INFERNO ... Cantos I-V ... VI-XI ... XII-XVII ... XVIII-XXIII ... XIV-XXIX ... XXX-XXXIV
PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII
PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII
CANTO VII
Desaparecem
os bem-aventurados cantando. Beatriz explica como a crucificação de Cristo
restituiu ao homem a dignidade perdida, a liberdade que lhe foi conferida por
Deus. Os anjos e os homens por sua natureza são livres e imortais. O homem
porém, pecando, abusou da sua liberdade, e deformou a imagem de Deus que tinha
em si. Não podia reparar a falta por si mesmo, pois não podia humilhar-se tanto
quanto Adão, em seu orgulho, quis subir. A Deus convinha ou perdoar ou punir.
Na sua sabedoria infinita, Deus perdoou e puniu no mesmo tempo. Puniu a
humanidade em Jesus Cristo e nele a fez novamente livre.
“HOSANNAH
Sanctus Deus Sabaoth,
Superillustrans
daritate tua
3
Felices ignes horum malacòth!”
Assim,
voltando à melodia sua,
Cantar
ouvi essa alma venturosa
6
Em quem dúplice lume se acentua.
Tornam
todas à dança jubilosa,
E
súbito da vista se apartaram
9
Velozes, como flama fulgurosa.
Disse
entre mim, pois dúvidas me entraram:
“Fala
à senhora tua, fala; à sede
12
Rocio as palavras suas te deparam.”
Torvação
me assenhora e a voz me impede,
Que
apenas B com I C E conjugava:
15
Acurvei, como quem ao sono cede.
Mas
Beatriz do enleio me tirava,
Com
sorriso, que a mente me ilumina
18
E aditara entre as chamas começava:
—
“Como bem vejo, dúvida domina
A
tua alma: — a vingança, que foi justa,
21
Punição teve, da justiça di’na?
“Esclarecer-te
o espírito não custa.
Atende
bem: verdade preminente
24
Das vozes minhas co’a expressão se ajusta.
“Aceitar
não querendo, obediente,
Saudável
freio, o homem, sem mãe nado,
27
Perdeu-se a si, perdeu a humana gente.
“Muitos
séc’los enferma do pecado,
Jazeu
ela não erro engrandecido
30
Té que o Verbo de Deus fosse encarnado.
“Por
ato só do Eterno Amor, unido
À
natureza se há, que ao mal se dera,
33
Depois de esquiva ao Criador ter sido.
“No
que vou te dizer bem considera.
A
natureza, a que se uniu beni’no
36
Em pessoa, nasceu boa e sincera.
“Por
si mesma, fugindo em desatino
Da
vereda da vida e da verdade,
39
Do Paraíso se exilou divino.
“Da
Cruz a pena, em face da maldade
Da
natureza, a que Jesus baixara,
42
Foi a mais justa em sua gravidade.
“Nunca
injustiça igual se praticara,
Atenta
essa Pessoa, que há sofrido,
45
Que à natureza humana se ajuntara.
“Contrastes,
pois, de um ato hão procedido:
Folgam
Judeus da morte a Deus jucunda,
48
Foi ledo o céu e o mundo espavorido.
“E
não te mova sensação profunda
Ouvir
que uma vingança, que foi justa,
51
Vingada ser devia por segunda.
“Vejo-te
a mente por vereda angusta
Levada
a estreito nó de dubiedade,
54
Que solver mor esforço ora te custa.
“Dirás:
— discerne o que ouço, na verdade;
Mas
porque Deus nos desse está-me oculto,
57
Remindo-nos tal prova de bondade. —
“Este
decreto irmão, está sepulto
Aos
olhos do que ainda o entendimento
60
Não tem de Amor na flama ainda adulto.
“É
mistério em que luta o pensamento
Sem
fruto conseguir de tal porfia,
63
Mas foi o melhor modo. Ouve-me atento!
“A
Divina Bondade que desvia
De
si o desamor, arde e flameja,
66
Por eternais primores se anuncia.
“Diretamente
o que emanado seja
Dela
é sem fim; eterna impressão fica
69
Do que no seu querer supremo esteja.
“O
que assim nasce, não sujeito fica
Das
causas secundárias à influência
72
E liberdade plena significa.
“Mais
lhe apraz, se é conforme à sua essência:
Que
o santo Amor que em toda cousa brilha,
75
Mais vivo é no que encerra esta excelência.
“Aos
homens de tais bens cabe a partilha:
De
tais predicados se um falece,
78
Sua nobreza já decai, se humilha.
“Só
por pecado dessa altura desce;
Do
Sumo Bem não mais reflete o lume,
81
Semelhança não mais dele oferece.
“E
o grau sublime seu não mais assume,
Se
não contrapuser ao do pecado
84
Deleite mau das penas o azedume.
“Quando
o gênero humano, infeccionado
Todo
no germe seu, foi dessa alteza
87
E do seu Paraíso deserdado,
“Reaver
só pudera (com certeza
Verás,
se bem cogitas), intervindo
90
Um dos meios, que aponto por clareza:
“Ou
Deus, por graça infinda, remitindo;
Ou
— porque, de si mesmo, se convença —
93
Das culpas suas o homem se remindo.
“Para
sondar a profundeza imensa
Dos
eternos conselhos, prende à mente
96
As razões que o discurso meu dispensa.
“O
homem não podia, de indigente,
As
dívidas solver: nunca pudera
99
Curvar-se tanto, humilde e reverente,
“Quanto,
rebelde, se elevar quisera.
Eis
por que redimir-se do pecado
102
Só por si mesmo ao homem não coubera.
“E,
pois há sido do divino agrado,
Por
clemência ou justiça e ambas juntando,
105
Ser ele à vida eterna aparelhado.
“A
feitura do Autor ao gosto estando
Inda
mais, quando a imagem nos of’rece
108
Do peito, de quem vem piedoso e brando,
“A
Bondade que em tudo transparece,
Em
prol vosso os dois modos reunia:
111
Um somente bastar-lhe não parece.
“Entre
a noite final e o primo dia
Ato
igual não se fez alto e formoso
114
Desse modo por um, nem se faria.
“Dando-se,
há sido Deus mais generoso,
Por
que o home’ a se erguer se habilitasse,
117
Do que só perdoando carinhoso.
“Outro
meio qualquer, que se empregasse
Não
bastara à Justiça, se humilhando
120
De Deus o Filho à carne não baixasse.
“Para
de todo seres doutrinado
Eu
torno a um ponto, por que vejas claro,
123
Como eu, o que zelosa hei te explicado.
