Divina Comédia - Paraíso VII - XII

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CANTO VII



Desaparecem os bem-aventurados cantando. Beatriz explica como a crucificação de Cristo restituiu ao homem a dignidade perdida, a liberdade que lhe foi conferida por Deus. Os anjos e os homens por sua natureza são livres e imortais. O homem porém, pecando, abusou da sua liberdade, e deformou a imagem de Deus que tinha em si. Não podia reparar a falta por si mesmo, pois não podia humilhar-se tanto quanto Adão, em seu orgulho, quis subir. A Deus convinha ou perdoar ou punir. Na sua sabedoria infinita, Deus perdoou e puniu no mesmo tempo. Puniu a humanidade em Jesus Cristo e nele a fez novamente livre.



“HOSANNAH Sanctus Deus Sabaoth,
Superillustrans daritate tua
3 Felices ignes horum malacòth!”

Assim, voltando à melodia sua,
Cantar ouvi essa alma venturosa
6 Em quem dúplice lume se acentua.

Tornam todas à dança jubilosa,
E súbito da vista se apartaram
9 Velozes, como flama fulgurosa.

Disse entre mim, pois dúvidas me entraram:
“Fala à senhora tua, fala; à sede
12 Rocio as palavras suas te deparam.”

Torvação me assenhora e a voz me impede,
Que apenas B com I C E conjugava:
15 Acurvei, como quem ao sono cede.

Mas Beatriz do enleio me tirava,
Com sorriso, que a mente me ilumina
18 E aditara entre as chamas começava:

— “Como bem vejo, dúvida domina
A tua alma: — a vingança, que foi justa,
21 Punição teve, da justiça di’na?

“Esclarecer-te o espírito não custa.
Atende bem: verdade preminente
24 Das vozes minhas co’a expressão se ajusta.

“Aceitar não querendo, obediente,
Saudável freio, o homem, sem mãe nado,
27 Perdeu-se a si, perdeu a humana gente.

“Muitos séc’los enferma do pecado,
Jazeu ela não erro engrandecido
30 Té que o Verbo de Deus fosse encarnado.

“Por ato só do Eterno Amor, unido
À natureza se há, que ao mal se dera,
33 Depois de esquiva ao Criador ter sido.

“No que vou te dizer bem considera.
A natureza, a que se uniu beni’no
36 Em pessoa, nasceu boa e sincera.

“Por si mesma, fugindo em desatino
Da vereda da vida e da verdade,
39 Do Paraíso se exilou divino.

“Da Cruz a pena, em face da maldade
Da natureza, a que Jesus baixara,
42 Foi a mais justa em sua gravidade.

“Nunca injustiça igual se praticara,
Atenta essa Pessoa, que há sofrido,
45 Que à natureza humana se ajuntara.

“Contrastes, pois, de um ato hão procedido:
Folgam Judeus da morte a Deus jucunda,
48 Foi ledo o céu e o mundo espavorido.

“E não te mova sensação profunda
Ouvir que uma vingança, que foi justa,
51 Vingada ser devia por segunda.

“Vejo-te a mente por vereda angusta
Levada a estreito nó de dubiedade,
54 Que solver mor esforço ora te custa.

“Dirás: — discerne o que ouço, na verdade;
Mas porque Deus nos desse está-me oculto,
57 Remindo-nos tal prova de bondade. —

“Este decreto irmão, está sepulto
Aos olhos do que ainda o entendimento
60 Não tem de Amor na flama ainda adulto.

“É mistério em que luta o pensamento
Sem fruto conseguir de tal porfia,
63 Mas foi o melhor modo. Ouve-me atento!

“A Divina Bondade que desvia
De si o desamor, arde e flameja,
66 Por eternais primores se anuncia.

“Diretamente o que emanado seja
Dela é sem fim; eterna impressão fica
69 Do que no seu querer supremo esteja.

“O que assim nasce, não sujeito fica
Das causas secundárias à influência
72 E liberdade plena significa.

“Mais lhe apraz, se é conforme à sua essência:
Que o santo Amor que em toda cousa brilha,
75 Mais vivo é no que encerra esta excelência.

“Aos homens de tais bens cabe a partilha:
De tais predicados se um falece,
78 Sua nobreza já decai, se humilha.

“Só por pecado dessa altura desce;
Do Sumo Bem não mais reflete o lume,
81 Semelhança não mais dele oferece.

“E o grau sublime seu não mais assume,
Se não contrapuser ao do pecado
84 Deleite mau das penas o azedume.

“Quando o gênero humano, infeccionado
Todo no germe seu, foi dessa alteza
87 E do seu Paraíso deserdado,

“Reaver só pudera (com certeza
Verás, se bem cogitas), intervindo
90 Um dos meios, que aponto por clareza:

“Ou Deus, por graça infinda, remitindo;
Ou — porque, de si mesmo, se convença —
93 Das culpas suas o homem se remindo.

“Para sondar a profundeza imensa
Dos eternos conselhos, prende à mente
96 As razões que o discurso meu dispensa.

“O homem não podia, de indigente,
As dívidas solver: nunca pudera
99 Curvar-se tanto, humilde e reverente,

“Quanto, rebelde, se elevar quisera.
Eis por que redimir-se do pecado
102 Só por si mesmo ao homem não coubera.

“E, pois há sido do divino agrado,
Por clemência ou justiça e ambas juntando,
105 Ser ele à vida eterna aparelhado.

“A feitura do Autor ao gosto estando
Inda mais, quando a imagem nos of’rece
108 Do peito, de quem vem piedoso e brando,

“A Bondade que em tudo transparece,
Em prol vosso os dois modos reunia:
111 Um somente bastar-lhe não parece.

“Entre a noite final e o primo dia
Ato igual não se fez alto e formoso
114 Desse modo por um, nem se faria.

“Dando-se, há sido Deus mais generoso,
Por que o home’ a se erguer se habilitasse,
117 Do que só perdoando carinhoso.

“Outro meio qualquer, que se empregasse
Não bastara à Justiça, se humilhando
120 De Deus o Filho à carne não baixasse.

“Para de todo seres doutrinado
Eu torno a um ponto, por que vejas claro,
123 Como eu, o que zelosa hei te explicado.

