Divina Comédia - Purgatório VII - XII

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CANTO VII



Sordello, ao saber que aquele que abraçou é Virgílio, lhe faz novas e ainda maiores demonstrações de afeto. O Sol está próximo ao ocaso e ao Purgatório não se pode subir à noite. Guiados por Sordello, os dois Poetas param num vale, onde residem os espíritos de personagens que no mundo desfrutaram de grande consideração e que somente no fim da vida elevaram o seu pensamento a Deus.



DE doce afeto as mútuas mostras sendo
Por três ou quatro vezes reiterado
3 — “Quem sois?” — se retraiu Sordel dizendo.

— “Tinha Otávio os meus ossos sepultado
Já quando a este monte se elevaram
6 Almas que ao bem havia Deus chamado.

Virgílio sou: do céu não me afastaram
Pecados; me faltava a fé somente.” —
9 Do meu Guia estas vozes lhe tornaram.

Como quem ante si vê de repente
Maravilha: ora crê, ora duvida,
12 E diz: — É certo ou minha vista mente? —

Assim essa alma. Dobra a frente erguida
Humildemente, ao Vate se avizinha
15 E lhe abraça os joelhos comovida.

— “Ó glória dos Latinos!” — disse asinha —
Que ergueste a língua nossa a tanta altura!
18 Honra eterna da amada pátria minha!

“De ver-te o que me dá graça e ventura?
Dize, se di’no de te ouvir hei sido,
21 De qual círculo vens da estância escura.”

— “Tenho aqui” — Virgílio diz — “subido,
Do triste reino os círc’los visitando,
24 Sou do céu por virtude conduzido.

“Não por fazer, mas de fazer deixando,
Ver o sol, que desejas, me é vedado:
27 Conheci-o já tarde — ai miserando!

“Lá embaixo um lugar foi destinado
Não a martírio, à treva onde há somente
30 Suspiros, não gemer de angustiado.

“Ali stou eu, no meio da inocente
Grei, que a morte cruel mordeu, enquanto
33 Da culpa humana inda era dependente.

“Com aqueles stou eu, em quem seu manto
Três celestes virtudes não lançaram,
36 Lhes dando à vista o mais suave encanto.

“Mas sabes se veredas se deparam
Que ao Purgatório a entrada facilitem?
39 Os indícios nos diz, se te constaram.” —

Tornou: — “Lugar não há, que almas habitem
Aqui; na direção vou, que me agrada;
42 Guiarei quanto os passos me permitem.

“Mas vê: declina o dia; na jornada,
Que fazeis, caminhar a noite veda:
45 Busquemos sítio a cômoda pousada.

“À destra e à parte multidão stá queda:
Iremos até lá, se acaso o queres,
48 Talvez te seja a sua vida leda.” —

E o Mestre: — “Como? Pelo que proferes,
Impossível será subir sem dia?
51 Ou a alguém, que o proíba, te referes?” —

Com seu dedo Sordel linha fazia
No chão e disse: — “Além ninguém passara
54 Se, ausente o sol, a noite principia.

“Mas óbice qualquer não deparara
Quem caminhar, subindo, pretendesse:
57 Para tolhê-lo a noite já bastara.

“Bem pudera baixar, se lhe aprouvesse,
Pelo declive em volta da montanha:
60 Enquanto o sol sob o horizonte desce.” —

Torna Virgílio, então, que ouvindo estranha:
— “Ao lugar, que nos dizes, pois, nos guia,
63 Onde a demora o júbilo acompanha.” —

Pouco longe dali notei que havia
Depressão na montanha, semelhante
66 À que na terra um vale formaria.

— “Iremos” — disse a sombra — “um pouco avante
Té onde a encosta encurva, se escavando:
69 De lá voltar vereis a luz brilhante.” —

Entre a escarpa e o plano se inclinando
Trilha ao vale conduz obliquamente,
72 O pendor mais que ao meio, se adoçando.

Prata, alvaiade, grão, ouro fulgente,
Índico lenho límpido e lustroso,
75 Pura esmeralda, ao lapidar, luzente,

Por flores e ervas desse val formoso
Se achariam na cor escurecidos
78 Como cede o mais fraco ao mais forçoso.

Aos donosos males espargidos
Mil suaves aromas se ajuntavam,
81 Em peregrino muito reunidos.

Sobre a relva entre as flores entoavam
Salve Regina, as almas, que da vista
84 Externa no recinto se ocultavam.

“Do sol enquanto a luz inda persista” —
O Mantuano disse, que nos guia,
87 “Ir não queiras à grei que de nós dista.

“Gestos e vultos seus conheceria
Qualquer de vós daqui mais claramente
90 Do que, de perto os vendo, o poderia.

“O que parece, aos outros, eminente.
Da quebra em seus deveres pesaroso
93 E a geral melodia ouve silente,

“É Rodolfo que fora poderoso.
Conta o mal que já tem a Itália morta:
96 Quem lhe dará porvir esperançoso?

“O que com seu semblante ora o conforta
Governava esse reino onde a água brota,
99 Que o Molta ao Álbia, o Álbia ao mar transporta.

“É Otocar: na infância melhor nota
Teve que o filho, Venceslau barbudo,
102 Na luxúria e preguiça a vida esgota.

“Morrendo, o que não tem nariz agudo
E fala a esse outro de benino aspeito,
105 Deixou dos lizes deslustrado o escudo.

“Atentai: como bate ele no peito!
Vede aquele que ao ar suspiros lança
108 Da mão fazendo à sua face um leito.

“Sogro e pai do flagelo são da França;
Cientes do viver seu vergonhoso,
111 Dor stão sentindo, que ora não descansa.

“Esse membrudo, que o cantar piedoso
Segue do que nariz tem desmarcado,
114 Das virtudes no culto foi zeloso.

“Se o mancebo, ora atrás dele assentado,
Ao trono sucedera-lhe, subira
117 Valor de um Rei por outro fora herdado.