“Dizes:
— no fogo e no ar, se bem reparo
Na
terra e nágua vejo e em seus compostos
126
Corrupção que destrói sem anteparo.
“Na
criação por Deus foram dispostos:
De
corrupção isentos ser deveram,
129
Certos sendo os princípios por ti postos. —
“Criados,
meu irmão, se consideram
Os
anjos e dos céus o que há no espaço,
132
Inteiros, puros sempre quais nasceram.
“Elementos
e quanto no regaço
Da
natura por eles se combina
135
De virtude criada of’recem traço.
“Criou-lhes
a matéria a lei divina,
Criando
logo a força informativa,
138
Que nos astros, que os cercam, predomina.
“Dos
lumes santos moto e luz deriva
Dos
brutos alma, e plantas igualmente,
141
Por compleição potencial passiva.
“A
vida nossa vem diretamente
De
Deus, Supremo Bem, que em nós acende
144
Amor tal, que o deseja eternamente:
“Daí,
por dedução, também descende
Vossa
ressurreição, se ao ser e à essência
Da
humana carne o teu esp’rito atende,
148
Quando o primeiro par teve existência.” —
1-3.
Hosannah, sanctus Deus Sabaoth, expressão constituída por palavras latinas e
hebraicas: “Salve, Deus dos exércitos, que iluminas com a tua luz os felizes
lumes deste reino.” — 18. E aditara, do verbo aditar, tornar feliz. — 26. O
homem sem mãe nado, Adão. — 46-48. Contrastes, pois, de um ato procedido etc.,
a morte de Jesus Cristo deu satisfação a Deus, porque reparava a ofensa de Adão
e deu satisfação aos Judeus pela raiva deles contra Jesus; a terra ficou
espavorida pela crucificação de Deus e o Céu alegre porque se abria novamente à
humanidade.
CANTO
VIII
Dante
e Beatriz elevam-se à estrela de Vênus, onde estão os espíritos daqueles que
outrora foram propensos às paixões amorosas. Encontro com Carlos Martelo, o
qual referindo-se à índole mesquinha de seu irmão Roberto, explica-lhe como se
dá que de um bom pai possa nascer um filho mau e, enfim, quanto providencial é
a Natureza nos seus decretos e quão vaidosos são os homens que não lhe seguem
as indicações.
O
MUNDO com perigo verdadeiro
Creu
que Ciprina bela dardejava
3
Louco amor do epiciclo que é terceiro.
Sacrifícios
não só lhe consagrava,
Preces
e votos essa antiga gente
6
No erro antigo fatal, que a transviava,
Mãe
e filho adoravam juntamente,
Dione
e o seu Cupido, que fingiram
9
De Dido reclinado ao seio ardente;
Dessa
falsa deidade o nome uniram
Ao
planeta, que o sol sempre namora,
12
Quando raiam seus lumes, quando expiram.
Como
ao astro eu me alcei, a mente ignora,
Mas
certo fui de haver lá penetrado,
15
Mais formosa por ver minha senhora.
Como
se vê fagulha em fogo ateado,
Como
uma voz é de outra discernida,
18
Firme o som de uma, o de outra variado,
Outros
clarões notei na luz subida,
Mais
ou menos velozes se volvendo,
21
Lá da eterna visão, creio, à medida.
Ou
visíveis ou não, ventos rompendo,
Em
rápida invasão, de nuve’ escura,
24
Demorados stariam parecendo,
A
quem pudesse ver cada luz pura,
Que
ao nosso encontro vem deixando a dança
27
Que marcam serafins dos céus na altura.
Trás
a grei, que primeiro nos alcança.
Tão
doce hosana soa, que, incessante,
30
De inda ouvi-lo o desejo jamais cansa.
Dos
espíritos um, que vem diante
Só
principia: — “Todos nós queremos
33
Quanto para aprazer-te for prestante.
“Num
só ardor e giro nos movemos
Cos
Príncipes, celestes esplendores
36
De quem no mundo hás dito (bem sabemos):
—
“Vós, do terceiro céu sábios motores!” —
Por
te agradar nos é doce o repouso
39
Tão vivos são do nosso amor fervores!” —
De
Beatriz ao gesto luminoso
Depois
que alcei os olhos reverente
42
E certo fui do seu querer donoso,
À
luz, que se mostrou condescendente
Em
tanto grau — “Quem és” — falei, de afeito
45
Estremecido possuída a mente.
Ó
das palavras minhas raro efeito!
Maior
a vi brilhar; nova delice
48
A alegria aumentou do claro aspeito.
—
“Bem pouco o mundo” — a refulgir-me, disse —
“Me
teve; se algum tempo mais vivesse,
51
Mal, que há de vir, por certo ninguém visse.
“O
júbilo que em torno me esclarece,
Aos
teus olhos me encobre, como inseto,
54
Que dos seus véus de seda se guarnece.
“Com
razão me votaste o extremo afeto;
Pois,
em mais longa vida, eu te mostrava
57
Por ações quanto me eras tu dileto.
“Aquela
região, que o Rone lava
À
sestra, quando ao Sorga corre unido,
60
Por senhor seu um dia me esperava.
“Como
da Ausônia o litoral partido
Por
Bari, por Gaeta e por Crotona.
63
Onde é do Tronto e Verde o mar nutrido.
“Da
c’roa a fronte minha já se entona
Do
vasto reino, que o Danúbio rega,
66
Quando as plagas tudescas abandona.
“Trinácria,
a cujos céus névoa carrega
Sobre
o golfo, em que mais Euro embravece,
69
De Paquino a Peloro, em mor refega,
“Que
não Tifeu, mas súlfur escurece,
O
trono guardaria à prole minha,
72
Que de Carlo e Rodolfo antigos desce,
“Se
o mau jugo, que os povos amesquinha,
A
gritar — morra! morra! — não movesse
75
Palermo, a quem temor não mais continha.
“Se
mais prudência meu irmão tivesse,
Dos
Catalanos a indigência avara
78
Fugira, por que o mal seu não crescesse.
“Urgente,
na verdade, se tomara
Que,
por si ou por outrem, não deixasse
81
Mais onerar a barca, que adernara.
“Quando
a índole nobre transtornasse
Avareza,
milícia ter devia,
84
Que só de encher seus cofres não curasse.” —
—
“Como creio” — tornei-lhe — “a essa alegria,
Que
me infundes, Senhor, a origem tira
87
De Deus que todo bem finda e inicia.
“Comigo
a sentes: mor prazer me inspira.