“Dizes: — no fogo e no ar, se bem reparo
Na terra e nágua vejo e em seus compostos
126 Corrupção que destrói sem anteparo.

“Na criação por Deus foram dispostos:
De corrupção isentos ser deveram,
129 Certos sendo os princípios por ti postos. —

“Criados, meu irmão, se consideram
Os anjos e dos céus o que há no espaço,
132 Inteiros, puros sempre quais nasceram.

“Elementos e quanto no regaço
Da natura por eles se combina
135 De virtude criada of’recem traço.

“Criou-lhes a matéria a lei divina,
Criando logo a força informativa,
138 Que nos astros, que os cercam, predomina.

“Dos lumes santos moto e luz deriva
Dos brutos alma, e plantas igualmente,
141 Por compleição potencial passiva.

“A vida nossa vem diretamente
De Deus, Supremo Bem, que em nós acende
144 Amor tal, que o deseja eternamente:

“Daí, por dedução, também descende
Vossa ressurreição, se ao ser e à essência
Da humana carne o teu esp’rito atende,

148 Quando o primeiro par teve existência.” —



1-3. Hosannah, sanctus Deus Sabaoth, expressão constituída por palavras latinas e hebraicas: “Salve, Deus dos exércitos, que iluminas com a tua luz os felizes lumes deste reino.” — 18. E aditara, do verbo aditar, tornar feliz. — 26. O homem sem mãe nado, Adão. — 46-48. Contrastes, pois, de um ato procedido etc., a morte de Jesus Cristo deu satisfação a Deus, porque reparava a ofensa de Adão e deu satisfação aos Judeus pela raiva deles contra Jesus; a terra ficou espavorida pela crucificação de Deus e o Céu alegre porque se abria novamente à humanidade.



CANTO VIII



Dante e Beatriz elevam-se à estrela de Vênus, onde estão os espíritos daqueles que outrora foram propensos às paixões amorosas. Encontro com Carlos Martelo, o qual referindo-se à índole mesquinha de seu irmão Roberto, explica-lhe como se dá que de um bom pai possa nascer um filho mau e, enfim, quanto providencial é a Natureza nos seus decretos e quão vaidosos são os homens que não lhe seguem as indicações.



O MUNDO com perigo verdadeiro
Creu que Ciprina bela dardejava
3 Louco amor do epiciclo que é terceiro.

Sacrifícios não só lhe consagrava,
Preces e votos essa antiga gente
6 No erro antigo fatal, que a transviava,

Mãe e filho adoravam juntamente,
Dione e o seu Cupido, que fingiram
9 De Dido reclinado ao seio ardente;

Dessa falsa deidade o nome uniram
Ao planeta, que o sol sempre namora,
12 Quando raiam seus lumes, quando expiram.

Como ao astro eu me alcei, a mente ignora,
Mas certo fui de haver lá penetrado,
15 Mais formosa por ver minha senhora.

Como se vê fagulha em fogo ateado,
Como uma voz é de outra discernida,
18 Firme o som de uma, o de outra variado,

Outros clarões notei na luz subida,
Mais ou menos velozes se volvendo,
21 Lá da eterna visão, creio, à medida.

Ou visíveis ou não, ventos rompendo,
Em rápida invasão, de nuve’ escura,
24 Demorados stariam parecendo,

A quem pudesse ver cada luz pura,
Que ao nosso encontro vem deixando a dança
27 Que marcam serafins dos céus na altura.

Trás a grei, que primeiro nos alcança.
Tão doce hosana soa, que, incessante,
30 De inda ouvi-lo o desejo jamais cansa.

Dos espíritos um, que vem diante
Só principia: — “Todos nós queremos
33 Quanto para aprazer-te for prestante.

“Num só ardor e giro nos movemos
Cos Príncipes, celestes esplendores
36 De quem no mundo hás dito (bem sabemos):

— “Vós, do terceiro céu sábios motores!” —
Por te agradar nos é doce o repouso
39 Tão vivos são do nosso amor fervores!” —

De Beatriz ao gesto luminoso
Depois que alcei os olhos reverente
42 E certo fui do seu querer donoso,

À luz, que se mostrou condescendente
Em tanto grau — “Quem és” — falei, de afeito
45 Estremecido possuída a mente.

Ó das palavras minhas raro efeito!
Maior a vi brilhar; nova delice
48 A alegria aumentou do claro aspeito.

— “Bem pouco o mundo” — a refulgir-me, disse —
“Me teve; se algum tempo mais vivesse,
51 Mal, que há de vir, por certo ninguém visse.

“O júbilo que em torno me esclarece,
Aos teus olhos me encobre, como inseto,
54 Que dos seus véus de seda se guarnece.

“Com razão me votaste o extremo afeto;
Pois, em mais longa vida, eu te mostrava
57 Por ações quanto me eras tu dileto.

“Aquela região, que o Rone lava
À sestra, quando ao Sorga corre unido,
60 Por senhor seu um dia me esperava.

“Como da Ausônia o litoral partido
Por Bari, por Gaeta e por Crotona.
63 Onde é do Tronto e Verde o mar nutrido.

“Da c’roa a fronte minha já se entona
Do vasto reino, que o Danúbio rega,
66 Quando as plagas tudescas abandona.

“Trinácria, a cujos céus névoa carrega
Sobre o golfo, em que mais Euro embravece,
69 De Paquino a Peloro, em mor refega,

“Que não Tifeu, mas súlfur escurece,
O trono guardaria à prole minha,
72 Que de Carlo e Rodolfo antigos desce,

“Se o mau jugo, que os povos amesquinha,
A gritar — morra! morra! — não movesse
75 Palermo, a quem temor não mais continha.

“Se mais prudência meu irmão tivesse,
Dos Catalanos a indigência avara
78 Fugira, por que o mal seu não crescesse.

“Urgente, na verdade, se tomara
Que, por si ou por outrem, não deixasse
81 Mais onerar a barca, que adernara.

“Quando a índole nobre transtornasse
Avareza, milícia ter devia,
84 Que só de encher seus cofres não curasse.” —

— “Como creio” — tornei-lhe — “a essa alegria,
Que me infundes, Senhor, a origem tira
87 De Deus que todo bem finda e inicia.

“Comigo a sentes: mor prazer me inspira.
Quanto me hás dito, me é no extremo caro,
90 Pois vês, de Deus no espelho tendo a mira.