“Dos maus herdeiros qual pôs nisso a mira?
Jaime Fred’rico havendo o reino tido,
120 Nenhum a melhor parte possuíra.

“Rara vez tem nas ramas ressurgido
Primor alto da estirpe; assim o ordena
123 Aquele, a quem ser deve o bem pedido.

“Ao narigudo aplicação tem plena
Meu dito e a Pedro, que ao seu lado canta:
126 Apúlia com Provença, geme e pena.

“Tanto ao seu fruto excede em preço a planta,
Quanto, mais que Beatriz e Margarida,
129 Constança ações do esposo seu decanta.

“Ali vedes o Rei de simples vida
Sentado à parte, Henrique de Inglaterra:
132 Teve este em ramos seus melhor saída.

“Mais abaixo notai sentado em terra
Marquês Guilherme e para o alto olhando,
Por quem, sofrendo Alexandria guerra,

136 Montferrat, Canavese estão chorando.” —



4. Otávio, o imperador Augusto. — 94. Rodolfo, de Habsburgo, imperador de 1273 a 1291. — 96. Quem etc., o imperador Henrique VII, que tentou pôr ordem na Itália. — 98. Esse reino etc., a Boêmia, onde nasce o rio Moldava (Molta), que desemboca no Elba (Albia). — 100. Otocar II, adversário de Rodolfo, foi de melhor índole que seu filho Venceslau. — 103. O que não tem nariz agudo, Filipe III de França, pai de Filipe o Belo e de Carlos de Valois. — 104. Esse outro, Henrique I de Navarra, sogro de Filipe o Belo e pai de Joana I. — 109. Do flagelo da França, Filipe o Belo. — 112. Esse membrudo, Pedro III de Aragão, que, depois da revolução das Vésperas, conquistou a Sicília. — 113. Ao que nariz tem desmarcado, Carlos I de Ànjou que, vencendo Manfredo, conquistou a Sicília. — 115-20. Se o mancebo, Afonso III, primogênito de Pedro de Aragão, que morreu moço, foi melhor príncipe do que os seus sucessores, Jaime II no reino de Aragão e Frederico na Sicília. — 126. Apúlia etc., os reinos de Provença e de Nápoles lamentam a morte de Carlos I, pois são mal governados pelo seu sucessor Carlos II. — 127-29. O fruto etc., tão inferior é Carlo II de Anjou a Carlos I, quanto este foi inferior a Pedro III. — 131. Henrique III, da Inglaterra, o qual teve um bom sucessor na pessoa de Eduardo I. — 134. Marquês Guilherme, senhor de Monferrato, cuja morte originou uma guerra desastrosa para os seus súditos.

CANTO VIII



No começo da noite dois anjos descem do Céu para expelir a serpe maligna que quer entrar no vale. Entre as sombras que se aproximam dos Poetas, Dante reconhece Nino Visconti, de Pisa. Conrado Malaspina pede a Dante notícias de Lunigiana, sua pátria; Dante responde elogiando a sua família.



ERA o tempo, em que mais saudade sente
Do navegante o coração no dia
3 Do adeus a amigos, que relembra ausente;

E ao novel peregrino amor crucia,
Distante a voz do campanário ouvindo,
6 Que ao dia a morte, flébil, denuncia.

Não mais ouvia os olhos dirigindo
Perto um espírito vi que levantado,
9 Acenava, que ouvissem-no pedindo.

E, havendo as duas mãos juntas alçado,
Parecia, olhos fitos no Oriente,
12 A Deus dizer: És todo o meu cuidado!

Te lucis entoou devotamente
Com tão suave, tão piedoso canto,
15 Que me enlevava em êxtase a mente.

Com igual devoção e igual encanto,
Nas supernas esferas engolfados,
18 Repetiram os outros o hino santo.

Leitor, tem da alma os olhos afiados
Para os véus da verdade penetrares:
21 Fácil é, tão sutis são, tão delgados.

A nobre turba, após os seus cantares,
Calou-se; então notei que, como à espera,
24 Pálida e humilde a vista erguia aos ares.

E vi sair descendo, da alta esfera
Anjos dois, empunhando flamejantes
27 Gládios a que truncada a ponta era.

Verdes quais folhas novas vicejantes
As vestes suas são, as agitando
30 As plumas das suas asas viridantes.

Um acima de nós se colocando,
Baixara o outro sobre o lado oposto,
33 Desta arte as almas de permeio estando.

A flava coma via-lhes: seu rosto
Contemplar impossível me seria:
36 Confunde a vista o lúcido composto.

“Do sólio ambos descendem de Maria”
Sordelo diz — “a do vale por amparo,
39 Onde a serpente vai chegar ímpia.”

Por onde ela viesse estando ignaro
Em torno olhei e, do terror tomado,
42 Busquei refúgio ao pé do amigo caro.

Sordel prossegue: — “É de falar chegado
Àqueles grandes spíritos o instante:
45 Ledos serão de ver-vos ao seu lado.” —

Para baixar ao val me foi bastante
Três passos dar: um spírito fitava
48 Perscrutadora vista em meu semblante.

Já de sombras o ar se carregava;
Mas aos seus e aos meus olhos embaraço
51 Não era para ver-se o que ali stava.

A mim vem, eu para ele aperto o passo:
— “Nino exímio juiz quanto me agrada
54 Ver-te liberto do infernal regaço!”

De afeto após a mostra reiterada,
Inquiriu: — “Por longínquas águas quando
57 Chegaste ao pé da altura alcantilada?”

— “Oh!” — lhe tornei — “esta manhã, passando
Pela triste mansão: ainda a vida
60 Primeiro gozo e a outra vou buscando.” —

Mal fora esta resposta proferida,
Nino e Sordel, de pasmo, recuaram;
63 Como se fora maravilha ouvida.

Ao Vate este volveu-se; e se escutaram
Vozes de Nino a outro: — “Vem, Conrado, —
66 De Deus ver o que as leis determinaram!”

