentimento.

“Bem que esta raça condenada à treva
Jamais da perfeição se eleve à altura
111 Ressurgindo, há de ter pena mais seva”. —

Perlustramos do círculo a cintura,
De cousas praticando que não digo,
Té descer um degrau na estância escura.

115 Ali’stá Pluto, o nosso grande imigo.



14. Cérbero, monstro, meio cão, meio dragão, com três cabeças, que, segundo a mitologia antiga, estava à guarda do inferno. — 52. Ciacco, parasita florentino. — 65. O partido selvagem, os Brancos. — 80. Farinata etc., nomes de florentinos ilustres.

CANTO VII



Pluto, que está de guarda à entrada do quarto círculo, tenta amedrontar a Dante com palavras irosas. Mas Virgílio o faz calar-se, e conduz o discípulo a ver a pena dos pródigos e dos avarentos, que são condenados a rolar com os peitos grandes pesos e trocarem-se injúrias. Os Poetas discorrem sobre a Fortuna, e, depois, descem ao quinto círculo e vão margeando o Estiges, onde estão mergulhados os irascíveis e os acidiosos.



PAPE Satan, pape Satan, aleppe:
Pluto com rouca voz, ao ver-nos brada.
3 Para que eu do conforto não discrepe,

Virgílio, em tudo sábio: — “Da aterrada
Mente” — me diz — “se desvaneça o susto!
6 Poder Pluto não tem, que tolha a entrada”.

E, se volvendo ao vulto, de ira adusto,
Lhe grita: — “Cal’-te, ó lobo abominoso!
9 Em ti consome esse furor injusto!

“Se ao abismo descemos tenebroso,
A lei se cumpre do alto, onde, em castigo,
12 Suplantara Miguel bando orgulhoso”. —

Como o mastro, abatendo, traz consigo
Velas, que o vento de feição tendia,
15 Baqueou-se por terra o monstro imigo.

E, pois que o quarto círculo se abria,
Mais penetramos pela estância horrenda,
18 A que todo seu mal o mundo envia.

Ah! justiça de Deus! Que lei tremenda,
Dores, penas, quais vi, tanto amontoa?
21 Por que da culpa nos obceca a venda?

Como em Caribde a vaga que ressoa
Embate noutra, e quebram-se espumantes:
24 Assim turba com turba se abalroa.

Almas em cópia, nunca vista de antes,
Fardos de um lado e de outro, em grita ingente,
27 Rolavam com seus peitos ofegantes.

Batiam-se encontrando rijamente,
E gritavam depois, atrás voltando:
30 “Por que tens?” “Por que empurras loucamente?”

Assim no tetro círc’lo volteando
Iam de toda parte ao ponto oposto,
33 Por injúria o estribilho apregoando.

Nos semicírc’lo novamente rosto
Faziam, té o embate reiterarem.
36 Eu, me sentindo à compaixão disposto,

— “Quem são? Que razão há para aqui estarem?”
Ao Mestre disse — “À esquerda os colocados
39 Clérigos são para tonsura usarem?”

— “Da mente sendo vesgos, transviados”
— Tornou — “andaram na primeira vida,
42 Sempre os bens aplicando desregrados.

“Quem seus clamores ouve não duvida:
Levantam grita aos termos dois chegados,
45 Onde oposta os separa a culpa havida:

“Os que então de cabelos despojados
Clérigos, papas, cardeais hão sido,
48 Pela nímia avareza subjugados”. —

— “Entre eles” — respondi — “Mestre querido,
Muitos serão, por certo, que eu conheça,
51 Imundos desse mal aborrecido”. —

— “Te enganas, quando assim — diz — “te pareça:
Da sua ignóbil vida a oscuridade
54 Vestígio não deixou, que ora apareça:

“Eles se hão de embater na eternidade:
Ressurgindo, uns terão as mãos fechadas,
57 Os outros de cabelos pouquidade.

“Por dar mal, por mal ter, viram cerradas
Do céu as portas; penam nesta lida,
60 Com mágoas, que não podem ser contadas.

“Vês quanto é de vaidade iludida
A ambição, em que os homens a porfiam,
63 Da Fortuna anelando os bens na vida.

“Todo o ouro, que as entranhas conteriam
Da terra, não pudera dar repouso
66 A um dos que em fadiga se cruciam”. —

— “Quem é Mestre” — falei — “o portentoso
Ser, que chamas Fortuna, que à vontade
69 Bens distribui ao mundo cobiçoso?” —

Responde o Vate: — “Ó cega humanidade,
Quanta ignorância a mente vos ofende.
72 Do meu pensar direi toda a verdade.