“Ledo me hás feito; assim tornar-me claro
O que por teu dizer stá duvidoso:
93 Semente doce brota fruto amaro?” —

— “Vendo a verdade” — disse — “pressuroso
Darás o dorso ao que ora dás o rosto,
96 Verás claro o que julgas tenebroso.

“O Bem, que os céus, que sobes, há disposto,
Os move e alegra, sem pôr providência
99 Nestes corpos que vês virtude posto.

“E não só com perfeita previdência
Cousas terrestres acham-se ordenadas,
102 Mas as preserva a sua onipotência;

“Porque as setas, deste arco arremassadas,
Predestinadas são a um ponto certo,
105 Infalíveis ao alvo enderaçadas.

“O céu aliás, aos olhos teus aberto,
Só feituras sem arte produzidas
108 Abrangera e ruínas no deserto.

“Foram então de perfeição despidas
As Substâncias, que regem as estrelas
111 E a mão, que as fez assim destituídas.

“Verdades são: mais claras queres vê-las?” —
— “Não” — repliquei — “supor não poderia
114 Natura escassa em suas obras belas.” —

— “Um mal, dize-me, fora” — prosseguia —
“Não ser o homem cidadão na terra?” —
117 — “Por certo; e a razão sei” — lhe respondia.

— “Sociedade haverá, se não encerra
Misteres vários, que cada um pratica?
120 Não, se o teu Mestre em seu pensar não erra.” —

Deduzindo, a evidência significa,
E logo concluiu: — “Causa dif’rente
123 Efeito diferente sempre indica.

“Nasce um Sólon, e Xerxe outro é furente,
Melquisedeque ou Dédalo perito,
126 Que no ar perdeu o filho seu demente.

“Perfeito é o giro pelos céus descrito;
Na cera humano o seu sinal fazendo,
129 Mas solar não distingue, nem distrito.

“Daí vem que Esaú, logo em nascendo,
Difere de Jacó; toma Quirino
132 Marte por genitor, seu pai vil sendo.

“Natureza gerada, em seu destino
Seria sempre igual à que a fizera,
135 Se não vencesse o decretar divino.

“O rosto ora diriges à luz vera;
Mas inda um corolário te ofereço,
138 Pois de agradar-te em mim desejo impera.

“Sempre natura, se da sorte excesso
A contraste, produz fruto danado,
141 Como semente posta em solo avesso.

“Se meditasse o mundo, desvelado,
Nos fundamentos, que natura lança,
144 De melhor gente fora povoado.

“Mas quem próprio seria à militança
Na soledade monacal definha,
Bem pregara quem, Rei, em vão se cansa.

148 E fora assim da estrada se caminha.” —



2. Ciprina bela, Vênus. — 8. Dione, filha de Oceano e de Tétis, mãe de Vênus. — 9. De Dido reclinado ao seio ardente, no I Livro da Eneida, Cupido, sob a aparência de Ascânio, leva a Dido os presentes de Enéias. — 58 e seg. quem fala é Carlos Martelo, filho de Carlos II de Anjou e que Dante conheceu em Florença em 1294. — 61. Ausônia, a Itália. — 67. Trinácria, a Sicília. — 70. Tifeu, segundo a lenda o gigante Tifeu, sepultado na Sicília, expele fumo e caligem. — 72. De Carlo e Rodolfo, Carlos de Anjou e Rodolfo de Habsburgo. 74. A gritar — morra! morra! — não movesse Palermo, alusão às Vésperas Sicilianas. - 76. Meu irmão, Roberto de Anjou. — 120. O teu mestre, Aristóteles. — 131. Quirino Rómulo, fundador de Roma.

CANTO IX



Depois de Carlos Martelo, fala a Dante, Cunizza de Romano, irmã do tirano Ezzelino. Prediz-lhe iminentes desventuras na Marca de Treviso e de Pádua, e uma negra traição do bispo de Feltre. Folco de Marselha manifesta-se a Dante e lhe indica a alma resplendecente de Raab, que favoreceu os hebreus na conquista da Terra Santa. Invectiva contra Florença e contra a Cúria Romana.



DEPOIS que Carlos teu, bela Clemência
Instruiu-me, narrou traições e enganos,
3 Que ter devia a sua descendência;

Mas disse: — “Cal’-te! Deixa o curso aos anos!” —
Dizer só posso, pois, que justo pranto
6 Há de vir por vingança aos vossos danos.

E voltou-se de novo o lume santo
Para o Sol que de júbilos o enchia,
9 Sendo ele o Bem que para tudo, e tanto.

Ah! mortais iludidos! raça impia,
Que, em pensamentos fátuos se engolfando,
12 Do Bem Supremo os corações desvia!

Eis outro vi pra mim se encaminhando:
De aprazer-me a vontade anunciava,
15 O brilho da luz sua acrescentando.

Os olhos Beatriz em mim fitava,
Bem como de antes: grandioso assenso,
18 Ao meu desejo claramente dava.

— “Ó ser bendito, ao meu querer intenso
Defere logo” — exclamo — “ e dá-me a prova
21 De que em ti se reflete o que ora penso.” —

A luz então, inda aos meus olhos nova,
Dês que a vi lá na altura onde cantava
24 Diz como quem cortês rogos aprova:

— “Nessa parte da Itália opressa e escrava,
Que situada entre o Rialto
27 E as nascentes do Brenta e do Piava,

“Colina vê-se que, não surge ao alto:
Lá centelha, depois ígnea procela,
30 Que a toda a região deu grande assalto.

“De um só tronco brotamos eu com ela.
Cunizza me chamei: aqui resplendo,
33 Porque venceu-me a flama desta estrela.

“Da sorte minha a causa não me sendo
Desgosto, eu ma perdôo alegremente
36 Talvez estranhe o vulgo o como entendo.

“Da luz, que me está perto, refulgente,
Amada jóia desta nossa esfera,
39 Revive grande a fama, e permanente

“De séc’los cinco mais será na era.
Vê se homem com razão à glória aspira,
42 Se extinta a vida, outra no mundo o espera!

“A este alvo, porém, não levam mira
Os que o Ádige cerca e o Tagliamento:
45 Nem dos seus erros o infortúnio os tira.