— “Por essa gratidão” — a mim voltado
Disse — “que ao Ente deves invisível,
69 Cuja ação compreender nos é vedado.

“Te imploro que, em passando o mar temível,
Digas à filha minha que suplique
72 Por mim: Deus à inocência é tão sensível!

“Não creio que em prol meu a mãe se aplique
Depois que os brancos véus trocou demente:
75 Dor terá infeliz! — que mortifique.

“Se conhece, por ela, facilmente
Quanto em mulher de amor fogo perdura
78 Se o caminho falece e o olhar freqüente.

“Não lhe fará tão bela sepultura
A víbora com que Milão se ostenta,
81 Como a fizera o galo de Galura.” —

Assim dizia Nino. Ainda o alenta
O justo zelo, que traduz no rosto,
84 Que brando ardendo, o ânimo aviventa.

Ávido os olhos tinha eu no céu posto,
À parte em que os luzeiros são mais lentos,
87 Qual roda onde o seu eixo está disposto.

E o Mestre: — “Os olhos ao que tens atentos?” —
Respondi-lhe: — “Aos três astros luminosos,
90 Que o pólo acendem, célicos portentos.” —

— “As quatro estrelas” — me tornou — “formosas,
Que por manhã já vimos, se ocultaram.
93 Aí mesmo estas surgem fulgurosas.” —

Sordel, quando estas vozes me voaram,
O tira a si dizendo: — “eis o inimigo!” —
96 Os olhos o seu dedo acompanharam.

Do val na parte exposta ver consigo
Uma serpe, que a rastos coleava:
99 Talvez o pomo deu, de Eva perigo.

Entre as ervas e flores avançava,
A um lado e a outro a fronte volteando;
102 Lambendo o dorso, a língua dilatava.

Não pude ver como ao réptil nefando
Os celestes açores se enviaram;
105 Mas atônito os vi ambos pairando.

O sussurro que as asas no ar formaram,
Em sentido, fugiu presto a serpente:
108 Os anjos logo aos postos seus tornaram.

A sombra, que viera incontinênti
Do juizo ao chamado enquanto o assalto
111 Durou, me estava olhando atentamente

— “Tenha o fanal, que te conduz ao alto
No teu desejo válido alimento!
114 De luz para subir não sejas falto!

“Mas se houveste” — me diz — “conhecimento
De Valdimagra ou terra que confina,
117 Declara: eu de poder lá tive aumento.

“Chamado fui Conrado Malaspina;
Não o antigo, porém seu descendente:
120 Amor, que tive aos meus aqui se afina.” —

— “Lá não fui” — respondi-lhe reverente —
“Mas da Europa em que parte a excelsa fama
123 Dos feitos vossos não tem eco ingente?

“A glória que o solar vosso proclama,
Honra o domínio, honra os seus senhores
126 Quem nunca os viu louvores seus aclama.

“Juro, e tão certo eu veja os esplendores
Do céu, que a vossa raça guarda intatos
129 Da opulência e bravura altos primores.

“Por sua índole egrégia, por seus atos,
Enquanto ao mundo um chefe mau transvia,
132 Só ela segue o bem e o prova em fatos.” —

— “Vai!” — disse — “Antes que o belo astro do dia
Sete vezes penetre nesse espaço,
135 Que o Áries cobre na celeste via,

“Tão boa opinião com fundo traço
Melhor será na tua fronte impressa
Do que de outro por voz a cada passo,

139 Se do Sumo Querer ordem não cessa.” —



1. Era o tempo etc., começava a cair a noite. — 13. Te lucis etc., começo de um hino da Igreja. — 19-21. Leitor etc., o Poeta adverte que além do sentido literal o que vai dizer tem um sentido alegórico. — 53. Nino exímio juiz, Ugolino Visconti, juiz de Galura, na Sardenha. — 65. Conrado, Conrado Malaspina, marquês de Lunigiana. — 71. À filha minha, Joana, filha de Nino. — 73. A mãe, Beatriz d’Este, viúva de Nino, desposara em segundas núpcias a Galeazzo Visconti. — 80. A víbora, brasão da família Visconti. — 119. O antigo, o avô de Conrado Malaspina, do mesmo nome. — 136. Tão boa opinião etc., em 1306 Dante teve boa acolhida nos Castelos dos Malaspina, em Lunigiana.

CANTO IX



Ao despontar do novo dia Dante adormece e, no sono é transportado por Luzia até a Porta do Purgatório. Aproximam-se da entrada e aqui um anjo abre-lhes a porta, depois de ter gravado na testa de Dante sete PP.



JÁ clareava de Titão antigo
A concubina as fímbrias do oriente,
3 Deixando os braços do seu doce amigo;

Era-lhe a fronte de astros refulgente,
Figura do animal frio formando,
6 Que vibra a cauda contra a humana gente.

No lugar, em que estávamos, se alçando
Dos passos seus havia a Noite andado,
9 E o terceiro ia as asas inclinando,

Quando eu, tendo o que Adam nos há legado,
De sono sobre a relva fui vencido,
12 Lá onde junto aos quatro era sentado.

Ante-manhã, na hora, em que gemido
Triste a andorinha a soluçar começa,
15 Talvez na antiga dor pondo o sentido;

Já não stando da carne mais opressa
A mente e livre do pensar terreno,
18 Quase divina por visões pareça,

Pairar sonhei que via no ar sereno
De áureas plumas uma águia, que mostrava
21 Querer baixar, das asas pelo aceno.

Estar eu na montanha imaginava,
Onde os seus Ganimede abandonara
24 Alado à corte excelsa, que o esperava.

E eu pensava: talvez esta ave rara,
Caçar aqui soindo, a nédia preia
27 Fazer noutros lugares desdenhara;

A traçar giros vários avistei-a:
Eis, terrível, qual raio, a mim se envia,
30 E lá do fogo à região me alteia.