Quanto
me hás dito, me é no extremo caro,
90
Pois vês, de Deus no espelho tendo a mira.
“Ledo
me hás feito; assim tornar-me claro
O
que por teu dizer stá duvidoso:
93
Semente doce brota fruto amaro?” —
—
“Vendo a verdade” — disse — “pressuroso
Darás
o dorso ao que ora dás o rosto,
96
Verás claro o que julgas tenebroso.
“O
Bem, que os céus, que sobes, há disposto,
Os
move e alegra, sem pôr providência
99
Nestes corpos que vês virtude posto.
“E
não só com perfeita previdência
Cousas
terrestres acham-se ordenadas,
102
Mas as preserva a sua onipotência;
“Porque
as setas, deste arco arremassadas,
Predestinadas
são a um ponto certo,
105
Infalíveis ao alvo enderaçadas.
“O
céu aliás, aos olhos teus aberto,
Só
feituras sem arte produzidas
108
Abrangera e ruínas no deserto.
“Foram
então de perfeição despidas
As
Substâncias, que regem as estrelas
111
E a mão, que as fez assim destituídas.
“Verdades
são: mais claras queres vê-las?” —
—
“Não” — repliquei — “supor não poderia
114
Natura escassa em suas obras belas.” —
—
“Um mal, dize-me, fora” — prosseguia —
“Não
ser o homem cidadão na terra?” —
117
— “Por certo; e a razão sei” — lhe respondia.
—
“Sociedade haverá, se não encerra
Misteres
vários, que cada um pratica?
120
Não, se o teu Mestre em seu pensar não erra.” —
Deduzindo,
a evidência significa,
E
logo concluiu: — “Causa dif’rente
123
Efeito diferente sempre indica.
“Nasce
um Sólon, e Xerxe outro é furente,
Melquisedeque
ou Dédalo perito,
126
Que no ar perdeu o filho seu demente.
“Perfeito
é o giro pelos céus descrito;
Na
cera humano o seu sinal fazendo,
129
Mas solar não distingue, nem distrito.
“Daí
vem que Esaú, logo em nascendo,
Difere
de Jacó; toma Quirino
132
Marte por genitor, seu pai vil sendo.
“Natureza
gerada, em seu destino
Seria
sempre igual à que a fizera,
135
Se não vencesse o decretar divino.
“O
rosto ora diriges à luz vera;
Mas
inda um corolário te ofereço,
138
Pois de agradar-te em mim desejo impera.
“Sempre
natura, se da sorte excesso
A
contraste, produz fruto danado,
141
Como semente posta em solo avesso.
“Se
meditasse o mundo, desvelado,
Nos
fundamentos, que natura lança,
144
De melhor gente fora povoado.
“Mas
quem próprio seria à militança
Na
soledade monacal definha,
Bem
pregara quem, Rei, em vão se cansa.
148
E fora assim da estrada se caminha.” —
2.
Ciprina bela, Vênus. — 8. Dione, filha de Oceano e de Tétis, mãe de Vênus. — 9.
De Dido reclinado ao seio ardente, no I Livro da Eneida, Cupido, sob a
aparência de Ascânio, leva a Dido os presentes de Enéias. — 58 e seg. quem fala
é Carlos Martelo, filho de Carlos II de Anjou e que Dante conheceu em Florença
em 1294. — 61. Ausônia, a Itália. — 67. Trinácria, a Sicília. — 70. Tifeu,
segundo a lenda o gigante Tifeu, sepultado na Sicília, expele fumo e caligem. —
72. De Carlo e Rodolfo, Carlos de Anjou e Rodolfo de Habsburgo. 74. A gritar —
morra! morra! — não movesse Palermo, alusão às Vésperas Sicilianas. - 76. Meu
irmão, Roberto de Anjou. — 120. O teu mestre, Aristóteles. — 131. Quirino
Rómulo, fundador de Roma.
CANTO IX
Depois
de Carlos Martelo, fala a Dante, Cunizza de Romano, irmã do tirano Ezzelino.
Prediz-lhe iminentes desventuras na Marca de Treviso e de Pádua, e uma negra
traição do bispo de Feltre. Folco de Marselha manifesta-se a Dante e lhe indica
a alma resplendecente de Raab, que favoreceu os hebreus na conquista da Terra
Santa. Invectiva contra Florença e contra a Cúria Romana.
DEPOIS
que Carlos teu, bela Clemência
Instruiu-me,
narrou traições e enganos,
3
Que ter devia a sua descendência;
Mas
disse: — “Cal’-te! Deixa o curso aos anos!” —
Dizer
só posso, pois, que justo pranto
6
Há de vir por vingança aos vossos danos.
E
voltou-se de novo o lume santo
Para
o Sol que de júbilos o enchia,
9
Sendo ele o Bem que para tudo, e tanto.
Ah!
mortais iludidos! raça impia,
Que,
em pensamentos fátuos se engolfando,
12
Do Bem Supremo os corações desvia!
Eis
outro vi pra mim se encaminhando:
De
aprazer-me a vontade anunciava,
15
O brilho da luz sua acrescentando.
Os
olhos Beatriz em mim fitava,
Bem
como de antes: grandioso assenso,
18
Ao meu desejo claramente dava.
—
“Ó ser bendito, ao meu querer intenso
Defere
logo” — exclamo — “ e dá-me a prova
21
De que em ti se reflete o que ora penso.” —
A
luz então, inda aos meus olhos nova,
Dês
que a vi lá na altura onde cantava
24
Diz como quem cortês rogos aprova:
—
“Nessa parte da Itália opressa e escrava,
Que
situada entre o Rialto
27
E as nascentes do Brenta e do Piava,
“Colina
vê-se que, não surge ao alto:
Lá
centelha, depois ígnea procela,
30
Que a toda a região deu grande assalto.
“De
um só tronco brotamos eu com ela.
Cunizza
me chamei: aqui resplendo,
33
Porque venceu-me a flama desta estrela.
“Da
sorte minha a causa não me sendo
Desgosto,
eu ma perdôo alegremente
36
Talvez estranhe o vulgo o como entendo.
“Da
luz, que me está perto, refulgente,
Amada
jóia desta nossa esfera,
39
Revive grande a fama, e permanente
“De
séc’los cinco mais será na era.
Vê
se homem com razão à glória aspira,
42
Se extinta a vida, outra no mundo o espera!
“A
este alvo, porém, não levam mira
Os
que o Ádige cerca e o Tagliamento:
45
Nem dos seus erros o infortúnio os tira.
