INFERNO ... Cantos I-V ... VI-XI ... XII-XVII ... XVIII-XXIII ... XIV-XXIX ... XXX-XXXIV
PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII
PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII
CANTO VI
No
terceiro círculo estão os gulosos, cuja pena consiste em ficarem prostrados
debaixo de uma forte chuva de granizo, água e neve, e ser dilacerados pelas
unhas e dentes de Cérbero. Entre os condenados Dante encontra Ciacco,
florentino, que fala com Dante acerca das discórdias da pátria comum.
DO
soçobro tornando a aflita mente,
Que
da cópia infelice contristado
3
Havia tanto o padecer pungente,
Achei-me
novamente circundado
De
outros míseros, de outras amarguras,
6
Que via em toda parte, ao longe e ao lado.
Sou
no terceiro círculo, onde escuras,
Eternas
chuvas, gélidas caíam,
9
Pesadas, sempre as mesmas, sempre impuras.
Saraiva
grossa, neve, água desciam
Desse
ar pelas alturas tenebrosas:
12
No chão caindo infeto odor faziam.
Latia
com três fauces temerosas,
Cérbero,
o cão multíface e furente,
15
Contra as turbas submersas, criminosas.
Sangüíneos
olhos tem, o ventre ingente,
Barba
esquálida, as mãos de unhas armadas;
18
Rasga, esfola, atassalha a triste gente.
Uivam
à chuva, quais lebréus, coitados!
Mudam
de lado sem cessar, buscando
21
Defensa e alívio, as almas condenadas.
Cérbero,
o grão réptil, nos divisando
Os
dentes mostra, as bocas escancara,
24
De sanha os membros todos convulsando.
Meu
Guia, as mãos abrindo, se prepara:
Enche-as
de terra, e às guelas devorantes
27
Lança da fera essa iguaria amara.
Qual
mastim, que em latidos retumbantes
Brada
de fome, e, apenas a sacia
30
Devorando, aquieta as iras de antes:
Tal,
aplacando a fúria, parecia
O
demônio que as almas atordoa:
33
Surdez de ouvi-lo o mal lhes pouparia.
O
solo, onde pisamos, se povoa
Das
sombras, que essas chuvas derrubavam:
36
Forma e aparência tinham de pessoa.
Sobre
a terra estendidas, a alastravam;
Mas
uma surge, súbito sentada,
39
Aos passos que adiante nos levavam.
“Tu”
— disse — “que és guiado pela estrada
Do
inferno, vê se acaso me conheces:
42
Nasceste antes de eu ser nesta morada”.
Tornei-lhe:
“A grande angústia em que padeces,
Tua
feição lembrar-me não consente:
45
Inota face aos olhos me ofereces.
“Quem
és que em tal lugar tão duramente
Pelos
pecados teus stás dando a pena?
48
Se há maior, nenhuma é tão displicente”. —
—
“Em tua pátria” — responde — “que tão plena
Já
é de inveja, que transborda o saco,
51
Existência gozei leda e serena.
“Vós,
Florentinos, me chamastes Ciacco:
Por
ter da gula a intemperança amado,
54
À chuva peno enregelado e fraco.
“Mas
sou nesta miséria acompanhado;
Pois
quantos aqui estão de igual castigo
57
Punidos foram por igual pecado”. —
—
“Com dor sincera” — lhe falei — “te digo
Que
esse tormento o peito me enternece.
60
Saberás se os partidos a perigo
“Florença
levarão, que já padece?
Algum
justo ali vive? A que motivo
63
A cizânia se deve, que ali cresce?” —
—
“Virão a sangue após ódio excessivo;
E
o partido selvagem triunfante
66
O outro lançará feroz e esquivo.
“Três
sóis passados, chegará o instante
De
ser pelos vencidos suplantado,
69
Que esforça alguém, que aos dois faz bom semblante.
“Por
algum tempo o vencedor ousado
A
cerviz calcará do outro partido
72
Que se aflige oprimido e envergonhado.
“Justos
há dois: ninguém lhes presta ouvido.
Três
brandões — Avareza, Orgulho, Inveja,
75
Incêndio têm nos peitos acendido”. —
Assim
a flébil narração boqueja.
Eu
lhe respondo: “A informação completa;
78
Favor farás a quem te ouvir almeja.
“Farinata
e Tegghiaio, de alma reta,
Jacopo
Rusticucci, Mosca, Arrigo,
81
E os mais que da virtude o amor inquieta,
“Onde
estão? Diz e franco sê comigo!
Saber
qual seja anelo a sorte sua:
84
Stão no céu, ou no inferno têm castigo?” —
“Entre
os que sofrem punição mais crua
Estão,
por seus maus feitos, lá no fundo:
87
Se lá desces, verão a face tua.
“Quando
tomares ao saudoso mundo,
De
mim aviva aos meus o pensamento...
90
Não mais: volto ao silêncio meu profundo” —
Os
olhos que não tinham movimento,
Torcendo
fita em mim; já curva a frente
93
E cai entre os mais cegos num momento.
E
disse, o Vate: “Em sono permanente
Hão
de aguardar a angélica chamada,
96
Quando os julgar severo o Onipotente.
“Cad’um,
a triste sepultura achada,
Ressurgindo
na carne e na figura,
99
Voz ouvirá pra sempre reboada”. —
A
passo lento assim pela mistura
Das
sombras e da chuva caminhando,
102
Falávamos da vida, que é futura.