Esta águia, então julguei, comigo ardia
Tanto, que foi o sonho meu quebrado
33 Pelo fingido incêndio, que eu sentia.

Como, acordando, Aquiles espantado
Ficou por não saber onde se achava
36 No lugar aos seus olhos devassado,

Quando a mãe que a Quíron o arrebatava,
O transportou a Sciro adormecido,
39 Donde astúcia depois lho retirava:

Assim fiquei ao ser desvanecido
Das pálpebras o sono, semelhante
42 A quem desmaia em cor de horror transido.

Junto a mim eu só vi naquele instante
Virgílio; o sol duas horas já media;
45 Ao mar tinha eu voltado inda o semblante.

— “Não teme!” — estas palavras proferia —
“Sê tranqüilo, o bom porto não mais dista,
48 Alarga o coração, não entibia;

“O Purgatório já daqui se avista.
Onde a rocha é fendida está a entrada,
51 A rocha o cinge e tolhe o aspeto à vista.

“Ao romper da alva ao dia antecipada,
Quando no vale em sono eras jazendo
54 Sobre a ervinha de flores esmaltada,

“Eis mostrou-se uma Dama nos dizendo:
Sou Luzia; pois dorme, vou trazê-lo,
57 Leve assim a jornada lhe fazendo —

“Ficando as nobres almas com Sordelo,
Tomou-te; e como já raiasse o dia
60 Subiu: seguiu seus passos, com desvelo

“Depôs-te; e por seus olhos me dizia
Que próxima ali stava a entrada aberta.
63 Ela se foi e o sono te fugia.” —

Como quem stando em dúvida, se acerta,
Converte o seu temor em confiança,
66 Logo em sendo a verdade descoberta:

Assim me achei mudado. Ele que alcança
Que esforçado já stou, vai por diante
69 Pela altura; o meu passo após avança.

Vês, leitor, que assunto altissonante
Se faz; e não estranhes se mais arte
72 Mor lustre lhe acrescenta de ora avante.

Acercamo-nos, pois, da rocha à parte,
Onde eu antes rotura divisava
75 Como em muralha fenda que reparte;

Ora uma porta e degraus três notava
Para entrar, cada qual de cor dif’rente,
78 E um porteiro que tácito ficava.

E, de mais perto olhando, claramente
No mais alto degrau o vi sentado:
81 Ofuscava-me a face refulgente.

Na destra um gládio eu tinha empunhado,
que tão vivos lampejos refletia,
84 Que em vão fitava os olhos deslumbrado.

— “Parai e respondei-me” — principia —
“Que intentais? Quem vos guia na jornada?
87 Efeitos não temeis dessa ousadia?” —

— “Dama do céu, de tudo isso inteirada”
— Falou Virgílio — “disse-nos: — Avante!
90 Não longe fica a porta desejada.” —

— “Seja ela aos vossos passos luz brilhante”
— Logo beni’no o anjo nos tornava —
93 “Aos degraus nossos vinde por diante.” —

Chegamos: o degrau primeiro estava
De alvo mármor tão terso, tão polido,
96 Que a minha imagem nele se espelhava.

Era escuro o segundo e não brunido,
Tosca pedra o formava e calcinada;
99 Ao longo a via e de través fendido.

De pórfiro o terceiro e carregada
Tinha a cor de vermelho flamejante,
102 Qual sangue, que da veia flui rasgada.

Neste firmava o anjo rutilante
Os pés, ao limiar sentado estando,
105 Que ser me pareceu de um só diamante.

Tirado por Virgílio vou-me alçando
Jubiloso. Ele disse — “Humildemente
108 Requer, que te abra a porta deprecando.” —

Aos sacros pés dobrei devoto a frente;
Misericórdia, vezes três batendo
111 Nos peitos, para abrir pedi fervente.

Da espada a ponta sete PP me havendo
Na testa aberto, disse o anjo: — “Lava
114 Lá dentro estes sinais te arrependendo.” —

Chaves duas tomou quando acabava,
De sob as vestes, onde a cor, atento
117 De terra seca eu cinzas observava.

Uma era de ouro, a outra era de argento.
Primeiro a branca, após a flava aplica
120 À porta: foi completo o meu contento.

— “Se emperrada das duas uma fica
E não dá volta” — disse — “à fechadura,
123 Isto entrada defesa significa.

“Se mais preço um tem, noutra se apura
Mais arte para abrir e mais engenho,
126 Das molas cede-lhe a prisão mais dura.

“Mandou Pedro de quem as chaves tenho
Que em abri-la antes erre que em cerrá-la
129 Aos que a exoram com ardente empenho.” —

Tocando a santa entrada, ainda nos fala:
— “Penetrai; mas, de agora, vos previno,
132 Quem olha para trás pra fora abala.” —

Os portões já se movem do divino
Recinto, e os espigões, rangendo, giram
135 Nos gonzos de metal sonoro e fino:

Quando, vãos de Metelo os esforços, viram
Roubado o erário, com estrondo tanto
138 As portas de Tarpéia não se abriram.

Aos rumores atento, doce canto —
Te Deum laudamus escutar julgava,
141 De conceitos unido ao meigo encanto.

Ouvindo, em mim a sensação calava,
Que a voz bem modulada nos motiva,
Quando com ternos sons de órgão se trava;

145 Que uma voz emudece, outra se esquiva.



1. De Titão antigo etc., a concubina do velho Titão é a aurora. — 5-6. Animal frio etc., talvez a constelação dos Peixes ou do Escorpião. — 23. Onde os seus Ganimede abandonara, quando Júpiter o fez raptar para servir de copeiro aos deuses, no Olimpo. — 34. Aquiles espantado etc., Tétis, mãe de Aquiles, o transportou para a ilha de Sciro, de onde os gregos Ulisses e Diômedes o conduziram à guerra de Tróia. — 56. Luzia, Santa Luzia. — 112. Sete PP, os sete pecados mortais. — 136. Quando vãos de Metelo os esforços etc., as portas do Purgatório se abriram com maior estrondo do que se abriram as portas da rocha Tarpéia, quando, apesar da resistência de Cecílio Metelo, Júlio César as abriu para apossar-se do dinheiro público.

