Divina Comédia - Paraíso XIII - XVIII

 A DIVINA COMÉDIA...
 INFERNO ... Cantos I-V ... VI-XI ... XII-XVII ... XVIII-XXIII ... XIV-XXIX ... XXX-XXXIV 
 PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII 
 PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII 



CANTO XIII



O Poeta descreve a dança das duas coroas de espíritos celestes. S. Tomás resolve a segunda dúvida de Dante. Adão e Jesus Cristo são seres perfeitíssimos, por serem obra imediata de Deus. Mas ele não pode ser comparado nem a Adão nem a Jesus Cristo. Conclui o Santo advertindo do perigo dos juízos precipitados, e de quanto é sujeito a enganar-se quem julga das coisas pelas aparências.



O QUE hei visto e refiro quem deseja
Entender, imagine, (e bem sculpida,
3 Como em rocha, na mente a imagem seja)

Quinze estrelas, que luz tanta espargida
Tem por celestes regiões dif’rentes,
6 Que é do ar a espessura esclarecida,

Da carroça imagine as refulgentes
Rodas, sempre girando, noite e dia,
9 Pelos espaços do céu nosso ingentes;

Da trompa a boca mostre a fantasia,
Que lá no extremo do axe, ao qual a esfera
12 Primeira contorneia, principia.

Se em signos dois tais astros considera,
Iguais à c’roa que no céu fulgura,
15 Dês que Ariadne à morte se rendera;

E, os raios misturando da luz pura,
Para lados contrários se movendo
18 Aqueles círc’los dois na etérea altura:

Imagine, mas quase a sombra tendo
Dos versos astros, dessa dupla dança,
21 Que em torno a nós estava se volvendo.

Que a verdade essa imagem tanto alcança,
Quanto a Chiana a rapidez imita
24 Do céu, que a todos os mais céus se avança.

Nem Pean cantam, nem de Baco a grita;
Mas Três Pessoas com divina essência
27 E numa o humano ser, que a Deus se adita.

Os hinos tendo e a dança intermitência
Em nós os santos lumes se fitaram;
30 Compraz-lhes dos cuidados a seqüência.

O silêncio que os coros dois formaram,
As vozes rompem, que a espantosa vida
33 Do mendigo de Deus me recontaram.

— “Quando a palha é do trigo dividida,
Quando a colheita fica enceleirada,
36 A bater outra doce Amor convida.

“Crês que ao peito onde a costa foi tirada
Para a boca gentil formar motivo
39 Da pena ao mundo inteiro fulminada,

“E ao da aguda lança o golpe esquivo
Padeceu e a balança, em morte e vida,
42 Da culpa alçou com peso decisivo,

“Quanta ciência aos homens permitida
Ser poderia pela mão divina,
45 Que um e outro criou, fora infundida.

“Tua mente, pois, a dúvidas se inclina
Me ouvindo que em ciência sem segundo
48 Subira quem a luz quinta domina.

“Olhos abre à razão, em que me fundo:
Como teu crer confundida tens de vê-la
51 Na verdade, qual centro num rotundo.

“O que não morre, o que por morte gela
É só splendor da Idéia, que, nascendo
54 Do Senhor nosso, o seu amor revela;

“Por quanto essa luz viva, procedendo
Do foco seu, do qual se não desune,
57 Nem do Amor, que o terceiro fica sendo,

“Só por Bondade sua, o fulgor une,
Como em spêlho, em céus nove, e o concentrando,
60 Tem a unidade eternalmente imune.

“As últimas potências se abaixando,
Já de ato em ato enfraquecida fica,
63 As breves contigências vai formando.

“Contigências palavra é que te indica
Essas cousas, que o céu, no movimento,
66 Com semente ou sem ela multiplica.

“Não mostra arte ou substância um só intento
E modo, mais ou menos transluzindo
69 O selo do Supremo Entendimento.

“Vê-se, pois, a mesma arv’re produzindo,
Segundo a espécie, ou bons ou ruins frutos;
72 E vós à luz com várias manhas vindo.

“Brilhava o selo inteiro nos produtos,
Se a cera em ponto apropriado fora,
75 E os influxos do céu nunca interruptos;

“Porém natura as impressões desdoura,
Procedendo, assim como faz o artista:
78 Treme-lhe a mão que é da arte sabedora.

“E, pois, se ardente amor a clara vista
Da virtude primeira imprime e adapta,
81 A perfeição aqui toda se aquista.

“Assim a argila foi condigna e apta
A toda perfeição da criatura,
84 E concebeu a Virgem pura, intacta.

“Segues, portanto opinião segura:
Como nos dois jamais tão alta há sido,
87 Nem jamais há de ser vossa natura.

“Se eu porventura houvesse concluído,
Com razão me tiveras perguntado:
90 — Como disseste — igual não tem subido?

“Da verdade por seres informado,
No que era pensa e à sua escolha atende,
93 Quando — Pede — por Deus foi-lhe ordenado.

“Claro falei, tua mente bem comprende
Que foi Rei quem pediu sabedoria
96 Para fazer o que o bom Rei pretende.

“Não quis saber qual número seria
Dos motores ao céu, nem se necesse
99 Com contigente um seu igual faria.

“Non si est dare primum motum esse,
Ou se um triâng’lo sem ter âng’lo reto
102 Traçar em simicírc’lo se pudesse.

“E pois, o dizer meu que ora completo,
Quando falava na sem par ciência,
105 A prudência real ia direto.

“Dando ao — “Subiu” — devida inteligência,
Hás de ver que somente aos Reis se aplica,
108 Muitos na soma, poucos na excelência.

“E feita a distinção que exposta fica,
Meu dizer à tua fé no pai primeiro
111 E em nosso Redentor não contra-indica.

“Prende assim chumbo ao pé sempre; ligeiro
Não vás, imita o caminhante lasso;
114 Ao não ao sim não corre aventureiro.

“Mostra ser dos estultos o mais crasso
Quem afirma, quem nega leviano
117 Sem distinção ou num ou noutro passo.

“Daí vem muitas vezes por seu dano,
Que o juízo do vulgo se transvia
120 E o entendimento enleia afeto insano.

“Mais do que em vão do porto se desvia:
Incólume não volta da jornada
123 Quem pós verdade da arte não seguia.