—
“Mestre” — lhe disse então — “irá medrando
Depois
da grã sentença esse tormento?
105
Igual pungir terá? Será mais brando?” —
—
“Do teu saber recorre ao documento:
Verás
que ao ente quando mais se eleva
108
Do bem, da dor mais cresce o sentimento.
“Bem
que esta raça condenada à treva
Jamais
da perfeição se eleve à altura
111
Ressurgindo, há de ter pena mais seva”. —
Perlustramos
do círculo a cintura,
De
cousas praticando que não digo,
Té
descer um degrau na estância escura.
115
Ali’stá Pluto, o nosso grande imigo.
14.
Cérbero, monstro, meio cão, meio dragão, com três cabeças, que, segundo a
mitologia antiga, estava à guarda do inferno. — 52. Ciacco, parasita
florentino. — 65. O partido selvagem, os Brancos. — 80. Farinata etc., nomes de
florentinos ilustres.
CANTO VII
Pluto,
que está de guarda à entrada do quarto círculo, tenta amedrontar a Dante com
palavras irosas. Mas Virgílio o faz calar-se, e conduz o discípulo a ver a pena
dos pródigos e dos avarentos, que são condenados a rolar com os peitos grandes
pesos e trocarem-se injúrias. Os Poetas discorrem sobre a Fortuna, e, depois,
descem ao quinto círculo e vão margeando o Estiges, onde estão mergulhados os
irascíveis e os acidiosos.
PAPE
Satan, pape Satan, aleppe:
Pluto
com rouca voz, ao ver-nos brada.
3
Para que eu do conforto não discrepe,
Virgílio,
em tudo sábio: — “Da aterrada
Mente”
— me diz — “se desvaneça o susto!
6
Poder Pluto não tem, que tolha a entrada”.
E,
se volvendo ao vulto, de ira adusto,
Lhe
grita: — “Cal’-te, ó lobo abominoso!
9
Em ti consome esse furor injusto!
“Se
ao abismo descemos tenebroso,
A
lei se cumpre do alto, onde, em castigo,
12
Suplantara Miguel bando orgulhoso”. —
Como
o mastro, abatendo, traz consigo
Velas,
que o vento de feição tendia,
15
Baqueou-se por terra o monstro imigo.
E,
pois que o quarto círculo se abria,
Mais
penetramos pela estância horrenda,
18
A que todo seu mal o mundo envia.
Ah!
justiça de Deus! Que lei tremenda,
Dores,
penas, quais vi, tanto amontoa?
21
Por que da culpa nos obceca a venda?
Como
em Caribde a vaga que ressoa
Embate
noutra, e quebram-se espumantes:
24
Assim turba com turba se abalroa.
Almas
em cópia, nunca vista de antes,
Fardos
de um lado e de outro, em grita ingente,
27
Rolavam com seus peitos ofegantes.
Batiam-se
encontrando rijamente,
E
gritavam depois, atrás voltando:
30
“Por que tens?” “Por que empurras loucamente?”
Assim
no tetro círc’lo volteando
Iam
de toda parte ao ponto oposto,
33
Por injúria o estribilho apregoando.
Nos
semicírc’lo novamente rosto
Faziam,
té o embate reiterarem.
36
Eu, me sentindo à compaixão disposto,
—
“Quem são? Que razão há para aqui estarem?”
Ao
Mestre disse — “À esquerda os colocados
39
Clérigos são para tonsura usarem?”
—
“Da mente sendo vesgos, transviados”
—
Tornou — “andaram na primeira vida,
42
Sempre os bens aplicando desregrados.
“Quem
seus clamores ouve não duvida:
Levantam
grita aos termos dois chegados,
45
Onde oposta os separa a culpa havida:
“Os
que então de cabelos despojados
Clérigos,
papas, cardeais hão sido,
48
Pela nímia avareza subjugados”. —
—
“Entre eles” — respondi — “Mestre querido,
Muitos
serão, por certo, que eu conheça,
51
Imundos desse mal aborrecido”. —
—
“Te enganas, quando assim — diz — “te pareça:
Da
sua ignóbil vida a oscuridade
54
Vestígio não deixou, que ora apareça:
“Eles
se hão de embater na eternidade:
Ressurgindo,
uns terão as mãos fechadas,
57
Os outros de cabelos pouquidade.
“Por
dar mal, por mal ter, viram cerradas
Do
céu as portas; penam nesta lida,
60
Com mágoas, que não podem ser contadas.
“Vês
quanto é de vaidade iludida
A
ambição, em que os homens a porfiam,
63
Da Fortuna anelando os bens na vida.
“Todo
o ouro, que as entranhas conteriam
Da
terra, não pudera dar repouso
66
A um dos que em fadiga se cruciam”. —
—
“Quem é Mestre” — falei — “o portentoso
Ser,
que chamas Fortuna, que à vontade
69
Bens distribui ao mundo cobiçoso?” —
Responde
o Vate: — “Ó cega humanidade,
Quanta
ignorância a mente vos ofende.
72
Do meu pensar direi toda a verdade.
“Quem
pelo seu saber tudo transcende,
Os
céus criando, guias elegeu-lhes;
75
E toda parte a toda parte esplende,
“Pela
luz que igualmente concedeu-lhes.