“Punido
em breve, o povo truculento
De
Pádua o lago tingirá, que banha
48
Co’as águas, de Vicência o fundamento;
“Onde
o Cagnan do Sile se acompanha
Se
trama o laço que fará cativo
51
Quem mostra no perder soberba estranha.
“Do
ímpio Pastor procedimento esquivo
Há-de
Feltro chorar, tal ribaldia
54
A Malta não levou nunca homem vivo.
“De
enormes dimensões tonel seria,
Que
o sangue recebesse de Ferrara,
57
Pesá-lo o esforço humano esgotaria,
“Em
tal cópia o bom Padre o derramara
Em
preito ao seu partido! Os dons malvados
60
Da terra sua a índole explicara.
“Espelhos
no alto (Tronos são chamados)
A
nós refletem quanto Deus indica:
63
Crê, pois, ora nos fatos revelados.” —
Calando-se
Cunizza significa,
Ao
giro seu anterior voltando,
66
Que em diverso cuidado imersa fica:
Aquele,
a que aludira, rebrilhando,
Com
preclaro esplendor, mostrou-se à vista.
69
Como ao sol rubi fino flamejando.
Alegria
no céu fulgor aquista,
Como
a nossa no riso se declara;
72
Mas os gestos no inferno a dor contrista.
“Deus
vê tudo, e o teu ver nele se aclara” —
Falei
— “ditoso espírito: patente
75
Te é sempre quanto o seu querer depara.
“Porque
a voz tua, enlevo permanente
Do
céu, de anjos no canto a sócia sendo,
78
Que em seis asas têm veste resplendente,
“Não
satisfaz desejos, em que ardendo
Estou?
Falara, sem mais ser rogado,
81
Se eu visse em ti bem como em mim stás vendo.” —
—
“O maior vale de águas inundado”
—
Desta arte a responder-me começava —
84
“Do mar, em torno à terra derramando,
“Opostas
plagas, se estendendo, lava
Contra
o sol, e assim faz meridiano
87
Esse horizonte, em que primeiro estava.
“Nessa
parte do val mediterrano
Nasci,
entre Ebro e Macra, que separa
90
Do domínio de Gênova o Toscano.
“Quase
um meridiano se depara
Para
Bugia e o ninho meu querido:
93
Sangue dos seus seu porto avermelhara.
“Chamei-me
Folco e assim fui conhecido:
Este
céu da luz minha é penetrado
96
Como eu fora da sua possuído;
“Pois
Dido, que ciúmes há causado
A
Creusa e a Siquei, não mais ardera
99
Do que eu, enquanto à idade me foi dado;
“Nem
Rodópea infeliz, a quem perdera
Demofonte;
nem Hércules outrora,
102
Que o coração a Iole oferecera.
“Não
há remorso aqui; folga-se agora,
Não
pela culpa, já no esquecimento,
105
Pela Virtude, cuja lei se adora.
“Arte
aqui se contempla, em que portento
Tão
alto brilha; e o Bem se patenteia,
108
Que influir faz na terra o firmamento.
“Para
ser a medida toda cheia
Dos
teus desejos, nados nesta esfera,
111
Do meu discurso inda prossegue a teia.
“Ora
queres saber a luz quem era,
Que
aí perto de mim tanto cintila,
114
Como o sol, que na linfa reverbera.
“Sabe,
pois, que ali vês leda e tranqüila
Raab:
à nossa ordem reunida
117
Em grau superior clara rutila.
“Foi
neste céu, que a sombra procedida
Da
terra não alcança, em triunfando
120
Jesus Cristo, a primeira recebida.
“Devia
dar-lhe um céu por palma, quando
Assinalar
lhe aprouve a alta vitória,
123
Que na Cruz teve, as palmas entregando;
“Pois
que por ela começara a glória,
Que
colheu Josué na Terra Santa,
126
Que se apagou do Papa na memória.
“A
tua pátria, que foi daquele a planta,
Que
ao Criador revel primeiro há sido
129
E causou pela inveja aflição tanta,
“Tem
flor maldiçoada produzido,
Que,
ovelhas e cordeiros transviando,
132
Traz o pastor em lobo convertido.
“O
Evangelho, por ela, abandonado
E
os Doutores, às páginas usadas
135
Das Decretais stão muitos se aplicando.
“O
Papa e os Cardeais, nisto engolfadas
Tendo
as idéias, Nazaré esquecem,
138
Que viu do Arcanjo as asas desdobradas.
“Mas
Vaticano e os sítios que enobrecem
A
Roma e têm sido o cemitério
Dos
que, fiéis a Pedro, lhe obedecem,
142
Livres serão em breve do adultério.” —
25-28.
Nessa parte, etc., a Marca Trevisana. — 26. Rialto, Veneza — 28. Colina, onde
está situado o castelo da família de Ezzelino de Romano. — 32. Cunizza, irmã de
Ezzelino III, mulher de fama duvidosa pela sua vida livre, morta em Florença,
onde talvez se penitenciou. — 37. Da luz etc., é a alma de Folco de Marselha,
trovador e poeta. — 44. Os que etc., os habitantes da Marca Trevisana. — 51.
Quem mostra no perder etc., Ricardo de Camino, senhor de Treviso, que foi morto
traiçoeiramente pelos seus inimigos. — 52-54. Do ímpio Pastor etc., Alexandre
Novello, bispo de Feltre entregou ao Papa, em 1314, vários gibelinos de
Ferrara, que foram condenados à morte. — 67. Aquele, Folco. — 88-89. Nessa
parte etc., Marselha onde Folco morou. — 97. Dido, rainha de Cartago, amando
Enéias, ofendeu a Creusa, mulher de Enéias e ao seu marido Siqueu. — 100.
Rodópea, matou-se ao ser abandonada por Demofonte. — 102. Iole, amante de
Hércules, que, por ciúme, foi morto, por Dejanira. — 116. Raab, meretriz de
Jericó, escondeu os espiões que Josué havia mandado a Jericó, facilitando a
queda da cidade e, por isso, foi salva da morte, depois da vitória dos hebreus.
— 118. Neste céu etc., segundo Tolomeu a sombra da Terra se projetava até o
limite de Vênus. — 126. Que se apagou do Papa na memória, o Papa não se
interessa pela Terra Santa, que está sob o domínio dos Sarracenos. — 127. A tua
pátria etc., Florença teve origem demoníaca. — 130. Flor maldiçoada, o
dinheiro, o florim de ouro de Florença. — 135. Decretais, os livros das leis
canônicas, que asseguravam vantagens aos eclesiásticos.