CANTO X



Os dois Poetas sobem ao primeiro compartimento do Purgatório, cuja escarpa é de mármore, no qual estão esculpidos vários espisódios de humildade. Eles os observam e no entanto vêem em sua direção várias almas curvadas sob o peso de grandes pedras. São as almas dos que no mundo foram soberbos.



PASSADO estando o limiar da porta,
Das paixões pelo excesso desusada,
3 Que reta faz supor a estrada torta,

Pelo estrondo senti que era cerrada.
Se atrás volvesse os olhos, qual seria
6 A desculpa da falta perpetrada?

Subíamos por fenda que se abria
Na rocha, a um lado e ao outro serpeando,
9 Qual onda, que ora acerca, ora desvia.

“Aqui ser destro cumpre, acompanhando” —
Disse o Mestre — “o caminho árduo, fragoso,
12 Que as sinuosas voltas vai formando.” —

A passo íamos, pois, tão vagaroso,
Que a lua o crescente reclinado
15 Era já no seu leito de repouso,

Quando aquela estreiteza hemos deixado
Espaços livres alcançando e abertos,
18 Onde o monte pra trás era inclinado;

Eu inanido e ambos nós incertos
Da vereda, em planura enfim paramos,
21 Mais solitária que áridos desertos.

Do precipício a borda calculamos
Distar da oposta, em que o rochedo alteia,
24 Comprimento que em homens três achamos.

Na extensão, que ante mim se patenteia,
Da direita ou da esquerda igual largura
27 Nessa cornija aos olhos se franqueia.

Não déramos um passo na planura,
Quando notei que a escarpa sobranceira,
30 Que ascender não permite a sua altura,

Era alvo mármor, tendo a face inteira
Talhada com primor, que a Policleto
33 Tomara e à natureza a dianteira.

O anjo, que da paz trouxe o decreto,
Tantos séc’los com lágrimas pedido,
36 Que o céu abriu, donde o homem stava exceto,

Ao vivo ali mostrava-se insculpido,
No gesto e no meneio tão suave,
39 Que em pedra não parece estar fingido.

Quem não jurara que profere o Ave,
Pois juntamente figurada estava
42 Quem do supremo amor volvera a chave?

Seu semblante estas vozes expressava
Ecce ancilla tão propriamente,
45 Como na cera imagem, que se grava.

— “Num ponto só não prendas tanto a mente” —
Virgílio me falou, tendo-me ao lado,
48 Aonde o coração bater se sente.

Para mais longe olhei: maravilhado
Após Maria então vi que disposta,
51 Da parte, em que era o Mestre colocado,

Fora outra história em mármore composta.
Ao sábio adiantei-me: de mais perto
54 Aos meus olhos melhor ficara exposta.

O carro com seus bois na rocha aberto
E a Arca santa que conduz, mirava:
57 Lembra aos profanos o castigo certo.

Em coros sete o povo ali cantava:
Do olhar em mim o ouvido dissentia,
60 Pois se um dizia sim, outro negava;

De igual modo na pedra percebia
Ao ar o fumo se elevar do incenso:
63 Da vista o asserto o olfato desmentia.

Da Arca adiante, com fervor imenso,
Dançando humilde via-se o salmista,
66 Mais e menos que um Rei no zelo intenso.

Mícol, do régio paço, em frente, a vista
No Rei fitava, o ato lhe estranhando,
69 Que lhe move desgosto e que a contrista.

Desse lugar depois eu me afastando,
De perto contemplar fui outra história,
72 Que além um pouco, estava branquejando.

Aqui brilhava a preminente glória
Desse famoso Imperador romano,
75 Por quem Gregório obteve alta vitória.

Ao natural tirado era Trajano:
Do freio do corcel mulher tratava;
78 Dizia o pranto sua dor, seu dano.

De cavalheiros tropa se apinhava,
E nas bandeiras a águia de ouro alçada
81 Acima dele aos ventos tremulava.

A infeliz, dos guerreiros rodeada,
Parecia dizer: — “Senhor, vingança!
84 Morto é meu filho e eu gemo atribulada.”

E Trajano tornar: — “Toma esperança
Até que eu volte.” — E a mísera pungida
87 Da dor que, em mãe, a tudo se abalança:

— “Senhor, se não voltares?” — “Deferida
Serás de herdeiro meu.” — “Bem que outro faça
90 Que val’, se a obrigação tens esquecida?” —

E ele: — “Ânimo esforça na desgraça.
Meu dever cumprirei sem mais espera,
93 Justiça o exige, compaixão me enlaça.” —

Quem novas cousas nunca vê, fizera
Visível sobre a pedra esta linguagem:
96 Arte não sobe a tão sublime esfera.

Enquanto me enleava em cada imagem,
Em que há dado aos extremos da humildade
99 De operário a perícia mor vantagem,

— “Eis almas lentamente em quantidade
Acercam-se; a mais alta” — disse o Guia —
102 “Nos pode encaminhar sua bondade.” —

A vista, que em portentos se embebia,
De olhar outros já sôfrega, volvendo,
105 Atentei no que o Mestre me advertia.

Mas, leitor, que esmoreças não pretendo,
Nem que os bons pensamentos te faleçam,
108 Como os pecados pune Deus sabendo.

Nem os martírios nímios te pareçam;
Pensa bem no porvir; pois, em chegando,
111 O grão Juízo, em caso extremo, cessam.

E eu disse: — “O que ora a nós vem caminhando
Não creio sombras ser: o que é portanto?
114 Não sei, a percepção turbada estando.” —

— “Do seu tormento, que te movo espanto
É condição à terra irem curvados:
117 Também a vista duvidou-me um tanto.