Assim
fez aos mundanos esplendores,
78
Geral ministra e diretora deu-lhes,
“Que
em tempo os bens mudasse enganadores
De
nação a nação, de raça a raça
81
Contra esforços de humanos sabedores.
“A
pujança de um povo é grande ou escassa
Segundo
o seu querer, que, se escondendo
84
Qual serpe em erva triunfante passa.
“Contra
ela o saber vosso não valendo,
No
seu reino ela tem poder e mando,
87
Como os outros o seu, estão regendo.
“Mudanças
incessante efetuando,
Se
apressa por fatal necessidade,
90
E assim tantas no mundo vai formando.
“Tal
é Fortuna, a quem por má vontade
Insulta
o que louvá-la deveria,
93
Censurando-a com dura iniqüidade.
“Mas,
feliz, não escuta a vozeria,
E
entre iguais criaturas primitivas,
96
Volvendo a esfera, em paz goza alegria.
“Desçamos
ora a dores mais esquivas;
Estrelas
baixam, que ao partir surgiram;
99
Demoras são defesas, são nocivas”. —
Os
nossos passos através seguiram
Do
círculo até fonte, que, fervendo,
102
As águas brota, que torrente abriram,
A
cor mais negra do que persa tendo.
Ao
longo do seu curso nós baixamos,
105
Por caminho diverso nos movendo.
Lagoa,
dita Stígia, deparamos,
Junto
à encosta maligna produzida
108
Pelo triste ribeiro, que notamos.
Eu,
que tinha a atenção toda embebida,
Vi
sombras, nesse pântano, lodosas,
111
Desnudas, de face enfurecida.
Não
só co’as mãos batiam-se raivosas;
Peitos,
cabeças, pés armas lhes sendo,
114
Com dentes laceravam-se espantosas.
—
“As almas, filho meu, que ora estás vendo
São
dos que” — disse o mestre — “venceu ira.
117
Como certo também fica sabendo
“Que
sob as águas multidão suspira,
E
em borbulhões as águas entumece
120
Por toda essa extensão, que vista gira”. —
—
“Nos doces ares, a que o sol aquece”
—
No ceno imersas dizem — “tristes fomos:
123
Dentro em nós fumo túrbido recresce.
“Ora
no lodo inda mais triste somos”. —
Com
voz cortada assim gargarejavam,
126
De palavras somente havendo assomos.
“Os
passos, em grande arco, nos levavam.
Do
paul sobre a borda seca; o bando,
Tendo
à vista, que assim lodo tragavam,
130
E junto de uma torre alfim chegando.
1.
Pape Satan etc., verso obscuro. Muitos comentadores o entendem: “Como Satã,
como Satã, príncipe do Inferno”... um mortal ousa penetrar aqui?” — 30. Por que
etc. “por que seguras tanto?” é a interrogação dos pródigos; “por que jogas
fora?” é a interrogação dos avaros. — 78. Geral ministra, a Fortuna.
CANTO
VIII
Flégias
corre com a sua barca para os dois Poetas serem conduzidos, passando à lagoa, à
cidade de Dite. No trajeto encontram a Filipe Argenti, florentino, que discute
com Dante. Chegando às portas de Dite, os demônios não o querem deixar entrar.
Virgílio, porém, diz a Dante que não lhe falte a coragem, pois vencerão a prova
e que não há de estar longe quem os socorra.
ACRESCENTAR
eu devo, prosseguindo,
Que
da torre inda estávamos distantes,
3
Quando os olhos ao cimo dirigindo,
Dois
fanais brilhar vemos vacilantes,
A
que outro de tão longe respondia,
6
Que mal se avistam seus clarões tremantes.
E
eu de todo o saber ao mar dizia:
—
“Os lumes dois por que? Por que o terceiro?
9
Para acendê-los quem razão teria?” —
—
“Pela onda impura” — me tornou — “ligeiro
Quem
se aguarda já vês, se não te empece
12
A vista do paul o nevoeiro”. —
Qual
seta, que pelo ar veloz corresse
Da
corda arremessada, discernimos
15
Tênue batel, que vir pra nós parece.
A
regê-lo um arrais distinguimos:
—
“Alfim chegaste, espírito execrando!”
18
Em retumbante grita nós lhe ouvimos,
—
“Flégias, Flégias, estás em vão bradando!” —
Disse-lhe
o Mestre — “nos terás somente
21
Enquanto formos o paul passando.” —
Como
quem reconhece, e pesar sente,
Um
grande engano, que se lhe há tecido,
24
Flégias assim na sua ira ardente.
Tendo
Virgílio à barca descendido,
Eu
segui-o: somente aos meus pesados
27
Passos mostrou ter carga recebido.
Em
sendo o Mestre e eu no lenho entrados,
O
lago foi cortando a antiga proa
30
Com sulcos mais que de antes profundados,
Enquanto
assim corremos, eis me soa
De
lutulenta sombra voz que exclama:
33
— “Quem és que em vida vens para a lagoa?”
—
“Sim, venho, mas não fico nesta lama.
E
tu quem és que imundo te hás tornado?” —
36
— “Bem vês: um sou que lágrimas derrama.”
E
eu então: — “Fica em lodo mergulhado.
Em
dor, em pranto, espírito maldito!