CANTO X
Depois
de admirar a infinita sabedoria de Deus na criação do Universo, narra o Poeta
como sem aperceber-se achou-se elevado ao Sol, em que estão as almas dos doutos
na teologia. Doze espíritos mais reluzentes o circundam e um deles, S. Tomás de
Aquino, revela o nome dos seus companheiros.
O
PODER inefável e primeiro,
O
Filho a contemplar co’ Amor sublime,
3
De um e outro, eternal, vindo o terceiro,
Quanto
à vista e à razão nossa se exprime
Com
tal ordem criou, que, o efeito vendo,
6
De adorar seu Autor ninguém se exime.
As
esferas, leitor, olhos erguendo
Nota
a parte, onde estão dois movimentos
9
Um para o outro oposição fazendo.
E
começa a mirar de arte os portentos,
Que
tanto dentro em si o senhor ama,
12
Que lhes tem sempre os olhos seus atentos.
Vê
como desse ponto se derrama
Em
linha oblíqua, o círc’lo, que transporta
15
Os planetas que o mundo aguarda e chama.
Se
lhes assim, não fosse a estrada torta,
Muita
força no céu fora perdida
18
E aqui potência quase toda morta.
Se
fora essa vereda preterida
Mais
ou menos, ficara transtornada
21
A ordem no universo estatuída.
Ora
leitor, meditação pausada
Faz
de quanto comigo prelibaste:
24
Leda a mente hás de ter, não saciada.
Dou-te
iguaria: come, pois, se praz-te.
A
matéria, em que escrevo, não consente,
27
Nem por instantes, que a atenção se afaste.
Da
natura o ministro mais potente
Que
a influência do céu na terra imprime
30
E o tempo mede com sua luz fulgente,
À
parte, que outro verso acima exprime,
Se
unindo, para o ponto se volvia,
33
Onde mais cedo as trevas nos dirime.
Já
no seu seio estava e o não sabia,
Como
não pode alguém seu pensamento
36
Saber, quando inda à mente não surgia.
E
Beatriz, em quem notava aumento
De
bem para melhor, tão de repente,
39
Que o tempo fora ante o seu ato lento,
De
si mesma quanto era refulgente!
O
que era lá no sol onde eu me entrara,
42
Não por cor, por seu brilho mais nitente,
Posto
que arte, uso, engenho me ajudara
Descrever
por imagens não pudera;
45
Mas crer se pode e ver-se desejara.
Não
se estranhe, se baixa parecera,
Querendo
a tanto alar-se, a fantasia;
48
Além do sol ninguém olhos erguera.
Quarta
família aqui resplandecia
Do
Sumo Pai, que sempre da Trindade
51
No inefável spetáculo a sacia.
E
disse Beatriz: — “Tanta Bondade
Humilde
ao Sol dos anjos agradece,
54
Que ao sol sensível te alça à claridade.” —
Peito
mortal jamais ardor aquece
De
sentir tão devoto e tão piedoso,
57
Que a Deus a gratidão inteira expresse,
Quanto
é meu ao convite carinhoso.
E
em tanto enlevo o coração se acende,
60
Que a Beatriz olvida, fervoroso.
Não
lhe despraz, e no seu riso esplende
Tanto
brilho dos olhos expressivos,
63
Que do êxtase profundo me desprende.
Fulgores
então vi claros e vivos,
De
nós centro de si c’roa fazendo,
66
Mais suaves em voz que em luz ativos.
A
filha de Latona se movendo
Vemos
assim de um cinto rodeada,
69
No ar úmido as cores, se mantendo.
Dos
céus a corte, donde volto, ornada
De
jóias stá sublimes e formosas:
72
Só nos céus pode a estima lhes ser dada.
As
vozes eram tais, que ouvi donosas.
Quem
não tem plumas para ir lá voando
75
Pergunte a um mudo cousas portentosas.
Aqueles
sóis, em torno a nós cantando,
Volveram-se
três vezes: semelharam
78
Astros em roda aos pólos circulando.
Damas
imitam, que no baile param,
Em
silêncio outras notas esperando
81
Para seguir na dança que encetaram.
E
uma voz do seu seio disse: — “Quando
Da
Graça o raio em que o amor se acende
84
Sublime, pelo amor se acrescentando,
“Multiplicado
em ti tanto resplende,
Que
te conduz pela celeste escada,
87
Que a subir torna quem de lá descende,
“O
que à sede em que tens a alma abrasada
Vinho
negasse, irmão, livre não fora,
90
Qual linfa de correr embaraçada.
“Saber
desejas como a c’roa enflora,
Que
cinge, contemplando-a a pulcra Dama,
93
Que para o céu te guia protetora.
“Um
anho fui da santa grei que chama
De
Domingos a voz pelo caminho,
96
Onde prospera só quem mal não trama.
“Tomás
de Aquino sou; me está vizinho,
À
destra de Colônia o grande Alberto
99
A quem de aluno e irmão devo o carinho.
“Se
dos mais todos ser desejas certo,
Na
santa c’roa atenta cuidadoso,
102
A tua vista a voz siga-me perto.
“Nesse
esplendor sorri-se jubiloso
Graciano
que num e noutro foro
105
Di’no se fez de ser no céu ditoso.
“Aquele
outro ornamento deste coro
Foi
Pedro: como a pobre a of’renda escassa,
108
À Santa Igreja deu rico tesouro.
“A
quinta luz, que as mais em lustro passa
Se
acende em tanta luz, que anela o mundo
111
Saber se goza da celeste Graça.
“O
alto esp’rito encerra, tão profundo,
Que
se o Verbo de Deus é verdadeiro,
114
De saber tanto não se alçou segundo.
“Ao
lado seu lampeja esse luzeiro,
Que
os anjos, seu mister, sua natura
117
Em conhecer na terra foi primeiro.
“Sorri
na luz menor, serena e pura,
Dos
séculos cristãos esse advogado
120
De Agostinho tão útil à escritura.
“Se
os olhos da tua mente acompanhado
De
luz em luz me tens nestes louvores
123
Saber já tens da oitava desejado.
“Do
Sumo Bem se enleva nos fulgores
Essa
alma santa, havendo demonstrado
126
As mentiras do mundo e os seus rigores;
“Jaz
daquela alma o corpo despojado
Em
Cieldauro; e ela veio à paz divina
129
Após martírio e exílio amargurado.
“Mais
longe, em cada flama purpurina,
Beda,
Isidoro estão, Ricardo esplende,
132
Que além do humano o pensamento afina.