“Quem pelo seu saber tudo transcende,
Os céus criando, guias elegeu-lhes;
75 E toda parte a toda parte esplende,

“Pela luz que igualmente concedeu-lhes.
Assim fez aos mundanos esplendores,
78 Geral ministra e diretora deu-lhes,

“Que em tempo os bens mudasse enganadores
De nação a nação, de raça a raça
81 Contra esforços de humanos sabedores.

“A pujança de um povo é grande ou escassa
Segundo o seu querer, que, se escondendo
84 Qual serpe em erva triunfante passa.

“Contra ela o saber vosso não valendo,
No seu reino ela tem poder e mando,
87 Como os outros o seu, estão regendo.

“Mudanças incessante efetuando,
Se apressa por fatal necessidade,
90 E assim tantas no mundo vai formando.

“Tal é Fortuna, a quem por má vontade
Insulta o que louvá-la deveria,
93 Censurando-a com dura iniqüidade.

“Mas, feliz, não escuta a vozeria,
E entre iguais criaturas primitivas,
96 Volvendo a esfera, em paz goza alegria.

“Desçamos ora a dores mais esquivas;
Estrelas baixam, que ao partir surgiram;
99 Demoras são defesas, são nocivas”. —

Os nossos passos através seguiram
Do círculo até fonte, que, fervendo,
102 As águas brota, que torrente abriram,

A cor mais negra do que persa tendo.
Ao longo do seu curso nós baixamos,
105 Por caminho diverso nos movendo.

Lagoa, dita Stígia, deparamos,
Junto à encosta maligna produzida
108 Pelo triste ribeiro, que notamos.

Eu, que tinha a atenção toda embebida,
Vi sombras, nesse pântano, lodosas,
111 Desnudas, de face enfurecida.

Não só co’as mãos batiam-se raivosas;
Peitos, cabeças, pés armas lhes sendo,
114 Com dentes laceravam-se espantosas.

— “As almas, filho meu, que ora estás vendo
São dos que” — disse o mestre — “venceu ira.
117 Como certo também fica sabendo

“Que sob as águas multidão suspira,
E em borbulhões as águas entumece
120 Por toda essa extensão, que vista gira”. —

— “Nos doces ares, a que o sol aquece”
— No ceno imersas dizem — “tristes fomos:
123 Dentro em nós fumo túrbido recresce.

“Ora no lodo inda mais triste somos”. —
Com voz cortada assim gargarejavam,
126 De palavras somente havendo assomos.

“Os passos, em grande arco, nos levavam.
Do paul sobre a borda seca; o bando,
Tendo à vista, que assim lodo tragavam,

130 E junto de uma torre alfim chegando.



1. Pape Satan etc., verso obscuro. Muitos comentadores o entendem: “Como Satã, como Satã, príncipe do Inferno”... um mortal ousa penetrar aqui?” — 30. Por que etc. “por que seguras tanto?” é a interrogação dos pródigos; “por que jogas fora?” é a interrogação dos avaros. — 78. Geral ministra, a Fortuna.

CANTO VIII



Flégias corre com a sua barca para os dois Poetas serem conduzidos, passando à lagoa, à cidade de Dite. No trajeto encontram a Filipe Argenti, florentino, que discute com Dante. Chegando às portas de Dite, os demônios não o querem deixar entrar. Virgílio, porém, diz a Dante que não lhe falte a coragem, pois vencerão a prova e que não há de estar longe quem os socorra.



ACRESCENTAR eu devo, prosseguindo,
Que da torre inda estávamos distantes,
3 Quando os olhos ao cimo dirigindo,

Dois fanais brilhar vemos vacilantes,
A que outro de tão longe respondia,
6 Que mal se avistam seus clarões tremantes.

E eu de todo o saber ao mar dizia:
— “Os lumes dois por que? Por que o terceiro?
9 Para acendê-los quem razão teria?” —

— “Pela onda impura” — me tornou — “ligeiro
Quem se aguarda já vês, se não te empece
12 A vista do paul o nevoeiro”. —

Qual seta, que pelo ar veloz corresse
Da corda arremessada, discernimos
15 Tênue batel, que vir pra nós parece.