39
Sei quem és, se bem stás desfigurado”. —
Tendeu
à barca as mãos aquele aflito,
Mas
por Virgílio, que o repele presto
42
— “Com teus iguais vai, cão, te unir!” — foi dito.
Abraçando-me
então com ledo gesto
Me
oscula e diz: — “Abençoado seja,
45
Quem tão altivo te gerou e honesto!
“Essa
alma, que de orgulho inda esbraveja,
Avessa
ao bem, de raiva possuída,
48
Deixou em si memória, que negreja.
Quantos
reis, grandes na terrena vida,
Virão,
quais cerdos, se atascar no lodo,
51
Fama de si deixando poluída!” —
—
“Mestre, grato me fora sobremodo
Vê-lo
no ceno mergulhar profundo,
54
Antes de eu ter daqui saído em todo”. —
—
“Antes que a margem — respondeu jocundo —
Avistes,
gozarás dessa alegria,
57
Verás penar o espírito iracundo”. —
E
logo ao pecador, como à porfia,
Tanta
aflição causou a imunda gente,
60
Que ainda louvo a Deus, que o permitia.
Gritavam
todos: — “A Filipe Argenti!” —
E
a florentina sombra, se volvendo
63
Contra si, se mordia insanamente:
Lá
o deixei, não mais nele entendendo.
Súbito,
ouvindo um lamentar amaro,
66
Os olhos fitos para além e atendo.
E
o bom Mestre me disse: — “Ó filho caro,
Stá
perto Dite, de Satã cidade,
69
Que há povo infindo para o bem avaro”. —
—
“Lá do vale no fundo em quantidade
Mesquitas”
— respondi — “rubras discerno
72
De flama, creio, pela intensidade”. —
E
o Mestre a mim: — “As faz o fogo eterno
Vermelhas,
que lá dentro está lavrando
75
Como tens visto neste baixo inferno”. —
Já
nos profundos fossos penetrando
De
que o triste alcáçar é circundado,
78
Me estavam ferro os muros semelhando.
Mas,
após grande giro, hemos tocado
Na
parte, onde o barqueiro com voz forte
81
— “Saí” — gritou — “à entrada haveis chegado!”
À
porta vi daqueles grã coorte
Que
o céu choveu; bramiam de despeito:
84
“Este quem é que, antecipando a morte,
“Tem
dos mortos no reino sido aceito?” —
Meu
sábio Mestre então lhes fez aceno
87
Para, em secreto, expor-lhe seu conceito.
Contendo
um pouco às sanhas o veneno
Disseram:
— “Vem tu só; vá-se o imprudente,
90
Que neste reino entrou, de audácia pleno;
“Só
deixe a empresa em que embarcou demente;
Tente-o,
se sabe; ficarás no entanto;
93
Pois és seu guia à região nocente”. —
Imagina,
ó leitor, qual fosse o espanto
Meu
escutando a horrífica ameaça:
96
Não deixar a mansão temi do pranto.
“Ó
Mestre meu, que tanta vez a graça
Fizeste
de alentar-me o peito aflito
99
No perigo iminente e atroz desgraça,
“Não
me deixes” — disse eu — “neste conflito!
E,
se avante passar é defendido,
102
Ambos voltemos do lugar maldito!” —
Quem
tão longe me havia conduzido
—
“Não temas” — diz — “não pode ser vedado
105
O passo, que por Deus foi permitido.
“Aqui
me espera e o ânimo prostrado
Fortalece
e alimenta de esperança:
108
Não hás de ser no inferno abandonado”. —
O
doce pai se afasta e à porta avança.
Ficando
assim na dúvida e incerteza,
111
No pró, no contra a mente se abalança.
Não
pude o que propôs ouvir; na empresa
Curta
há sido a detença: de repente
114
Esquivam-se os precitos com presteza.
De
roldão cerra a porta a imiga gente
Do
Mestre à face, que, ficando fora,
117
A mim se restitui mui lentamente.
De
olhos baixos, faltava-lhe a de outrora
Afouteza,
e dizia suspirando:
120
“Quem me tolhe da dor a estância agora?” —
E
logo a minha alteração notando
“Não
te aflijas; que os óbices te digo
123
Hei de vencer que a entrada estão vedando.
“Não
é nova esta audácia do inimigo;
Em
mais patente porta há já mostrado,
126
Que sem ferrolho está: viste-a comigo,
“E
a lúgubre inscrição lhe hás contemplado.
Deixou
atrás e desce a penedia,
Pelos
círc’los passando não guiado,
130
Abrir quem pode esta cidade ímpia”. —
19.
Flégias, personagem da antiga mitologia, que incendiou o templo de Apolo, por
ter este violado a sua filha. — 61. Filipe Argenti, dos Adímari de Florença, inimigo
político de Dante.
CANTO IX
Dante
pergunta a Virgílio se havia já percorrido outra vez o Inferno. Virgílio
responde que já percorreu todo o Inferno e narra como e quando. Na torre de
Dite se apresentam, no entanto, as três Fúrias e depois Medusa, que ameaçam a
Dante. Virgílio, porém, o defende. Chega um anjo do Céu que abre aos Poetas as
portas da cidade rebelde.
DO
medo a cor, que o gesto me alterara,
Ao
ver tornar Virgílio em retirada,
3
Serenou turvação, que o seu mudara.
Como
escutando, espreita; que a cerrada
Névoa
os ares em torno enegrecia,
6
E a vista, incerta, achava-se atalhada.
—
“Mas é mister vencer nesta porfia...” —
Lhe
ouvi — “se não ... socorro é prometido...
9
Oh! quanto a vinda sua é já tardia!” —
Bem
vi que das palavras o sentido,
Que
a declarar apenas começava,
12
Fora por outros logo confundido.
Porém
maior receio me assaltava,
Na
reticência auspício triste vendo,
15
Que na expressão talvez não se encerrava.
—
“A esta hórrida estância, descendendo
Do
limbo, pode vir quem só padece,
18
A esperança”, — inquiri — “toda perdendo?”
O
Mestre respondeu: — “Raro aparece
Ensejo,
que um de nós a andar obriga
21
Pelo caminho, que aos abismos desce.
“Ali,
porém, já fui, quando inimiga
Esconjurou-me
Ericto, que os esp’ritos
24
Constrangia a fazer c’os corpos liga.
“Des’pouco
eu me finara: por seus ritos
Ao
círculo de Judas fui trazido
27
Para a sombra tirar de um dos precitos.
“É
o lugar mais fundo e denegrido,
Mais
remoto do céu, que os orbes gira.
30
Sei o caminho: esforça-te, ó querido!
“Este
paul, que o bruto cheiro expira,
A
cidade circunda do tormento,
33
Onde entrar não podemos já sem ira”.
Deslembro
o que mais disse: o pensamento
Da
torre altiva ao cimo chamejante,
36
Que os olhos me prendia, estava atento.
Lá
o aspecto se erguia horripilante
De
fúrias três; de sangue eram tingidas,
39
Feminis no meneio e no semblante.
De
hidras verdes mostravam-se cingidas,
Cerastes,
serpes cada uma tinha
42
Por coma, em torno à fronte entretecidas.
Virgílio,
que conhece da rainha
Do
eterno pranto essas ancilas cruas,
45
— “Nas Érinis atenta” diz-me asinha.
“Megera
à esquerda está das outras duas,
Chora
à direita Aleto e fica ao meio
48
Tisífone”. — E pôs termo às vozes suas.
Co’as
unhas cada qual rasgava o seio,
Com
seus punhos batiam-se, em tal brado,
51
Que ao Vate me acerquei, de pavor cheio.
Olhando-me
dizia: — “Transformado
Em
pedra seja por Medusa; o assalto
54
Do ímpio Teseu não foi assaz vingado.
—
“Volta a face; de luz o rosto falto
Conserva;
que, se a Górgona encarar-te,
57
Tu não mais tornarás da terra ao alto”. —
Disse
o Mestre, e volveu-me à oposta parte;
E
as mãos juntando às minhas que não bastam,
60
Os olhos amparar-me quis dessa arte.
Ó
vós cujas idéias não se afastam
Das
leis da sã razão, vede os preceitos
63
Que destes versos sobre o véu se engastam.
Eis
sobre as águas túrbidas desfeitos
Troam
sons de fracasso temeroso;
66
Tremendo, as margens sentem-lhe os efeitos.
O
tufão assim freme impetuoso,
Que,
de ardores contrários se excitando,
69
Sem pausa fere a selva, e furioso,
Quebrando
ramas, flores arrancando,
Entre
nuvens de pó soberbo assalta
72
Feras, pastores e lanoso bando.
Os
olhos descobriu-me e disse: “Exalta
A
vista agora até a espuma antiga,
75
Onde mais acre a cerração ressalta”.
Quais
rãs, divisando a cobra imiga,
Todas
da água no seio desaparecem,
78
E cada qual no lodo entra e se abriga,
Tais
milhares de espíritos parecem,
Em
derrota fugindo ante a figura
81
Que passa; nágua os pés não se umedecem.
Movendo
a esquerda mão, a névoa escura,
Que
lhe era em torno ao vulto, dissipava:
84
Só este afã lhe altera a face pura.
Ser
ele conheci que o céu mandava;
A
Virgílio voltei-me, e mudo e quieto
87
Ao aceno, que fez, eu me acurvava.
Quantos
lumes reflete o iroso aspecto!
À
porta chega: ao toque de uma vara
90
Abre-se a entrada do alcáçar infecto.
—
“Ó turba vil, que o céu de si lançara!” —
Ao
limiar falou da atroz cidade,
93
— “Donde vos vem da audácia a insânia rara?
“Por
que recalcitrais à alta vontade,
Que
sempre cumpre o seu excelso intento,
96
E à dor já vos cresceu a intensidade?
“Cuidais
pôr ao destino impedimento?
Cérbero,
o vosso, na memória tende:
99
Trilhados inda estão-lhe o colo e o mento”.
Então
pelo caminho imundo estende,
Sem
nos falar, os passos semelhante
102
A quem outros cuidados a alma prende,
Daqueles,
que há presentes, bem distante.
Nós
à cidade afoutos caminhamos:
105
Deu-nos esforço o seu falar pujante.
Já,
removido todo o pejo, entramos.
Eu,
que sentia de saber desejo
108
Quanto o forte contém que franqueamos.
Como
fui dentro, a tudo pronto, vejo
Campanha
em toda parte ilimitada,
111
Mas não espaço às punições sobejo.
Como
em Arle, onde o Rône faz parada
Ou
junto a Pola, de Quernaro perto,
114
De que à Itália a fronteira está banhada,
Stá
de sepulcros desigual e incerto
O
solo: outros assim a estância feia,
117
Mas de modo mais agro, tem coberto.