“A prova dão, por fatos confirmada
Parmênides, Melisso, Brisso e quantos
126 Partiram sem saber o rumo e a estrada.

“Assim Ário fez, Sabélio e tantos,
Que, como espadas, deram na Escritura,
129 Mutilando o sentido aos textos santos.

“Quem no julgar as cousas se apressura
Imita aquele, que estimasse o trigo,
132 Quando a seara inda não stá madura.

“No inverno hei visto espinho dar castigo
Ao que imprudente as ramas lhe tocara;
135 Rosas depois oferecia amigo.

“E nau vi, que segura navegara,
Em viagem feliz, o salso argento,
138 Soçobrar, quando o posto já tomara.

“De Deus antecipar-se ao julgamento
Não queiram Dona Berta e Dom Martinho:
Se um rouba e é outro às oblações atento,

142 Pode um se erguer, cair outro em caminho.” —



15. Ariadne, filha de Mimos, depois de morta, foi transformada por Baco numa constelação. — 23. Chiana, rio da Toscana. — 25. Pean, hino que os antigos cantavam nas festas de Apolo. — 33. Mendigo de Deus, S. Francisco. — 37-39. Ao peito onde a costa gentil, etc., Adão de cuja costa foi tirada Eva, a qual comeu a maçã que foi fatal para a humanidade. — 40. Ao da aguda lança etc., Jesus Cristo. — 47. Em ciência sem segundo, Salomão. — 98-99. Se nascesse contigente etc., se duas premissas, uma necessária e outra contigente tenham conseqüência necessária. — 100. Si est dare etc., se se deve admitir a existência de um movimento que não derive de outro. — 125. Parmênides, Melisso, Brisso, filósofos gregos, confutados por Aristóteles. — 127. Ário e Sabélio, hereges condenados pela Igreja. — 140. Dona Berta e Dom Martinho, nomes de pessoas comuns e ignorantes.



CANTO XIV



Beatriz pergunta a um espírito celeste, em nome de Dante, se depois da ressurreição dos corpos permanecerá a luz que emana de suas almas e se essa luz não prejudicará a sua vista. O espírito responde que, depois da ressurreição, a vista dos espíritos aumentará. Aparecem novos espíritos. Sem perceber, Dante encontra-se no planeta Marte, onde estão aqueles que defenderam com as armas a religião cristã. Aí o aspecto do céu vence toda beleza passada, porque quanto mais se sobe, mais cresce o esplendor dos céus.



DO centro à borda e assim da borda ao centro
Água num vaso circular se agita,
3 Se a comovem de fora, se de dentro.

Isto que digo a mente me visita
Súbito, quando o esp’rito glorioso
6 De Tomás suspendeu a voz bendita,

Por semelhar-se ao efeito poderoso
Da sua voz e ao que Beatriz causava,
9 Quando assim disse em tom grave e donoso:

“O que saber este homem precisava
Com voz não disse, e, se o cogita, o ignora:
12 De outra verdade com raiz se trava.

“A auréola, dizei-lhe, em que se inflora
A substância, que é vossa eternamente,
15 Convosco há de existir, bem como agora?

“Se este esplendor em vós é permanente,
Quando visíveis fordes, ressurgindo,
18 A vista sofrerá luz tão fulgente?” —

Como em coréia as vozes vão subindo
E recresce a alegria, algum motivo
21 De alvoroço aos dançantes sobrevindo,

Assim aos santos círculos mais vivo
Júbilo mostram no girar, no canto
24 Ante o rogo piedoso e compassivo.

Quem, por chegar a morte, sente espanto,
Para lograr no céu viver divino,
27 Da eterna chuva desconhece o encanto.

Quem sempre reina, é uno, é duplo, é trino,
Em três, em dois, em um sempre perdura,
30 Não abrangido — e tudo abrange — em hino

De tão suave e cônsona doçura
Dos coros foi três vezes aclamado,
33 Que um prêmio fora da virtude pura.

No lume, de fulgor mais sinalado,
Ouvi, do menor círc’lo voz modesta,
36 Como a do arcanjo à Virgem deputado.

— “Quanto no Paraíso eterna a festa
Há de ser, tanto o nosso amor vestido
39 Será de luz em torno manifesta.

“O brilho seu do ardor há procedido
E o ardor da visão, que é tão gozosa,
42 Quanto a Graça o valor faz mais subido.

“E quando a carne santa e gloriosa
Revestirmos, será nossa pessoa
45 Completa e mais jucunda e mais ditosa.

“E o gratuito lume, que nos doa
O Sumo Bem, será mais rutilante:
48 A Glória sua a ver nos afeiçoa.

“A visão se fará mais penetrante,
Mor o ardor se fará que ali se acende,
51 E o esplendor, que este dá, mais coruscante.

“Qual carvão, que de si flamas desprende
E pelo vivo ardor as escurece
54 Tanto, que entre elas seu rubor resplende,

“Este doce fulgor, que em nós parece,
Ver deixará o corpo ressurgido,
57 Quando o sono, em que jaz um dia cesse.

“Nenhuma será das luzes ofendido:
Starão corpóreos órgãos adaptados
60 A quanto a deleitar-nos for provido.” —

Os coros dois tão ledos e apressados
Responderam — amém — que bem mostraram
63 Quanto os trajos carnais são desejados.

Não por si sós talvez os cobiçaram,
Mas por amor dos pais, de entes queridos,
66 Antes que ternas flamas se tornaram.

Eis, em torno, de lumes incendidos
Novo círculo aos outros se acrescenta:
69 Qual nitente horizonte, os tem cingidos.

E como, quando à tarde a sombra aumenta,
No céu começam de assomar estrelas,
72 Cuja luz dúbia aos olhos se apresenta,

Assim me pareceu que via aquelas
Novas substâncias, que, também girando,
75 Moviam-se em redor das c’roas belas.

Vero fulgor do Esp’rito Santo! Oh! quando
Te mostraste de súbito, candente,
78 Os olhos meus venceste, deslumbrando.

Mas Beatriz tão bela e tão ridente
Rebrilhou, que a visão maravilhosa,
81 Bem como outras, seguir não pode a mente.

Aos olhos força deu tão poderosa,
Que se alçaram; e com ela transportado
84 Vi-me à esfera mais alta e luminosa.