“Punido em breve, o povo truculento
De Pádua o lago tingirá, que banha
48 Co’as águas, de Vicência o fundamento;

“Onde o Cagnan do Sile se acompanha
Se trama o laço que fará cativo
51 Quem mostra no perder soberba estranha.

“Do ímpio Pastor procedimento esquivo
Há-de Feltro chorar, tal ribaldia
54 A Malta não levou nunca homem vivo.

“De enormes dimensões tonel seria,
Que o sangue recebesse de Ferrara,
57 Pesá-lo o esforço humano esgotaria,

“Em tal cópia o bom Padre o derramara
Em preito ao seu partido! Os dons malvados
60 Da terra sua a índole explicara.

“Espelhos no alto (Tronos são chamados)
A nós refletem quanto Deus indica:
63 Crê, pois, ora nos fatos revelados.” —

Calando-se Cunizza significa,
Ao giro seu anterior voltando,
66 Que em diverso cuidado imersa fica:

Aquele, a que aludira, rebrilhando,
Com preclaro esplendor, mostrou-se à vista.
69 Como ao sol rubi fino flamejando.

Alegria no céu fulgor aquista,
Como a nossa no riso se declara;
72 Mas os gestos no inferno a dor contrista.

“Deus vê tudo, e o teu ver nele se aclara” —
Falei — “ditoso espírito: patente
75 Te é sempre quanto o seu querer depara.

“Porque a voz tua, enlevo permanente
Do céu, de anjos no canto a sócia sendo,
78 Que em seis asas têm veste resplendente,

“Não satisfaz desejos, em que ardendo
Estou? Falara, sem mais ser rogado,
81 Se eu visse em ti bem como em mim stás vendo.” —

— “O maior vale de águas inundado”
— Desta arte a responder-me começava —
84 “Do mar, em torno à terra derramando,

“Opostas plagas, se estendendo, lava
Contra o sol, e assim faz meridiano
87 Esse horizonte, em que primeiro estava.

“Nessa parte do val mediterrano
Nasci, entre Ebro e Macra, que separa
90 Do domínio de Gênova o Toscano.

“Quase um meridiano se depara
Para Bugia e o ninho meu querido:
93 Sangue dos seus seu porto avermelhara.

“Chamei-me Folco e assim fui conhecido:
Este céu da luz minha é penetrado
96 Como eu fora da sua possuído;

“Pois Dido, que ciúmes há causado
A Creusa e a Siquei, não mais ardera
99 Do que eu, enquanto à idade me foi dado;

“Nem Rodópea infeliz, a quem perdera
Demofonte; nem Hércules outrora,
102 Que o coração a Iole oferecera.

“Não há remorso aqui; folga-se agora,
Não pela culpa, já no esquecimento,
105 Pela Virtude, cuja lei se adora.

“Arte aqui se contempla, em que portento
Tão alto brilha; e o Bem se patenteia,
108 Que influir faz na terra o firmamento.

“Para ser a medida toda cheia
Dos teus desejos, nados nesta esfera,
111 Do meu discurso inda prossegue a teia.

“Ora queres saber a luz quem era,
Que aí perto de mim tanto cintila,
114 Como o sol, que na linfa reverbera.

“Sabe, pois, que ali vês leda e tranqüila
Raab: à nossa ordem reunida
117 Em grau superior clara rutila.

“Foi neste céu, que a sombra procedida
Da terra não alcança, em triunfando
120 Jesus Cristo, a primeira recebida.

“Devia dar-lhe um céu por palma, quando
Assinalar lhe aprouve a alta vitória,
123 Que na Cruz teve, as palmas entregando;

“Pois que por ela começara a glória,
Que colheu Josué na Terra Santa,
126 Que se apagou do Papa na memória.

“A tua pátria, que foi daquele a planta,
Que ao Criador revel primeiro há sido
129 E causou pela inveja aflição tanta,

“Tem flor maldiçoada produzido,
Que, ovelhas e cordeiros transviando,
132 Traz o pastor em lobo convertido.

“O Evangelho, por ela, abandonado
E os Doutores, às páginas usadas
135 Das Decretais stão muitos se aplicando.

“O Papa e os Cardeais, nisto engolfadas
Tendo as idéias, Nazaré esquecem,
138 Que viu do Arcanjo as asas desdobradas.

“Mas Vaticano e os sítios que enobrecem
A Roma e têm sido o cemitério
Dos que, fiéis a Pedro, lhe obedecem,

142 Livres serão em breve do adultério.” —



25-28. Nessa parte, etc., a Marca Trevisana. — 26. Rialto, Veneza — 28. Colina, onde está situado o castelo da família de Ezzelino de Romano. — 32. Cunizza, irmã de Ezzelino III, mulher de fama duvidosa pela sua vida livre, morta em Florença, onde talvez se penitenciou. — 37. Da luz etc., é a alma de Folco de Marselha, trovador e poeta. — 44. Os que etc., os habitantes da Marca Trevisana. — 51. Quem mostra no perder etc., Ricardo de Camino, senhor de Treviso, que foi morto traiçoeiramente pelos seus inimigos. — 52-54. Do ímpio Pastor etc., Alexandre Novello, bispo de Feltre entregou ao Papa, em 1314, vários gibelinos de Ferrara, que foram condenados à morte. — 67. Aquele, Folco. — 88-89. Nessa parte etc., Marselha onde Folco morou. — 97. Dido, rainha de Cartago, amando Enéias, ofendeu a Creusa, mulher de Enéias e ao seu marido Siqueu. — 100. Rodópea, matou-se ao ser abandonada por Demofonte. — 102. Iole, amante de Hércules, que, por ciúme, foi morto, por Dejanira. — 116. Raab, meretriz de Jericó, escondeu os espiões que Josué havia mandado a Jericó, facilitando a queda da cidade e, por isso, foi salva da morte, depois da vitória dos hebreus. — 118. Neste céu etc., segundo Tolomeu a sombra da Terra se projetava até o limite de Vênus. — 126. Que se apagou do Papa na memória, o Papa não se interessa pela Terra Santa, que está sob o domínio dos Sarracenos. — 127. A tua pátria etc., Florença teve origem demoníaca. — 130. Flor maldiçoada, o dinheiro, o florim de ouro de Florença. — 135. Decretais, os livros das leis canônicas, que asseguravam vantagens aos eclesiásticos.