A regê-lo um arrais distinguimos:
— “Alfim chegaste, espírito execrando!”
18 Em retumbante grita nós lhe ouvimos,

— “Flégias, Flégias, estás em vão bradando!” —
Disse-lhe o Mestre — “nos terás somente
21 Enquanto formos o paul passando.” —

Como quem reconhece, e pesar sente,
Um grande engano, que se lhe há tecido,
24 Flégias assim na sua ira ardente.

Tendo Virgílio à barca descendido,
Eu segui-o: somente aos meus pesados
27 Passos mostrou ter carga recebido.

Em sendo o Mestre e eu no lenho entrados,
O lago foi cortando a antiga proa
30 Com sulcos mais que de antes profundados,

Enquanto assim corremos, eis me soa
De lutulenta sombra voz que exclama:
33 — “Quem és que em vida vens para a lagoa?”

— “Sim, venho, mas não fico nesta lama.
E tu quem és que imundo te hás tornado?” —
36 — “Bem vês: um sou que lágrimas derrama.”

E eu então: — “Fica em lodo mergulhado.
Em dor, em pranto, espírito maldito!
39 Sei quem és, se bem stás desfigurado”. —

Tendeu à barca as mãos aquele aflito,
Mas por Virgílio, que o repele presto
42 — “Com teus iguais vai, cão, te unir!” — foi dito.

Abraçando-me então com ledo gesto
Me oscula e diz: — “Abençoado seja,
45 Quem tão altivo te gerou e honesto!

“Essa alma, que de orgulho inda esbraveja,
Avessa ao bem, de raiva possuída,
48 Deixou em si memória, que negreja.

Quantos reis, grandes na terrena vida,
Virão, quais cerdos, se atascar no lodo,
51 Fama de si deixando poluída!” —

— “Mestre, grato me fora sobremodo
Vê-lo no ceno mergulhar profundo,
54 Antes de eu ter daqui saído em todo”. —

— “Antes que a margem — respondeu jocundo —
Avistes, gozarás dessa alegria,
57 Verás penar o espírito iracundo”. —

E logo ao pecador, como à porfia,
Tanta aflição causou a imunda gente,
60 Que ainda louvo a Deus, que o permitia.

Gritavam todos: — “A Filipe Argenti!” —
E a florentina sombra, se volvendo
63 Contra si, se mordia insanamente:

Lá o deixei, não mais nele entendendo.
Súbito, ouvindo um lamentar amaro,
66 Os olhos fitos para além e atendo.

E o bom Mestre me disse: — “Ó filho caro,
Stá perto Dite, de Satã cidade,
69 Que há povo infindo para o bem avaro”. —

— “Lá do vale no fundo em quantidade
Mesquitas” — respondi — “rubras discerno
72 De flama, creio, pela intensidade”. —

E o Mestre a mim: — “As faz o fogo eterno
Vermelhas, que lá dentro está lavrando
75 Como tens visto neste baixo inferno”. —

Já nos profundos fossos penetrando
De que o triste alcáçar é circundado,
78 Me estavam ferro os muros semelhando.

Mas, após grande giro, hemos tocado
Na parte, onde o barqueiro com voz forte
81 — “Saí” — gritou — “à entrada haveis chegado!”

À porta vi daqueles grã coorte
Que o céu choveu; bramiam de despeito:
84 “Este quem é que, antecipando a morte,

“Tem dos mortos no reino sido aceito?” —
Meu sábio Mestre então lhes fez aceno
87 Para, em secreto, expor-lhe seu conceito.

Contendo um pouco às sanhas o veneno
Disseram: — “Vem tu só; vá-se o imprudente,
90 Que neste reino entrou, de audácia pleno;

“Só deixe a empresa em que embarcou demente;
Tente-o, se sabe; ficarás no entanto;
93 Pois és seu guia à região nocente”. —

Imagina, ó leitor, qual fosse o espanto
Meu escutando a horrífica ameaça:
96 Não deixar a mansão temi do pranto.

“Ó Mestre meu, que tanta vez a graça
Fizeste de alentar-me o peito aflito
99 No perigo iminente e atroz desgraça,

“Não me deixes” — disse eu — “neste conflito!
E, se avante passar é defendido,
102 Ambos voltemos do lugar maldito!” —

Quem tão longe me havia conduzido
— “Não temas” — diz — “não pode ser vedado
105 O passo, que por Deus foi permitido.

“Aqui me espera e o ânimo prostrado
Fortalece e alimenta de esperança:
108 Não hás de ser no inferno abandonado”. —

O doce pai se afasta e à porta avança.
Ficando assim na dúvida e incerteza,
111 No pró, no contra a mente se abalança.