Fui da minha ascensão certificado
Da purpurina estrela pelo gesto,
87 Em que rubor notei não costumado.

Nesse falar, a todos manifesto
Do coração, a Deus vivo holocausto,
90 Por sua nova graça, humilde presto.

Do peito meu não era ainda exausto
Do sacrifício o ardor, que convencido
93 De estar aceito fui, e ser-me fausto.

Tão lúcidas, tão rubras, confundido
Vi luzes em dois raios fulgurantes,
96 Que disse — Ó Hélios, como os tens vertido! —

Galáxia, em astros mais, menos brilhantes
Branqueja, entre dois pólos colocados,
99 E os doutos deixa em dúvida hesitantes:

De igual maneira em Marte constelados
O signo os raios formam venerando,
102 Diâmetros iguais sendo cruzados.

Me está memória o engenho superando:
Se na cruz lampejar eu via Cristo,
105 Como acertar, exemplos procurando?

Quem toma a Cruz e na jornada Cristo
Segue, desculpe o que falta em arte,
108 Vendo nesse esplendor rutilar Cristo.

Da cruz em cada braço, em toda parte
Cintilantes mil fogos se moviam;
111 Qual desce, qual se eleva, qual desparte.

Assim sutis argueiros se veriam,
Retos ou curvos, rápidos ou lentos,
114 De formas, que multíplices variam,

De Sol em réstea que entra os aposentos,
Onde da calma o homem se repara
117 Apurando do engenho e da arte inventos;

E como da harpa e lira se depara
Nas cordas várias doce melodia
120 A quem notas ignora e não compara;

Assim desses luzeiros que ali via
Na Cruz formosa, extático escutava,
123 Sem comprendê-la, angélica harmonia.

Que eram altos louvores bem julgava
Ressuscita e triunfa — acaso ouvindo:
126 Confusamente o hino me soava.

Ouvia em tanto enlevo me sentindo,
Que inda não sinto cousa que mais queira,
129 A mente ao canto em doce enleio, unindo.

Ousado sou talvez desta maneira,
Parecendo pospor os olhos belos,
132 Em que a minha alma se embevece inteira.

Mas quem reflete que os eternos selos
Vão da beleza no alto se apurando,
135 E aos olhos não voltava-me por vê-los,

À falta me achará perdão, notando
A verdade que digo: o prazer santo
Não excluo que em vê-la ia gozando;

139 Com a altura, se eleva o puro encanto.



28-30. Quem sempre reina, é uno, é duplo, é trino, etc., Deus. — 35. Voz modesta, Salomão. — 96. Hélios, o Sol. — 97. Galáxia, a Via Láctea, cuja cor deixa em dúvida os sábios, pois não sabem explicar qual seja a sua natureza.

CANTO XV



As almas dos combatentes pela fé em Cristo estão dispostas em forma de cruz, vexilo de martírio e de vitória. Do lado direito dessa cruz move-se um espírito e com paternal afeto saúda a Dante. É Cacciaguida, seu trisavô. Descreve ele a inocência dos costumes do seu tempo e lembra como morreu combatendo pelo sepulcro de Cristo, na segunda cruzada.



BENÉVOLO querer, que significa
Sempre esse amor, que a caridade inspira,
3 Como a cobiça o mau querer indica,

Silêncio pondo àquela doce lira;
Os sons às cordas santas suspendida,
6 Que lá do céu a destra afrouxa e estira.

Como aos claros espíritos seria
Em vão meu justo rogo, se excitá-lo
9 De acordo se calando, lhes prazia?

Ah! pranteie sem tréguas e intervalo
Quem, do amor transitório cativado,
12 Pôde do amor eterno avantajá-lo!

Como o sereno azul, atravessado
Às vezes é por fogo repentino,
15 Que aos olhos nos salteia inesperado;

Disséreis astro a procurar destino,
Se algum faltasse à parte, onde se acende
18 Esse instantâneo lume peregrino:

Assim do braço, que à direita estende,
Da cruz ao pé vi deslizar um astro
21 Dessa constelação, que ali resplende.

Não desfiou-se a per’la do seu nastro;
Pela brilhante linha descendera,
24 Como fogo a luzir sob o alabastro.

De Anquise a sombra pia assim correra,
Se fé merece a Mantuana Musa,
27 Quando Enéias do Elísio aparecera.

“O sanguis meus! O superinfusa
Gratia Dei; sicui tibi cui
30 Bis unquam coeli janua reclusa?”

Minha atenção na luz, que o diz, se imbui;
Voltei depois pra Beatriz o viso;
33 Aqui e ali estupefato eu fui.

Nos olhos seus ardia um tal sorriso,
Que, encarando-a cuidei tocar o fundo
36 De ventura no eterno Paraíso,

E esse esp’rito, a se ver e ouvir jucundo,
Vozes aduz, que a mente não compreende,
39 Tanto o sentido seu era profundo.

Andrede a obscuro o seu dizer não tende;
Mas por necessidade o seu conceito
42 Além da esfera dos mortais ascende.

Quando o arco afrouxou do ardente afeito,
E em proporção do humano entendimento
45 Do seu falar manifestou-se o efeito,

Pude esta vozes distinguir, atento:
“Bendito sejas, Deus, Um na Trindade,
48 Que à prole minha dás tão alto alento!

“Meu longo e caro anelo, na verdade
Dês que no grande livro hei ler podido,
51 Imutável na sua eternidade,

“Cumpres, ó filho; e desta luz vestido
Aquela, que ao teu vôo sublimado
54 Prestou asas, eu louvo agradecido.

“Tu crês que o teu pensar me é derivado
Do ser Primeiro, como da unidade
57 Sabida o cinco e o seis se vê formado.

“E pois, quem sou e a minha alacridade,
Maior que a de outros nesta grei contente,
60 Não mostras de saber curiosidade.

“Crês a verdade: o Espelho refulgente
Desta vida reflete o pensamento
63 Antes que nasça e a todos faz patente.

“Mas, para o sacro amor, que traz-me atento
Em perpétua visão, doce desejo
66 Me acendendo, alcançar contentamento,

“Com voz clara, segura e alegre, ensejo
De ouvir tua vontade me oferece:
69 Qual resposta hei de dar-te eu já antevejo.” —

Pra Beatriz voltei-me: já conhece
Quanto intento, e, acenando prezenteira,
72 Ao querer meu as asas engrandece.