CANTO X



Depois de admirar a infinita sabedoria de Deus na criação do Universo, narra o Poeta como sem aperceber-se achou-se elevado ao Sol, em que estão as almas dos doutos na teologia. Doze espíritos mais reluzentes o circundam e um deles, S. Tomás de Aquino, revela o nome dos seus companheiros.



O PODER inefável e primeiro,
O Filho a contemplar co’ Amor sublime,
3 De um e outro, eternal, vindo o terceiro,

Quanto à vista e à razão nossa se exprime
Com tal ordem criou, que, o efeito vendo,
6 De adorar seu Autor ninguém se exime.

As esferas, leitor, olhos erguendo
Nota a parte, onde estão dois movimentos
9 Um para o outro oposição fazendo.

E começa a mirar de arte os portentos,
Que tanto dentro em si o senhor ama,
12 Que lhes tem sempre os olhos seus atentos.

Vê como desse ponto se derrama
Em linha oblíqua, o círc’lo, que transporta
15 Os planetas que o mundo aguarda e chama.

Se lhes assim, não fosse a estrada torta,
Muita força no céu fora perdida
18 E aqui potência quase toda morta.

Se fora essa vereda preterida
Mais ou menos, ficara transtornada
21 A ordem no universo estatuída.

Ora leitor, meditação pausada
Faz de quanto comigo prelibaste:
24 Leda a mente hás de ter, não saciada.

Dou-te iguaria: come, pois, se praz-te.
A matéria, em que escrevo, não consente,
27 Nem por instantes, que a atenção se afaste.

Da natura o ministro mais potente
Que a influência do céu na terra imprime
30 E o tempo mede com sua luz fulgente,

À parte, que outro verso acima exprime,
Se unindo, para o ponto se volvia,
33 Onde mais cedo as trevas nos dirime.

Já no seu seio estava e o não sabia,
Como não pode alguém seu pensamento
36 Saber, quando inda à mente não surgia.

E Beatriz, em quem notava aumento
De bem para melhor, tão de repente,
39 Que o tempo fora ante o seu ato lento,

De si mesma quanto era refulgente!
O que era lá no sol onde eu me entrara,
42 Não por cor, por seu brilho mais nitente,

Posto que arte, uso, engenho me ajudara
Descrever por imagens não pudera;
45 Mas crer se pode e ver-se desejara.

Não se estranhe, se baixa parecera,
Querendo a tanto alar-se, a fantasia;
48 Além do sol ninguém olhos erguera.

Quarta família aqui resplandecia
Do Sumo Pai, que sempre da Trindade
51 No inefável spetáculo a sacia.

E disse Beatriz: — “Tanta Bondade
Humilde ao Sol dos anjos agradece,
54 Que ao sol sensível te alça à claridade.” —

Peito mortal jamais ardor aquece
De sentir tão devoto e tão piedoso,
57 Que a Deus a gratidão inteira expresse,

Quanto é meu ao convite carinhoso.
E em tanto enlevo o coração se acende,
60 Que a Beatriz olvida, fervoroso.

Não lhe despraz, e no seu riso esplende
Tanto brilho dos olhos expressivos,
63 Que do êxtase profundo me desprende.

Fulgores então vi claros e vivos,
De nós centro de si c’roa fazendo,
66 Mais suaves em voz que em luz ativos.

A filha de Latona se movendo
Vemos assim de um cinto rodeada,
69 No ar úmido as cores, se mantendo.

Dos céus a corte, donde volto, ornada
De jóias stá sublimes e formosas:
72 Só nos céus pode a estima lhes ser dada.

As vozes eram tais, que ouvi donosas.
Quem não tem plumas para ir lá voando
75 Pergunte a um mudo cousas portentosas.

Aqueles sóis, em torno a nós cantando,
Volveram-se três vezes: semelharam
78 Astros em roda aos pólos circulando.

Damas imitam, que no baile param,
Em silêncio outras notas esperando
81 Para seguir na dança que encetaram.

E uma voz do seu seio disse: — “Quando
Da Graça o raio em que o amor se acende
84 Sublime, pelo amor se acrescentando,

“Multiplicado em ti tanto resplende,
Que te conduz pela celeste escada,
87 Que a subir torna quem de lá descende,

“O que à sede em que tens a alma abrasada
Vinho negasse, irmão, livre não fora,
90 Qual linfa de correr embaraçada.

“Saber desejas como a c’roa enflora,
Que cinge, contemplando-a a pulcra Dama,
93 Que para o céu te guia protetora.

“Um anho fui da santa grei que chama
De Domingos a voz pelo caminho,
96 Onde prospera só quem mal não trama.

“Tomás de Aquino sou; me está vizinho,
À destra de Colônia o grande Alberto
99 A quem de aluno e irmão devo o carinho.

“Se dos mais todos ser desejas certo,
Na santa c’roa atenta cuidadoso,
102 A tua vista a voz siga-me perto.

“Nesse esplendor sorri-se jubiloso
Graciano que num e noutro foro
105 Di’no se fez de ser no céu ditoso.

“Aquele outro ornamento deste coro
Foi Pedro: como a pobre a of’renda escassa,
108 À Santa Igreja deu rico tesouro.

“A quinta luz, que as mais em lustro passa
Se acende em tanta luz, que anela o mundo
111 Saber se goza da celeste Graça.

“O alto esp’rito encerra, tão profundo,
Que se o Verbo de Deus é verdadeiro,
114 De saber tanto não se alçou segundo.

“Ao lado seu lampeja esse luzeiro,
Que os anjos, seu mister, sua natura
117 Em conhecer na terra foi primeiro.

“Sorri na luz menor, serena e pura,
Dos séculos cristãos esse advogado
120 De Agostinho tão útil à escritura.

“Se os olhos da tua mente acompanhado
De luz em luz me tens nestes louvores
123 Saber já tens da oitava desejado.

“Do Sumo Bem se enleva nos fulgores
Essa alma santa, havendo demonstrado
126 As mentiras do mundo e os seus rigores;

“Jaz daquela alma o corpo despojado
Em Cieldauro; e ela veio à paz divina
129 Após martírio e exílio amargurado.

“Mais longe, em cada flama purpurina,
Beda, Isidoro estão, Ricardo esplende,
132 Que além do humano o pensamento afina.

“Esse, de quem tua vista se desprende
A mim tornando, achou, grave e prudente,
135 Que morte pronta um grande bem compreende:

“É Siger, que assim luz eternamente.
Na rua de Fouare lera outrora
138 Verdades, que ódio hão provocado ingente.” —

E qual relógio, que nos chama em hora,
Em que, desperta, do Senhor a Esposa
141 Matinas canta e o seu amor implora;

Que, no girar das rodas, tão donosa
Nota faz retinir, de amor enchendo
144 Devota alma, que o escuta fervorosa;

O glorioso círc’lo, se movendo,
Assim vi eu, com tal suavidade
E doçura de vozes, que comprendo

148 Só haja iguais do céu na eternidade.



49. Quarta família, as almas que estão no Sol, que é o quarto Céu. — 67. A filha de Latona, Diana ou a lua. — 97. Tomás de Aquino, Santo teólogo (1225-1274). — 98. De Colônia o grande Alberto, o célebre teólogo Alberto Magno. — 104. Graciano, de Chiusi, em Toscana, escreveu no século XII um volume de Cânones eclesiásticos, que foi chamado o Decreto de Graciano. — 107. Pedro, Pedro Lombardo, bispo de Paris, morto em 1164 que, ao oferecer à Igreja o seu livro “Sentenciaram” comparava-se à viúva do Evangelho de S. Lucas, XXI. — 109. A quinta luz, o sapiente rei Salomão, filho de Davi. — 115-117. Esse luzeiro etc. Dionísio Aereopagita, que escreveu uma obra “De Coelesti Hierarchia.” — 119-120. Esse advogado etc., Paulo Orósio, que, aconselhado por Santo Agostinho, escreveu a História, em defesa da religião cristã. — 125-128. Essa alma santa etc. Severino Boécio, autor do livro “De consolatione philosophiae”, aprisionado e, depois, morto por Teodorico em 524. — 131. Beda, bispo inglês, Ricardo, padre de Escócia, Isidoro, S. Isidoro de Sevilha, os três doutos teólogos. — 136. Siger de Brabante, professor de teologia na Universidade de Paris no século XIII, a qual tinha a sua sede na Rua Fouare.



CANTO XI



Dante elogia a vida contemplativa. — As palavras proferidas no canto anterior por S. Tomás criam duas dúvidas no ânimo do poeta. O santo, tratando de resolver a primeira, esboça a vida de S. Francisco de Assis.



Ó DOS mortais aspirações erradas!
Em que falsas razões vos enlevando
3 Tendes à terra as asas cativadas!

Qual seguia o direito; qual buscando
Já aforismos; qual o sacerdócio;
6 Qual reinava, sofisma ou força usando;

Qual roubo amava, qual civil negócio;
Qual, a salaz deleite entregue a vida,
9 Afanava-se; qual passava no ócio;

Enquanto eu, livre da terrena lida,
Ao céu com Beatriz me alevantava,
12 Aceito lá com glória tão subida.

Cada alma santa ao ponto já tornava
Do círculo em que de antes demorara;
15 E como círio em candelabro estava.

Então da luz, que de antes me falara
Voz suave escutei; e assim dizendo
18 Do seu brilho a pureza se aumentara:

— “O lume eterno, em que me inspiro e acendo,
Eu, contemplando, claramente leio
21 Teu pensamento e a origem lhe compreendo.

“Desejas tu, da dúvida no enleio,
Que eu aproprie da tua mente à esfera
24 O que dizer-te, há pouco, me conveio.

“Eu te disse — caminho onde prospera —
— De saber tanto não se alçou segundo: —
27 Aqui é, pois, que a explicação te espera.

“A Providência, que governa o mundo
Com tão sábio conselho, que, torvada
30 Sente a vista quem quer sondar-lhe o fundo.

“Por ser ao seu dileto encaminhada
Casta Esposa daquele, que alto grito,
33 Desposando-a, soltou na Cruz Sagrada,

“Com ânimo mais forte e à fé restrito,
Dois príncipes, lhe deu, que, em seu desvelo,
36 O caminho mostrassem-lhe bendito.

“Um seráfico foi no ardor do zelo,
Outro ostentou, por seu saber na terra,
39 De querúbica luz esplendor belo.

“De um só te falarei; pois num se encerra
O que de outros aos louvores mais se estende:
42 Quem der aos dois o mesmo fim não erra.

“Entre Tupino e o rio, que descende
Do outeiro, que escolhera santo Ubaldo,
45 Fértil encosta de alto monte pende.

“Dali baixa a Perúgia o frio e o caldo
Pela porta do Sol; atrás padece
48 Em duro jugo Nócera com Gualdo.

“Onde o declive menos agro desce
Nasceu ao mundo um sol tão luminoso,
51 Como o que ao Gange às vezes esclarece.

“Desse lugar quem fale portentoso
Não diga Assis, que pouco declarara:
54 Chame Oriente o berço glorioso.

“Do nascente este sol pouco distara,
Quando o conforto a receber a terra
57 Já das virtudes suas começara.

“Contra seu pai, adolescente, em guerra
Entrou por dama, a quem bem como à morte,
60 Ninguém a porta com prazer descerra.

“Então da Igreja a recebeu na corte,
E coram patre, por esposa amada
63 E amor votou-lhe cada vez mais forte.

“Vivera ela viúva e desprezada
Séculos onze e mais, e de outro amante,
66 Senão deste, não fora requestada;

“Em vão se disse que no lar, constante,
De Amiclas a encontrou esse guerreiro,
69 De quem tremera o mundo titubante;

“Em vão fiel, de coração inteiro,
Quando Maria ao pé da Cruz ficara,
72 Com Cristo ela subira-se ao madeiro.

“Para fazer minha linguagem clara,
Em suma, o nome sabe dos amantes:
75 Com pobreza Francisco se casara.

“Dos dois santa união, ledos semblantes,
Seu terno olhar e afeito milagroso
78 Dão a todos lições edificantes.

“Aquela paz anela cobiçoso
Venerável Bernardo que, primeiro,
81 Descalço corre e crê ser vagaroso.

“Riqueza inota! Ó Bem só verdadeiro!
Descalço vai Egídio, vai Silvestre,
84 Porque amam-na, do esposo no carreiro.

