INFERNO ... Cantos I-V ... VI-XI ... XII-XVII ... XVIII-XXIII ... XIV-XXIX ... XXX-XXXIV
PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII
PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII
A
DIVINA COMÉDIA
Nota
Editorial
Orelha
do livro
Notícia
Biográfica
A
DIVINA COMÉDIA
INFERNO
PURGATÓRIO
PARAÍSO
|
Dante
Alighieri
Tradução
de José Pedro Xavier Pinheiro
A
DIVINA COMÉDIA
DANTE
ALIGHIERI
Tradução
José
Pedro Xavier Pinheiro
1822-1882
Versão
para eBook
eBooksBrasil
Fonte
Digital
Digitalização
do livro em papel
COMPOSTO
E IMPRESSO
NAS
OFICINAS DE
D.
GIOSA - INDÚSTRIAS GRÁFICAS S/A
SEÇÃO:
ATENA EDITORA
RUA
JAVAÉS, 465 - SÃO PAULO
MARÇO
- 1955
©
2003 — Dante Alighieri
A
DIVINA
COMÉDIA
imagem
Dante
Alighieri
Índice
dos Cantos
|
Nota
Editorial
Aqui
está uma obra que deveria figurar na “cesta básica” de qualquer estudante. E
não apenas por ser a famosa “Comédia” de Dante Alighieri, a que os pósteros
houveram por bem acrescentar, por seus méritos tantos, “A Divina”.
A
tradução, feita pelo brasileiro José Pedro Xavier Pinheiro, enobrece a língua
portuguesa e, em particular, as letras pátrias. Mas isso o leitor irá constatar
por si mesmo.
Nela,
gastou Xavier Pinheiro anos de sua vida. Seu filho, J. A. Xavier Pinheiro,
acrescentou-lhe um Rimário, para uma segunda edição editada por Jacintho
Ribeiro dos Santos, nos anos 10 do século passado, enriquecida com as gravuras
de Gustave Doré, em folhas à parte.
Por
que cito tais fatos? Porque a única finalidade que movia os Xavier Pinheiro,
pai e filho, era contribuir para o enriquecimento cultural de nossa gente, sem
subsídios como condição prévia e sem láureas ou pecúnia como retribuição.
A
presente edição em eBook, infelizmente, não preserva o Rimário, que não consta
da edição digitalizada, editada pela Atena Editora, que, com sua Biblioteca
Clássica, ainda encontrada nos bons sebos, familiarizou gerações com o que
havia de melhor nas letras e no pensamento universais. E, não é demais
salientar, sem os ranços de nacionalismos estreitos, freqüentemente disfarçando
interesses outros em nome da “defesa dos autores nacionais”, mas cujo único
resultado é distanciar nossa gente do pensamento universal, que nunca teve, nem
jamais terá outra barreira que não a da língua.
É
exatamente esta barreira que, no caso, Xavier Pinheiro transpôs, com sua
tradução.
Na
presente versão para eBook, tentamos fazer justiça aos esforço do tradutor,
cuidando ao máximo da revisão. Infelizmente, como quem quer que já tenha feito
uma digitalização sabe, ao digitalizar 516 páginas, aqui e ali sempre passará
algum “gato”. Esperamos que os que tenham passado não miem muito...
Atualizamos
a grafia, preservando, contudo, as apócopes e as elisões do tradutor que, com
tais recursos, evidentemente visava conservar o sabor e a métrica originais.
Para facilitar a leitura, apenas para isso, adicionamos acentos. Por exemplo,
quando na fonte digital estava cir’clo, adicionamos o acento círc’lo, como
apoio à leitura.
Como
não temos preocupação com economia de papel, separamos os tercetos de forma
mais clara, acompanhando a edição digital da LiberLiber (www.liberliber.it). A
numeração dos versos foi preservada para facilitar a consulta às notas e para a
leitura em determinados formatos em tela pequena. As notas não foram “lincadas”
e estão ao fim de cada Canto, como na edição digitalizada. Alguns, como eu,
sentirão a falta deste recurso que só é possível nas edições digitais... Mas...
E
apenas ilustramos esta edição com as gravuras de Doré. Na internet, o leitor
mais interessado poderá encontrar recursos para aprofundar seu conhecimento da
obra em pelo menos quatro excelentes websites:
1.
Destaque especial para o esforço individual de Helder da Rocha com seu site “A
Divina Comédia”.
2.
O Dante Digital da Columbia University.
3.
O Dante On Line, em italiano, com direito a ver na tela alguns manuscritos...
sem ter que fazer download de nenhum recurso extra.
4.
O Divine Comedy, excelente, mas nem sempre disponível.
E
todos os mais que o google pode lhe indicar.
Boa
leitura!
Uma
nota final (já ia me esquecendo): A presente edição em eBook pode ser
distribuída à vontade, sob uma única condição: todo uso comercial é PROIBIDO,
além de obviamente INDECENTE. Quem fizer — se alguém fizer, melhor diria, restasse
em mim alguma esperança na honestidade pátria, caso em que nem colocaria a nota
— é melhor começar a leitura clicando aqui, para ir se acostumando com o
cenário.
Teotonio
Simões
eBooksBrasil
A DIVINA
COMÉDIA
DE DANTE
ALIGHIERI
Dedicando-lhe
o “Paraíso” escrevia Dante a Cangrande della Scala: “O sentido desta obra não é
simples; ao contrário ela é “polisensa”, pois outro é o sentido literal, outro
aquele das coisas significadas”.
Declarava
Dante com essas palavras que a “Divina Comédia” é um poema alegórico. Não
somente no poema há alegorias particulares, mas o poema, na sua inteireza, tem
uma significação, ou melhor, várias significações alegóricas.
Muitas
foram as interpretações que da “Divina Comédia” se fizeram sob esse ponto de
vista. Alguns comentadores puseram em maior evidência o seu sentido moral e
teológico; outros consideram o poema dantesco como uma obra de inspiração
política e ligada intimamente às vicissitudes pessoais do poeta.
Não
são, porém, as intenções alegóricas que consagram a imortalidade da “Comédia”
dantesca, à qual os pósteros atribuíram a qualificação de divina. A “Divina
Comédia” é, principalmente, uma formidável obra de fantasia e de representação
poética, talvez um dos pontos limites que a inteligência humana pode alcançar.