— “A cada qual de vós dês que a Primeira
Igualdade mostrou-se, amor, ciência
75 Se fizeram em vós de igual craveira;

“Pois ao Sol, que vos deu tão viva ardência
E luz tal dispensou, tanto se igualam,
78 Que não tem na igualdade competência.

“Mas nos mortais o afeito e o saber se alam,
Pela causa, a vós outros manifesta,
81 Com plumas, que, dif’rentes se assinalam

“Eu, pois, que sou mortal, sujeito a esta
Desigualdade, de alma unicamente
84 Respondo à tua carinhosa festa.

“Suplico, assim, topázio resplendente,
Que adornas esta jóia preciosa,
87 Me faças do teu nome ora ciente.” —

Falei. Com voz tornou-me maviosa:
— “Ó flor, que tanto eu, sôfrego, esperava,
90 Do tronco meu brotaste primorosa!

“Aquele, em quem teu nome começara,
Que, há mais de um séc’lo já, no monte erguido
93 Do primeiro degrau se não separa,

“Meu filho foi, teu bisavô há sido:
Por obras deves lhe encurtar fadiga,
96 Quando à vida mortal hajas volvido.

“Florença dentro em sua cerca antiga,
Onde ressoa ainda a Terça e a Noa,
99 Vivia honesta e sóbria em paz amiga.

“Não tinha áureos colares, nem coroa,
Chapins, cintos de damas em que havia
102 Mais que ver do que graças da pessoa.

“No pai, nascendo, a filha não movia
Temor; em tempo azado se casava
105 E o dote as proporções nunca excedia.

“Cada qual do seu lar se contentava;
Não alardava então Sardanapalo
108 Da alcova o que no encerro se ocultava.

“Não era inda vencido Montemalo
Por vosso Uccelatojo que, excedido
111 Na altura, há-de, ao cair, dar mor abalo.

“Bellincion Berti eu vi andar cingido
De couro e de osso, e também vi-lhe a esposa
114 Voltar do espelho sem rubor fingido.

“Vestindo pele simples, não fastosa
Nerlis e Vecchios vi, no fuso e roca
117 Tendo as consortes vida deleitosa.

“Ditosas! A nenhuma a dor sufoca
Sperando o esposo, que roubou-lhe a França,
120 Nem o jazigo ignora, que lhe toca.

“Uma o berço do filho seu balança,
E o consola naquele doce idioma
123 Que aos pais o coração no enlevo lança;

“Outra, estirando do seu fuso a coma,
Reconta aos filhos o que houvera outrora
126 Em Fiésole, em Tróia e antiga Roma.

“Nesse bom tempo maravilha fora
Uma Cianghella, um Lapo Salterello,
129 Como Cornélia e Cincinato agora.

“Da cidade naquele viver belo,
No seio dessa gente honrada e fida,
132 Nessa doce mansão, da paz modelo,

“Deu-me Maria à minha mãe dorida,
E em vosso Batistério hei recebido
135 Os nomes de cristão e Cacciaguida.

“Irmãos Moronto e Eliseu hei tido,
Minha esposa nasceu em Val-di-Pado:
138 Dessa origem provém teu apelido.

“Segui na guerra Imperador Conrado,
Que me armou cavaleiro na milícia,
141 Altos feitos me tendo assinalado.

“Com ele pelejei contra a nequícia
Do infiel, que o direito vosso oprime
144 De culpado Pastor pela malícia.

“Da torpe gente o assalto lá me exime
Dos enganosos vínculos do mundo,
Cujo amor nódoas tantas na alma imprime:

148 Mártir, vim ao repouso sem segundo.” —



25. De Anquise a sombria pia etc., Enéias visitou nos Campos Elísios a sombra do seu pai Anquise, como o descreve Virgílio, Eneida, VI. — 28-30. O sanguis meus etc., Ó sangue meu! Ó infinita graça de Deus! A quem senão a ti será aberta duas vezes a porta do Céu? — 90 e segu., Do tronco meu etc. É Cacciaguida quem fala, que foi bisavô de Dante, morto numa cruzada em 1173. Foi pai do primeiro Alighiero do qual derivou o nome dos Alighieri. — 97. Florença dentro em sua cerca antiga etc., no pequeno espaço, limitado por seus antigos muros, no qual se ouviam os sinos tocarem as horas. — 107. Sardanapalo, rei da Assíria, célebre pela sua luxúria. — 109-10. Montemalo, monte Mário de Roma; Uccellatoio, monte a cavaleiro de Florença. Que excedido etc., Florença superava Roma em magnificência; assim a superará na decadência. — 112. Bellincion Berti dei Ravignani, ilustre florentino. — 116. Nerlis e Vecchio, as nobres famílias florentinas Nerli e Del Vecchio. — 128. Cianghella dei Tosighi, mulher desonesta. — Lapo Saltarelli, jurisconsulto florentino tido em conta de homem corrupto. — 139. Imperador Conrado 3.° de Hohenstaufen, que chefiou a segunda cruzada. — 143. Ao infiel, os maometanos. — 144. Culpado pastor, o Papa.



CANTO XVI



O poeta orgulha-se pela nobreza da sua família. Cacciaguida continua falando a respeito da própria família e da antiga Florença. Deplora a chegada em Florença de cidadãos de outras terras. Lembra as maiores famílias da cidade, muitas das quais, no tempo de Dante, eram empobrecidas ou maculadas de infâmia.



Ó MESQUINHA nobreza de alto sangue!
Se tanto homem de haver-te se gloria
3 Neste mundo, em que o afeto enfermo langue,

Maravilhar-me já não poderia,
Pois me senti, por causa tal, ufano
6 No céu, onde o apetite não varia.

És manto exposto em breve a estrago e dano:
Se te faltar reparação constante,
9 A mão do tempo te cerceia o pano.

A responder começo à luz brilhante
Por “vós” de que, primeira, Roma usara,
12 Mas que em vulgar dicção não foi avante.

Beatriz, que algum tanto se afastara,
Fez, sorrindo-se, como a que tossira,
15 Quando a primeira vez Ginevra errara.

— “Vós sois meu pai” — disse eu — “em vós se inspira
Para falar-vos do ânimo a ousadia,
18 Me alçais mais do que a mente própria aspira.