Entre
eles chama horrífica serpeia
E
os abrasa inda mais que frágua ardente
120
Que arte para amolgar o ferro ateia.
Alçada
a tampa, é cada qual patente.
Dali
surgia um lamentar profundo,
123
De miséreo gemido permanente.
—
“Ó Mestre meu, quais foram lá no mundo” —
Eu
disse — “aqueles, que no duro encerro
126
Denunciam tormento sem segundo?” —
“Aqui
stão os hereges por seu erro,
Com
seus sequazes dos diversos cultos:
129
São mais do que tu crês em cada enterro.
“Iguais
com seus iguais estão sepultos,
Uns
túmulos mais que outros são candentes”.
À
destra então voltou: com tristes vultos
133
Passamos entre o muro e os padecentes.
22-27.
Ali, porém etc.: a alma de Virgílio já desceu no mais profundo do Inferno
acompanhada pela bruxa Eríton. — 43. A rainha, Prosérpina. — 53-54. O assalto
etc., Teseu desceu no Inferno para raptar Prosérpina. — 45. Erínis, ou as três
Fúrias, filha de Érebo e da Noite. — 56. Górgona, o rosto de Medusa que
petrificava quem o olhasse. — 98. Cérbero, guardião do Inferno, que foi vencido
por Hércules, quando este desceu no Inferno. — 112-15. Em Aries etc., alusão
aos túmulos romanos, numerosos na Provença perto de Arles e em Pola, na Ístria.
CANTO X
Caminhando
os Poetas entre as arcadas, onde estão penando as almas dos heresiarcas, Dante
manifesta a Virgílio o desejo de ver a gente nelas sepultada e de falar a
alguém. Nisto ouve uma voz chamá-lo. É Farinata degli Uberti. Enquanto o Poeta
conversa com ele é interrompido por Cavalcante Cavalcanti, que lhe indaga por
seu filho Guido. Continua Dante o começado discurso com Farinata, que lhe
prediz obscuramente o exílio.
ENTRA
Virgílio por vereda estreita,
Que
entre o muro e os martírios vai seguindo:
3
Após os seus meu passo se endireita.
—
“Virtude suma! Ó tu, que, dirigindo
Me
estás, ao teu sabor na estância triste,
6
Me instrui, ao meu desejo deferindo.
“A
gente ver se pode que ora existe
Naquelas
sepulturas descobertas,
9
A que nem guarda, nem defesa assiste?” —
—
“Serão” — me respondeu — “todas cobertas
No
dia, em que, de Josafá tornando,
12
Os corpos tragam, de que estão desertas.
“Epicuro
aqui jaz com todo o bando
Dos
discípulos seus, que professaram
15
Que alma fenece, a vida em se acabando.
“O
que as tuas palavras declararam
Satisfeito
há de ser, como o que vejo
18
Dos votos que em teu peito se ocultaram”. —
—
“Não te expus, meu bom Mestre, quanto almejo,
Porque
de breve ser tenho o cuidado,
21
E a mais longo dizer não deste ensejo”. —
—
“Ó Toscano, que, vivo hás penetrado
Do
fogo na cidade e és tão modesto,
24
Detém-te um pouco, se te for de agrado.
“Por
teu falar me está bem manifesto
Que
nessa nobre pátria tens nascido,
27
A que fora eu talvez assaz molesto”. —
Ouço
este som, de súbito saído
De
um dos jazigos: tanto eu me torvara,
30
Que ao Mestre me achegava espavorido.
—
“Que temes tu?” — Virgílio diz — “Repara:
É
Farinata em seu sepulcro alçado,
33
Do busto em toda a altura, se depara”. —
Na
sombra os olhos tinha eu já fitado:
Altiva
levantava a fronte e o peito,
36
Como em desprezo do infernal estado.
Por
entre as tumbas me levou direito
Ao
vulto o Mestre com seu braço presto,
39
Dizendo-me: — “Sê claro em teu conceito!” —
Junto
ao sepulcro apenas fui, com gesto
Severo
um pouco olhou-me e desdenhoso
42
— “Teus maiores?” — falou — “Faz manifesto”.
Eu,
já de obedecer-lhe desejoso,
Quanto
sabia expus-lhe francamente.
45
O sobrolho arqueava um tanto iroso,
E
tornou: — “Guerra crua fez tua gente
A
mim, aos meus avós, ao partido;
48
Mas duas vezes bani-os justamente”. —
—
“Mas todos os que expulsos tinham sido
Se
hão, de uma e de outra vez repatriado:
51
Não têm essa arte os vossos aprendido”. —
Surgindo
então de Farinata ao lado
Somente
o rosto um vulto nos mostrava,
54
Sobre os joelhos, cheio, levantado.
Com
ansiosos olhos me cercava
A
ver se alguém viera ali comigo.
57
Mas, perdida a esperança, que o animava,
Pranteando
inquiriu: — “Se ao reino imigo
Por
prêmio baixas do teu alto engenho,
60
Onde é meu filho? Pois não vem contigo?
—
“Por moto próprio aqui” — volvi — “não venho;
Perto
me aguarda quem meus passos guia,
63
Vosso Guido talvez teve-o em desdenho”.
A
pena sua e as vozes, que lhe ouvia,
Denunciado
haviam-me o seu nome:
66
Pude assim responder quanto cumpria.
Súbito
ergueu-se o espírito e gritou-me:
“Teve
disseste: não mais vive agora?
69
O corpo seu a terra já consome?”
Como
eu tivesse em responder demora
À
pergunta, de costas recaía,
72
E novamente não mostrou-se fora.
Mas
esse outro magnânimo, que havia
De
antes falado não mudou de aspeito;
75
No colo e busto imóvel persistia.
—
“Se aquela arte não dera ao meu proveito” —
Prosseguiu
— “me produz esta certeza
78
Maior tormento no adurente leito.
“Porém
vezes cinqüenta a face acesa
Não
mostrará do inferno a soberana
81
Sem que tu saibas quanto essa arte pesa.
“Assim
possas voltar à vida humana!
Contra
os meus, diz, por que tanta maldade
84
Em cada lei, que desse povo emana” —
Eu
respondi: — “O estrago, a mortandade,
Que
do Árbia as águas de rubor tingira
87
A cúria nossa move à austeridade”. —
Inclinando
a cabeça então, suspira
E
diz: — “não fui lá só naquele dia,
90
Nem sem motivo aos outros eu seguira.
“Porém
achei-me só, quando exigia
De
Florença a ruína o geral brado:
93
A peito descoberto eu defendia-a”. —
—
“Seja o descanso à vossa prole dado:
Mas,
vos suplico, de penoso enleio
96
Fique o juízo meu descativado.
“Se
bem percebo, do futuro ao seio
Subindo
e ao tempo o curso antecipando,
99
Do presente ignorais todo o rodeio”. —
—
“Os que têm vista má nos semelhando” —
Tornou-me
— “as cousas mais distantes vemos,
102
De Deus última luz em nós raiando.
“Quando
estão perto ou no presente as temos
Se
apaga a lucidez, e a mente aprende
105
Por outrem só o que de vós sabemos.
“Ciência
nossa do porvir depende;
Em
sendo a porta do porvir cerrada,
108
Essa luz morre em nós, não mais se acende”.
Então
minha alma, de remorso entrada,
“Dize”
— replico — à sombra, a quem falava,
111
Que o filho inda entre os vivos tem morada.
Se
presto lhe não disse o que exorava,
Da
dúvida, que, há pouco, heis-me explicado
114
Pela influência dominado eu stava”. —
Se
bem fosse do Mestre apelidado,
Rogando
a sombra a me dizer prossigo
117
As almas, de quem stava acompanhando.
Respondeu:
— “Muitos mil jazem comigo
Aqui
dentro, o Segundo Frederico,
120
Com ele o cardeal, de outros não digo”. —
Dos
olhos se apartou. A cismar fico,
Voltando
ao sábio Mestre, na ameaça
123
Desse, que ouvira, vaticínio único.
Ele
caminha, e, enquanto avante passa,
Me
diz: “Por que és torvado?” — Eu tudo conto
126
Expondo o que me inquieta e me embaraça.
—
“Do que ouviste a memória cada ponto
Conserva!”
— o sábio ordena; e, logo, alçando
129
O dedo, segue: — “Agora escuta pronto.
“Ante
o doce raiar daquela estando,
Que
tudo aos belos olhos tem presente,
132
Se irão da vida os transes revelando”. —
Moveu-se
logo à esquerda diligente;
Deixando
o muro, ao centro caminhava
Por
senda, que descia ao vale horrente,
136
Que hediondos vapores exalava.
32.
Farinata degli Uberti, nobre florentino, chefe dos gibelinos, que combateu os
guelfos em Montaperti (1260); e depois, com a sua autoridade, impediu que a
cidade fosse destruída. — 48. Mas duas vezes etc., os ascendentes de Dante,
guelfos, duas vezes foram banidos de Florença. — Um vulto, Cavalcante Cavalcanti,
pai de Guido, poeta e amigo de Dante. — 111. Que o filho, Guido Cavalcanti
ainda está vivo. — 119. O segundo Frederico, Frederico II da Suábia, tido como
herege. — 120. O cardeal, Otávio degli Ubaldini, também tido como herege.
CANTO XI
Os
Poetas chegam à beira do sétimo círculo. Sufocados pelo mau cheiro que se
levanta daquele báratro, param atrás do sepulcro do papa Anastácio. Virgílio
explica a Dante a configuração dos círculos infernais. O primeiro, que é o
sétimo, é o círculo dos violentos. Como a violência pode dar-se contra o
próximo, contra si próprio e contra Deus, o círculo é dividido em três
compartimentos, cada um dos quais contém uma espécie de violentos. O segundo
círculo, que é o oitavo, é o dos fraudulentos e se compõe de dez círculos
concêntricos. O terceiro, que é o nono, se divide em quatro compartimentos
concêntricos. Fala-lhe também acerca dos incontinentes e dos usurários.
Movem-se depois para o lugar de onde se desce para o precipício.
À
BORDA de alta riba assim chegamos,
Que
em círc’lo rotas penhas conformavam:
3
De lá mais crus tormentos divisamos.
Do
fundo abismo exalações brotavam,
Tão
acres, que a fugir nos obrigaram
6
Para trás das muralhas elevadas
De
um sepulcro, em que os olhos decifraram:
“Sou
do papa Anastácio a sepultura,
9
Que de Fotino os erros transviaram”.