Na
presente edição, o poema dantesco ê apresentado na tradução em tercetos rimados
como no texto original, de José Pedro Xavier Pinheiro. Não há dúvida de que
poucas obras apresentam as dificuldades que apresenta a “Divina Comédia” para a
tradução em outros idiomas, especialmente para quem às outras dificuldades
queira ajuntar aquelas decorrentes da conservação do metro original e da rima.
A tradução de Xavier Pinheiro constitui uma obra digna de admiração. Fiel,
bastante clara, consegue reproduzir grande parte da força poética do
maravilhoso poema italiano.
Fonte:
“orelha” da edição digitalizada
NOTÍCIA
BIOGRÁFICA
Dante
Alighieri nasceu em Florença, em maio de 1265, de dona Bella e de Aldighiero
Alighieri. De família nobre e abastada, dedicou-se desde cedo aos estudos,
sendo que o célebre Brunetto Latini foi um dos seus mestres. Estudou letras e
ciências, não se descuidando do desenho e da música. Mais tarde aplicou-se
também à teologia.
Moço
ainda, Dante participou da vida política da sua cidade. Em 1289, os exilados
florentinos, juntando-se aos outros gibelinos de Toscana, tentaram invadir a
República. O exército florentino deu-lhes batalha em Campaldino no dia 11 de
junho de 1289, conseguindo derrotá-los. Dante participou destas operações
militares, combatendo na cavalaria. Pouco depois, participou também do assédio
ao castelo de Caprona.
Sendo
necessário, para conseguir cargos da República, pertencer a uma corporação,
Dante se inscreveu na dos médicos e farmacêuticos, que era a sexta entre as
assim chamadas Artes Maiores. Sua atuação na vida pública foi brilhante.
Conforme diz Boccaccio, em Florença não se tomava nenhuma deliberação sem que
ele desse a sua opinião. Várias vezes foi embaixador da República, várias vezes
pertenceu ao Conselho do Estado, e, finalmente, em 1300, obteve o cargo de
“priore”, que era a suprema magistratura política de Florença.
Conforme
ele mesmo diz, numa de suas cartas, as suas desgraças se originaram da sua
eleição ao priorado. A cidade de Florença era dividida em dois partidos: os
Brancos e os Pretos, que determinavam freqüentes conflitos, disso resultando
que os priores, entre os quais Dante, resolvessem exilar alguns entre os
cabeças, pertencentes às mais ilustres famílias de Florença.
Os
Pretos, porém, encontraram uma ocasião propícia para obter o mando na cidade e
oprimir os seus inimigos. Aproveitando-se da passagem por Florença de Carlos de
Valois, irmão do rei da França, em viagem para Roma, conseguiram convencê-lo e
convencer ao Papa Bonifácio VIII, de que os Brancos eram inimigos da Casa de
França e da Cúria Romana. Os notáveis da cidade enviaram embaixadores ao Papa,
e entre eles, Dante, para dissiduadí-lo do intuito de entregar a cidade à parte
mais facciosa. Bonifácio, porém, tergiversando, manteve os embaixadores
florentinos na expectativa, enquanto Carlos de Valois empossava os Pretos no
mando de Florença, resultando daí um período de violências e saqueios.
Maldizendo
a perfídia da Cúria Romana, partiu Dante de Roma para voltar para a Toscana. Chegando,
porém, nas proximidades de Florença, soube que os seus inimigos, acusando-o de
ser gibelino, e, ainda, de ter-se aproveitado do dinheiro público, o tinham
condenado ao exílio, e a pagar uma pesada multa e que as suas possessões haviam
sido depredadas. Começou, então, para Dante, a vida dura do exilado e do
perseguido que conhece
...
come sa di sale
Lo
pane altrui e come é duro calle
Lo
scendre e ’l salir per l’altrui scale.
Mudando
freqüentemente de cidade, servindo a vários senhores, viveu Dante os últimos
anos de sua vida. Morreu, com a idade de 56 anos, em Ravena a 14 de setembro de
1.321.
A
obra poética de Dante se prende, na sua máxima parte, ao seu amor puramente
espiritual por Beatriz de Folco Portinari. Dante conheceu Beatriz, quando ele tinha
nove anos e Beatriz oito. Tornou a vê-la depois de nove anos, e, mais tarde,
outras poucas vezes, pois Beatriz casou-se, e morreu em 1290. Embora, também,
Dante se casasse em 1291 com Gemma Donati e com ela tivesse vários filhos, o
amor por Beatriz constantemente inspirou a sua poesia. A maior parte das
canções, dos sonetos e das baladas que constituem o “Canzoniere“ são dedicados
à sua amada; a Vida Nova é uma história dos seus amores com Beatriz; a Divina
Comédia, o sublime poema que talvez a humanidade nunca verá superado, prende-se
também ao seu amor por Beatriz, bem como ao desejo de vingar-se de seus
inimigos e de expor as suas idéias políticas.
Além
dessas obras, escreveu o Convite, compêndio da filosofia do seu tempo, exposta
eloqüentemente sob a forma de comento a três das suas canções; o De monarquia,
tratado político; o De vulgari eloquentia, tratado filológico, deixado
incompleto.
A
DIVINA
COMÉDIA
Dante
Alighieri
—INFERNO—
CANTO I
Dante,
perdido numa selva escura, erra nela toda a noite. Saindo ao amanhecer, começa
a subir por uma colina, quando lhe atravessam a passagem uma pantera, um leão e
uma loba, que o repelem para a selva. Aparece-lhe então a imagem de Virgílio,
que o reanima e se oferece a tirá-lo de lá, fazendo-o passar pelo Inferno e
pelo Purgatório. Beatriz, depois, o guiará ao Paraíso. Dante o segue.
DA
nossa vida, em meio da jornada,
Achei-me
numa selva tenebrosa,
3
Tendo perdido a verdadeira estrada.
Dizer
qual era é cousa tão penosa,
Desta
brava espessura a asperidade,
6
Que a memória a relembra inda cuidosa.
Na
morte há pouco mais de acerbidade;
Mas
para o bem narrar lá deparado
9
De outras cousas que vi, direi verdade.
Contar
não posso como tinha entrado;
Tanto
o sono os sentidos me tomara,
12
Quando hei o bom caminho abandonado.
Depois
que a uma colina me cercara,
Onde
ia o vale escuro terminando,
15
Que pavor tão profundo me causara.
Ao
alto olhei, e já, de luz banhando,
Vi-lhe
estar às espaldas o planeta,
18
Que, certo, em toda parte vai guiando.
Então
o assombro um tanto se aquieta,
Que
do peito no lago perdurava,
21
Naquela noite atribulada, inquieta.
E
como quem o anélito esgotava
Sobre
as ondas, já salvo, inda medroso
24
Olha o mar perigoso em que lutava,
O
meu ânimo assim, que treme ansioso,
Volveu-se
a remirar vencido o espaço
27
Que homem vivo jamais passou ditoso.
Tendo
já repousado o corpo lasso,
Segui
pela deserta falda avante;
30
Mais baixo sendo o pé firme no passo.
Eis
da subida quase ao mesmo instante
Assoma
ágil e rápida pantera
33
Tendo a pele por malhas cambiante.
Não
se afastava de ante mim a fera;
E
em modo tal meu caminhar tolhia,
36
Que atrás por vezes eu tornar quisera.
No
céu a aurora já resplandecia,
Subia
o sol, dos astros rodeado,
39
Seus sócios, quando o Amor divino um dia
A
tais primores movimento há dado.
Me
infundiam desta arte alma esperança
42
Da fera o dorso alegre e mosqueado,
A
hora amena e a quadra doce e mansa.
De
um leão de repente surge o aspecto,
45
Que ao meu peito o pavor de novo lança.
Que
me investisse então cuido inquieto;
Com
fome e raiva atroz fronte levanta;
48
Tremer parece o ar ao seu conspeto.
Eis
surge loba, que de magra espanta;
De
ambições todas parecia cheia;
51
Foi causa a muitos de miséria tanta!
Com
tanta intensa torvação me enleia
Pelo
terror, que o cenho seu movia,
54
Que a mente à altura não subir receia.
Como
quem lucro anela noite e dia,
Se
acaso o tempo de perder lhe chega,
57
Rebenta em pranto e triste se excrucia,
A
fera assim me fez, que não sossega;
Pouco
a pouco me investe até lançar-me
60
Lá onde o sol se cala e a luz me nega.
Quando
ao vale eu já ia baquear-me
Alguém
fraco de voz diviso perto,
63
Que após largo silêncio quer falar-me.
Tanto
que o vejo nesse grão deserto,
—
“Tem compaixão de mim” — bradei transido —
66
“Quem quer que sejas, sombra ou homem certo!”
“Homem
não sou” tornou-me — “mas hei sido,
Pais
lombardos eu tive; sempre amada
69
Mântua lhes foi; haviam lá nascido.
“Nasci
de Júlio em era retardada,
Vivi
em Roma sob o bom Augusto,
72
Quando em deuses havia a crença errada.
“Poeta,
decantei feitos do justo
Filho
de Anquíses, que de Tróia veio,
75
Depois que Ílion soberbo foi combusto.
“Mas
por que tornas da tristeza ao meio?
Por
que não vais ao deleitoso monte,
78
Que o prazer todo encerra no seu seio?”
“—
Oh! Virgílio, tu és aquela fonte
Donde
em rio caudal brota a eloqüência?”
81
Falei, curvando vergonhoso a fronte. —
“Ó
dos poetas lustre, honra, eminência!
Valham-me
o longo estudo, o amor profundo
84
Com que em teu livro procurei ciência!
“És
meu mestre, o modelo sem segundo;
Unicamente
és tu que hás-me ensinado;
87
O belo estilo que honra-me no mundo.
“A
fera vês que o passo me há vedado;
Sábio
famoso, acude ao perseguido!
90
Tremo no pulso e veias, transtornado!”
Respondeu,
do meu pranto condoído;
“Te
convém outra rota de ora avante
93
Para o lugar selvagem ser vencido.
“A
fera, que te faz bradar tremante,
Aqui
passar não deixa impunemente;
96
Tanto se opõe, que mata o caminhante.
“Tem
tão má natureza, é tão furente,
Que
os apetites seus jamais sacia,
99
E fome, impando, mais que de antes sente.
“Com
muitos animais se consorcia,
Há-de
a outros se unir té ser chegado
102
Lebréu, que a leve à hórrida agonia.
“Por
ouro ou por poder nunca tentado
Saber,
virtude, amor terá por norte,
105
Sendo entre Feltro e Feltro potentado.
“Será
da humilde Itália amparo forte,
Por
quem Camila a virgem dera a vida,
108
Turno Eurialo, Niso acharam morte.
“Por
ele, em toda parte, repelida
Irá
lançar-se no infernal assento,
111
Donde foi pela Inveja conduzida.
“Agora,
por teu prol, eu tenho o intento
De
levar-te comigo; ir-te-ei guiando
114
Pela estância do eterno sofrimento,
“Onde,
estridentes gritos escutando,
Verás
almas antigas em tortura
117
Segunda morte a brados suplicando.
“Outros
ledos verás, que, em prova dura
Das
chamas, inda esperam ter o gozo
120
De Deus no prêmio da imortal ventura.
“Se
lá subir quiseres, um ditoso
Espírito,
melhor te será guia,
123
Quando eu deixar-te, ao reino glorioso.
“Do
céu o Imperador, a rebeldia
Minha
à lei castigando, não consente
126
Que eu da cidade sua haja a alegria.
“Em
toda parte impera onipotente,
Mas
tem no Empíreo sua augusta sede:
129
Feliz, por ele, o eleito à glória ingente!”
—
“Vate, rogo-te” — eu disse — “me concede,
Por
esse Deus, que nunca hás conhecido,
132
Porque este e maior mal de mim se arrede.
“Que,
até onde disseste conduzido,
À
porta de São Pedro eu vá contigo
E
veja os maus que houveste referido”.
136
Move-se o Vate então, após o sigo.
1.
Em meio etc. Aos 35 anos. Dante tinha 35 anos no dia 25 de março de 1300, ano
no qual o papa Bonifácio VIII proclamou o primeiro Jubileu. — 2. Tenebrosa
etc., simbólica selva dos vícios humanos. — 32. Pantera, símbolo da luxúria e
da fraude; politicamente, de Florença. — 44. Um leão, símbolo da soberba e da
violência; politicamente, da França. — 40. Loba, símbolo da avareza e da
incontinência; politicamente da Cúria Romana. — 62. Alguém etc., o poeta
Virgílio Maro, símbolo da razão humana. — 105. Entre Feltro e Feltro, entre
Montefeltro e Feltro. — 122. Espirito melhor, Beatriz, a mulher que Dante amou.
CANTO II
Depois
da invocação às Musas, Dante, considerando a sua fraqueza, duvida de
aventurar-se na viagem. Dizendo-lhe, porém, Virgílio, que era Beatriz quem o
mandava, e que havia quem se interessava pela sua salvação, determina-se
segui-lo e entra com o seu guia no difícil caminho.
FORA-se
o dia; e o ar, se enevoando,
Aos
animais, que vivem sobre a terra,
3
As fadigas tolhia; eu só, velando,
Me
aparelhava a sustentar a guerra
Da
jornada, assim como da piedade,
6
Que vai pintar memória, que não erra.
Ó
Musas! Ó do gênio potestade!
Valei-me!
Aqui, ó mente, que guardaste
9
Quanto vi, mostra a egrégia qualidade.
“Poeta”,
— assim falei, — “que começaste
A
guiar-me, vê bem se em mim persiste
12
Calor que, à empresa que me fias, baste.
“Que
o pai do Sílvio fora, referiste,
Corrutível
ainda, até o inferno
15
Sem perder o que em corpo humano existe.
“Se
do mal assim quis o imigo eterno,
Origem
vendo nele do alto efeito,
18
O que e o qual, segundo o que discerno,
“Pela
razão bem pode ser aceito;
Que
para Roma e o império se fundarem
21
Fora no céu por genitor eleito;
“À
qual e ao qual cabia aparelharem,
Dizendo-se
a verdade, o lugar santo
24
Aos que do maior Pedro o sólio herdaram.
“Nessa
empresa, em que o hás louvado tanto,
Cousas
ouviu, de que surgiu motivo
27
Ao seu triunfo e ao pontifício manto.
“Lá
foi o Vaso Eleito ainda vivo:
Conforto
ia buscar, à fé, que à estrada
30
Da salvação princípio é decisivo.
“Por
que irei? Quem permite esta jornada?
Enéias,
Paulo sou? Essa ventura
33
Nem eu, nem outrem crê ser-me adatada.
“Receio,
pois seja ato de loucura,
Se
eu me resigno a cometer a empresa.
36
Supre, és sábio, o que digo em frase escura”.
Como
quem ora quer, ora despreza,
Sua
alma a idéias novas tem disposta,
39
Mostrando aos seus desígnios estranheza,
Assim
fiz eu na tenebrosa encosta,
Porque,
pensando, abandonava o intento,
42
Formado à pressa, que ora me desgosta.
“Do
teu dizer se atinjo o entendimento”
—
Do magnânimo a sombra me tornava, —
45
“Eivado estás de ignóbil sentimento,
“Que
do homem muita vez faz alma ignava,
Das
honrosas ações o desviando,
48
Qual sombra, que o corcel ao medo trava.
“Desse
temor livrar-te desejando,
Por
que vim te direi e quanto ouvido
51
Hei logo ao ver-te mísero lutando.
“No
Limbo era suspenso: eis requerido
Por
Dama fui tão bela, tão donosa,
54
Que as ordens suas presto lhe hei pedido.
“Brilhavam
mais que a estrela radiosa
Os
seus olhos; suave assim dizia
57
De anjo com voz, falando-me piedosa:
—
“De Mântua alma cortês, que inda hoje em dia
No
mundo gozas fama tão sonora,
60
Que, enquanto existir mundo, mais se amplia,
“Amigo
meu, que a sorte desadora,
Pela
deserta falda indo, impedido
63
De medo, atrás os passos volta agora.
“Temo
que esteja tanto já perdido,
Que
tarde eu tenha vindo a socorrê-lo,
66
Pelo que lá no céu dele hei sabido.
“Parte,
pois, e com teu discurso belo
E
quanto o salvar possa do perigo
69
Lhe acode; e me console o teu desvelo.
“Sou
Beatriz, que envia-te ao que digo,
De
lugar venho a que voltar desejo:
72
Amor conduz-me e faz-me instar contigo.
“Voltando
ao meu Senhor, em todo o ensejo
Repetirei
louvor, que hás merecido”. —
75
“Tornei-lhe, quando já calar-se a vejo:
—
“Senhora da virtude, a quem tem sido
Dado
só que proceda a espécie humana
78
Quanto é no mundo sublunar contido,
“Tanto
praz-me a ordem que de ti dimana,
Que,
já cumprida, houvera inda demora:
81
Em me abrir teu querer não mais te afana.
“Diz-me,
porém, por que razão, Senhora,
Baixar
a este centro hás resolvido
84
Do céu, a que ardes por voltar agora”.
—
“Se queres tanto ser esclarecido
Eu
te direi” — tornou-me — “frase breve
87
Por que sem medo às trevas hei descido.
“Somente
as cousas recear se deve
Que
a outrem podem ser causa de dano
90
Não das mais: a temor a causa é leve.
“De
Deus favor criou-me soberano
Tal,
que a vossa miséria não me empece
93
Nem deste incêndio assalta o fogo insano.
“Nobre
Dama há no céu, que compadece
O
mal, a que te envio; e tanto implora,
96
Que lá decreto austero se enternece.
—
“Volvendo-se a Luzia, assim a exora:
“O
teu servo fiel tanto periga,
99
Que ao teu amparo o recomendo agora”. —
“Luzia,
sempre do que é mau imiga
Ergue-se
e ao lugar foi, em que eu sentada
102
Ao lado estava de Raquel antiga.
“De
Deus vero louvor!” — diz-me apressada —
“Por
que não socorrer quem te amou tanto,
105
Que só por ti deixou do vulgo a estrada?
“Não
lhe ouves, Beatriz, o amargo pranto?
Não
vês que junto ao rio é combatido,
108
Que ao mar não corre, por mortal espanto?” —
“Os
danos, tão veloz, não tem fugido
Ninguém,
nem procurado o que deseja,
111
Como eu, em tendo vozes tais ouvido;
“O
trono meu deixei, por que te veja,
Fiada
em teus discursos eloqüentes,
114
Honra tua e de quem te ouvindo esteja”. —
“Assim
falava e os olhos fulgentes
Com
lágrimas a mim ela volvia,
117
Para apressar-me a vir assaz potentes.
“A
ti vim, pois, como ela requeria;
Da
fera te livrei, que da colina
120
Tão perto já, teus passos impedia.
“Que
fazes, pois? Por que, por que domina
Tanta
fraqueza o peito espavorido?
123
Por que ao valor tua alma não se inclina,
“Quando
és pelas três santas protegido,
Que
na corte do céu por ti se esmeram,
126
E gozar tanto bem lhe é prometido?” —
Quais
flores, que, fechadas, se abateram
Da
noite ao frio, e, quando o sol aquece,
129
Erguem-se abertas na hástea, tais como eram,
Tal
meu valor renova e fortalece.
Tanto
ardimento o coração me aviva,
132
Que exclamei, como quem jamais temesse:
“Ó
Dama em socorrer-me compassiva!
E
tu, que a voz lhe ouvindo, obedeceste,
135
Cortês ao rogo e com vontade ativa,
“Por
teu dizer no peito me acendeste
Desejo
tal de vir, que sou tornado
138
Ao propósito, a que antes me trouxeste.
“Vai,
pois nosso querer ’stá combinado.
Serás
meu guia, meu senhor, meu mestre!”
Disse-lhe
assim. Moveu-se ele; ao seu lado
142
Pelo caminho entrei alto e silvestre.
13.
O pai de Sílvio, Enéias. — 28. O Vaso — São Paulo que nos Atos dos Apóstolos é
chamado o Vaso de eleição. — 76. Senhora da virtude, Beatriz simboliza a
teologia. — 94. Nobre Dama, Maria, mãe de Jesus, símbolo da misericórdia
divina. 97. — Luzia, mártir e santa, símbolo da graça iluminante. — Raquel,
filha de Labão e mulher do patriarca Jacó, simboliza a vida contemplativa.
CANTO III
Chegam
os Poetas à porta do Inferno, na qual estão escritas terríveis palavras. Entram
e no vestibulo encontram as almas dos ignavos, que não foram fiéis a Deus, nem
rebeldes. Seguindo o caminho, chegam ao Aqueronte, onde está o barqueiro
infernal, Caron, que passa as almas dos danados à outra margem, para o
suplício. Treme a terra, lampeja uma luz e Dante cai sem sentidos.
“POR
mim se vai das dores à morada,
Por
mim se vai ao padecer eterno,
3
Por mim se vai à gente condenada.
“Moveu
Justiça o Autor meu sempiterno,
Formado
fui por divinal possança,
6
Sabedoria suma e amor supremo.
No
existir, ser nenhum a mim se avança,
Não
sendo eterno, e eu eternal perduro:
9
Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!”
Estas
palavras, em letreiro escuro,
Eu
vi, por cima de uma porta escrito.
12
“Seu sentido” — disse eu — “Mestre me é duro”
Tornou
Virgílio, no lugar perito:
—
“Aqui deixar convém toda suspeita;
15
Todo ignóbil sentir seja proscrito.
“Eis
a estância, que eu disse, às dores feita,
Onde
hás de ver atormentada gente,
18
Que da razão à perda está sujeita”.
Pela
mão me travando diligente,
Com
ledo gesto e coração me erguia,
21
E aos mistérios guiou-me incontinênti.
Por
esse ar sem estrelas irrompia
Soar
de pranto, de ais, de altos gemidos:
24
Também meu pranto, de os ouvir, corria.
Línguas
várias, discursos insofridos,
Lamentos,
vozes roucas, de ira os brados,
27
Rumor de mãos, de punhos estorcidos,
Nesses
ares, pra sempre enevoados,
Retumbavam
girando e semilhando
30
Areais por tufão atormentados.
A
mente aquele horror me perturbando,
Disse
a Virgílio: — “Ó Mestre, que ouço agora?
33
“Quem são esses, que a dor está prostrando?” —
“Deste
mísero modo” — tornou — “chora
Quem
viveu sem jamais ter merecido
36
Nem louvor, nem censura infamadora.
“De
anjos mesquinhos coro é-lhes unido,
Que
rebeldes a Deus não se mostraram,
39
Nem fiéis, por si sós havendo sido”.
“Desdouro
aos céus, os céus os desterraram;
Nem
o profundo inferno os recebera,
42
De os ter consigo os maus se gloriaram”.
—
“Que dor tão viva deles se apodera,
Que
aos carpidos motivo dá tão forte?” —
45
“Serei breve em dizer-to” — me assevera. —
“Não
lhes é dado nunca esperar morte;
É
tão vil seu viver nessa desgraça,
48
Que invejam de outros toda e qualquer sorte.
“No
mundo o nome seu não deixou traça;
A
Clemência, a Justiça os desdenharam.
51
Mais deles não falemos: olha e passa”.
Bandeira
então meus olhos divisaram,
Que,
a tremular, tão rápida corria,
54
Que avessa a toda pausa a imaginaram.
E
após, tão basta multidão seguia,
Que,
destruído houvesse tanta gente
57
A morte, acreditado eu não teria.
Alguns
já distinguira: eis, de repente,
Olhando,
a sombra conheci daquele
60
Que a grã renúncia fez ignobilmente.
Soube
logo, o que ao certo me revele,
Que
era a seita das almas aviltadas,
63
Que os maus odeiam e que Deus repele.
Nunca
tiveram vida as desgraçadas;
Sempre,
nuas estando, as torturavam
66
De vespas e tavões as ferroadas.
Os
rostos seus as lágrimas regavam,
Misturadas
de sangue: aos pés caindo,
69
A imundos vermes o repasto davam.
De
um largo rio à margem dirigindo
A
vista, de almas divisei cardume.
72
— “Mestre, declara, aos rogos me anuindo,
“Que
turba é essa” — eu disse — “e qual costume
Tanto
a passar a torna pressurosa,
75
Se bem discirno ao duvidoso lume?” —
Tornou-me:
— “Explicação minuciosa
Darei,
quando tivermos atingido
78
Do Aqueronte a ribeira temerosa”.
Então,
baixos os olhos e corrido
Fui,
de importuno a culpa receando,
81
Té o rio, em silêncio recolhido.
Eis
vejo a nós em barca se acercando,
De
cãs coberto um velho — “Ó condenados,
84
Ai de vós! — alta grita levantando.
“O
céu nunca vereis, desesperados:
Por
mim à treva eterna, na outra riva,
87
Sereis ao fogo, ao gelo transportados.
“E
tu que estás aqui, ó alma viva,
De
entre estes que são mortos, já te ausenta!”
90
Como não lhe obedeço à voz esquiva,
“Por
outra via irás” — ele acrescenta —
“Ao
porto, onde acharás fácil transporte;
93
Lá pássaras sem barca menos lenta”. —
“Não
te agastes, Caronte! Desta sorte
Se
quer lá onde” — disse-lhe o meu Guia —
96
“Quem pode ordena. E nada mais te importe”.
Sereno,
ouvido, o gesto se fazia
Da
lívida lagoa ao nauta idoso,
99
Quem em círculos de fogo olhos volvia.
As
desnudadas almas doloroso
O
gesto descorou; dentes rangeram
102
Logo em lhe ouvindo o vozear raivoso.
Blasfemaram
de Deus e maldisseram
A
espécie humana, a pátria, o tempo, a origem
105
Da origem sua, os pais de quem nasceram.
Todas
no pranto acerbo, em que se afligem,
Se
acolhem juntas ao lugar tremendo,
108
Dos maus destinos, que se não corrigem.
Caronte,
os ígneos olhos revolvendo,
Lhes
acenava e a todos recebia:
111
Remo em punho, as tardias vai batendo.
Como
no outono a rama principia
As
flores a perder té ser despida,
114
Dando à terra o que à terra pertencia,
Assim
de Adam a prole pervertida,
Da
praia um após outro se enviavam,
117
Qual ave dos reclamos atraída.
Sobre
as túrbidas águas navegavam;
E
pojado não tinham no outro lado,
120
Mais turbas já no oposto se apinhavam.
“Aqui
meu filho” — disse o Mestre amado —
“concorrem
quantos há colhido a morte,
123
De toda a terra, tendo a Deus irado.
“O
rio prontos buscam desta sorte,
De
Deus tanto a justiça os punge e excita,
126
Tornando-se o temor anelo forte!
“Alma
inocente aqui jamais transita,
E,
se Caronte contra ti se assanha,
129
Patente a causa está, que tanto o irrita”.
Assim
falava; a lúrida campanha
Tremeu
e foi tão forte o movimento,
132
Que do medo o suor ainda me banha.
Da
terra lacrimosa rompeu vento,
Que
um clarão respirou avermelhado;
Tolhido
então de todo o sentimento,
l36
Caí, qual homem que é do sono entrado.
37.
De anjos etc., que não tomaram posição na luta entre os fiéis e os rebeldes a
Deus. — 59-60. Daquele etc., Celestino V que renunciou ao papado, tendo por
sucessor Bonifácio VIII, inimigo de Dante e do seu partido. — 136. Caí etc.
Dante perdendo os sentidos, atravessa o Aqueronte, sem saber de que modo.
CANTO IV
Dante
é despertado por um trovão e acha-se na orla do primeiro círculo. Entra depois
no Limbo, onde estão os que não foram batizados, crianças e adultos. Mais
adiante, num recinto luminoso, vê os sábios da antigüidade, que, embora não
cristãos, viveram virtuosamente. Os dois poetas descem depois ao segundo
círculo.
DESSE
profundo sono fui tirado
Por
hórrido estampido, estremecendo
3
Como quem é por força despertado.
Ergui-me,
e, os olhos quietos já volvendo,
Perscruto
por saber onde me achava,
6
E a tudo no lugar sinistro atendo.
A
verdade é que então na borda estava
Do
vale desse abismo doloroso,
9
Donde brado de infindos ais troava.
Tão
escuro, profundo e nebuloso
Era,
que a vista lhe inquirindo o fundo,
12
Não distinguia no antro temeroso.
“Eia!
Baixemos, pois, da treva ao mundo!” —
O
Poeta então disse-me enfiando —
15
“Eu descerei primeiro, tu segundo”. —
Tornei-lhe,
a palidez sua notando:
“Como
hei-de ir, se és de espanto dominado,
18
Quando conforto estou de ti sperando?” —
“Dos
que lá são o angustioso estado
Causa
a que vês no rosto meu impressa,
21
Piedade, medo não, como hás cuidado.
“Vamos:
longa a jornada exige pressa”.
Entrou,
e eu logo, o círculo primeiro
24
Em que o abismo a estreitar-se já começa,
Escutei:
não mais pranto lastimeiro
Ouvi;
suspiros só, que murmuravam,
27
Vibrando do ar eterno o espaço inteiro.
Pesares
sem martírio os motivavam
De
varões e de infantes, de mulheres
30
Nas multidões, que ali se apinhoavam.
“Conhecer”
— meu bom Mestre diz — “não queres
Quais
são os que assim vês ora sofrendo?
33
Antes de avante andar convém saberes
“Que
não pecaram: boas obras tendo
Acham-se
aqui; faltou-lhes o batismo,
36
Portal da fé, em que és ditoso crendo.
“Na
vida antecedendo o Cristianismo,
Devido
culto a Deus nunca prestaram:
39
Também sou dos que penam neste abismo.
“Por
tal defeito — os mais nos não mancharam —
Perdemo-nos:
a pena é desesp’rança,
42
Desejos, que para sempre se frustaram”.
Ouvi-lo,
em dor o coração me lança,
Pois
muitos conheci de alta valia,
45
A quem do Limbo a suspenção alcança.
“Ó
Mestre! Ó meu Senhor! diz-me — inquiria,
Para
ter da certeza o firme esteio
48
À fé, que os erros todos desafia,
“Por
seu merecimento ou pelo alheio
Daqui
alguém ao céu já tem subido?”
51
Da mente minha ao alvo o Mestre veio,
E
falou-me: “Des’pouco aqui trazido,
Descer
súbito vi forte guerreiro;
54
De triunfal coroa era cingido.
“Almas
levou — do nosso pai primeiro,
Abel,
Noé, Moisés, que legislara,
57
Abraam, na fé, na obediência inteiro,
“Davi,
que sobre o povo hebreu reinara,
Israel
com seu pai e a prole basta,
60
E Raquel, por quem tanto se afanara.
“Para
a glória outros muitos mais afasta
Do
Limbo; e sabe tu que antes não fora
63
Salvo quem pertencera à humana casta”.
Andávamos,
enquanto isto memora,
Sem
parar, pela selva penetrando,
66
Selva de almas, que aumenta de hora em hora,
E
da entrada não longe ainda estando,
Eis
um clarão brilhante divisamos
69
Das trevas o hemisfério alumiando.
Dali
distantes ainda nos achamos
Não
tanto, que eu não discernisse em parte
72
Que à sede de almas nobres caminhamos.
“Ó
tu, que és honra da ciência e da arte,
Quem
são” — disse — “os que, aos outros preferidos,
75
Privilégio tamanho assim disparte?”
Falou
Virgílio: “— Assim são distinguidos
Do
céu, que atende à fama alta e preclara,
78
Com que foram na terra engrandecidos”.
Eis
voz escuto sonorosa e clara:
“Honrai
todos o altíssimo poeta!
81A
sombra sua torna, que ausentara”.
Quatro
sombras notei, quando aquieta
O
rumor, que a nós vinham: nos semblantes
84
Nem prazer, nem tristeza se interpreta.
E
disse o Mestre, após alguns instantes:
“Aquele
vê, que, qual monarca ufano,
87
Empunha espada e os três deixa distantes.
É
Homero, o poeta soberano;
O
satírico Horácio é o outro, e ao lado
90
Ovídio, em lugar último Lucano.
Como
lhes cabe o nome assinalado
Que
soou nessa voz há pouco ouvida,
93
Me honrando, honrosa ação têm praticado”.
A
bela escola assim vi reunida
Do
Mestre egrégio do sublime canto,
96
Águia em seu vôo além dos mais erguida.
Discursado
entre si tendo algum tanto,
A
mim volveram gracioso o gesto:
99
Sorriu Virgílio, dessa mostra ao encanto.
Mais
foi-me alto conceito manifesto,
Quando
acolher-me ao grêmio seu quiseram,
102
Entre eles me cabendo o lugar sexto.
Té
o clarão comigo se moveram,
Prática
havendo, que omitir é belo,
105
Sublime no lugar, onde a teceram.
Chegamos
junto a um fúlgido castelo
Sete
vezes de muro alto cercado:
108
Cinge-o ribeiro lindo, mas singelo.
Passei-o
a pé enxuto; acompanhado
Entrei
por sete portas, caminhando
111
De fresca relva até ameno prado.
Graves,
pausados olhos meneando
Stavam
sombras de aspecto majestoso,
114
Com voz suave rara vez falando.
A
um lado, sobre viso luminoso
Subimo-nos:
de lá se divisava
117
Dessas almas o bando numeroso.
No
verde esmalte o Mestre me indicava
Egrégias
sombras: inda me extasia
120
O prazer com que vê-los exultava.
Eletra
vi de heróis na companhia,
Enéias
com Heitor e guarnecido
123
Grifanhos olhos César nos volvia.
Pentesiléia
vi e o rosto ardido
De
Camila, e sentado o rei Latino
126
Junto a Lavinia estava enternecido.
Notei
Márcia, Lucrécia e o que Tarquino
Lançou,
Cornélia e Júlia; retirado
129
De todos demorava Saladino.
Alçando
os olhos, de respeito entrado,
O
Mestre vejo dos que mais se acimam
132
Em saber, de filósofos cercado.
Todos
com honra e acatamento o estimam.
Aqui
Platão e Sócrates estavam,
135
Que na grandeza mais se lhe aproximam.
Demócrito,
o atomista, acompanhavam
Tales,
Zeno, Heráclito e Anaxagora.
138
Empédocle e Diógenes falavam,
Dióscoris,
o que a natura outrora
Sábio
estudara, Orfeu, Túlio eloqüente,
141
Sêneca, o douto, que a moral explora,
Lívio,
Euclides, Hipócrates ingente,
Ptolomeu,
Galeno e o Avicena;
144
Averróis, nos comentos sapiente.
Resenha
não me é dado fazer plena
De
todos; longo o assunto está-me urgindo,
147
E a ser omisso muita vez condena.
A
companhia então se dividindo,
Comigo
o Mestre outra vereda trilha,
Do
ar sereno ao ar, que treme, vindo:
151
Chegados somos onde luz não brilha.
95.
Mestre egrégio etc., Homero, príncipe da poesia épica. — 121. Eletra, mãe de
Dardano, fundador de Tróia. — 122. Enéias, príncipe troiano, filho de Anquise e
de Vênus. — Heitor, filho de Príamo, rei de Tróia. — 124. Pentesiléia, rainha
das Amazonas, morta por Aquiles. 125. — Camila, filha de Metabo, rei latino. —
O rei Latino, rei dos aborígenes, pai de Lavínia, que foi mulher de Enéias. —
127. Márcia, mulher de Catão Uticense. — Lucrécia, mulher de Colatino que, ao
ser violada por Sesto Tarquínio, se matou. — 128. — Cornélia, mãe dos Gracos. —
Júlia, filha de César e mulher de Pompeu. — 129. Saladino, sultão do Egito e da
Síria, que conquistou Jerusalém. — 131. O mestre etc., Aristóteles. — 140. —
Orfeu de Trácia, poeta e músico. — Túlio, eloqüente, Marco Túlio Cícero. — 143.
Ptolomeu, o autor do sistema do mundo que se chamou sistema ptolemaico. —
Galeno e Avicena, famosos médicos, o primeiro de Pérgamo, no Ponto, o segundo
árabe.
CANTO V
No
ingresso do segundo circulo está Minos, que julga as almas e designa-lhes a
pena. No repleno desse círculo estão os luxuriosos, que são continuamente
arrebatados e atormentados por um horrível turbilhão. Aqui Dante encontra
Francesca de Rimini, que lhe narra a história do seu amor infeliz.
DESCI
desta arte ao círculo segundo,
Que
o espaço menos largo compreendia,
3
Onde o pungir da dor é mais profundo.
Lá
stava Minos e feroz rangia:
Examinava
as culpas desde a entrada,
6
Dava a sentença como ilhais cingia.
Ante
ele quando uma alma desditada
Vem,
seus crimes confessa-lhe em chegando,
9
Com perícia em pecados consumada.
Lugar
no inferno, Minos, lhe adaptando,
Do
abismo o círc’lo arbitra, a que pertença,
12
Pelas voltas da cauda graduando.
Sempre
muitas se lhe acham na presença;
Cada
qual tem sua vez de ser julgada,
15
Diz, ouve, cai, se some sem detença.
Minos,
logo me vendo, iroso brada,
Do
grave ofício no ato sobrestando:
18
— “Ó tu, que vens das dores à morada;
“Olha
como entras e em quem stás fiando:
Não
te engane do entrar tanta largueza!”
21
— “Por que falar” — meu guia diz — “gritando?”
“Vedar
não tentes a fatal empresa:
Assim
se quer lá onde o que se ordena
24
Se cumpre. Assaz te seja esta certeza!”
Eis
já começo da infernal geena
A
ouvir os lamentos: sou chegado
27
Onde intenso carpir me aviva a pena.
Em
lugar de luz mudo tenho entrado:
Rugia,
como faz mar combatido
30
Dos ventos, pelo ímpeto encontrado.
Da
tormenta o furor, nunca abatido,
Perpetuamente
as almas torce, agita,
33
Molesta, em seus embates recrescido.
Quando
à borda do abismo as precipita,
Ais,
soluços, lamentos vão rompendo.
36
Blasfema a Deus a multidão maldita.
Ouvi
que estão no padecer horrendo
Os
que aos vícios da carne se entregavam,
39
Razão aos apetites submetendo.
Quais
estorninhos, que a voar se travam
Em
densos bandos na estação já fria,
42
Em rodopio as almas volteavam,
Ao
capricho do vento, que as trazia.
De
pausa não, de menos dor a esp’rança
45
Conforto lhes não dá nessa agonia.
Como
nos ares longa série avança
De
grous, que vão cantado o seu grasnido,
48
Assim no gemer seu, que não descansa,
Traz
o tufão as sombras desabrido.
—
“Mestre” — disse eu — “quais almas são aquelas
51
Que o vendaval fustiga denegrido?”
—
“A primeira” — tornou Virgílio — “entre elas
De
quem notícias ter desejarias,
54
Regeu nações, diversas nas loquelas.
“De
luxúria fez tantas demasias
Que
em lei dispôs ser lícito e agradável
57
Para desculpa às torpes fantasias.
“Semíramis
chamou-se: o trono estável
Herdou
de Nino e foi a sua esposa.
60
Do Soldão teve a terra memorável.
“A
morte deu-se a outra, de amorosa,
Às
cinzas de Siqueu traidora e infida;
63
Cleópatra após vem luxuriosa”.
Helena
vi, a causa fementida
De
tanto mal, e Aquiles celebrado
66
Que teve por amor a extrema lida.
Páris,
Tristão e um bando assinalado
De
sombras me indicou, nomes dizendo,
69
Que à sepultura amor tinha arrojado.
A
compaixão me estava confrangendo,
Dessas
damas e antigos cavaleiros
72
Nomes ouvindo e mágoas conhecendo.
Então
disse eu: — “Poeta, aos companheiros
Dois,
que ali vêm, falar muito desejo:
75
Ao vento ser parecem tão ligeiros!”
“Hás
de ter” — me tornou — “asado ensejo,
Quando
forem mais perto; então lhes pede
78
Pelo amor que os uniu: virão sem pejo”. —
Quando
acercar-se o vento lhes concede
A
voz alcei: — “Ó! vinde, almas aflitas,
81
Falar-nos, se alta lei não vo-lo impede”. —
Quais
pombas, que saudosas de asas fitas,
Ao
doce ninho, em vôo despedido,
84
Vão pelo ar, aos desejos seus adstritas:
Tais
saíram da turba, em que era Dido,
A
nós as duas sombras se inclinando,
87
Tanto as moveu da voz o tom sentido!
—
“Entre beni’no, compassivo e brando,
Que
nos vem visitar por este ar perso,
90
Tendo nós dado o sangue ao mundo infando,
“Se
amigo o Senhor fosse do universo,
Da
paz aos rogos nossos, gozarias,
93
Pois te enternece o nosso mal perverso.
“Enquanto
o vento é quedo, o que dirias
Havemos
nós de ouvir atentamente;
96
Diremos quanto ouvir desejarias.
“Onde,
a paz desejando, o Pado ingente
Com
seus vassalos para o mar descende,
99
A terra, em que hei nascido, está jacente.
“Amor,
que os corações súbito prende,
Este
inflamou por minha formosura,
102
Que roubaram-me: o modo inda me ofende.
“Amor,
em paga exige igual ternura,
Tomou
por ele em tal prazer meu peito,
105
Que, bem o vês, eterno me perdura.
“Amor
nos igualou da morte o efeito:
A
quem no-la causou, Caína, esperas”.
108
Após tais vozes foi silêncio feito.
Daquelas
almas as angústias feras
Em
meditar amargo a fronte inclino
111
Té que o Mestre exclamou: “Que consideras?”
Quando
pude, falei: “Cruel destino!
Que
doce cogitar! Que meigo encanto,
114
Precederam do par o fim maligno!” —
Aos
dois voltei-me e disse-lhes, entanto:
“Teus
martírios, Francesca, me angustiam,
117
Movem-me o triste, compassivo pranto.
“Quando
os doces suspiros só se ouviam,
Como,
em que Amor mostrar-vos há querido
120
Os desejos, que ainda se escondiam?” —
—
“Não há” — disse — “tormento mais dorido
Que
recordar o tempo venturoso
123
Na desgraça. Teu Mestre o tem sentido.
“Mas
porque de saber és desejoso,
Como
nasceu a flor do nosso afeto,
126
Direi chorando o lance lastimoso.
“Por
passatempo eu lia e o meu dileto
De
Lanceloto extremos namorados;
129
Éramos sós, de coração quieto.
“Nossos
olhos, por vezes encontrados,
Cessam
de ler; ao gesto a cor mudara.
132
Um ponto só deu causa aos nossos fados.
“Ao
lermos que nos lábios osculara
O
desejado riso, o heróico amante,
135
Este, que mais de mim se não separa,
“A
boca me beijou todo tremante,
De
Galeotto fez o autor e o escrito.
138
Em ler não fomos nesse dia avante”.
Enquanto
a história triste um tinha dito,
Tanto
carpia o outro, que eu, absorto
Em
piedade, senti letal conflito,
142
E tombei, como tomba corpo morto.
4.
Minos, rei de Creta e que na mitologia pagã era juiz do Inferno. — 58.
Semíramis, rainha de Babilônia, viúva do rei Nino. — 61. Dido, rainha de
Cartago, que amou a Enéias. — 63. Cleópatra, rainha do Egito. — 64. Helena,
mulher de Menelau, rei de Esparta que causou a guerra de Tróia. — 67. Páris e
Tristão, cavaleiros dos romances medievais. — 73. Companheiros dois, Francesca
de Rimini e Paulo Malatesta, que foram mortos por Gianciotto Malatesta, marido
de Francesca e irmão de Paulo, por eles terem ficado apaixonados um pelo outro.
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