“Por tantos rios se enche de alegria
Minha alma que em ledice é transformada,
21 Pois do prazer não vence-a a demasia.

“Dizei-me, pois, minha primícia amada,
Os ascendentes vossos e em qual era
24 Foi a vossa puerícia assinalada.

“De São João a grei como vivera
Dizei-me e os que em seu seio se mostraram,
27 A quem mais alta distinção coubera.” —

Como ao sopro do vento mais se aclaram
As flamas no carvão, dessa arte àquela
30 Luz, me ouvindo, os fulgores se avivaram;

E quanto aos olhos se ostentou mais bela,
Tanto com voz mais doce e mais suave
33 Respondeu, sem falar vulgar loquela.

Disse: — “Do dia, em que se ouvia o Ave
Ao momento, em que ao mundo a mãe querida,
36 Hoje santa me deu no transe grave,

Do Leão foi aos pés reacendida
De Marte a luz quinhentos e cinqüenta
39 Vezes mais trinta na incessante lida.

“O lugar, onde o sesto último assenta,
Dos jogos anuais termo à carreira,
42 Meu berço e o dos avós te representa.

Deles te baste esta noção primeira:
O que hão sido, onde é sua permanência
45 Calar prefiro a dar notícia inteira.

“Dos que haviam então suficiência
Para a guerra, entre Marte e João Batista,
48 São quíntuplo os que têm ora existência.

“Toda gente, porém, que se vê mista
Co’a de Campi, Certaldo, e mais Figghine
51 Pura estava, do nobre até o artista.

“Acerto fora do que bem combine
Tê-los vizinhos, linha demarcando,
54 Que com Trepiano e com Galuz confine,

“Em lugar de hospedar o infeto bando
Dos vilões de Aguglion junto aos de Signa,
57 Da fraude expertos no mister nefando.

“Se a gente, hoje no mundo a mais maligna,
A César não se houvesse declarado
60 Cruel madrasta em vez de mãe benigna,

“Quem se diz Florentino e à usura é dado,
Vende e merca, tornava a Simifonte,
63 Onde o avô mendigava esfarrapado.

“Ainda em Montemurli foram Conti,
Os seus Cerchi ainda Acone conservara
66 E, talvez, Valdigrieve os Buodelmonti.

“Sempre de castas confusão depara,
Como a de cibo em corpo mal disposto,
69 Mal à cidade, e danos lhes prepara.

“Touro cego primeiro em terra é posto
Que anho cego; e melhor corta uma espada
72 Do que cinco num feixe bem composto.

“Se de Urbisaglia a sorte desgraçada
E a de Luni tu vês, se igual espera
75 Chiusi e Sinigaglia malfadada:

“Dos solares mau fim não perecera
À tua mente estranheza ou caso forte,
78 Pois no exício de Estados considera.

“Terrenas cousas todas sofrem morte,
Como vós; mas de algumas, perdurando,
81 Quem curta vida tem não sabe a sorte.

“E como a lua, sem cessar girando
Cobre ou descobre as praias do oceano,
84 De Florença a fortuna vai mudando;

“Assim que não suponhas mais que humano
O que eu disser de exímios florentinos,
87 A cuja fama o tempo já fez dano.

“Eu vi os Ughi, vi os Catellinos,
Fillippe, Greci, Ornami e os Albericos
90 Decadentes, mas ainda nobres, di’nos.

“Grandes em fama, de virtudes ricos
Os de Sanella vi; também os de Arca,
93 Soldanieri, Ardingos e Bastichos.

“À porta de São Pedro, que ora abarca
Infâmia nova tanto em peso ingente,
96 Que fará soçobrar em breve a barca,

“Estavam Ravignans; seu descendente
Foi Conde Guido e quantos ao diante
99 De Bellincione o nome têm fulgente.

“Della Pressa em governo era prestante
E Galligaio no solar dourara
102 Punho e copos da espada fulgurante.

“A Coluna do Esquilo se elevara,
Sacchetti, Giuochi Fifanti e Barucci
105 Galli e quem pelo alqueire se pejara.

Era já grande o tronco dos Calfucci
E às cadeiras curuis tinham subido,
108 Assumindo o poder, Sizi e Arragucci.

“Quanto lustre daqueles, que abatido
Tem soberba! Que feito viu Florença
111 Sem ser de Esfera de Ouro enobrecido?

“Eram pais dos que julgam glória imensa
No concistório, vago o episcopado,
114 Cevar-se dos banquetes na licença.

“Surgia o bando já sem pejo e ousado,
Dragão que investe a quem lhe teme a ira,
117 Cordeiro em vendo bolsa ou braço armado;

“De princípio tão vil a origem tira,
Que Donato Ubertino se afrontava,
120 Quando a um desses o sogro a filha unira.

“Já Caponsacco no Mercado estava,
De Fiésole vindo; e lá já era
123 Giuda, Infangato: o nome os ilustrava.

“Incrível cousa vou dizer, mas vera:
No recinto uma porta outrora havia,
126 À qual deu nome a gente della Pera.

“Fidalgo, que o brasão belo trazia
Do barão cujo nome, glória e vida
129 De São Tomé celebra-se no dia;

“Lhe deve o privilégio e honra subida;
Mas hoje ao popular partido se une
132 Trazendo de ouro a faixa guarnecida.

“Já Gualterotti viam-se e Importuni;
E em Borgo a paz de todo se perdera,
135 Quando uma turba nova em si reúne.

“A casa, de que o mal vosso nascera,
Que vos deu morte, justamente irada,
138 E ao feliz viver vosso o fim pusera,

“Em si, na prole sua fora honrada:
Por que sua aliança recusaste
141 Por sugestão, o Buondelmonte, errada?

“Quando à cidade a vez primeira entraste,
Se do Ema às águas Deus te houvesse dado,
144 Ledice fora o pranto, que causaste:

“Forçado era que ao mármore quebrado,
Da ponte guarda, vítima imolasse
147 Florença, de sua paz o fim chegado.

“Com esses e outros, que inda eu mais lembrasse,
Florença vi gozar fausto repouso,
150 Sem motivo que pranto lhe excitasse.