Não pude o que propôs ouvir; na empresa
Curta há sido a detença: de repente
114 Esquivam-se os precitos com presteza.

De roldão cerra a porta a imiga gente
Do Mestre à face, que, ficando fora,
117 A mim se restitui mui lentamente.

De olhos baixos, faltava-lhe a de outrora
Afouteza, e dizia suspirando:
120 “Quem me tolhe da dor a estância agora?” —

E logo a minha alteração notando
“Não te aflijas; que os óbices te digo
123 Hei de vencer que a entrada estão vedando.

“Não é nova esta audácia do inimigo;
Em mais patente porta há já mostrado,
126 Que sem ferrolho está: viste-a comigo,

“E a lúgubre inscrição lhe hás contemplado.
Deixou atrás e desce a penedia,
Pelos círc’los passando não guiado,

130 Abrir quem pode esta cidade ímpia”. —



19. Flégias, personagem da antiga mitologia, que incendiou o templo de Apolo, por ter este violado a sua filha. — 61. Filipe Argenti, dos Adímari de Florença, inimigo político de Dante.

CANTO IX



Dante pergunta a Virgílio se havia já percorrido outra vez o Inferno. Virgílio responde que já percorreu todo o Inferno e narra como e quando. Na torre de Dite se apresentam, no entanto, as três Fúrias e depois Medusa, que ameaçam a Dante. Virgílio, porém, o defende. Chega um anjo do Céu que abre aos Poetas as portas da cidade rebelde.



DO medo a cor, que o gesto me alterara,
Ao ver tornar Virgílio em retirada,
3 Serenou turvação, que o seu mudara.

Como escutando, espreita; que a cerrada
Névoa os ares em torno enegrecia,
6 E a vista, incerta, achava-se atalhada.

— “Mas é mister vencer nesta porfia...” —
Lhe ouvi — “se não ... socorro é prometido...
9 Oh! quanto a vinda sua é já tardia!” —

Bem vi que das palavras o sentido,
Que a declarar apenas começava,
12 Fora por outros logo confundido.

Porém maior receio me assaltava,
Na reticência auspício triste vendo,
15 Que na expressão talvez não se encerrava.

— “A esta hórrida estância, descendendo
Do limbo, pode vir quem só padece,
18 A esperança”, — inquiri — “toda perdendo?”

O Mestre respondeu: — “Raro aparece
Ensejo, que um de nós a andar obriga
21 Pelo caminho, que aos abismos desce.

“Ali, porém, já fui, quando inimiga
Esconjurou-me Ericto, que os esp’ritos
24 Constrangia a fazer c’os corpos liga.

“Des’pouco eu me finara: por seus ritos
Ao círculo de Judas fui trazido
27 Para a sombra tirar de um dos precitos.

“É o lugar mais fundo e denegrido,
Mais remoto do céu, que os orbes gira.
30 Sei o caminho: esforça-te, ó querido!

“Este paul, que o bruto cheiro expira,
A cidade circunda do tormento,
33 Onde entrar não podemos já sem ira”.

Deslembro o que mais disse: o pensamento
Da torre altiva ao cimo chamejante,
36 Que os olhos me prendia, estava atento.

Lá o aspecto se erguia horripilante
De fúrias três; de sangue eram tingidas,
39 Feminis no meneio e no semblante.

De hidras verdes mostravam-se cingidas,
Cerastes, serpes cada uma tinha
42 Por coma, em torno à fronte entretecidas.

Virgílio, que conhece da rainha
Do eterno pranto essas ancilas cruas,
45 — “Nas Érinis atenta” diz-me asinha.

“Megera à esquerda está das outras duas,
Chora à direita Aleto e fica ao meio
48 Tisífone”. — E pôs termo às vozes suas.

Co’as unhas cada qual rasgava o seio,
Com seus punhos batiam-se, em tal brado,
51 Que ao Vate me acerquei, de pavor cheio.

Olhando-me dizia: — “Transformado
Em pedra seja por Medusa; o assalto
54 Do ímpio Teseu não foi assaz vingado.

— “Volta a face; de luz o rosto falto
Conserva; que, se a Górgona encarar-te,
57 Tu não mais tornarás da terra ao alto”. —

Disse o Mestre, e volveu-me à oposta parte;
E as mãos juntando às minhas que não bastam,
60 Os olhos amparar-me quis dessa arte.

Ó vós cujas idéias não se afastam
Das leis da sã razão, vede os preceitos
63 Que destes versos sobre o véu se engastam.