“Dali se parte aquele pai e mestre
Com terna esposa e com família santa
87 Que de corda o burel cinge campestre.

“Não baixa os olhos, nem se torna e espanta
Por filho ser de Bernardone obscuro,
90 Nem por sofrer desdém em cópia tanta.

“Mas afouto mostrou o intento duro
A Inocêncio de quem primeiro obteve
93 Assenso ao regimento austero e puro.

“E quando a pobre grei progresso teve,
Após aquele, a cuja heróica vida
96 Melhor no céu louvor de anjos se deve,

“Foi a c’roa segunda concedida
Por Honório, que o Santo Espírito alenta
99 Daquele arquimandrita a santa lida.

“Em breve a sede do martírio o tenta,
E do Soldão soberbo na presença
102 Cristo anuncia e a lei que o representa.

“Vendo rebelde o povo à nova crença.
Por não ficar seu zelo sem proveito
105 Da Itália volta para a messe extensa.

“Na dura penha, que se interpõe ao leito
Do Tibre e do Arno, o derradeiro selo
108 Cristo lhe pôs: dois anos dura o efeito.

Quando a Deus, que a bem tanto quis movê-lo,
O prêmio prouve dar-lhe merecido,
111 Na humildade cristã por seu desvelo,

“Essa esposa, que amara estremecido,
Aos irmãos confiou por justa herança,
114 Para afeto lhe terem sempre fido.

“Do seio da pobreza então se lança,
Tornando ao reino seu, a alma preclara:
117 Nesse jazigo o corpo seu descansa.

“Pensa, pois, o que foi quem Deus julgara
Di’no após ele, de reger a barca
120 Que Pedro, no alto mar encaminhara.

“Coube a tarefa ao nosso patriarca:
Quem, fiel, aos preceitos lhe obedece,
123 Sabe tesouros arrecadar na arca.

“Sua grei novo pascigo apetece,
E tanto é dos desejos impelida,
126 Que em diferentes campos aparece.

“Quanto mais cada ovelha é seduzida
Do mundo pelo pérfido atrativo,
129 Tanto mais ao redil volta inanida.

“Poucas temendo o lance decisivo,
Acolhem-se ao pastor: escasso pano
132 É já para vesti-las excessivo.

“Se claro te falei, livre de engano,
Se tens estado ao que te digo atento,
135 Se da memória não receias dano,

“Ao teu desejo, em parte, dei contento,
Pois da planta bem vês qual seja a rama;
E o corretivo está neste argumento:

139 Onde prospera só quem mal não trama.”



25. Eu te disse etc. V. Canto X, v. 95-96 e 114. — 37. Um seráfico etc., S. Francisco de Assis. — 38. Outro ostentou etc., São Domingos. — 43-48. Entre Tupino etc., descreve a situação geográfica da cidade de Assis, na qual S. Francisco nasceu. — 59. Dama a quem etc., a pobreza. — 64-66. Viúva e desprezada etc., o primeiro esposo da Pobreza foi Jesus e, por isso, ficou viúva mais de onze séculos. — 68. Amiclas, Júlio César ficou admirado pela alegre pobreza do pescador Amiclas (V. Lucano, Farsálias V, 519). — 80. Bernardo, primeiro companheiro de S. Francisco. — 83. Egídio e Silvestre, companheiros de S. Francisco. — 89. Bernardone, Pietro Bernardone, pai de S. Francisco. — 92. Inocêncio III, papa que deu autorização à Ordem Franciscana, em 1214. — 98. Honório III, que em 1223, pela segunda vez, aprovou a Ordem de S. Francisco. — 99. Arquimandrita, pastor. — 100-105. Em breve etc., S. Francisco em 1219 esteve no Egito tentando converter os infiéis, mas voltou logo para a Itália. — 106-108. Na dura penha etc., no monte Alvérnia, no Casentino, S. Francisco recebeu os estigmas de Jesus crucificado e os manteve dois anos, pois depois de dois anos morreu.



CANTO XII



Acabando S. Tomás de falar, ajunta-se à primeira coroa de doze espíritos resplendentes, mais uma coroa de igual número de espíritos. Um destes, S. Boaventura, franciscano, tece louvores a S. Domingos. Depois dá notícia acerca dos seus companheiros.



QUANDO o lume bendito proferira
Do discurso a palavra derradeira,
3 A coréia, como eu já a vira,

Inda uma volta não fizera inteira,
Logo outra turma em círculo a encerrava
6 Em voz acordes ambas e em carreira.

Essa harmonia tanto superava
Das Musas e sereias a cadência,
9 Quanto ao reflexo a luz que rutilava.

Como arcos dois das nuvens na aparência
Curvam-se iguais na cor e equidistantes,
12 Se de Íris Juno exige diligência,

Nascendo um do outro, em forma semelhantes,
Qual voz da que de amor foi consumida
15 Como do sol as névoas alvejantes,

E crer fazendo que há de ser mantida
A promessa, a Noé por Deus firmada,
18 De não ser mais a terra submergida:

Assim de nós em torno ia agitada
Cada grinalda das perpétuas rosas,
21 Uma com outra em tudo conformada.

Tanto que a dança e festa jubilosas,
Por cantos e esplendores flamejantes
24 Dessas luzes suaves e amorosas,

Quedar eu vi nas rotações brilhantes,
Quais olhos, juntamente ao nosso grado,
27 Se abrindo e se fechando vigilantes,

De um dos novos clarões voz, que, enlevado,
Volver-me para si fez de repente,
30 Qual à estrela polar ímã voltado:

— “Amor” — diz — “que a beleza dá-me ingente
Me induz a te falar do Mestre Santo,
33 Que ao meu foi de louvor causa eminente.

“Um se memore onde outro bilha tanto:
Sob a mesma bandeira hão militado;
36 Brilha a glória dos dois também no canto.

De Cristo, a tanto custo restaurado,
O exército o estandarte seu seguia,
39 Já raro, lento, de temor tomado,

“Quando à milícia, que o valor perdia
O Eterno Imperador deu provimento,
42 Só por Graça: esse bem não merecia;

“E da Esposa enviou por salvamento
Dois campeões, de cuja voz movida,
45 A transviada gente cobra o alento.

“Na terra, em que, ao seu hábito, convida
O Zéfiro a se abrirem novas flores,
48 De que se vê a Europa revestida,

“Em plaga, onde se embate em seus furores
O mar, em que, o seu curso terminado,
51 O sol esconde às vezes seus ardores,

“Jaz Calaroga em solo afortunado,
Que o poderoso escudo protegera,
54 No qual leão subjuga e é subjugado.

“Ali o atleta heróico à luz viera,
Da fé cristã esse indefesso amante,
57 Que, aos seus beni’no, aos maus guerra fizera.

“Foi virtude em sua alma tão possante,
Que, ainda estando no materno seio,
60 Do porvir fez a mãe vaticinante.

“Quando a firmar-se o desposório veio
Entre ele e a Fé, na fonte consagrada,
63 De muita salvação seguro meio,

“De dar pôr ele o assento a encarregada
A messe viu em sonhos milagrosa,
66 Que dele e herdeiros seus era esparada.

“Do seu destino em prova portentosa,
Anjo baixou ao fim só de chamá-lo
69 Do Senhor de quem era a alma piedosa.

“Domínico foi dito e eu dele falo,
Como o operário, que elegera Cristo,
72 Da vinha no lavor para ajudá-lo.

“Servo e enviado mostrou ser de Cristo
Por quanto o amor primeiro, que há mostrado,
75 Foi a primeira lei que nos deu Cristo.

“Muitas vezes a mãe o achou prostrado,
Em profundo silêncio e bem desperto,
78 Como a dizer: — A isto eu fui mandado.

“Oh! foi seu genitor feliz por certo!
Oh! sua mãe realmente foi Joana
81 Se há no sentido que lhe dão, acerto!

“Não pelo amor do mundo, que se engana,
Do Ostiense e Tadeu nos livros lendo,
84 Mas de Jesus pelo maná se afana,

“Sapiente doutor em breve sendo,
Da santa vinha guarda vigilante,
87 Que presto seca, pouco zelo havendo.

“De Roma à sede quando foi perante,
Que aos justos era compassiva outrora,
90 Hoje, por culpa do que a rege, errante,

“Onzenárias dispensas não lhe implora,
Nem primeira prebenda, que vagasse,
93 Nem dízimas, que são do pobre, exora.

“Mas contra o mundo, que no qual compraz-se,
Pede o favor de defender a planta,
96 Da qual tens flores vinte e quatro em face.

“Com seu querer e com doutrina santa,
Como a torrente, que da altura desce,
99 De apóstolo por zelo o mundo espanta.

“Dos hereges se arroja à infanda messe,
E onde a resistência mais porfia
102 Das forças suas o ímpeto recresce.

Dele brotaram rios, que hoje em dia
Têm o jardim católico regado
105 E aos seus arbustos dão viço e valia.

“Se tal foi uma roda do afamado
Carro, em que defendeu-se a Santa Igreja,
108 E a civil guerra em campo há superado,

“Da outra o alto mérito qual seja
Já te disse Tomás, eu stando ausente:
111 Dele nas vozes seu louvor lampeja.

“Porém daquela roda o sulco ingente
Ficou em desamparo tal, que o lodo
114 Onde era a flor domina tristemente.

“Vê-se a família sua por tal modo
Da vereda de outrora transviada,
117 Que esqueceu-lhe as pegadas já de todo.

“Logo a cultura má será provada
Na seara, zizânia sendo ao vento,
120 Em vez de ir ao celeiro, arremessada.

“Que nosso livro folheasse atento
Veria, creio, página, em que lesse:
123 — Sou, como sempre, de impureza isento. —

“Em Casal e Água-Sparta igual não vê-se:
Lá de tal jeito entende-se a Escritura,
126 Que um tíbio a foge, outro excessivo a empece.

“De Bargnoregio eu sou Boaventura,
Que, exercendo altos cargos, repelia
129 Dos interesses temporais a cura.

“Vê, dos irmãos descalços primazia,
Iluminato, de Agostinho ao lado:
132 Cada qual no burel por Deus ardia.

“Hugo vê de S. Vítor premiado
Como Pedro Mangiadore e Pedro Hispano
135 Pelos seus doze livros celebrado.

“Natã Profeta e o Metropolitano
João Crisóstomo, Anselmo e o afamado
138 Donato, na primeira arte sob’rano.

“Vê Rabano, a brilhar vê ao meu lado
O calabrês Abade Giovachino,
141 De espírito profético dotado.

“Aos louvores do excelso paladino
Moveu-me a caridosa cortesia,
O dizer sábio de Tomás de Aquino,

145 E comigo a esta santa companhia.”




12. Íris, personificação mitológica do arco-íris. — 14. Qual voz do que de amor foi consumida, como voz da ninfa Eco que se consumiu pelo amor por Narciso. — 28. Um dos novos clarões, a alma de S. Boaventura. — 46. Na terra etc., na Espanha. — 53-54. Escudo etc., o escudo dos reis da Castela representava dois leões, um debaixo e outro em cima de um castelo. — 64-66. A encarregada etc., quando do batismo de S. Domingos, a madrinha o viu com uma estrela na testa. — 80. Sua mãe realmente foi Joana. Joana em hebraico tem o significado de “portadora de graças.” — 83. Ostiense, o cardeal Henrique de Susa, que comentou os “Decretais”; Tadeu Aldreotti, florentino, médico; ou, segundo outros comentadores, Tadeu dei Pepoli, jurista bolonhês. — 90. Por culpa etc., de Bonifácio VIII. — 95-96. A planta etc., a fé, de que se alimentaram os espíritos dos vinte e quatro teólogos que estão na presença de Dante. — 124-126. Em Casal e Agua-Sparta, alude à divisão dos franciscanos em dois partidos, um chefiado por libertino de Casale e outro por Mateus d’Acquesparta. — 131. Iluminato e Agostinho, dois companheiros de S. Francisco. — 133-135. Hugo de S. Vitore, Pedro Mangiatore e Pedro Hispano, egrégios teólogos. — 136-139. Natã, o profeta que repreendeu Davi; S. João Crisóstomo, patriarca da Igreja; Donato, gramático latino; S. Anselmo, bispo de Canterbury. — 139-140. Rabano e o abade Giovachino, escritores sacros.


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