“Esse,
de quem tua vista se desprende
A
mim tornando, achou, grave e prudente,
135
Que morte pronta um grande bem compreende:
“É
Siger, que assim luz eternamente.
Na
rua de Fouare lera outrora
138
Verdades, que ódio hão provocado ingente.” —
E
qual relógio, que nos chama em hora,
Em
que, desperta, do Senhor a Esposa
141
Matinas canta e o seu amor implora;
Que,
no girar das rodas, tão donosa
Nota
faz retinir, de amor enchendo
144
Devota alma, que o escuta fervorosa;
O
glorioso círc’lo, se movendo,
Assim
vi eu, com tal suavidade
E
doçura de vozes, que comprendo
148
Só haja iguais do céu na eternidade.
49.
Quarta família, as almas que estão no Sol, que é o quarto Céu. — 67. A filha de
Latona, Diana ou a lua. — 97. Tomás de Aquino, Santo teólogo (1225-1274). — 98.
De Colônia o grande Alberto, o célebre teólogo Alberto Magno. — 104. Graciano,
de Chiusi, em Toscana, escreveu no século XII um volume de Cânones
eclesiásticos, que foi chamado o Decreto de Graciano. — 107. Pedro, Pedro
Lombardo, bispo de Paris, morto em 1164 que, ao oferecer à Igreja o seu livro
“Sentenciaram” comparava-se à viúva do Evangelho de S. Lucas, XXI. — 109. A
quinta luz, o sapiente rei Salomão, filho de Davi. — 115-117. Esse luzeiro etc.
Dionísio Aereopagita, que escreveu uma obra “De Coelesti Hierarchia.” —
119-120. Esse advogado etc., Paulo Orósio, que, aconselhado por Santo
Agostinho, escreveu a História, em defesa da religião cristã. — 125-128. Essa
alma santa etc. Severino Boécio, autor do livro “De consolatione philosophiae”,
aprisionado e, depois, morto por Teodorico em 524. — 131. Beda, bispo inglês,
Ricardo, padre de Escócia, Isidoro, S. Isidoro de Sevilha, os três doutos
teólogos. — 136. Siger de Brabante, professor de teologia na Universidade de
Paris no século XIII, a qual tinha a sua sede na Rua Fouare.
CANTO XI
Dante
elogia a vida contemplativa. — As palavras proferidas no canto anterior por S.
Tomás criam duas dúvidas no ânimo do poeta. O santo, tratando de resolver a
primeira, esboça a vida de S. Francisco de Assis.
Ó
DOS mortais aspirações erradas!
Em
que falsas razões vos enlevando
3
Tendes à terra as asas cativadas!
Qual
seguia o direito; qual buscando
Já
aforismos; qual o sacerdócio;
6
Qual reinava, sofisma ou força usando;
Qual
roubo amava, qual civil negócio;
Qual,
a salaz deleite entregue a vida,
9
Afanava-se; qual passava no ócio;
Enquanto
eu, livre da terrena lida,
Ao
céu com Beatriz me alevantava,
12
Aceito lá com glória tão subida.
Cada
alma santa ao ponto já tornava
Do
círculo em que de antes demorara;
15
E como círio em candelabro estava.
Então
da luz, que de antes me falara
Voz
suave escutei; e assim dizendo
18
Do seu brilho a pureza se aumentara:
—
“O lume eterno, em que me inspiro e acendo,
Eu,
contemplando, claramente leio
21
Teu pensamento e a origem lhe compreendo.
“Desejas
tu, da dúvida no enleio,
Que
eu aproprie da tua mente à esfera
24
O que dizer-te, há pouco, me conveio.
“Eu
te disse — caminho onde prospera —
—
De saber tanto não se alçou segundo: —
27
Aqui é, pois, que a explicação te espera.
“A
Providência, que governa o mundo
Com
tão sábio conselho, que, torvada
30
Sente a vista quem quer sondar-lhe o fundo.
“Por
ser ao seu dileto encaminhada
Casta
Esposa daquele, que alto grito,
33
Desposando-a, soltou na Cruz Sagrada,
“Com
ânimo mais forte e à fé restrito,
Dois
príncipes, lhe deu, que, em seu desvelo,
36
O caminho mostrassem-lhe bendito.
“Um
seráfico foi no ardor do zelo,
Outro
ostentou, por seu saber na terra,
39
De querúbica luz esplendor belo.
“De
um só te falarei; pois num se encerra
O
que de outros aos louvores mais se estende:
42
Quem der aos dois o mesmo fim não erra.
“Entre
Tupino e o rio, que descende
Do
outeiro, que escolhera santo Ubaldo,
45
Fértil encosta de alto monte pende.
“Dali
baixa a Perúgia o frio e o caldo
Pela
porta do Sol; atrás padece
48
Em duro jugo Nócera com Gualdo.
“Onde
o declive menos agro desce
Nasceu
ao mundo um sol tão luminoso,
51
Como o que ao Gange às vezes esclarece.
“Desse
lugar quem fale portentoso
Não
diga Assis, que pouco declarara:
54
Chame Oriente o berço glorioso.
“Do
nascente este sol pouco distara,
Quando
o conforto a receber a terra
57
Já das virtudes suas começara.
“Contra
seu pai, adolescente, em guerra
Entrou
por dama, a quem bem como à morte,
60
Ninguém a porta com prazer descerra.
“Então
da Igreja a recebeu na corte,
E
coram patre, por esposa amada
63
E amor votou-lhe cada vez mais forte.
“Vivera
ela viúva e desprezada
Séculos
onze e mais, e de outro amante,
66
Senão deste, não fora requestada;
“Em
vão se disse que no lar, constante,
De
Amiclas a encontrou esse guerreiro,
69
De quem tremera o mundo titubante;
“Em
vão fiel, de coração inteiro,
Quando
Maria ao pé da Cruz ficara,
72
Com Cristo ela subira-se ao madeiro.
“Para
fazer minha linguagem clara,
Em
suma, o nome sabe dos amantes:
75
Com pobreza Francisco se casara.
“Dos
dois santa união, ledos semblantes,
Seu
terno olhar e afeito milagroso
78
Dão a todos lições edificantes.
“Aquela
paz anela cobiçoso
Venerável
Bernardo que, primeiro,
81
Descalço corre e crê ser vagaroso.
“Riqueza
inota! Ó Bem só verdadeiro!
Descalço
vai Egídio, vai Silvestre,
84
Porque amam-na, do esposo no carreiro.