Eis sobre as águas túrbidas desfeitos
Troam sons de fracasso temeroso;
66 Tremendo, as margens sentem-lhe os efeitos.

O tufão assim freme impetuoso,
Que, de ardores contrários se excitando,
69 Sem pausa fere a selva, e furioso,

Quebrando ramas, flores arrancando,
Entre nuvens de pó soberbo assalta
72 Feras, pastores e lanoso bando.

Os olhos descobriu-me e disse: “Exalta
A vista agora até a espuma antiga,
75 Onde mais acre a cerração ressalta”.

Quais rãs, divisando a cobra imiga,
Todas da água no seio desaparecem,
78 E cada qual no lodo entra e se abriga,

Tais milhares de espíritos parecem,
Em derrota fugindo ante a figura
81 Que passa; nágua os pés não se umedecem.

Movendo a esquerda mão, a névoa escura,
Que lhe era em torno ao vulto, dissipava:
84 Só este afã lhe altera a face pura.

Ser ele conheci que o céu mandava;
A Virgílio voltei-me, e mudo e quieto
87 Ao aceno, que fez, eu me acurvava.

Quantos lumes reflete o iroso aspecto!
À porta chega: ao toque de uma vara
90 Abre-se a entrada do alcáçar infecto.

— “Ó turba vil, que o céu de si lançara!” —
Ao limiar falou da atroz cidade,
93 — “Donde vos vem da audácia a insânia rara?

“Por que recalcitrais à alta vontade,
Que sempre cumpre o seu excelso intento,
96 E à dor já vos cresceu a intensidade?

“Cuidais pôr ao destino impedimento?
Cérbero, o vosso, na memória tende:
99 Trilhados inda estão-lhe o colo e o mento”.

Então pelo caminho imundo estende,
Sem nos falar, os passos semelhante
102 A quem outros cuidados a alma prende,

Daqueles, que há presentes, bem distante.
Nós à cidade afoutos caminhamos:
105 Deu-nos esforço o seu falar pujante.

Já, removido todo o pejo, entramos.
Eu, que sentia de saber desejo
108 Quanto o forte contém que franqueamos.

Como fui dentro, a tudo pronto, vejo
Campanha em toda parte ilimitada,
111 Mas não espaço às punições sobejo.

Como em Arle, onde o Rône faz parada
Ou junto a Pola, de Quernaro perto,
114 De que à Itália a fronteira está banhada,

Stá de sepulcros desigual e incerto
O solo: outros assim a estância feia,
117 Mas de modo mais agro, tem coberto.

Entre eles chama horrífica serpeia
E os abrasa inda mais que frágua ardente
120 Que arte para amolgar o ferro ateia.

Alçada a tampa, é cada qual patente.
Dali surgia um lamentar profundo,
123 De miséreo gemido permanente.

— “Ó Mestre meu, quais foram lá no mundo” —
Eu disse — “aqueles, que no duro encerro
126 Denunciam tormento sem segundo?” —

“Aqui stão os hereges por seu erro,
Com seus sequazes dos diversos cultos:
129 São mais do que tu crês em cada enterro.

“Iguais com seus iguais estão sepultos,
Uns túmulos mais que outros são candentes”.
À destra então voltou: com tristes vultos

133 Passamos entre o muro e os padecentes.



22-27. Ali, porém etc.: a alma de Virgílio já desceu no mais profundo do Inferno acompanhada pela bruxa Eríton. — 43. A rainha, Prosérpina. — 53-54. O assalto etc., Teseu desceu no Inferno para raptar Prosérpina. — 45. Erínis, ou as três Fúrias, filha de Érebo e da Noite. — 56. Górgona, o rosto de Medusa que petrificava quem o olhasse. — 98. Cérbero, guardião do Inferno, que foi vencido por Hércules, quando este desceu no Inferno. — 112-15. Em Aries etc., alusão aos túmulos romanos, numerosos na Provença perto de Arles e em Pola, na Ístria.

CANTO X



Caminhando os Poetas entre as arcadas, onde estão penando as almas dos heresiarcas, Dante manifesta a Virgílio o desejo de ver a gente nelas sepultada e de falar a alguém. Nisto ouve uma voz chamá-lo. É Farinata degli Uberti. Enquanto o Poeta conversa com ele é interrompido por Cavalcante Cavalcanti, que lhe indaga por seu filho Guido. Continua Dante o começado discurso com Farinata, que lhe prediz obscuramente o exílio.