“Olhos fita; imagina levantados
Os que vêm dessas pedras oprimidos:
120 Já vês quanto eles são atormentados.”

Cristãos soberbos, míseros, perdidos,
Cegos da alma, que haveis pra trás andado,
123 De tanta confiança possuídos,

Que vermes somos não vos stá provado,
De que surge a celeste borboleta,
126 Que incerta voa ao tribunal sagrado?

Por que do orgulho assim passais a meta,
Se sois insetos no embrião somente,
129 Vermes de formação inda incompleta?

A modo de pilar ver-se é freqüente,
Joelhos, peito unindo, uma figura
132 Cornija ou teto a sustentar ingente.

Da dor mera ficção move tristura
Em quem olha: senti então notando
135 Das almas penitentes a postura.

Mais umas, outras menos, se dobrando
Iam, segundo o fardo, que traziam;
E as que eram mais sofridas, pranteando,

139 Não posso mais! — dizer me pareciam.



32. Policleto, célebre escultor grego. — 34. O anjo, Gabriel. — 42. Quem, etc., a virgem Maria. — 57. Lembra aos profanos o castigo certo, Oza caiu fulminado por ter-se aproximado da Arca, que ameaçava cair (Samuel II-6). — 65-66. Dançando humilde via-se o salmista, Davi dançava precedendo a Arca. — 67. Mícol, esposa de Davi manifestava censura pelo ato humilde do esposo. — 74-75. Desse famoso imperador, Trajano, que, segundo uma lenda, o papa Gregório I conseguiu, com suas preces, voltasse à vida terrena e, batizado, fosse para o Céu. — 124-126. Que vermes somos etc., como do verme nasce a borboleta, assim nós homens outra coisa não somos senão vermes dos quais devem surgir as borboletas dignas de subir ao Céu.

CANTO XI



Virgílio pergunta às almas que purgam o pecado da soberbia qual é o caminho para subir ao segundo compartimento, e uma delas dá a indicação requerida. Umberto Aldobrandeschi dá-se a conhecer e fala com Dante, que, depois, reconhece Oderisi de Gubbio, pintor e gravador. Oderisi dá-lhe notícia de Provenzano Salvani, que está junto com eles.



VÓS, que nos céus estais, ó Padre nosso,
Não circunscrito, mas porque haveis dado
3 Mais aos primeiros seres o amor vosso,

“Vosso nome e poder seja louvado!
Graças à criatura jubilosa
6 Ao saber vosso renda sublimado!

“Do reino vosso a paz venha ditosa!
Que vão de havê-la o empenho nos seria,
9 Se não vier da vossa mão piedosa.

“Como a vós a vontade se humilia
Dos vossos anjos, entoando hosana,
12 Façam assim os homens cada dia!

“A substância nos dai quotidiana
Hoje: sem ela em áspero deserto
15 Se atrasa quem por ir além se afana!

“E como a quem nos faz mal descoberto
Damos perdão, nos perdoai clemente,
18 Indi’nos sendo nós, Senhor, por certo.

“Oh! não deixeis cair a defidente
Virtude nossa em tentação do imigo!
21 Livrai-nos dele, em nos pungir ardente!

“Não mais somos, Senhor, nesse perigo,
Em que precisa esta oração nos seja;
24 Mas não os que hão mister na terra abrigo.” —

Ao céu rogando que ao seu bem proveja
E ao nosso, as almas sob o peso andavam,
27 Como o que oprime a quem sonhando esteja.

Com desigual gravame se arrastavam
Ofegantes no círculo primeiro,
30 E do pecado as névoas expurgavam,

Se em bem nosso com zelo verdadeiro,
Oram, como em seu prol fará no mundo
33 Quem tem no bem querer seu peito useiro?

Ajudemo-las, pois, vestígio imundo
A lavar, por que leves, puras sejam,
36 Do céu se alando ao brilho sem segundo.

“Ah! compaixão, justiça vos consigam
Presto alívio, e possais, o vôo erguendo,
39 Ir até onde os desejos vos instigam!

“Valei-nos a vereda nos dizendo
Mais curta ou a que é menos escarpada,
42 Mais de um caminho a se ascender havendo.

“Ao companheiro meu assaz pesada
É a carne de Adam, que inda o reveste:
45 Por mais que esforce, o afana esta jornada.” —

A voz, que respondeu ao Mestre a este
Dizer, não sei a que alma pertencia
48 Por indício qualquer, que o manifeste:

— “Vinde à direita em nossa companhia
Pela encosta, e vereis o passo estreito,
51 Que uma pessoa viva subiria.

“Se este penedo não tolhesse o jeito,
A cerviz orgulhosa me domando
54 E obrigando a juntar o rosto ao peito,

“Deste homem para a face, atento olhando,
(Não sei quem é) talvez o conhecera,
57 E assim me fora compassivo e brando.

“Toscano fui, ilustre pai tivera.
Guilherme Aldobrandeschi se chamava:
60 O nome seu algum de vós soubera?

“Tanta arrogância a glória me inspirava
Do meu solar e os feitos valorosos,
63 Que a nossa mãe comum não mais pensava,

“Olhos volvendo a todos desdenhosos.
Perdi-me assim; os atos meus em Siena
66 Foram em Campagnatico famosos.

“Chamei-me Umberto; da soberba a pena
A mim não coube só: de igual desgraça
69 Vem a causa que aos meus todos condena.

“Este fardo, que os passos me embaraça
Mereço, por cumprir-se a lei divina:
72 Vivo o não fiz, é justo que ora o faça.” —

Enquanto, ouvindo, a fronte se me inclina,
Uma das almas (não a que falava)
75 Sob o peso se torce, que a amofina.

E viu-me e, conhecendo-me, chamava,
Os olhos seus fitando esbaforida
78 Em mim, que, recurvado a acompanhava.

— “Oderisi não foste” — eu disse — “em vida,
Honra de Agubbio, honra daquela arte
81 Que iluminar Paris ora apelida?” —

— Tornou-me: — “Hoje o pincel (cumpre informar-te)
De Franco de Bolonha mais agrada:
84 A honra é toda sua, minha em parte.

“Por mim não fora em vida proclamada
Esta verdade, quando esta alma ardia
87 Na ambição de primar nessa arte amada.

“Aqui de tal soberba o mal se expia;
Staria alhures; mas a Deus eu pude
90 Mostrar que de pecar me arrependia.

“Quanto a vaidade o peito humano ilude!
Dessa flor como esvai-se a formosura,
93 Se não seguir-se um séc’lo inculto e rude!

Cimabue cuidou ter na pintura
A liça dominado: mas vencido
96 Ficou: a glória Giotto fez-lhe escura.

Assim de estilo na arte cede um Guido,
A palma a outro: agora é bem provável
99 Seja de ambos o mestre já nascido.

“Rumor mundano é como vento instável
Que a direção varia de repente:
102 Conforme o lado, o nome tem mudável.

“De ti que fama ficará manente,
Se da velhice cais no extremo passo,
105 Ou se findas na infância inconsciente,

“De hoje a mil anos, tempo mais escasso,
Da eternidade em face, que um momento
108 Ante a esfera a mais tarda lá no espaço?

“Quem me precede e vai assim tão lento
Na Toscana entre todos foi famoso:
111 Apenas salvo está do esquecimento.

“Em Siena, que há regido poderoso,
Quando perdeu-se a raiva florentina.
114 Soberba então, objeto hoje asqueroso.

“A fama vossa iguala-se à bonina,
Que flore e morre: o sol, por quem nascera
117 Na terra a prostra e a cor cresta à mofina.” —

Respondi-lhe: — “O dizer teu em mim gera
Saudável humildade e o orgulho mata.
120 Esse, que apontas, conta-me quem era.” —

“De Provenzan Salvani” — diz — “se trata:
Aqui stá, porque Siena ele cuidara
123 Ter nas mãos — presunção de alma insensata!

“Caminha assim curvado, e nunca pára
Dês que a vida perdeu eis o castigo
126 De quem tanto à soberba se entregara!” —

— “Se o que demora até final perigo
A penitência” — eu disse — “e errado corre,
129 Subir não pode e aqui não acha abrigo,

“Se uma oração piedosa o não socorre,
Durante prazo igual ao da existência,
132 Como ao martírio Provenzan concorre?” —

— “Quando era” — torna — “no auge da influência,
Sobre a praça de Siena, suplicando,
135 Ter ante o povo humilde continência,

“De um amigo o resgate procurando,
Que era por Carlos em prisão detido,
138 Tremeu angustiado e miserando.

“Não mais: não sou, de obscuro, compreendido,
Mas te há de ser em breve isto explicado
Por filhos dessa terra em que hás nascido. —

142 “Por tão bom feito o ingresso lhe foi dado.”



59. Guilherme Aldobrandeschi, senhor de Grosseto. Quem fala é o filho Umberto, que guerreou contra Pisa. — 79. Oderisi de Gubbio, excelente pintor e miniaturista. — 83. Franco de Bolonha, célebre miniaturista. — 94-96. Giotto e Cimabue, célebres pintores. Giotto, discípulo de Cimabue, superou o mestre na sua arte. — 97-98. Um Guido e outro, Guido Cavalcanti superou a Guido Guinicelli na arte da poesia. — 121. Provenzano Salvani, de Siena, senhor muito poderoso, morto na batalha de Colle em 1269. — 133-138. Quando era etc., para obter a libertação de um amigo prisioneiro de Carlos d’Anjou, ele se humilhou a pedir a esmola aos seus concidadãos.

CANTO XII



Os dois Poetas continuam a viagem. No pavimento do círculo estão pintados vários exemplos de soberbia castigada. Um anjo vem junto dos Poetas e os guia até a escada que sobe ao compartimento sucessivo. Com a asa, depois, apaga da testa de Dante um dos PP.



A PAR, como dois bois, que o jugo unira,
Eu com essa alma opressa e titubeante
3 Ia, enquanto Virgílio permitira.

Eis disse-me: — “Deixando-a, segue avante:
Deve fazer de vela e remos força
6 Quem quer à parca impulso dar constante.” —

A caminhar dispus-me à voz, que esforça,
Erguendo logo o corpo, inda que a mente
9 Na humildade a modéstia acurve e estorça.

Já os pés acelero e facilmente
A Virgílio acompanho: de porfia,
12 Se mostra cada qual mais diligente.

— “À terra olhos inclina” — então dizia —
“Para a jornada aligeirar atenta
15 No solo, onde o meu passo aos teus é guia.”

Assim como na campa se aviventa
A memória dos mortos, insculpindo
18 Imagem, que a existência representa,

Que de saudade os corações ferindo,
À piedade propensos e à ternura,
21 Os vai ao pranto muita vez pungindo:

Assim, com perfeição sublime e pura,
Figuras via sobre aquela estrada,
24 Que sobe, serpeando, pela altura.

Via, a um lado, dos céus precipitada
Das criaturas a mais bela e nobre,
27 Qual raio, pelo espaço arremessada.

A vista, o outro, Briaréu descobre
De projétil celeste transpassado:
30 Gélido a terra desmedido cobre.

Com Marte e Palas stava figurado
Timbreu, em torno ao pai de armas fornidos,
33 Vendo o campo de imigos alastrado.

Nemrod olhos volvia espavoridos,
Junto à feitura imensa, aos companheiros,
36 Que a Sanaar seguiram-no, descridos.

Ó Níobe, com braços verdadeiros
Que dor nos olhos teus aparecia,
39 Os filhos mortos vendo, quais cordeiros!

Saul, a própria espada te extinguia
Sobre a montanha Gelboé — maldita,
42 Orvalho ou chuva ali não mais caía.

Ó louca Aracne, tua face aflita,
De aranha parte entre os destroços stava
45 Da teia, origem da fatal desdita.

Não mais a tua imagem cominava;
Num carro foges, Roboam cruento,
48 À fúria popular, que te assombrava.

Amostrava ainda o duro pavimento
Como fez Alcmeon pagar tão caro
51 À mãe o funestíssimo ornamento.

Mostrava mais como flagício raro
Senaqueribe no templo assassinado
54 Por filhos, que deveram ser-lhe amparo.

Mostrava também Ciro degolado
E Tamíris dizendo acesa em ira
57 — Sede tinhas de sangue, sê saciado! —

A multidão de Assírios que fugira,
Mostrava ao verem de Holoferne a morte,
60 E o castigo que os passos lhes seguira.

Via no pó, nas cinzas Tróia forte:
Ó soberba Ílion, a pedra dura
63 Mostrava a tua lamentável sorte!

Que mestre no pincel ou na escultura
Posturas, sombras tais traçar pudera,
66 Pasmo ao gênio, que atinja a suma altura?

Real ou morte ou vida aos olhos era:
A verdade não viu na própria cena
69 Melhor que eu quando a efígie a olhar stivera.

A fronte entonai, pois, de orgulho plena,
Ó filhos de Eva, os olhos não baixando
72 Ao caminho, onde achais devida pena!

Mais íamos no monte caminhando
E no seu giro o Sol mais avançara
75 Do que eu cuidava, absorto contemplando,

Quando aquele, que sempre me guiara
Desvelado, me disse: — “Alça a cabeça!
78 Não te engolfes! atento sê! repara!

“Olha aquele anjo que caminha à pressa
Ao nosso encontro: acaba a terra sexta
81 Do dia o lavor certo e outra começa.

“Reverência em teu gesto manifesta
Para o anjo à viagem ser propício,
84 Não volta o dia de que pouco resta.” —

Aproveitar do tempo o benefício
Era do Mestre a regra; e, pois, naquela
87 Matéria não lhe achei de obscuro o indício.

Já nos demanda a criatura bela:
Trajava branco, a face resplendia,
90 Qual, tremulando, matutina estrela.

Braços abria e asas estendia,
Dizendo: — “Vinde! que os degraus stão perto:
93 A jornada já fácil se anuncia.” —

Raros escutam essa voz, por certo:
Ó gente humana, para o céu nascida,
96 Por que decaís do vento a um sopro incerto?

Imos à rocha, por degraus partida:
De uma das asas me roçou na fronte,
99 Prometendo-me próspera subida.

Como à direita quem se erguer ao monte,
Donde se avista a igreja que domina
102 A bem regida ao pé de Rubaconte,

Sente que aos pés a ingremidade inclina
Pela escada talhada antes que houvesse
105 Em livros e medidas a rapina:

Adoça-se o pendor assim; pois desce
De um círc’lo a outro a rocha que alterosa
108 A um lado e ao outro augusto passo of’rece.

Subindo em melodia tão donosa
Beati pauperes spiritu escutamos,
111 Que a voz, que o diga é pouco vigorosa

Quão dif’rentes os áditos que entramos,
Dos infernais! Aqui suave canto,
114 Lá gritos de ira ouvindo caminhamos.

Vencendo esses degraus do monte santo
Mais ágil me sentia: lá no plano
117 Fácil nunca a jornada fora tanto.

Eu disse: — “Ó Mestre, de que peso insano
Sinto-me livre, pois no estreito passo,
120 Como de antes agora não afano!” —

— “Quando os PP que inda tens em vivo traço
Sobre a fronte” — tornou-me — “se apagarem,
123 Como não hás de ter mais embaraço,

“Segundo o teu desejo os pés andarem
Sentirás sem fadiga, e até gozando
126 Deleite, para a altura ao caminharem.”

Como o que traz, na praça passeando,
Cousa, que ignora, na cabeça posta,
129 E, por ver sinais de outrem, suspeitando,

À mão pede socorro; ela, em resposta,
Procura, acha, um serviço assim rendendo,
132 A que a vista não pode ser disposta:

Assim, da destra os dedos estendendo,
Conheci que das letras, que o anjo abrira,
Stavam somente seis remanescendo.

136 Sorriu-se o Mestre, que o meu gesto vira.




25-27. Via, a um lado etc., Lúcifer, o anjo que se rebelou contra Deus. — 28. Briareu, gigante que se rebelou contra Júpiter e foi fulminado. — 31. Marte, Palas e Timbreu (Apolo), que dominaram os gigantes rebeldes. — 34-35. Nemrod etc., que na planície de Senaar, começou a construção da torre de Babel. — 37. Níobe, desprezando Latona por ter esta somente dois filhos, quando ela tinha doze, por castigo foram todos mortos por Apolo e Diana. — 40-41. Saul, rei de Israel, derrotado em Gelboé, suicidou-se. — 43-45. Aracne, tendo desafiado Minerva para saber quem melhor tecia, foi por esta transformada em aranha. — 47. Roboam, filho de Salomão, oprimiu o povo de Israel no seu reinado e foi obrigado a fugir em conseqüência de revolta popular. — 50. Alcmeon, matou a própria mãe Erifiles, pois esta, para ganhar um colar de ouro, havia revelado o esconderijo do seu marido Anfiarau aos inimigos. — 53. Senaqueribe, rei dos Assírios, foi morto pelos filhos. — 55-57. Tamíris, rainha dos Massagetas, tendo vencido Ciro, o mandou matar num odre cheio de sangue, dizendo: Sacia-te de sangue, monstro. — 59-60. Holofernes, general assírio, morto por Judite durante o sítio da cidade de Betúlia. — 61-63. Tróia ou Ílion, destruída pelos gregos. — 80. A terra sexta, a hora sexta, meio-dia. — 102. Rubaconte, ponte de Florença.



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