Com esses e outros vi tão glorioso
E junto o povo, que ao rever lançado
Não era na hástea o lírio seu formoso,

154 Nem por facções em rubro transformado.” —



11. Por “vós” etc., Dante falou a Cacciaguida com o “vós” em lugar de ”tu”, como faziam os romanos quando falavam a pessoas de respeito e que não se usava mais no tempo de Dante. — 13-14. Beatriz etc., sorriu como maliciosamente sorriu a camareira de Ginevra, no romance de Lancelot, quando a sua dona foi beijada pela primeira vez pelo amante. — 33. Sem falar vulgar loquela, em latim. — 37-39. Do Leão etc., Marte aproximou-se 580 vezes da constelação do Leão, isto é, passaram 1091 anos a começar pela anunciação do nascimento de Jesus. — 40. O lugar etc., a casa de Cacciaguida estava situada no bairro (sesto) que ficava por último nas corridas de S. João, isto é, no bairro de S. Pedro. — 47. Entre Marte e João Batista, entre a estátua de Marte e a igreja de S. João Batista. — 49-51. Toda gente etc., os cidadãos de Florença não se haviam mesclado aos camponeses das redondezas. — 58. Se a gente hoje no mundo a mais maligna, a Cúria Romana. — 61. Quem se diz etc., alusão a personagem que não foi possível identificar. — 62. Simifonte, castelo no vale do Rio Elsa. — 94. À porta de S. Pedro que ora abarca infâmia nova, no bairro de S. Pedro morava a família dos Cerchi. — 101. Dourada punho e copos etc., havia recebido insígnias de nobreza. — 103. A coluna do Esquilo, no brasão da família Pigli havia uma coluna. — 105. E quem pelo alqueire se pejara, a nobre família Chiaromonti usava pesos e medidas falsas. — 111. Esferas de ouro, no brasão da família Lamberti havia esferas de ouro. — 112. Eram pais etc., dos Visdomini e dos Tosinghi, os quais administravam fraudulentamente as rendas episcopais. — 115. O bando sem pejo e ousado etc., a família dos Amidei. — 118-120. De princípio tão vil etc., de origens tão baixas que Ubertino Donati ficara ofendido quando o sogro deu em casamento uma das filhas a um Adimari. — 126. Gente della Pera, a família della Pera, extinta no tempo de Dante, era de origem ilustre. — 127. Fidalgo, que o brasão belo trazia etc., o barão Hugo de Brandeburgo cujo brasão foi usado por diversas famílias. Hugo morreu no dia de S. Tomé e, nesse dia, a sua memória era honrada na igreja da Badia, onde fora sepultado. — 131. Mas hoje ao popular partido etc., Giano della Bella, embora de família nobre, que usava o brasão de Hugo com faixa de ouro, chefiou em 1295 o partido popular. — 136-141. A casa etc., os Amidei, indignados contra Buondelmonte dei Buondelmonti por haver faltado ao compromisso de casamento com uma moça da sua família, deram origem às lutas civis em Florença. — 143. Se do Ema etc., teria sido melhor se os Buondelmonti se tivessem afogado no rio Ema, ao atravessá-lo, quando foram para Florença. — 145. Ao mármore quebrado etc., Buondelmonti foi assassinado pelos Amidei perto da estátua de Marte.

CANTO XVII



Dante pede a Cacciaguida que lhe declare qual sorte lhe está reservada. Este prediz-lhe o exílio, a perseguição pelos inimigos e o seu refúgio na corte dos Scaligeros, Exorta-o a falar do que viu e ouviu na sua viagem, sem receio de ofender ninguém.



QUAL a Climene explicações rogava
De quanto em desconcerto próprio ouvira
3 O que austeros depois os pais tornava,

Tal fiquei, tal efeito pressentira
Com Beatriz a santa luz brilhante,
6 Que da Cruz eu da altura descer vira.

E disse Beatriz: — “Desse anelante
Desejo a flama exibe e nela esteja
9 Ao que tens na alma imagem semelhante,

“Não, por que mais ao claro em ti se veja,
Mas porque, sendo a sede revelada.
12 Prestada em proporção água te seja.” —

— “Ó cara estirpe minha à Glória alçada! —
Como conhecem as terrenas mentes
15 Não dar a obtusos dois triâng’lo entrada,

“Assim vês tu as cousas contingentes
Lá no porvir, o Centro contemplando,
18 A quem todos os tempos stão presentes;

“Em quanto eu a Virgílio acompanhando,
Subia o monte, onde ao pecado há cura,
21 E também pelo inferno penetrando,

“Sobre a existência minha ouvi futura
Agras palavras, posto que me sinta
24 Impertérrito aos golpes da ventura.

“Folgara em ter ciência bem distinta
Dos reveses, que a sorte me prepara:
27 Menos mogoa a seta ao que a pressinta.”

Ao spírito, que, há pouco me falara,
Meu desejo hei desta arte declarado,
30 Como a senhora minha me ordenara.

Sem ambages, que aos homens enviscado
Tinham, antes de Deus ser o Cordeiro,
33 Que os pecados remiu, sacrificado,

Mas em preciso estilo e verdadeiro,
Logo tornou-me o paternal afeito,
36 Velado e transparente em seu luzeiro:

— “A contingência, que do espaço estreito
Da matéria os limites não transcende,
39 Toda se pinta no eternal aspeito.

“Necessidade, entanto, não a prende,
Como não prende a vista em que se espelha
42 A nau, que as águas rápida descende.

“De lá bem como se transmite à orelha
Doce harmonia de órgão, refletido
45 O tempo me é que a ti já se aparelha.

“Qual de Atenas Hipólito há partido
Pela perfídia da madrasta ímpia,
48 Tal deixarás Florença perseguido.

“Assim se quer e a trama principia;
Será em breve executado o plano
51 Lá onde a Cristo vendem cada dia.

“A culpa o mundo a quem padece o dano
Dará; mas terá pena merecida,
54 Da verdade em vingança, o algoz insano.

“Deixarás toda a causa a mais querida,
Chaga primeira de tormentos cheia,
57 Do desterro pelo arco produzida.

“Sentirás quanto amarga; quanto anseia
O sal de estranho pão; que é dura estrada
60 Subir, descer degraus da escada alheia.

“Tua angústia há de ser mais agravada,
Te acompanhar no val do exílio vendo
63 Ignóbil gente, estólida malvada.