ENTRA Virgílio por vereda estreita,
Que entre o muro e os martírios vai seguindo:
3 Após os seus meu passo se endireita.

— “Virtude suma! Ó tu, que, dirigindo
Me estás, ao teu sabor na estância triste,
6 Me instrui, ao meu desejo deferindo.

“A gente ver se pode que ora existe
Naquelas sepulturas descobertas,
9 A que nem guarda, nem defesa assiste?” —

— “Serão” — me respondeu — “todas cobertas
No dia, em que, de Josafá tornando,
12 Os corpos tragam, de que estão desertas.

“Epicuro aqui jaz com todo o bando
Dos discípulos seus, que professaram
15 Que alma fenece, a vida em se acabando.

“O que as tuas palavras declararam
Satisfeito há de ser, como o que vejo
18 Dos votos que em teu peito se ocultaram”. —

— “Não te expus, meu bom Mestre, quanto almejo,
Porque de breve ser tenho o cuidado,
21 E a mais longo dizer não deste ensejo”. —

— “Ó Toscano, que, vivo hás penetrado
Do fogo na cidade e és tão modesto,
24 Detém-te um pouco, se te for de agrado.

“Por teu falar me está bem manifesto
Que nessa nobre pátria tens nascido,
27 A que fora eu talvez assaz molesto”. —

Ouço este som, de súbito saído
De um dos jazigos: tanto eu me torvara,
30 Que ao Mestre me achegava espavorido.

— “Que temes tu?” — Virgílio diz — “Repara:
É Farinata em seu sepulcro alçado,
33 Do busto em toda a altura, se depara”. —

Na sombra os olhos tinha eu já fitado:
Altiva levantava a fronte e o peito,
36 Como em desprezo do infernal estado.

Por entre as tumbas me levou direito
Ao vulto o Mestre com seu braço presto,
39 Dizendo-me: — “Sê claro em teu conceito!” —

Junto ao sepulcro apenas fui, com gesto
Severo um pouco olhou-me e desdenhoso
42 — “Teus maiores?” — falou — “Faz manifesto”.

Eu, já de obedecer-lhe desejoso,
Quanto sabia expus-lhe francamente.
45 O sobrolho arqueava um tanto iroso,

E tornou: — “Guerra crua fez tua gente
A mim, aos meus avós, ao partido;
48 Mas duas vezes bani-os justamente”. —

— “Mas todos os que expulsos tinham sido
Se hão, de uma e de outra vez repatriado:
51 Não têm essa arte os vossos aprendido”. —

Surgindo então de Farinata ao lado
Somente o rosto um vulto nos mostrava,
54 Sobre os joelhos, cheio, levantado.

Com ansiosos olhos me cercava
A ver se alguém viera ali comigo.
57 Mas, perdida a esperança, que o animava,

Pranteando inquiriu: — “Se ao reino imigo
Por prêmio baixas do teu alto engenho,
60 Onde é meu filho? Pois não vem contigo?

— “Por moto próprio aqui” — volvi — “não venho;
Perto me aguarda quem meus passos guia,
63 Vosso Guido talvez teve-o em desdenho”.

A pena sua e as vozes, que lhe ouvia,
Denunciado haviam-me o seu nome:
66 Pude assim responder quanto cumpria.

Súbito ergueu-se o espírito e gritou-me:
“Teve disseste: não mais vive agora?
69 O corpo seu a terra já consome?”

Como eu tivesse em responder demora
À pergunta, de costas recaía,
72 E novamente não mostrou-se fora.

Mas esse outro magnânimo, que havia
De antes falado não mudou de aspeito;
75 No colo e busto imóvel persistia.

— “Se aquela arte não dera ao meu proveito” —
Prosseguiu — “me produz esta certeza
78 Maior tormento no adurente leito.

“Porém vezes cinqüenta a face acesa
Não mostrará do inferno a soberana
81 Sem que tu saibas quanto essa arte pesa.

“Assim possas voltar à vida humana!
Contra os meus, diz, por que tanta maldade
84 Em cada lei, que desse povo emana” —

Eu respondi: — “O estrago, a mortandade,
Que do Árbia as águas de rubor tingira
87 A cúria nossa move à austeridade”. —

Inclinando a cabeça então, suspira
E diz: — “não fui lá só naquele dia,
90 Nem sem motivo aos outros eu seguira.

“Porém achei-me só, quando exigia
De Florença a ruína o geral brado:
93 A peito descoberto eu defendia-a”. —

— “Seja o descanso à vossa prole dado:
Mas, vos suplico, de penoso enleio
96 Fique o juízo meu descativado.

“Se bem percebo, do futuro ao seio
Subindo e ao tempo o curso antecipando,
99 Do presente ignorais todo o rodeio”. —

— “Os que têm vista má nos semelhando” —
Tornou-me — “as cousas mais distantes vemos,
102 De Deus última luz em nós raiando.

“Quando estão perto ou no presente as temos
Se apaga a lucidez, e a mente aprende
105 Por outrem só o que de vós sabemos.

“Ciência nossa do porvir depende;
Em sendo a porta do porvir cerrada,
108 Essa luz morre em nós, não mais se acende”.

Então minha alma, de remorso entrada,
“Dize” — replico — à sombra, a quem falava,
111 Que o filho inda entre os vivos tem morada.

Se presto lhe não disse o que exorava,
Da dúvida, que, há pouco, heis-me explicado
114 Pela influência dominado eu stava”. —

Se bem fosse do Mestre apelidado,
Rogando a sombra a me dizer prossigo
117 As almas, de quem stava acompanhando.

Respondeu: — “Muitos mil jazem comigo
Aqui dentro, o Segundo Frederico,
120 Com ele o cardeal, de outros não digo”. —

Dos olhos se apartou. A cismar fico,
Voltando ao sábio Mestre, na ameaça
123 Desse, que ouvira, vaticínio único.

Ele caminha, e, enquanto avante passa,
Me diz: “Por que és torvado?” — Eu tudo conto
126 Expondo o que me inquieta e me embaraça.

— “Do que ouviste a memória cada ponto
Conserva!” — o sábio ordena; e, logo, alçando
129 O dedo, segue: — “Agora escuta pronto.

“Ante o doce raiar daquela estando,
Que tudo aos belos olhos tem presente,
132 Se irão da vida os transes revelando”. —

Moveu-se logo à esquerda diligente;
Deixando o muro, ao centro caminhava
Por senda, que descia ao vale horrente,

136 Que hediondos vapores exalava.



32. Farinata degli Uberti, nobre florentino, chefe dos gibelinos, que combateu os guelfos em Montaperti (1260); e depois, com a sua autoridade, impediu que a cidade fosse destruída. — 48. Mas duas vezes etc., os ascendentes de Dante, guelfos, duas vezes foram banidos de Florença. — Um vulto, Cavalcante Cavalcanti, pai de Guido, poeta e amigo de Dante. — 111. Que o filho, Guido Cavalcanti ainda está vivo. — 119. O segundo Frederico, Frederico II da Suábia, tido como herege. — 120. O cardeal, Otávio degli Ubaldini, também tido como herege.

CANTO XI



Os Poetas chegam à beira do sétimo círculo. Sufocados pelo mau cheiro que se levanta daquele báratro, param atrás do sepulcro do papa Anastácio. Virgílio explica a Dante a configuração dos círculos infernais. O primeiro, que é o sétimo, é o círculo dos violentos. Como a violência pode dar-se contra o próximo, contra si próprio e contra Deus, o círculo é dividido em três compartimentos, cada um dos quais contém uma espécie de violentos. O segundo círculo, que é o oitavo, é o dos fraudulentos e se compõe de dez círculos concêntricos. O terceiro, que é o nono, se divide em quatro compartimentos concêntricos. Fala-lhe também acerca dos incontinentes e dos usurários. Movem-se depois para o lugar de onde se desce para o precipício.



À BORDA de alta riba assim chegamos,
Que em círc’lo rotas penhas conformavam:
3 De lá mais crus tormentos divisamos.

Do fundo abismo exalações brotavam,
Tão acres, que a fugir nos obrigaram
6 Para trás das muralhas elevadas

De um sepulcro, em que os olhos decifraram:
“Sou do papa Anastácio a sepultura,
9 Que de Fotino os erros transviaram”.

“Lentamente desçamos desta altura:
Assim, o olfato ao mau odor afeito,
12 Não hemos de sentir-lhe a ação impura”.

A Virgílio tornei: “Proceda a jeito,
Ó Mestre, por que o tempo consumido
15 Na demora, não corra sem proveito”. —

— “Já stava o meio, ó filho, apercebido.
Nestas penhas três círc’los há menores,
18 Por degraus, como os outros, que hás descido.

“Plenos stão de malditos pecadores.
Por que, em vendo, os conheças logo, atende:
21 Direi seus crimes e da pena as dores.

“Todo mal, que no céu cólera acende,
Injustiça há por fim, que o dano alheio,
24 Usando fraude ou violência, tende.

“Próprio do homem por ser da fraude o meio
Mais descontenta a Deus; mores tormentos
27 Em lugar sofre de aflições mais cheio.

“Dos círc’los o primeiro é dos violentos;
Mas, força a três pessoas se fazendo,
30 Foi construído em três repartimentos.

“A Deus, a si, ao próximo ofendendo,
Nas pessoas, nos bens a força fere,
33 Como hás de convencer-te, me entendendo.

“Morte ou dor força ao próximo confere.
Com ruína, com fogo os bens lhe invade.
36 Quando pela extorsão não se apodere.

“Homicidas, os que usam feridade,
Ladrões, desvastadores, torturados
39 Stão no primeiro, em turmas, sem piedade.

“Homens há contra si cruéis, irados
Ou contra os próprios bens: pois no segundo
42 Recinto jazem sempre amargurados,

“Quem se privara do terreno mundo,
Os que seus cabedais malbarataram,
45 Quem chora onde pudera estar jucundo.

“Contra Deus violências homens preparam,
Se o negam, se o blasfemam, desdenhando
48 Natura e os dons, que nela se deparam.

“No recinto menor sinal nefando
Caors marca igualmente com Sodoma,
51 E os que pecaram contra Deus falando.

“A fraude em que o remorso tanto assoma,
Ou trai a confiança ou premedita
54 Danos a quem desprevenido toma.

“A fraude desta espécie se exercita
Contra os laços de amor, que faz natura:
57 Portanto no segundo círc’lo habita

“Adulação com simonia impura,
Hipócritas, falsários, feiticeiros,
60 Rufiães e outros dessa laia escura.

“Transtorna a outra afetos verdadeiros,
Que inspira a natureza e os que origina
63 A mútua fé nos ânimos inteiros.

“E, pois, no círc’lo extremo, que domina
Da terra o centro e onde Dite pesa,
66 Eterna pena aos tredos se destina”. —

“Tem, Mestre” — eu disse — “o cunho da clareza
O que expões, distinguindo exatamente
69 A geena do inferno e a gente presa.

“Diz-me: os que jazem na lagoa ingente,
Os que flagela o vento ou chuva imiga,
72 Os que se encontram em frêmito insolente,

“Por que Deus lá em Dite os não castiga,
Se a ira a Deus seus feitos acenderam?
75 Se não, por que a aflição tanto os fustiga?” —

“Deliras? Da tua mente se varreram
Princípios sãos” — tornou — “a que és afeito?
78 A que rumo as idéias se volveram?

“Olvidas, porventura, esse preceito,
De que houveste na Ética a ciência,
81 Das três disposições, que em mau conceito

“Estão do céu, — malícia, incontinência
E furor bestial? — como a segunda
84 Importa a Deus menor irreverência?

“Se atentas em verdade tão profunda,
Se lembras quais são esses que padecem
87 Acima da mansão, que o fogo inunda,

“Verás então ser justo não sofressem
Daqueles maus a par, menos pesada
90 Punição culpas suas merecessem”. —

“Sol, que me aclara a vista perturbada,
Às lições tuas dou tamanho apreço,
93 Que o duvidar, como o saber, me agrada.

“Tornando ao que disseste, expliques peço,
Por que motivo, Mestre, usura ofende
96 A divina bondade em tanto excesso”. —

“Filosofia” — disse — “quem a atende
Tem demonstrado, quase em toda parte,
99 Que a natureza a sua origem prende

“Do divino intelecto e da sua arte.
Da Física em princípio hás conhecido
102 Preceito, que hei mister recomendar-te:

Que é da vossa arte ir sempre que há podido
Após natura — à mestra obediente; —
105 Neta de Deus chamá-la é permitido.

“Da natureza e da arte, se tua mente
O Gênese em começo lembra, colhe
108 O seu sustento e haver a humana gente.

“Usura bem diversa estrada escolhe
Natura e a aluna sua menospreza,
111 Esperança e cuidado e mal recolhe.

Mas andemos; prossiga a nossa empresa.
Vão no horizonte os Peixes assomando;
Voltando sobre o coro o culto pesa

115 E, além, a rocha está passagem dando”. —




8-9. Anastácio, engano de pessoa em que cai Dante, em conformidade com as crônicas do seu tempo. Não foi o papa Anastácio II, mas o imperador grego Anastácio I que foi transviado pela heresia de Fotino. — 80. Ética, a Ética de Aristóteles.


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