“Lentamente
desçamos desta altura:
Assim,
o olfato ao mau odor afeito,
12
Não hemos de sentir-lhe a ação impura”.
A
Virgílio tornei: “Proceda a jeito,
Ó
Mestre, por que o tempo consumido
15
Na demora, não corra sem proveito”. —
—
“Já stava o meio, ó filho, apercebido.
Nestas
penhas três círc’los há menores,
18
Por degraus, como os outros, que hás descido.
“Plenos
stão de malditos pecadores.
Por
que, em vendo, os conheças logo, atende:
21
Direi seus crimes e da pena as dores.
“Todo
mal, que no céu cólera acende,
Injustiça
há por fim, que o dano alheio,
24
Usando fraude ou violência, tende.
“Próprio
do homem por ser da fraude o meio
Mais
descontenta a Deus; mores tormentos
27
Em lugar sofre de aflições mais cheio.
“Dos
círc’los o primeiro é dos violentos;
Mas,
força a três pessoas se fazendo,
30
Foi construído em três repartimentos.
“A
Deus, a si, ao próximo ofendendo,
Nas
pessoas, nos bens a força fere,
33
Como hás de convencer-te, me entendendo.
“Morte
ou dor força ao próximo confere.
Com
ruína, com fogo os bens lhe invade.
36
Quando pela extorsão não se apodere.
“Homicidas,
os que usam feridade,
Ladrões,
desvastadores, torturados
39
Stão no primeiro, em turmas, sem piedade.
“Homens
há contra si cruéis, irados
Ou
contra os próprios bens: pois no segundo
42
Recinto jazem sempre amargurados,
“Quem
se privara do terreno mundo,
Os
que seus cabedais malbarataram,
45
Quem chora onde pudera estar jucundo.
“Contra
Deus violências homens preparam,
Se
o negam, se o blasfemam, desdenhando
48
Natura e os dons, que nela se deparam.
“No
recinto menor sinal nefando
Caors
marca igualmente com Sodoma,
51
E os que pecaram contra Deus falando.
“A
fraude em que o remorso tanto assoma,
Ou
trai a confiança ou premedita
54
Danos a quem desprevenido toma.
“A
fraude desta espécie se exercita
Contra
os laços de amor, que faz natura:
57
Portanto no segundo círc’lo habita
“Adulação
com simonia impura,
Hipócritas,
falsários, feiticeiros,
60
Rufiães e outros dessa laia escura.
“Transtorna
a outra afetos verdadeiros,
Que
inspira a natureza e os que origina
63
A mútua fé nos ânimos inteiros.
“E,
pois, no círc’lo extremo, que domina
Da
terra o centro e onde Dite pesa,
66
Eterna pena aos tredos se destina”. —
“Tem,
Mestre” — eu disse — “o cunho da clareza
O
que expões, distinguindo exatamente
69
A geena do inferno e a gente presa.
“Diz-me:
os que jazem na lagoa ingente,
Os
que flagela o vento ou chuva imiga,
72
Os que se encontram em frêmito insolente,
“Por
que Deus lá em Dite os não castiga,
Se
a ira a Deus seus feitos acenderam?
75
Se não, por que a aflição tanto os fustiga?” —
“Deliras?
Da tua mente se varreram
Princípios
sãos” — tornou — “a que és afeito?
78
A que rumo as idéias se volveram?
“Olvidas,
porventura, esse preceito,
De
que houveste na Ética a ciência,
81
Das três disposições, que em mau conceito
“Estão
do céu, — malícia, incontinência
E
furor bestial? — como a segunda
84
Importa a Deus menor irreverência?
“Se
atentas em verdade tão profunda,
Se
lembras quais são esses que padecem
87
Acima da mansão, que o fogo inunda,
“Verás
então ser justo não sofressem
Daqueles
maus a par, menos pesada
90
Punição culpas suas merecessem”. —
“Sol,
que me aclara a vista perturbada,
Às
lições tuas dou tamanho apreço,
93
Que o duvidar, como o saber, me agrada.
“Tornando
ao que disseste, expliques peço,
Por
que motivo, Mestre, usura ofende
96
A divina bondade em tanto excesso”. —
“Filosofia”
— disse — “quem a atende
Tem
demonstrado, quase em toda parte,
99
Que a natureza a sua origem prende
“Do
divino intelecto e da sua arte.
Da
Física em princípio hás conhecido
102
Preceito, que hei mister recomendar-te:
Que
é da vossa arte ir sempre que há podido
Após
natura — à mestra obediente; —
105
Neta de Deus chamá-la é permitido.
“Da
natureza e da arte, se tua mente
O
Gênese em começo lembra, colhe
108
O seu sustento e haver a humana gente.
“Usura
bem diversa estrada escolhe
Natura
e a aluna sua menospreza,
111
Esperança e cuidado e mal recolhe.
Mas
andemos; prossiga a nossa empresa.
Vão
no horizonte os Peixes assomando;
Voltando
sobre o coro o culto pesa
115
E, além, a rocha está passagem dando”. —
8-9.
Anastácio, engano de pessoa em que cai Dante, em conformidade com as crônicas
do seu tempo. Não foi o papa Anastácio II, mas o imperador grego Anastácio I
que foi transviado pela heresia de Fotino. — 80. Ética, a Ética de Aristóteles.
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