“Ingrato, louco e mau te acometendo
O bando se há de unir: será corrido
66 Ele, não tu, o opróbrio merecendo.

“Seu bestial instinto conhecido
Terão seus feitos; glória consumada
69 Terás; tu só formando o teu partido.

“Te há de ser acolhida franqueada
Primeira pelo exímio e grã Lombardo
72 Que por brasão tem Águia sobre Escada.

“Terá contigo tão cortês resguardo,
Que, o rogo prevenindo, o dom se apresse,
75 Que sói entre outros, se mostrar mais tardo.

“Verás com ele o que ao nascer merece
Tanto deste astro bélico a influência,
78 Que a fama a glória ao nome lhe engrandece.

“Inda ignorada jáz tanta excelência:
Só voltas nove em torno lhe tem dado
81 Estas esferas na anual cadência.

“Mas antes que o Gascão tenha enganado
Henrique excelso já fará patentes
84 De ouro o desdém e o ânimo esforçado.

“Serão grandezas suas tão fulgentes,
Que inimigos malgrado as contemplando,
87 Terão de as proclamar por preminentes.

“Nele confia, o bem dele esperando;
A sorte mudará de muita gente,
90 Ricos, mendigos condição trocando.

“Dele o que eu digo inculcarás na mente,
Sem narrá-lo.” — E prozeas predizia,
93 Incríveis inda a quem lhe for presente. —

— “Eis, filho, o comentário” — prosseguia —
“Do que se foi já dito; eis a emboscada,
96 Que num período breve se encobria.

“Mas por ti dos vizinhos invejada
Não seja a sorte; prolongada a vida,
99 Verás sua perfídia castigada.” —

Depois que essa alma santa concluída,
Calcando-se, mostrou já ter a trama
102 Da tela, que eu lhe oferecera urdida,

Com tom de voz falei de homem, que clama
Por bom conselho, ao recear perigo,
105 De quem, sábio e discreto, o bem de outro ama.

— “Vejo, ó pai, que, investindo, o tempo imigo
Contra mim corre para o golpe dar-me,
108 Mais grave, porque opor-me não consigo.

“De prudência, portanto, é bem que me arme;
Não suceda, ao perder pátria guarida,
111 Dos meus versos por causa outra faltar-me.

“No mundo, onde em perpétua dor se lida,
Da montanha subindo o excelso cume,
114 Donde elevou-me Beatriz querida,

“E depois pelo céu de lume em lume
Cousas tais aprendi, que, se as redigo,
117 Travo terão a muitos de azedume.

“Se da verdade eu for remisso amigo,
Morrer temo dos homens pelo olvido,
120 Que o tempo de hoje hão de chamar antigo.” —

A luz, onde o tesouro era escondido,
Que eu achara, se fez tão coruscante,
123 Como o sol de áureo espelho refletido.

E disse: — “A consciência vacilante
Por próprios atos ou vergonha alheia
126 Teu falar haverá por cruciante.

“Mas deves repelir mentira feia;
Toda a tua visão faz manifesta,
129 Coce-se a pele, que é de lepra cheia.

“Ao primeiro sabor será molesta
Tua palavra; mas vital sustento
132 Deixará depois, quando for digesta.

“Há de o teu braço assemelhar-se ao vento,
Que ao mais soberbo cimo ousado investe;
135 Há de isto ao nome teu dar lustre e aumento.

“Ante os olhos aqui, no céu, tiveste,
No santo monte e lá no val das dores
138 Almas, que a fama com seu brilho veste.

“Pois de ouvintes o ânimo ou leitores
Preço não dá ao exemplo derivado
De origem vil, sem nota, sem louvores,

142 Nem a outro argumento mal fundado.” —



1. Qual a Climene etc., Fetonte (que com o seu exemplo faz com que os pais sejam austeros com os filhos) perguntou à mãe Climene se ele era verdadeiramente filho do Sol. — 46. Qual de Atenas etc., Hipólito filho de Teseu, não querendo sujeitar-se aos desejos de sua madrasta Fedra, foi banido de Atenas, caluniado por ela. — 51. Lá onde a Cristo vendem todo dia, a Cúria Romana. — 71. Grã Lombardo etc., Bartolomeu della Scala, senhor de Verona. — 76-77. O que ao nascer etc., Cangrande della Scala, irmão de Bartolomeu, que foi notável capitão. Cangrande em 1300 tinha nove anos. — 82-83. Mas antes que o Gascão tenha enganado etc. Clemente V, papa de origem francesa, depois de ter prometido a Henrique VII que o reconheceria como imperador, quando Henrique chegou à Itália, em 1312, o adversou.



CANTO XVIII



Beatriz conforta o Poeta. Cacciaguida mostra-lhe outros espíritos que combateram pela fé cristã. Sobem depois a Júpiter, ande estão as almas dos príncipes que governaram com justiça. Os espíritos se dispõem de maneira a desenhar palavras de conselho aos que governam; por último se compõem na forma de uma águia.



JÁ gozava em silêncio do seu verbo
Essa alma venturosa e eu cogitava,
3 O doce temperando pelo acerbo;

Mas aquela, que a Deus me encaminhava,
— “Muda o pensar; que perto” — me dizia —
6 “Eu sou do que injustiças desagrava.” —

Voltei-me à voz, que sempre me infundia
Valor: dos santos olhos a ternura
9 Descrever a palavra renuncia.

Não só a língua em vão dizer procura;
Mas sobre si tornando, desfalece
12 A mente sem socorro lá da altura.

Ora somente referir se of’rece
Que outro desejo, a santa contemplando,
15 Do coração, ao todo, desparece.

Como a delícia eterna, rebrilhando
Direta em Beatriz, me extasiava
18 Do gesto seu por um reflexo brando,

Com riso, de que a luz me subjugava,
— “Volve-te, escuta ainda; o Paraíso
21 Não stá só nos meus olhos” — me falava.

Como a paixão, no seu dizer conciso
Pelos olhos se exprime, na alma enquanto
24 Tolhe o prestígio seu todo o juízo,

Assim no flamejar do fulgor santo,
Voltando-me, o desejo vi patente
27 De aditar ao que disse ora algum tanto.

— “Na quinta estância da árvore, que, ingente,
Pelo cimo se nutre” — principia —
30 “Que frutos sempre dá, sempre é virente,

“Espíritos habitam, que algum dia
Nome tinham na terra tão famoso,
33 Que opimo assunto às Musas prestaria.

“Da cruz os braços olha cuidadoso:
Os que eu te nomear verás fulgindo,
36 Qual relâmpago em nuvem pressuroso.” —

Na Cruz vi perpassar, o nome ouvindo
De Josué, um traço rutilante,
39 Mal acabara a voz, presto surgindo.

Disse o grã Macabeu: no mesmo instante
Outro acorria, sobre si rodando,
42 Tange alegria esse pião brilhante;

Assim fez Carlos Magno, assim Orlando.
Atento, os movimentos seus esguardo,
45 Qual monteiro ao falcão no ar voando.

Seguiram-se Guilherme e Rinoardo;
Distingue o duque Godofredo a vista,
48 E logo após se assinalou Guiscardo.

Depois com os outros esplendores mista
Provou-me a alma ditosa, que há falado,
51 Ser nos coros do céu sublime artista.

Voltei-me então para o direito lado
Por conhecer de Beatriz o intento,
54 Em palvras ou gestos declarado.

Nos olhos puros seus vi tal contento,
Fulgor tal, que excedia o seu semblante
57 Quando de antes prendeu-me o pensamento.

Como, ao sentir prazer inebriante,
Cada vez que o bem faz homem conhece
60 Ir da virtude na vereda avante,

Assim mais amplo o arco me parece
Do círc’lo, em que vou co’o céu girando
63 Ao ver quanto prodígio tal recresce.

Tão presto, como em nívea face, quando
A chama do pudor se acende, volta
66 A cor a ser qual de antes, branqueando,

Pelo doce candor, que a vista envolta
Me teve, conheci que a sexta estrela
69 Nos recebera a mim e a minha escolta.

De Júpiter na esfera argêntea e bela
O cintilar de amor, que ali resplende,
72 Linguage’ humana aos olhos me revela.

De aves qual bando, que se estreita ou estende,
Do rio junto à borda e que à verdura
75 Do pascigo, a folgar os vôos tende,

Tal em seus lumes grei ditosa e pura,
Adejando, cantava e descrevia
78 De D, de I, de L uma figura.

Ao compasso dos hinos se movia
E em silêncio quedava, se detendo,
81 Quando alguma das letras concluía.

Pegásea Diva, ó tu, que, concedendo
A glória ao gênio, lhe dilatas vida,
84 Cidades, reinos imortais fazendo!

Brilha em mim! por que seja referida
Cada figura, qual me foi presente!
87 Faz tua força em meus versos conhecida!

E cinco vezes sete claramente
Vogais e consoantes vi, notando
90 Cada qual pelo traço refulgente:

“DILIGITE JUSTITIAM” indicando
Verbo e nome primeiros na escritura;
93 “QUI JUDICATIS TERRAM” terminando.

Colocando-se assim cada luz pura,
No fim pausaram no vocáb’lo quinto:
96 Sobre o argento de Jove ouro fulgura.

De outros lumes, que descem, vi distinto
Do M o cimo: cantam, lá pousados,
99 Bem que os atrai ao divinal precinto.

Como carvões ardentes encontrados
De centelhas um jorro de si lançam,
102 Presságios por estultos venerados,

Muitos mil fogos para o ar avançam,
Subindo à altura, que lhes há marcado
105 O Sol, de quem beleza e brilho alcançam.

Já, cada qual ao seu lugar tornado,
De Águia o colo a meus olhos se mostrava,
108 Rematando em cabeça, desenhado.

Guia não teve o artista que os traçava:
É seu todo o primor, toda a mestria,
111 Que em cada ninho forma própria grava.

A santa grei, porém, que parecia
De ornar de c’roa o M estar contente,
114 Movendo-se, a figura perfazia.

Quanta jóias, ó astro refulgente,
Mostraram-me provir justiça humana
117 Do céu de que és ornato permanente!

À Mente, pois, suplico de que emana
O moto e a força tua, atenta veja
120 Da névoa a causa que o teu brilho empana;

E de ira inda uma vez tomada seja
Contra os que mercadejam no seu templo,
123 Que do sangue dos mártires flameja.

Celestial milícia, que eu contemplo,
Roga por esses, que ora estão na terra
126 Transviados, seguindo hórrido exemplo.

Com gládio outrora se travava a guerra;
Hoje em tirar o pão, que Deus tem dado,
129 Dos combatentes o valor se encerra.

Tu que escreves pra ser logo emendado
Pensa que Pedro e Paulo hão ressurgido,
132 Pela vinha morrendo que hás talado.

Tu bem podes dizer: — “Devoto hei sido
Do que, ao deserto dando tanto apreço,
Sofreu martírio à dança oferecido:

136 O pescador e Paulo não conheço.” —




28. Da árvore que, ingente, pelo cimo se nutre, o Paraíso que recebe vida de Deus. — 38. Josué, sucessor de Moisés na chefia do povo hebreu e que conquistou a Terra Prometida. — 40. O grã Macabeu, Judas Macabeu que combateu contra Antíoco. — 43-48. Orlando, paladino de Carlos Magno; Guilherme, d’0range; combateu contra os infiéis; Rinoardo, companheiro de Guilherme; Godofredo de Bouillon, conquistou a cidade de Jerusalém; Roberto Guiscardo, libertou as Apúlias dos Sarracenos, no século XI. — 49-51. Depois com os outros etc., Cacciaguida cantou, provando que era um sublime artista. — 82. Pegásea Diva, a musa Caliope. — 91-93. Diligite etc., amai a justiça vós que governais o mundo. — 107. Águia etc., a águia é o símbolo da justiça e da monarquia. — 130. Tu que escreves etc., alusão ao papa Bonifácio VIII, que escrevia as censuras, para emendá-las depois de ter recebido dinheiro. — 134-136. Do que etc., a moeda florentina, o florim, trazia a efígie de S. João Batista, que sofreu o martírio por causa da dança de Salomé.


 A DIVINA COMÉDIA...
 INFERNO ... Cantos I-V ... VI-XI ... XII-XVII ... XVIII-XXIII ... XIV-XXIX ... XXX-XXXIV 
 PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII 
 PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII