Divina Comédia - Dante Alighieri

 A DIVINA COMÉDIA...
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A DIVINA COMÉDIA
Wikipédia



Índice

Nota Editorial
Orelha do livro
Notícia Biográfica
A DIVINA COMÉDIA
INFERNO
PURGATÓRIO
PARAÍSO

Dante Alighieri

Tradução de José Pedro Xavier Pinheiro

A DIVINA COMÉDIA
DANTE ALIGHIERI

Tradução
José Pedro Xavier Pinheiro
1822-1882

Versão para eBook
eBooksBrasil

Fonte Digital
Digitalização do livro em papel
COMPOSTO E IMPRESSO
NAS OFICINAS DE
D. GIOSA - INDÚSTRIAS GRÁFICAS S/A
SEÇÃO: ATENA EDITORA
RUA JAVAÉS, 465 - SÃO PAULO
MARÇO - 1955
© 2003 — Dante Alighieri

A DIVINA
COMÉDIA
imagem
Dante Alighieri

Índice dos Cantos




Nota Editorial

Aqui está uma obra que deveria figurar na “cesta básica” de qualquer estudante. E não apenas por ser a famosa “Comédia” de Dante Alighieri, a que os pósteros houveram por bem acrescentar, por seus méritos tantos, “A Divina”.
A tradução, feita pelo brasileiro José Pedro Xavier Pinheiro, enobrece a língua portuguesa e, em particular, as letras pátrias. Mas isso o leitor irá constatar por si mesmo.
Nela, gastou Xavier Pinheiro anos de sua vida. Seu filho, J. A. Xavier Pinheiro, acrescentou-lhe um Rimário, para uma segunda edição editada por Jacintho Ribeiro dos Santos, nos anos 10 do século passado, enriquecida com as gravuras de Gustave Doré, em folhas à parte.
Por que cito tais fatos? Porque a única finalidade que movia os Xavier Pinheiro, pai e filho, era contribuir para o enriquecimento cultural de nossa gente, sem subsídios como condição prévia e sem láureas ou pecúnia como retribuição.
A presente edição em eBook, infelizmente, não preserva o Rimário, que não consta da edição digitalizada, editada pela Atena Editora, que, com sua Biblioteca Clássica, ainda encontrada nos bons sebos, familiarizou gerações com o que havia de melhor nas letras e no pensamento universais. E, não é demais salientar, sem os ranços de nacionalismos estreitos, freqüentemente disfarçando interesses outros em nome da “defesa dos autores nacionais”, mas cujo único resultado é distanciar nossa gente do pensamento universal, que nunca teve, nem jamais terá outra barreira que não a da língua.
É exatamente esta barreira que, no caso, Xavier Pinheiro transpôs, com sua tradução.
Na presente versão para eBook, tentamos fazer justiça aos esforço do tradutor, cuidando ao máximo da revisão. Infelizmente, como quem quer que já tenha feito uma digitalização sabe, ao digitalizar 516 páginas, aqui e ali sempre passará algum “gato”. Esperamos que os que tenham passado não miem muito...
Atualizamos a grafia, preservando, contudo, as apócopes e as elisões do tradutor que, com tais recursos, evidentemente visava conservar o sabor e a métrica originais. Para facilitar a leitura, apenas para isso, adicionamos acentos. Por exemplo, quando na fonte digital estava cir’clo, adicionamos o acento círc’lo, como apoio à leitura.
Como não temos preocupação com economia de papel, separamos os tercetos de forma mais clara, acompanhando a edição digital da LiberLiber (www.liberliber.it). A numeração dos versos foi preservada para facilitar a consulta às notas e para a leitura em determinados formatos em tela pequena. As notas não foram “lincadas” e estão ao fim de cada Canto, como na edição digitalizada. Alguns, como eu, sentirão a falta deste recurso que só é possível nas edições digitais... Mas...
E apenas ilustramos esta edição com as gravuras de Doré. Na internet, o leitor mais interessado poderá encontrar recursos para aprofundar seu conhecimento da obra em pelo menos quatro excelentes websites:
1. Destaque especial para o esforço individual de Helder da Rocha com seu site “A Divina Comédia”.

2. O Dante Digital da Columbia University.

3. O Dante On Line, em italiano, com direito a ver na tela alguns manuscritos... sem ter que fazer download de nenhum recurso extra.

4. O Divine Comedy, excelente, mas nem sempre disponível.

E todos os mais que o google pode lhe indicar.
Boa leitura!

Uma nota final (já ia me esquecendo): A presente edição em eBook pode ser distribuída à vontade, sob uma única condição: todo uso comercial é PROIBIDO, além de obviamente INDECENTE. Quem fizer — se alguém fizer, melhor diria, restasse em mim alguma esperança na honestidade pátria, caso em que nem colocaria a nota — é melhor começar a leitura clicando aqui, para ir se acostumando com o cenário.
Teotonio Simões
eBooksBrasil

A DIVINA COMÉDIA
DE DANTE ALIGHIERI



Dedicando-lhe o “Paraíso” escrevia Dante a Cangrande della Scala: “O sentido desta obra não é simples; ao contrário ela é “polisensa”, pois outro é o sentido literal, outro aquele das coisas significadas”.

Declarava Dante com essas palavras que a “Divina Comédia” é um poema alegórico. Não somente no poema há alegorias particulares, mas o poema, na sua inteireza, tem uma significação, ou melhor, várias significações alegóricas.

Muitas foram as interpretações que da “Divina Comédia” se fizeram sob esse ponto de vista. Alguns comentadores puseram em maior evidência o seu sentido moral e teológico; outros consideram o poema dantesco como uma obra de inspiração política e ligada intimamente às vicissitudes pessoais do poeta.

Não são, porém, as intenções alegóricas que consagram a imortalidade da “Comédia” dantesca, à qual os pósteros atribuíram a qualificação de divina. A “Divina Comédia” é, principalmente, uma formidável obra de fantasia e de representação poética, talvez um dos pontos limites que a inteligência humana pode alcançar.

Na presente edição, o poema dantesco ê apresentado na tradução em tercetos rimados como no texto original, de José Pedro Xavier Pinheiro. Não há dúvida de que poucas obras apresentam as dificuldades que apresenta a “Divina Comédia” para a tradução em outros idiomas, especialmente para quem às outras dificuldades queira ajuntar aquelas decorrentes da conservação do metro original e da rima. A tradução de Xavier Pinheiro constitui uma obra digna de admiração. Fiel, bastante clara, consegue reproduzir grande parte da força poética do maravilhoso poema italiano.

Fonte: “orelha” da edição digitalizada

NOTÍCIA BIOGRÁFICA



Dante Alighieri nasceu em Florença, em maio de 1265, de dona Bella e de Aldighiero Alighieri. De família nobre e abastada, dedicou-se desde cedo aos estudos, sendo que o célebre Brunetto Latini foi um dos seus mestres. Estudou letras e ciências, não se descuidando do desenho e da música. Mais tarde aplicou-se também à teologia.


Moço ainda, Dante participou da vida política da sua cidade. Em 1289, os exilados florentinos, juntando-se aos outros gibelinos de Toscana, tentaram invadir a República. O exército florentino deu-lhes batalha em Campaldino no dia 11 de junho de 1289, conseguindo derrotá-los. Dante participou destas operações militares, combatendo na cavalaria. Pouco depois, participou também do assédio ao castelo de Caprona.

Sendo necessário, para conseguir cargos da República, pertencer a uma corporação, Dante se inscreveu na dos médicos e farmacêuticos, que era a sexta entre as assim chamadas Artes Maiores. Sua atuação na vida pública foi brilhante. Conforme diz Boccaccio, em Florença não se tomava nenhuma deliberação sem que ele desse a sua opinião. Várias vezes foi embaixador da República, várias vezes pertenceu ao Conselho do Estado, e, finalmente, em 1300, obteve o cargo de “priore”, que era a suprema magistratura política de Florença.

Conforme ele mesmo diz, numa de suas cartas, as suas desgraças se originaram da sua eleição ao priorado. A cidade de Florença era dividida em dois partidos: os Brancos e os Pretos, que determinavam freqüentes conflitos, disso resultando que os priores, entre os quais Dante, resolvessem exilar alguns entre os cabeças, pertencentes às mais ilustres famílias de Florença.

Os Pretos, porém, encontraram uma ocasião propícia para obter o mando na cidade e oprimir os seus inimigos. Aproveitando-se da passagem por Florença de Carlos de Valois, irmão do rei da França, em viagem para Roma, conseguiram convencê-lo e convencer ao Papa Bonifácio VIII, de que os Brancos eram inimigos da Casa de França e da Cúria Romana. Os notáveis da cidade enviaram embaixadores ao Papa, e entre eles, Dante, para dissiduadí-lo do intuito de entregar a cidade à parte mais facciosa. Bonifácio, porém, tergiversando, manteve os embaixadores florentinos na expectativa, enquanto Carlos de Valois empossava os Pretos no mando de Florença, resultando daí um período de violências e saqueios.

Maldizendo a perfídia da Cúria Romana, partiu Dante de Roma para voltar para a Toscana. Chegando, porém, nas proximidades de Florença, soube que os seus inimigos, acusando-o de ser gibelino, e, ainda, de ter-se aproveitado do dinheiro público, o tinham condenado ao exílio, e a pagar uma pesada multa e que as suas possessões haviam sido depredadas. Começou, então, para Dante, a vida dura do exilado e do perseguido que conhece

... come sa di sale
Lo pane altrui e come é duro calle
Lo scendre e ’l salir per l’altrui scale.

Mudando freqüentemente de cidade, servindo a vários senhores, viveu Dante os últimos anos de sua vida. Morreu, com a idade de 56 anos, em Ravena a 14 de setembro de 1.321.

A obra poética de Dante se prende, na sua máxima parte, ao seu amor puramente espiritual por Beatriz de Folco Portinari. Dante conheceu Beatriz, quando ele tinha nove anos e Beatriz oito. Tornou a vê-la depois de nove anos, e, mais tarde, outras poucas vezes, pois Beatriz casou-se, e morreu em 1290. Embora, também, Dante se casasse em 1291 com Gemma Donati e com ela tivesse vários filhos, o amor por Beatriz constantemente inspirou a sua poesia. A maior parte das canções, dos sonetos e das baladas que constituem o “Canzoniere“ são dedicados à sua amada; a Vida Nova é uma história dos seus amores com Beatriz; a Divina Comédia, o sublime poema que talvez a humanidade nunca verá superado, prende-se também ao seu amor por Beatriz, bem como ao desejo de vingar-se de seus inimigos e de expor as suas idéias políticas.

Além dessas obras, escreveu o Convite, compêndio da filosofia do seu tempo, exposta eloqüentemente sob a forma de comento a três das suas canções; o De monarquia, tratado político; o De vulgari eloquentia, tratado filológico, deixado incompleto.



A DIVINA
COMÉDIA

Dante Alighieri

—INFERNO—

CANTO I



Dante, perdido numa selva escura, erra nela toda a noite. Saindo ao amanhecer, começa a subir por uma colina, quando lhe atravessam a passagem uma pantera, um leão e uma loba, que o repelem para a selva. Aparece-lhe então a imagem de Virgílio, que o reanima e se oferece a tirá-lo de lá, fazendo-o passar pelo Inferno e pelo Purgatório. Beatriz, depois, o guiará ao Paraíso. Dante o segue.



DA nossa vida, em meio da jornada,
Achei-me numa selva tenebrosa,
3 Tendo perdido a verdadeira estrada.

Dizer qual era é cousa tão penosa,
Desta brava espessura a asperidade,
6 Que a memória a relembra inda cuidosa.

Na morte há pouco mais de acerbidade;
Mas para o bem narrar lá deparado
9 De outras cousas que vi, direi verdade.

Contar não posso como tinha entrado;
Tanto o sono os sentidos me tomara,
12 Quando hei o bom caminho abandonado.

Depois que a uma colina me cercara,
Onde ia o vale escuro terminando,
15 Que pavor tão profundo me causara.

Ao alto olhei, e já, de luz banhando,
Vi-lhe estar às espaldas o planeta,
18 Que, certo, em toda parte vai guiando.

Então o assombro um tanto se aquieta,
Que do peito no lago perdurava,
21 Naquela noite atribulada, inquieta.

E como quem o anélito esgotava
Sobre as ondas, já salvo, inda medroso
24 Olha o mar perigoso em que lutava,

O meu ânimo assim, que treme ansioso,
Volveu-se a remirar vencido o espaço
27 Que homem vivo jamais passou ditoso.

Tendo já repousado o corpo lasso,
Segui pela deserta falda avante;
30 Mais baixo sendo o pé firme no passo.

Eis da subida quase ao mesmo instante
Assoma ágil e rápida pantera
33 Tendo a pele por malhas cambiante.

Não se afastava de ante mim a fera;
E em modo tal meu caminhar tolhia,
36 Que atrás por vezes eu tornar quisera.

No céu a aurora já resplandecia,
Subia o sol, dos astros rodeado,
39 Seus sócios, quando o Amor divino um dia

A tais primores movimento há dado.
Me infundiam desta arte alma esperança
42 Da fera o dorso alegre e mosqueado,

A hora amena e a quadra doce e mansa.
De um leão de repente surge o aspecto,
45 Que ao meu peito o pavor de novo lança.

Que me investisse então cuido inquieto;
Com fome e raiva atroz fronte levanta;
48 Tremer parece o ar ao seu conspeto.

Eis surge loba, que de magra espanta;
De ambições todas parecia cheia;
51 Foi causa a muitos de miséria tanta!

Com tanta intensa torvação me enleia
Pelo terror, que o cenho seu movia,
54 Que a mente à altura não subir receia.

Como quem lucro anela noite e dia,
Se acaso o tempo de perder lhe chega,
57 Rebenta em pranto e triste se excrucia,

A fera assim me fez, que não sossega;
Pouco a pouco me investe até lançar-me
60 Lá onde o sol se cala e a luz me nega.

Quando ao vale eu já ia baquear-me
Alguém fraco de voz diviso perto,
63 Que após largo silêncio quer falar-me.

Tanto que o vejo nesse grão deserto,
— “Tem compaixão de mim” — bradei transido —
66 “Quem quer que sejas, sombra ou homem certo!”

“Homem não sou” tornou-me — “mas hei sido,
Pais lombardos eu tive; sempre amada
69 Mântua lhes foi; haviam lá nascido.

“Nasci de Júlio em era retardada,
Vivi em Roma sob o bom Augusto,
72 Quando em deuses havia a crença errada.

“Poeta, decantei feitos do justo
Filho de Anquíses, que de Tróia veio,
75 Depois que Ílion soberbo foi combusto.

“Mas por que tornas da tristeza ao meio?
Por que não vais ao deleitoso monte,
78 Que o prazer todo encerra no seu seio?”

“— Oh! Virgílio, tu és aquela fonte
Donde em rio caudal brota a eloqüência?”
81 Falei, curvando vergonhoso a fronte. —

“Ó dos poetas lustre, honra, eminência!
Valham-me o longo estudo, o amor profundo
84 Com que em teu livro procurei ciência!

“És meu mestre, o modelo sem segundo;
Unicamente és tu que hás-me ensinado;
87 O belo estilo que honra-me no mundo.

“A fera vês que o passo me há vedado;
Sábio famoso, acude ao perseguido!
90 Tremo no pulso e veias, transtornado!”

Respondeu, do meu pranto condoído;
“Te convém outra rota de ora avante
93 Para o lugar selvagem ser vencido.

“A fera, que te faz bradar tremante,
Aqui passar não deixa impunemente;
96 Tanto se opõe, que mata o caminhante.

“Tem tão má natureza, é tão furente,
Que os apetites seus jamais sacia,
99 E fome, impando, mais que de antes sente.

“Com muitos animais se consorcia,
Há-de a outros se unir té ser chegado
102 Lebréu, que a leve à hórrida agonia.

“Por ouro ou por poder nunca tentado
Saber, virtude, amor terá por norte,
105 Sendo entre Feltro e Feltro potentado.

“Será da humilde Itália amparo forte,
Por quem Camila a virgem dera a vida,
108 Turno Eurialo, Niso acharam morte.

“Por ele, em toda parte, repelida
Irá lançar-se no infernal assento,
111 Donde foi pela Inveja conduzida.

“Agora, por teu prol, eu tenho o intento
De levar-te comigo; ir-te-ei guiando
114 Pela estância do eterno sofrimento,

“Onde, estridentes gritos escutando,
Verás almas antigas em tortura
117 Segunda morte a brados suplicando.

“Outros ledos verás, que, em prova dura
Das chamas, inda esperam ter o gozo
120 De Deus no prêmio da imortal ventura.

“Se lá subir quiseres, um ditoso
Espírito, melhor te será guia,
123 Quando eu deixar-te, ao reino glorioso.

“Do céu o Imperador, a rebeldia
Minha à lei castigando, não consente
126 Que eu da cidade sua haja a alegria.

“Em toda parte impera onipotente,
Mas tem no Empíreo sua augusta sede:
129 Feliz, por ele, o eleito à glória ingente!”

— “Vate, rogo-te” — eu disse — “me concede,
Por esse Deus, que nunca hás conhecido,
132 Porque este e maior mal de mim se arrede.

“Que, até onde disseste conduzido,
À porta de São Pedro eu vá contigo
E veja os maus que houveste referido”.

136 Move-se o Vate então, após o sigo.



1. Em meio etc. Aos 35 anos. Dante tinha 35 anos no dia 25 de março de 1300, ano no qual o papa Bonifácio VIII proclamou o primeiro Jubileu. — 2. Tenebrosa etc., simbólica selva dos vícios humanos. — 32. Pantera, símbolo da luxúria e da fraude; politicamente, de Florença. — 44. Um leão, símbolo da soberba e da violência; politicamente, da França. — 40. Loba, símbolo da avareza e da incontinência; politicamente da Cúria Romana. — 62. Alguém etc., o poeta Virgílio Maro, símbolo da razão humana. — 105. Entre Feltro e Feltro, entre Montefeltro e Feltro. — 122. Espirito melhor, Beatriz, a mulher que Dante amou.

CANTO II



Depois da invocação às Musas, Dante, considerando a sua fraqueza, duvida de aventurar-se na viagem. Dizendo-lhe, porém, Virgílio, que era Beatriz quem o mandava, e que havia quem se interessava pela sua salvação, determina-se segui-lo e entra com o seu guia no difícil caminho.



FORA-se o dia; e o ar, se enevoando,
Aos animais, que vivem sobre a terra,
3 As fadigas tolhia; eu só, velando,

Me aparelhava a sustentar a guerra
Da jornada, assim como da piedade,
6 Que vai pintar memória, que não erra.

Ó Musas! Ó do gênio potestade!
Valei-me! Aqui, ó mente, que guardaste
9 Quanto vi, mostra a egrégia qualidade.

“Poeta”, — assim falei, — “que começaste
A guiar-me, vê bem se em mim persiste
12 Calor que, à empresa que me fias, baste.

“Que o pai do Sílvio fora, referiste,
Corrutível ainda, até o inferno
15 Sem perder o que em corpo humano existe.

“Se do mal assim quis o imigo eterno,
Origem vendo nele do alto efeito,
18 O que e o qual, segundo o que discerno,

“Pela razão bem pode ser aceito;
Que para Roma e o império se fundarem
21 Fora no céu por genitor eleito;

“À qual e ao qual cabia aparelharem,
Dizendo-se a verdade, o lugar santo
24 Aos que do maior Pedro o sólio herdaram.

“Nessa empresa, em que o hás louvado tanto,
Cousas ouviu, de que surgiu motivo
27 Ao seu triunfo e ao pontifício manto.

“Lá foi o Vaso Eleito ainda vivo:
Conforto ia buscar, à fé, que à estrada
30 Da salvação princípio é decisivo.

“Por que irei? Quem permite esta jornada?
Enéias, Paulo sou? Essa ventura
33 Nem eu, nem outrem crê ser-me adatada.

“Receio, pois seja ato de loucura,
Se eu me resigno a cometer a empresa.
36 Supre, és sábio, o que digo em frase escura”.

Como quem ora quer, ora despreza,
Sua alma a idéias novas tem disposta,
39 Mostrando aos seus desígnios estranheza,

Assim fiz eu na tenebrosa encosta,
Porque, pensando, abandonava o intento,
42 Formado à pressa, que ora me desgosta.

“Do teu dizer se atinjo o entendimento”
— Do magnânimo a sombra me tornava, —
45 “Eivado estás de ignóbil sentimento,

“Que do homem muita vez faz alma ignava,
Das honrosas ações o desviando,
48 Qual sombra, que o corcel ao medo trava.

“Desse temor livrar-te desejando,
Por que vim te direi e quanto ouvido
51 Hei logo ao ver-te mísero lutando.

“No Limbo era suspenso: eis requerido
Por Dama fui tão bela, tão donosa,
54 Que as ordens suas presto lhe hei pedido.

“Brilhavam mais que a estrela radiosa
Os seus olhos; suave assim dizia
57 De anjo com voz, falando-me piedosa:

— “De Mântua alma cortês, que inda hoje em dia
No mundo gozas fama tão sonora,
60 Que, enquanto existir mundo, mais se amplia,

“Amigo meu, que a sorte desadora,
Pela deserta falda indo, impedido
63 De medo, atrás os passos volta agora.

“Temo que esteja tanto já perdido,
Que tarde eu tenha vindo a socorrê-lo,
66 Pelo que lá no céu dele hei sabido.

“Parte, pois, e com teu discurso belo
E quanto o salvar possa do perigo
69 Lhe acode; e me console o teu desvelo.

“Sou Beatriz, que envia-te ao que digo,
De lugar venho a que voltar desejo:
72 Amor conduz-me e faz-me instar contigo.

“Voltando ao meu Senhor, em todo o ensejo
Repetirei louvor, que hás merecido”. —
75 “Tornei-lhe, quando já calar-se a vejo:

— “Senhora da virtude, a quem tem sido
Dado só que proceda a espécie humana
78 Quanto é no mundo sublunar contido,

“Tanto praz-me a ordem que de ti dimana,
Que, já cumprida, houvera inda demora:
81 Em me abrir teu querer não mais te afana.

“Diz-me, porém, por que razão, Senhora,
Baixar a este centro hás resolvido
84 Do céu, a que ardes por voltar agora”.

— “Se queres tanto ser esclarecido
Eu te direi” — tornou-me — “frase breve
87 Por que sem medo às trevas hei descido.

“Somente as cousas recear se deve
Que a outrem podem ser causa de dano
90 Não das mais: a temor a causa é leve.

“De Deus favor criou-me soberano
Tal, que a vossa miséria não me empece
93 Nem deste incêndio assalta o fogo insano.

“Nobre Dama há no céu, que compadece
O mal, a que te envio; e tanto implora,
96 Que lá decreto austero se enternece.

— “Volvendo-se a Luzia, assim a exora:
“O teu servo fiel tanto periga,
99 Que ao teu amparo o recomendo agora”. —

“Luzia, sempre do que é mau imiga
Ergue-se e ao lugar foi, em que eu sentada
102 Ao lado estava de Raquel antiga.

“De Deus vero louvor!” — diz-me apressada —
“Por que não socorrer quem te amou tanto,
105 Que só por ti deixou do vulgo a estrada?

“Não lhe ouves, Beatriz, o amargo pranto?
Não vês que junto ao rio é combatido,
108 Que ao mar não corre, por mortal espanto?” —

“Os danos, tão veloz, não tem fugido
Ninguém, nem procurado o que deseja,
111 Como eu, em tendo vozes tais ouvido;

“O trono meu deixei, por que te veja,
Fiada em teus discursos eloqüentes,
114 Honra tua e de quem te ouvindo esteja”. —

“Assim falava e os olhos fulgentes
Com lágrimas a mim ela volvia,
117 Para apressar-me a vir assaz potentes.

“A ti vim, pois, como ela requeria;
Da fera te livrei, que da colina
120 Tão perto já, teus passos impedia.

“Que fazes, pois? Por que, por que domina
Tanta fraqueza o peito espavorido?
123 Por que ao valor tua alma não se inclina,

“Quando és pelas três santas protegido,
Que na corte do céu por ti se esmeram,
126 E gozar tanto bem lhe é prometido?” —

Quais flores, que, fechadas, se abateram
Da noite ao frio, e, quando o sol aquece,
129 Erguem-se abertas na hástea, tais como eram,

Tal meu valor renova e fortalece.
Tanto ardimento o coração me aviva,
132 Que exclamei, como quem jamais temesse:

“Ó Dama em socorrer-me compassiva!
E tu, que a voz lhe ouvindo, obedeceste,
135 Cortês ao rogo e com vontade ativa,

“Por teu dizer no peito me acendeste
Desejo tal de vir, que sou tornado
138 Ao propósito, a que antes me trouxeste.

“Vai, pois nosso querer ’stá combinado.
Serás meu guia, meu senhor, meu mestre!”
Disse-lhe assim. Moveu-se ele; ao seu lado

142 Pelo caminho entrei alto e silvestre.



13. O pai de Sílvio, Enéias. — 28. O Vaso — São Paulo que nos Atos dos Apóstolos é chamado o Vaso de eleição. — 76. Senhora da virtude, Beatriz simboliza a teologia. — 94. Nobre Dama, Maria, mãe de Jesus, símbolo da misericórdia divina. 97. — Luzia, mártir e santa, símbolo da graça iluminante. — Raquel, filha de Labão e mulher do patriarca Jacó, simboliza a vida contemplativa.

CANTO III



Chegam os Poetas à porta do Inferno, na qual estão escritas terríveis palavras. Entram e no vestibulo encontram as almas dos ignavos, que não foram fiéis a Deus, nem rebeldes. Seguindo o caminho, chegam ao Aqueronte, onde está o barqueiro infernal, Caron, que passa as almas dos danados à outra margem, para o suplício. Treme a terra, lampeja uma luz e Dante cai sem sentidos.



“POR mim se vai das dores à morada,
Por mim se vai ao padecer eterno,
3 Por mim se vai à gente condenada.

“Moveu Justiça o Autor meu sempiterno,
Formado fui por divinal possança,
6 Sabedoria suma e amor supremo.

No existir, ser nenhum a mim se avança,
Não sendo eterno, e eu eternal perduro:
9 Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!”

Estas palavras, em letreiro escuro,
Eu vi, por cima de uma porta escrito.
12 “Seu sentido” — disse eu — “Mestre me é duro”

Tornou Virgílio, no lugar perito:
— “Aqui deixar convém toda suspeita;
15 Todo ignóbil sentir seja proscrito.

“Eis a estância, que eu disse, às dores feita,
Onde hás de ver atormentada gente,
18 Que da razão à perda está sujeita”.

Pela mão me travando diligente,
Com ledo gesto e coração me erguia,
21 E aos mistérios guiou-me incontinênti.

Por esse ar sem estrelas irrompia
Soar de pranto, de ais, de altos gemidos:
24 Também meu pranto, de os ouvir, corria.

Línguas várias, discursos insofridos,
Lamentos, vozes roucas, de ira os brados,
27 Rumor de mãos, de punhos estorcidos,

Nesses ares, pra sempre enevoados,
Retumbavam girando e semilhando
30 Areais por tufão atormentados.

A mente aquele horror me perturbando,
Disse a Virgílio: — “Ó Mestre, que ouço agora?
33 “Quem são esses, que a dor está prostrando?” —

“Deste mísero modo” — tornou — “chora
Quem viveu sem jamais ter merecido
36 Nem louvor, nem censura infamadora.

“De anjos mesquinhos coro é-lhes unido,
Que rebeldes a Deus não se mostraram,
39 Nem fiéis, por si sós havendo sido”.

“Desdouro aos céus, os céus os desterraram;
Nem o profundo inferno os recebera,
42 De os ter consigo os maus se gloriaram”.

— “Que dor tão viva deles se apodera,
Que aos carpidos motivo dá tão forte?” —
45 “Serei breve em dizer-to” — me assevera. —

“Não lhes é dado nunca esperar morte;
É tão vil seu viver nessa desgraça,
48 Que invejam de outros toda e qualquer sorte.

“No mundo o nome seu não deixou traça;
A Clemência, a Justiça os desdenharam.
51 Mais deles não falemos: olha e passa”.

Bandeira então meus olhos divisaram,
Que, a tremular, tão rápida corria,
54 Que avessa a toda pausa a imaginaram.

E após, tão basta multidão seguia,
Que, destruído houvesse tanta gente
57 A morte, acreditado eu não teria.

Alguns já distinguira: eis, de repente,
Olhando, a sombra conheci daquele
60 Que a grã renúncia fez ignobilmente.

Soube logo, o que ao certo me revele,
Que era a seita das almas aviltadas,
63 Que os maus odeiam e que Deus repele.

Nunca tiveram vida as desgraçadas;
Sempre, nuas estando, as torturavam
66 De vespas e tavões as ferroadas.

Os rostos seus as lágrimas regavam,
Misturadas de sangue: aos pés caindo,
69 A imundos vermes o repasto davam.

De um largo rio à margem dirigindo
A vista, de almas divisei cardume.
72 — “Mestre, declara, aos rogos me anuindo,

“Que turba é essa” — eu disse — “e qual costume
Tanto a passar a torna pressurosa,
75 Se bem discirno ao duvidoso lume?” —

Tornou-me: — “Explicação minuciosa
Darei, quando tivermos atingido
78 Do Aqueronte a ribeira temerosa”.

Então, baixos os olhos e corrido
Fui, de importuno a culpa receando,
81 Té o rio, em silêncio recolhido.

Eis vejo a nós em barca se acercando,
De cãs coberto um velho — “Ó condenados,
84 Ai de vós! — alta grita levantando.

“O céu nunca vereis, desesperados:
Por mim à treva eterna, na outra riva,
87 Sereis ao fogo, ao gelo transportados.

“E tu que estás aqui, ó alma viva,
De entre estes que são mortos, já te ausenta!”
90 Como não lhe obedeço à voz esquiva,

“Por outra via irás” — ele acrescenta —
“Ao porto, onde acharás fácil transporte;
93 Lá pássaras sem barca menos lenta”. —

“Não te agastes, Caronte! Desta sorte
Se quer lá onde” — disse-lhe o meu Guia —
96 “Quem pode ordena. E nada mais te importe”.

Sereno, ouvido, o gesto se fazia
Da lívida lagoa ao nauta idoso,
99 Quem em círculos de fogo olhos volvia.

As desnudadas almas doloroso
O gesto descorou; dentes rangeram
102 Logo em lhe ouvindo o vozear raivoso.

Blasfemaram de Deus e maldisseram
A espécie humana, a pátria, o tempo, a origem
105 Da origem sua, os pais de quem nasceram.

Todas no pranto acerbo, em que se afligem,
Se acolhem juntas ao lugar tremendo,
108 Dos maus destinos, que se não corrigem.

Caronte, os ígneos olhos revolvendo,
Lhes acenava e a todos recebia:
111 Remo em punho, as tardias vai batendo.

Como no outono a rama principia
As flores a perder té ser despida,
114 Dando à terra o que à terra pertencia,

Assim de Adam a prole pervertida,
Da praia um após outro se enviavam,
117 Qual ave dos reclamos atraída.

Sobre as túrbidas águas navegavam;
E pojado não tinham no outro lado,
120 Mais turbas já no oposto se apinhavam.

“Aqui meu filho” — disse o Mestre amado —
“concorrem quantos há colhido a morte,
123 De toda a terra, tendo a Deus irado.

“O rio prontos buscam desta sorte,
De Deus tanto a justiça os punge e excita,
126 Tornando-se o temor anelo forte!

“Alma inocente aqui jamais transita,
E, se Caronte contra ti se assanha,
129 Patente a causa está, que tanto o irrita”.

Assim falava; a lúrida campanha
Tremeu e foi tão forte o movimento,
132 Que do medo o suor ainda me banha.

Da terra lacrimosa rompeu vento,
Que um clarão respirou avermelhado;
Tolhido então de todo o sentimento,

l36 Caí, qual homem que é do sono entrado.



37. De anjos etc., que não tomaram posição na luta entre os fiéis e os rebeldes a Deus. — 59-60. Daquele etc., Celestino V que renunciou ao papado, tendo por sucessor Bonifácio VIII, inimigo de Dante e do seu partido. — 136. Caí etc. Dante perdendo os sentidos, atravessa o Aqueronte, sem saber de que modo.

CANTO IV



Dante é despertado por um trovão e acha-se na orla do primeiro círculo. Entra depois no Limbo, onde estão os que não foram batizados, crianças e adultos. Mais adiante, num recinto luminoso, vê os sábios da antigüidade, que, embora não cristãos, viveram virtuosamente. Os dois poetas descem depois ao segundo círculo.



DESSE profundo sono fui tirado
Por hórrido estampido, estremecendo
3 Como quem é por força despertado.

Ergui-me, e, os olhos quietos já volvendo,
Perscruto por saber onde me achava,
6 E a tudo no lugar sinistro atendo.

A verdade é que então na borda estava
Do vale desse abismo doloroso,
9 Donde brado de infindos ais troava.

Tão escuro, profundo e nebuloso
Era, que a vista lhe inquirindo o fundo,
12 Não distinguia no antro temeroso.

“Eia! Baixemos, pois, da treva ao mundo!” —
O Poeta então disse-me enfiando —
15 “Eu descerei primeiro, tu segundo”. —

Tornei-lhe, a palidez sua notando:
“Como hei-de ir, se és de espanto dominado,
18 Quando conforto estou de ti sperando?” —

“Dos que lá são o angustioso estado
Causa a que vês no rosto meu impressa,
21 Piedade, medo não, como hás cuidado.

“Vamos: longa a jornada exige pressa”.
Entrou, e eu logo, o círculo primeiro
24 Em que o abismo a estreitar-se já começa,

Escutei: não mais pranto lastimeiro
Ouvi; suspiros só, que murmuravam,
27 Vibrando do ar eterno o espaço inteiro.

Pesares sem martírio os motivavam
De varões e de infantes, de mulheres
30 Nas multidões, que ali se apinhoavam.

“Conhecer” — meu bom Mestre diz — “não queres
Quais são os que assim vês ora sofrendo?
33 Antes de avante andar convém saberes

“Que não pecaram: boas obras tendo
Acham-se aqui; faltou-lhes o batismo,
36 Portal da fé, em que és ditoso crendo.

“Na vida antecedendo o Cristianismo,
Devido culto a Deus nunca prestaram:
39 Também sou dos que penam neste abismo.

“Por tal defeito — os mais nos não mancharam —
Perdemo-nos: a pena é desesp’rança,
42 Desejos, que para sempre se frustaram”.

Ouvi-lo, em dor o coração me lança,
Pois muitos conheci de alta valia,
45 A quem do Limbo a suspenção alcança.

“Ó Mestre! Ó meu Senhor! diz-me — inquiria,
Para ter da certeza o firme esteio
48 À fé, que os erros todos desafia,

“Por seu merecimento ou pelo alheio
Daqui alguém ao céu já tem subido?”
51 Da mente minha ao alvo o Mestre veio,

E falou-me: “Des’pouco aqui trazido,
Descer súbito vi forte guerreiro;
54 De triunfal coroa era cingido.

“Almas levou — do nosso pai primeiro,
Abel, Noé, Moisés, que legislara,
57 Abraam, na fé, na obediência inteiro,

“Davi, que sobre o povo hebreu reinara,
Israel com seu pai e a prole basta,
60 E Raquel, por quem tanto se afanara.

“Para a glória outros muitos mais afasta
Do Limbo; e sabe tu que antes não fora
63 Salvo quem pertencera à humana casta”.

Andávamos, enquanto isto memora,
Sem parar, pela selva penetrando,
66 Selva de almas, que aumenta de hora em hora,

E da entrada não longe ainda estando,
Eis um clarão brilhante divisamos
69 Das trevas o hemisfério alumiando.

Dali distantes ainda nos achamos
Não tanto, que eu não discernisse em parte
72 Que à sede de almas nobres caminhamos.

“Ó tu, que és honra da ciência e da arte,
Quem são” — disse — “os que, aos outros preferidos,
75 Privilégio tamanho assim disparte?”

Falou Virgílio: “— Assim são distinguidos
Do céu, que atende à fama alta e preclara,
78 Com que foram na terra engrandecidos”.

Eis voz escuto sonorosa e clara:
“Honrai todos o altíssimo poeta!
81A sombra sua torna, que ausentara”.

Quatro sombras notei, quando aquieta
O rumor, que a nós vinham: nos semblantes
84 Nem prazer, nem tristeza se interpreta.

E disse o Mestre, após alguns instantes:
“Aquele vê, que, qual monarca ufano,
87 Empunha espada e os três deixa distantes.

É Homero, o poeta soberano;
O satírico Horácio é o outro, e ao lado
90 Ovídio, em lugar último Lucano.

Como lhes cabe o nome assinalado
Que soou nessa voz há pouco ouvida,
93 Me honrando, honrosa ação têm praticado”.

A bela escola assim vi reunida
Do Mestre egrégio do sublime canto,
96 Águia em seu vôo além dos mais erguida.

Discursado entre si tendo algum tanto,
A mim volveram gracioso o gesto:
99 Sorriu Virgílio, dessa mostra ao encanto.

Mais foi-me alto conceito manifesto,
Quando acolher-me ao grêmio seu quiseram,
102 Entre eles me cabendo o lugar sexto.

Té o clarão comigo se moveram,
Prática havendo, que omitir é belo,
105 Sublime no lugar, onde a teceram.

Chegamos junto a um fúlgido castelo
Sete vezes de muro alto cercado:
108 Cinge-o ribeiro lindo, mas singelo.

Passei-o a pé enxuto; acompanhado
Entrei por sete portas, caminhando
111 De fresca relva até ameno prado.

Graves, pausados olhos meneando
Stavam sombras de aspecto majestoso,
114 Com voz suave rara vez falando.

A um lado, sobre viso luminoso
Subimo-nos: de lá se divisava
117 Dessas almas o bando numeroso.

No verde esmalte o Mestre me indicava
Egrégias sombras: inda me extasia
120 O prazer com que vê-los exultava.

Eletra vi de heróis na companhia,
Enéias com Heitor e guarnecido
123 Grifanhos olhos César nos volvia.

Pentesiléia vi e o rosto ardido
De Camila, e sentado o rei Latino
126 Junto a Lavinia estava enternecido.

Notei Márcia, Lucrécia e o que Tarquino
Lançou, Cornélia e Júlia; retirado
129 De todos demorava Saladino.

Alçando os olhos, de respeito entrado,
O Mestre vejo dos que mais se acimam
132 Em saber, de filósofos cercado.

Todos com honra e acatamento o estimam.
Aqui Platão e Sócrates estavam,
135 Que na grandeza mais se lhe aproximam.

Demócrito, o atomista, acompanhavam
Tales, Zeno, Heráclito e Anaxagora.
138 Empédocle e Diógenes falavam,

Dióscoris, o que a natura outrora
Sábio estudara, Orfeu, Túlio eloqüente,
141 Sêneca, o douto, que a moral explora,

Lívio, Euclides, Hipócrates ingente,
Ptolomeu, Galeno e o Avicena;
144 Averróis, nos comentos sapiente.

Resenha não me é dado fazer plena
De todos; longo o assunto está-me urgindo,
147 E a ser omisso muita vez condena.

A companhia então se dividindo,
Comigo o Mestre outra vereda trilha,
Do ar sereno ao ar, que treme, vindo:

151 Chegados somos onde luz não brilha.



95. Mestre egrégio etc., Homero, príncipe da poesia épica. — 121. Eletra, mãe de Dardano, fundador de Tróia. — 122. Enéias, príncipe troiano, filho de Anquise e de Vênus. — Heitor, filho de Príamo, rei de Tróia. — 124. Pentesiléia, rainha das Amazonas, morta por Aquiles. 125. — Camila, filha de Metabo, rei latino. — O rei Latino, rei dos aborígenes, pai de Lavínia, que foi mulher de Enéias. — 127. Márcia, mulher de Catão Uticense. — Lucrécia, mulher de Colatino que, ao ser violada por Sesto Tarquínio, se matou. — 128. — Cornélia, mãe dos Gracos. — Júlia, filha de César e mulher de Pompeu. — 129. Saladino, sultão do Egito e da Síria, que conquistou Jerusalém. — 131. O mestre etc., Aristóteles. — 140. — Orfeu de Trácia, poeta e músico. — Túlio, eloqüente, Marco Túlio Cícero. — 143. Ptolomeu, o autor do sistema do mundo que se chamou sistema ptolemaico. — Galeno e Avicena, famosos médicos, o primeiro de Pérgamo, no Ponto, o segundo árabe.

CANTO V



No ingresso do segundo circulo está Minos, que julga as almas e designa-lhes a pena. No repleno desse círculo estão os luxuriosos, que são continuamente arrebatados e atormentados por um horrível turbilhão. Aqui Dante encontra Francesca de Rimini, que lhe narra a história do seu amor infeliz.



DESCI desta arte ao círculo segundo,
Que o espaço menos largo compreendia,
3 Onde o pungir da dor é mais profundo.

Lá stava Minos e feroz rangia:
Examinava as culpas desde a entrada,
6 Dava a sentença como ilhais cingia.

Ante ele quando uma alma desditada
Vem, seus crimes confessa-lhe em chegando,
9 Com perícia em pecados consumada.

Lugar no inferno, Minos, lhe adaptando,
Do abismo o círc’lo arbitra, a que pertença,
12 Pelas voltas da cauda graduando.

Sempre muitas se lhe acham na presença;
Cada qual tem sua vez de ser julgada,
15 Diz, ouve, cai, se some sem detença.

Minos, logo me vendo, iroso brada,
Do grave ofício no ato sobrestando:
18 — “Ó tu, que vens das dores à morada;

“Olha como entras e em quem stás fiando:
Não te engane do entrar tanta largueza!”
21 — “Por que falar” — meu guia diz — “gritando?”

“Vedar não tentes a fatal empresa:
Assim se quer lá onde o que se ordena
24 Se cumpre. Assaz te seja esta certeza!”

Eis já começo da infernal geena
A ouvir os lamentos: sou chegado
27 Onde intenso carpir me aviva a pena.

Em lugar de luz mudo tenho entrado:
Rugia, como faz mar combatido
30 Dos ventos, pelo ímpeto encontrado.

Da tormenta o furor, nunca abatido,
Perpetuamente as almas torce, agita,
33 Molesta, em seus embates recrescido.

Quando à borda do abismo as precipita,
Ais, soluços, lamentos vão rompendo.
36 Blasfema a Deus a multidão maldita.

Ouvi que estão no padecer horrendo
Os que aos vícios da carne se entregavam,
39 Razão aos apetites submetendo.

Quais estorninhos, que a voar se travam
Em densos bandos na estação já fria,
42 Em rodopio as almas volteavam,

Ao capricho do vento, que as trazia.
De pausa não, de menos dor a esp’rança
45 Conforto lhes não dá nessa agonia.

Como nos ares longa série avança
De grous, que vão cantado o seu grasnido,
48 Assim no gemer seu, que não descansa,

Traz o tufão as sombras desabrido.
— “Mestre” — disse eu — “quais almas são aquelas
51 Que o vendaval fustiga denegrido?”

— “A primeira” — tornou Virgílio — “entre elas
De quem notícias ter desejarias,
54 Regeu nações, diversas nas loquelas.

“De luxúria fez tantas demasias
Que em lei dispôs ser lícito e agradável
57 Para desculpa às torpes fantasias.

“Semíramis chamou-se: o trono estável
Herdou de Nino e foi a sua esposa.
60 Do Soldão teve a terra memorável.

“A morte deu-se a outra, de amorosa,
Às cinzas de Siqueu traidora e infida;
63 Cleópatra após vem luxuriosa”.

Helena vi, a causa fementida
De tanto mal, e Aquiles celebrado
66 Que teve por amor a extrema lida.

Páris, Tristão e um bando assinalado
De sombras me indicou, nomes dizendo,
69 Que à sepultura amor tinha arrojado.

A compaixão me estava confrangendo,
Dessas damas e antigos cavaleiros
72 Nomes ouvindo e mágoas conhecendo.

Então disse eu: — “Poeta, aos companheiros
Dois, que ali vêm, falar muito desejo:
75 Ao vento ser parecem tão ligeiros!”

“Hás de ter” — me tornou — “asado ensejo,
Quando forem mais perto; então lhes pede
78 Pelo amor que os uniu: virão sem pejo”. —

Quando acercar-se o vento lhes concede
A voz alcei: — “Ó! vinde, almas aflitas,
81 Falar-nos, se alta lei não vo-lo impede”. —

Quais pombas, que saudosas de asas fitas,
Ao doce ninho, em vôo despedido,
84 Vão pelo ar, aos desejos seus adstritas:

Tais saíram da turba, em que era Dido,
A nós as duas sombras se inclinando,
87 Tanto as moveu da voz o tom sentido!

— “Entre beni’no, compassivo e brando,
Que nos vem visitar por este ar perso,
90 Tendo nós dado o sangue ao mundo infando,

“Se amigo o Senhor fosse do universo,
Da paz aos rogos nossos, gozarias,
93 Pois te enternece o nosso mal perverso.

“Enquanto o vento é quedo, o que dirias
Havemos nós de ouvir atentamente;
96 Diremos quanto ouvir desejarias.

“Onde, a paz desejando, o Pado ingente
Com seus vassalos para o mar descende,
99 A terra, em que hei nascido, está jacente.

“Amor, que os corações súbito prende,
Este inflamou por minha formosura,
102 Que roubaram-me: o modo inda me ofende.

“Amor, em paga exige igual ternura,
Tomou por ele em tal prazer meu peito,
105 Que, bem o vês, eterno me perdura.

“Amor nos igualou da morte o efeito:
A quem no-la causou, Caína, esperas”.
108 Após tais vozes foi silêncio feito.

Daquelas almas as angústias feras
Em meditar amargo a fronte inclino
111 Té que o Mestre exclamou: “Que consideras?”

Quando pude, falei: “Cruel destino!
Que doce cogitar! Que meigo encanto,
114 Precederam do par o fim maligno!” —

Aos dois voltei-me e disse-lhes, entanto:
“Teus martírios, Francesca, me angustiam,
117 Movem-me o triste, compassivo pranto.

“Quando os doces suspiros só se ouviam,
Como, em que Amor mostrar-vos há querido
120 Os desejos, que ainda se escondiam?” —

— “Não há” — disse — “tormento mais dorido
Que recordar o tempo venturoso
123 Na desgraça. Teu Mestre o tem sentido.

“Mas porque de saber és desejoso,
Como nasceu a flor do nosso afeto,
126 Direi chorando o lance lastimoso.

“Por passatempo eu lia e o meu dileto
De Lanceloto extremos namorados;
129 Éramos sós, de coração quieto.

“Nossos olhos, por vezes encontrados,
Cessam de ler; ao gesto a cor mudara.
132 Um ponto só deu causa aos nossos fados.

“Ao lermos que nos lábios osculara
O desejado riso, o heróico amante,
135 Este, que mais de mim se não separa,

“A boca me beijou todo tremante,
De Galeotto fez o autor e o escrito.
138 Em ler não fomos nesse dia avante”.

Enquanto a história triste um tinha dito,
Tanto carpia o outro, que eu, absorto
Em piedade, senti letal conflito,

142 E tombei, como tomba corpo morto.




4. Minos, rei de Creta e que na mitologia pagã era juiz do Inferno. — 58. Semíramis, rainha de Babilônia, viúva do rei Nino. — 61. Dido, rainha de Cartago, que amou a Enéias. — 63. Cleópatra, rainha do Egito. — 64. Helena, mulher de Menelau, rei de Esparta que causou a guerra de Tróia. — 67. Páris e Tristão, cavaleiros dos romances medievais. — 73. Companheiros dois, Francesca de Rimini e Paulo Malatesta, que foram mortos por Gianciotto Malatesta, marido de Francesca e irmão de Paulo, por eles terem ficado apaixonados um pelo outro.


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