“Dali
se parte aquele pai e mestre
Com
terna esposa e com família santa
87
Que de corda o burel cinge campestre.
“Não
baixa os olhos, nem se torna e espanta
Por
filho ser de Bernardone obscuro,
90
Nem por sofrer desdém em cópia tanta.
“Mas
afouto mostrou o intento duro
A
Inocêncio de quem primeiro obteve
93
Assenso ao regimento austero e puro.
“E
quando a pobre grei progresso teve,
Após
aquele, a cuja heróica vida
96
Melhor no céu louvor de anjos se deve,
“Foi
a c’roa segunda concedida
Por
Honório, que o Santo Espírito alenta
99
Daquele arquimandrita a santa lida.
“Em
breve a sede do martírio o tenta,
E
do Soldão soberbo na presença
102
Cristo anuncia e a lei que o representa.
“Vendo
rebelde o povo à nova crença.
Por
não ficar seu zelo sem proveito
105
Da Itália volta para a messe extensa.
“Na
dura penha, que se interpõe ao leito
Do
Tibre e do Arno, o derradeiro selo
108
Cristo lhe pôs: dois anos dura o efeito.
Quando
a Deus, que a bem tanto quis movê-lo,
O
prêmio prouve dar-lhe merecido,
111
Na humildade cristã por seu desvelo,
“Essa
esposa, que amara estremecido,
Aos
irmãos confiou por justa herança,
114
Para afeto lhe terem sempre fido.
“Do
seio da pobreza então se lança,
Tornando
ao reino seu, a alma preclara:
117
Nesse jazigo o corpo seu descansa.
“Pensa,
pois, o que foi quem Deus julgara
Di’no
após ele, de reger a barca
120
Que Pedro, no alto mar encaminhara.
“Coube
a tarefa ao nosso patriarca:
Quem,
fiel, aos preceitos lhe obedece,
123
Sabe tesouros arrecadar na arca.
“Sua
grei novo pascigo apetece,
E
tanto é dos desejos impelida,
126
Que em diferentes campos aparece.
“Quanto
mais cada ovelha é seduzida
Do
mundo pelo pérfido atrativo,
129
Tanto mais ao redil volta inanida.
“Poucas
temendo o lance decisivo,
Acolhem-se
ao pastor: escasso pano
132
É já para vesti-las excessivo.
“Se
claro te falei, livre de engano,
Se
tens estado ao que te digo atento,
135
Se da memória não receias dano,
“Ao
teu desejo, em parte, dei contento,
Pois
da planta bem vês qual seja a rama;
E
o corretivo está neste argumento:
139
Onde prospera só quem mal não trama.”
25.
Eu te disse etc. V. Canto X, v. 95-96 e 114. — 37. Um seráfico etc., S.
Francisco de Assis. — 38. Outro ostentou etc., São Domingos. — 43-48. Entre
Tupino etc., descreve a situação geográfica da cidade de Assis, na qual S.
Francisco nasceu. — 59. Dama a quem etc., a pobreza. — 64-66. Viúva e
desprezada etc., o primeiro esposo da Pobreza foi Jesus e, por isso, ficou
viúva mais de onze séculos. — 68. Amiclas, Júlio César ficou admirado pela
alegre pobreza do pescador Amiclas (V. Lucano, Farsálias V, 519). — 80.
Bernardo, primeiro companheiro de S. Francisco. — 83. Egídio e Silvestre,
companheiros de S. Francisco. — 89. Bernardone, Pietro Bernardone, pai de S.
Francisco. — 92. Inocêncio III, papa que deu autorização à Ordem Franciscana,
em 1214. — 98. Honório III, que em 1223, pela segunda vez, aprovou a Ordem de
S. Francisco. — 99. Arquimandrita, pastor. — 100-105. Em breve etc., S.
Francisco em 1219 esteve no Egito tentando converter os infiéis, mas voltou
logo para a Itália. — 106-108. Na dura penha etc., no monte Alvérnia, no
Casentino, S. Francisco recebeu os estigmas de Jesus crucificado e os manteve
dois anos, pois depois de dois anos morreu.
CANTO XII
Acabando
S. Tomás de falar, ajunta-se à primeira coroa de doze espíritos resplendentes,
mais uma coroa de igual número de espíritos. Um destes, S. Boaventura,
franciscano, tece louvores a S. Domingos. Depois dá notícia acerca dos seus
companheiros.
QUANDO
o lume bendito proferira
Do
discurso a palavra derradeira,
3
A coréia, como eu já a vira,
Inda
uma volta não fizera inteira,
Logo
outra turma em círculo a encerrava
6
Em voz acordes ambas e em carreira.
Essa
harmonia tanto superava
Das
Musas e sereias a cadência,
9
Quanto ao reflexo a luz que rutilava.
Como
arcos dois das nuvens na aparência
Curvam-se
iguais na cor e equidistantes,
12
Se de Íris Juno exige diligência,
Nascendo
um do outro, em forma semelhantes,
Qual
voz da que de amor foi consumida
15
Como do sol as névoas alvejantes,
E
crer fazendo que há de ser mantida
A
promessa, a Noé por Deus firmada,
18
De não ser mais a terra submergida:
Assim
de nós em torno ia agitada
Cada
grinalda das perpétuas rosas,
21
Uma com outra em tudo conformada.
Tanto
que a dança e festa jubilosas,
Por
cantos e esplendores flamejantes
24
Dessas luzes suaves e amorosas,
Quedar
eu vi nas rotações brilhantes,
Quais
olhos, juntamente ao nosso grado,
27
Se abrindo e se fechando vigilantes,
De
um dos novos clarões voz, que, enlevado,
Volver-me
para si fez de repente,
30
Qual à estrela polar ímã voltado:
—
“Amor” — diz — “que a beleza dá-me ingente
Me
induz a te falar do Mestre Santo,
33
Que ao meu foi de louvor causa eminente.
“Um
se memore onde outro bilha tanto:
Sob
a mesma bandeira hão militado;
36
Brilha a glória dos dois também no canto.
De
Cristo, a tanto custo restaurado,
O
exército o estandarte seu seguia,
39
Já raro, lento, de temor tomado,
“Quando
à milícia, que o valor perdia
O
Eterno Imperador deu provimento,
42
Só por Graça: esse bem não merecia;
“E
da Esposa enviou por salvamento
Dois
campeões, de cuja voz movida,
45
A transviada gente cobra o alento.
“Na
terra, em que, ao seu hábito, convida
O
Zéfiro a se abrirem novas flores,
48
De que se vê a Europa revestida,
“Em
plaga, onde se embate em seus furores
O
mar, em que, o seu curso terminado,
51
O sol esconde às vezes seus ardores,
“Jaz
Calaroga em solo afortunado,
Que
o poderoso escudo protegera,
54
No qual leão subjuga e é subjugado.
“Ali
o atleta heróico à luz viera,
Da
fé cristã esse indefesso amante,
57
Que, aos seus beni’no, aos maus guerra fizera.
“Foi
virtude em sua alma tão possante,
Que,
ainda estando no materno seio,
60
Do porvir fez a mãe vaticinante.
“Quando
a firmar-se o desposório veio
Entre
ele e a Fé, na fonte consagrada,
63
De muita salvação seguro meio,
“De
dar pôr ele o assento a encarregada
A
messe viu em sonhos milagrosa,
66
Que dele e herdeiros seus era esparada.
“Do
seu destino em prova portentosa,
Anjo
baixou ao fim só de chamá-lo
69
Do Senhor de quem era a alma piedosa.
“Domínico
foi dito e eu dele falo,
Como
o operário, que elegera Cristo,
72
Da vinha no lavor para ajudá-lo.
“Servo
e enviado mostrou ser de Cristo
Por
quanto o amor primeiro, que há mostrado,
75
Foi a primeira lei que nos deu Cristo.
“Muitas
vezes a mãe o achou prostrado,
Em
profundo silêncio e bem desperto,
78
Como a dizer: — A isto eu fui mandado.
“Oh!
foi seu genitor feliz por certo!
Oh!
sua mãe realmente foi Joana
81
Se há no sentido que lhe dão, acerto!
“Não
pelo amor do mundo, que se engana,
Do
Ostiense e Tadeu nos livros lendo,
84
Mas de Jesus pelo maná se afana,
“Sapiente
doutor em breve sendo,
Da
santa vinha guarda vigilante,
87
Que presto seca, pouco zelo havendo.
“De
Roma à sede quando foi perante,
Que
aos justos era compassiva outrora,
90
Hoje, por culpa do que a rege, errante,
“Onzenárias
dispensas não lhe implora,
Nem
primeira prebenda, que vagasse,
93
Nem dízimas, que são do pobre, exora.
“Mas
contra o mundo, que no qual compraz-se,
Pede
o favor de defender a planta,
96
Da qual tens flores vinte e quatro em face.
“Com
seu querer e com doutrina santa,
Como
a torrente, que da altura desce,
99
De apóstolo por zelo o mundo espanta.
“Dos
hereges se arroja à infanda messe,
E
onde a resistência mais porfia
102
Das forças suas o ímpeto recresce.
Dele
brotaram rios, que hoje em dia
Têm
o jardim católico regado
105
E aos seus arbustos dão viço e valia.
“Se
tal foi uma roda do afamado
Carro,
em que defendeu-se a Santa Igreja,
108
E a civil guerra em campo há superado,
“Da
outra o alto mérito qual seja
Já
te disse Tomás, eu stando ausente:
111
Dele nas vozes seu louvor lampeja.
“Porém
daquela roda o sulco ingente
Ficou
em desamparo tal, que o lodo
114
Onde era a flor domina tristemente.
“Vê-se
a família sua por tal modo
Da
vereda de outrora transviada,
117
Que esqueceu-lhe as pegadas já de todo.
“Logo
a cultura má será provada
Na
seara, zizânia sendo ao vento,
120
Em vez de ir ao celeiro, arremessada.
“Que
nosso livro folheasse atento
Veria,
creio, página, em que lesse:
123
— Sou, como sempre, de impureza isento. —
“Em
Casal e Água-Sparta igual não vê-se:
Lá
de tal jeito entende-se a Escritura,
126
Que um tíbio a foge, outro excessivo a empece.
“De
Bargnoregio eu sou Boaventura,
Que,
exercendo altos cargos, repelia
129
Dos interesses temporais a cura.
“Vê,
dos irmãos descalços primazia,
Iluminato,
de Agostinho ao lado:
132
Cada qual no burel por Deus ardia.
“Hugo
vê de S. Vítor premiado
Como
Pedro Mangiadore e Pedro Hispano
135
Pelos seus doze livros celebrado.
“Natã
Profeta e o Metropolitano
João
Crisóstomo, Anselmo e o afamado
138
Donato, na primeira arte sob’rano.
“Vê
Rabano, a brilhar vê ao meu lado
O
calabrês Abade Giovachino,
141
De espírito profético dotado.
“Aos
louvores do excelso paladino
Moveu-me
a caridosa cortesia,
O
dizer sábio de Tomás de Aquino,
145
E comigo a esta santa companhia.”
12.
Íris, personificação mitológica do arco-íris. — 14. Qual voz do que de amor foi
consumida, como voz da ninfa Eco que se consumiu pelo amor por Narciso. — 28.
Um dos novos clarões, a alma de S. Boaventura. — 46. Na terra etc., na Espanha.
— 53-54. Escudo etc., o escudo dos reis da Castela representava dois leões, um
debaixo e outro em cima de um castelo. — 64-66. A encarregada etc., quando do
batismo de S. Domingos, a madrinha o viu com uma estrela na testa. — 80. Sua
mãe realmente foi Joana. Joana em hebraico tem o significado de “portadora de
graças.” — 83. Ostiense, o cardeal Henrique de Susa, que comentou os
“Decretais”; Tadeu Aldreotti, florentino, médico; ou, segundo outros
comentadores, Tadeu dei Pepoli, jurista bolonhês. — 90. Por culpa etc., de
Bonifácio VIII. — 95-96. A planta etc., a fé, de que se alimentaram os
espíritos dos vinte e quatro teólogos que estão na presença de Dante. —
124-126. Em Casal e Agua-Sparta, alude à divisão dos franciscanos em dois
partidos, um chefiado por libertino de Casale e outro por Mateus d’Acquesparta.
— 131. Iluminato e Agostinho, dois companheiros de S. Francisco. — 133-135.
Hugo de S. Vitore, Pedro Mangiatore e Pedro Hispano, egrégios teólogos. —
136-139. Natã, o profeta que repreendeu Davi; S. João Crisóstomo, patriarca da
Igreja; Donato, gramático latino; S. Anselmo, bispo de Canterbury. — 139-140.
Rabano e o abade Giovachino, escritores sacros.
A DIVINA COMÉDIA...
INFERNO ... Cantos I-V ... VI-XI ... XII-XVII ... XVIII-XXIII ... XIV-XXIX ... XXX-XXXIV
PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII
PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII