INFERNO ... Cantos I-V ... VI-XI ... XII-XVII ... XVIII-XXIII ... XIV-XXIX ... XXX-XXXIV
PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII
PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII
CANTO VII
Sordello,
ao saber que aquele que abraçou é Virgílio, lhe faz novas e ainda maiores
demonstrações de afeto. O Sol está próximo ao ocaso e ao Purgatório não se pode
subir à noite. Guiados por Sordello, os dois Poetas param num vale, onde
residem os espíritos de personagens que no mundo desfrutaram de grande
consideração e que somente no fim da vida elevaram o seu pensamento a Deus.
DE
doce afeto as mútuas mostras sendo
Por
três ou quatro vezes reiterado
3
— “Quem sois?” — se retraiu Sordel dizendo.
—
“Tinha Otávio os meus ossos sepultado
Já
quando a este monte se elevaram
6
Almas que ao bem havia Deus chamado.
Virgílio
sou: do céu não me afastaram
Pecados;
me faltava a fé somente.” —
9
Do meu Guia estas vozes lhe tornaram.
Como
quem ante si vê de repente
Maravilha:
ora crê, ora duvida,
12
E diz: — É certo ou minha vista mente? —
Assim
essa alma. Dobra a frente erguida
Humildemente,
ao Vate se avizinha
15
E lhe abraça os joelhos comovida.
—
“Ó glória dos Latinos!” — disse asinha —
Que
ergueste a língua nossa a tanta altura!
18
Honra eterna da amada pátria minha!
“De
ver-te o que me dá graça e ventura?
Dize,
se di’no de te ouvir hei sido,
21
De qual círculo vens da estância escura.”
—
“Tenho aqui” — Virgílio diz — “subido,
Do
triste reino os círc’los visitando,
24
Sou do céu por virtude conduzido.
“Não
por fazer, mas de fazer deixando,
Ver
o sol, que desejas, me é vedado:
27
Conheci-o já tarde — ai miserando!
“Lá
embaixo um lugar foi destinado
Não
a martírio, à treva onde há somente
30
Suspiros, não gemer de angustiado.
“Ali
stou eu, no meio da inocente
Grei,
que a morte cruel mordeu, enquanto
33
Da culpa humana inda era dependente.
“Com
aqueles stou eu, em quem seu manto
Três
celestes virtudes não lançaram,
36
Lhes dando à vista o mais suave encanto.
“Mas
sabes se veredas se deparam
Que
ao Purgatório a entrada facilitem?
39
Os indícios nos diz, se te constaram.” —
Tornou:
— “Lugar não há, que almas habitem
Aqui;
na direção vou, que me agrada;
42
Guiarei quanto os passos me permitem.
“Mas
vê: declina o dia; na jornada,
Que
fazeis, caminhar a noite veda:
45
Busquemos sítio a cômoda pousada.
“À
destra e à parte multidão stá queda:
Iremos
até lá, se acaso o queres,
48
Talvez te seja a sua vida leda.” —
E
o Mestre: — “Como? Pelo que proferes,
Impossível
será subir sem dia?
51
Ou a alguém, que o proíba, te referes?” —
Com
seu dedo Sordel linha fazia
No
chão e disse: — “Além ninguém passara
54
Se, ausente o sol, a noite principia.
“Mas
óbice qualquer não deparara
Quem
caminhar, subindo, pretendesse:
57
Para tolhê-lo a noite já bastara.
“Bem
pudera baixar, se lhe aprouvesse,
Pelo
declive em volta da montanha:
60
Enquanto o sol sob o horizonte desce.” —
Torna
Virgílio, então, que ouvindo estranha:
—
“Ao lugar, que nos dizes, pois, nos guia,
63
Onde a demora o júbilo acompanha.” —
Pouco
longe dali notei que havia
Depressão
na montanha, semelhante
66
À que na terra um vale formaria.
—
“Iremos” — disse a sombra — “um pouco avante
Té
onde a encosta encurva, se escavando:
69
De lá voltar vereis a luz brilhante.” —
Entre
a escarpa e o plano se inclinando
Trilha
ao vale conduz obliquamente,
72
O pendor mais que ao meio, se adoçando.
Prata,
alvaiade, grão, ouro fulgente,
Índico
lenho límpido e lustroso,
75
Pura esmeralda, ao lapidar, luzente,
Por
flores e ervas desse val formoso
Se
achariam na cor escurecidos
78
Como cede o mais fraco ao mais forçoso.
Aos
donosos males espargidos
Mil
suaves aromas se ajuntavam,
81
Em peregrino muito reunidos.
Sobre
a relva entre as flores entoavam
Salve
Regina, as almas, que da vista
84
Externa no recinto se ocultavam.
“Do
sol enquanto a luz inda persista” —
O
Mantuano disse, que nos guia,
87
“Ir não queiras à grei que de nós dista.
“Gestos
e vultos seus conheceria
Qualquer
de vós daqui mais claramente
90
Do que, de perto os vendo, o poderia.
“O
que parece, aos outros, eminente.
Da
quebra em seus deveres pesaroso
93
E a geral melodia ouve silente,
“É
Rodolfo que fora poderoso.
Conta
o mal que já tem a Itália morta:
96
Quem lhe dará porvir esperançoso?
“O
que com seu semblante ora o conforta
Governava
esse reino onde a água brota,
99
Que o Molta ao Álbia, o Álbia ao mar transporta.
“É
Otocar: na infância melhor nota
Teve
que o filho, Venceslau barbudo,
102
Na luxúria e preguiça a vida esgota.
“Morrendo,
o que não tem nariz agudo
E
fala a esse outro de benino aspeito,
105
Deixou dos lizes deslustrado o escudo.
“Atentai:
como bate ele no peito!
Vede
aquele que ao ar suspiros lança
108
Da mão fazendo à sua face um leito.
“Sogro
e pai do flagelo são da França;
Cientes
do viver seu vergonhoso,
111
Dor stão sentindo, que ora não descansa.
“Esse
membrudo, que o cantar piedoso
Segue
do que nariz tem desmarcado,
114
Das virtudes no culto foi zeloso.
“Se
o mancebo, ora atrás dele assentado,
Ao
trono sucedera-lhe, subira
117
Valor de um Rei por outro fora herdado.
“Dos
maus herdeiros qual pôs nisso a mira?
Jaime
Fred’rico havendo o reino tido,
120
Nenhum a melhor parte possuíra.
“Rara
vez tem nas ramas ressurgido
Primor
alto da estirpe; assim o ordena
123
Aquele, a quem ser deve o bem pedido.
“Ao
narigudo aplicação tem plena
Meu
dito e a Pedro, que ao seu lado canta:
126
Apúlia com Provença, geme e pena.
“Tanto
ao seu fruto excede em preço a planta,
Quanto,
mais que Beatriz e Margarida,
129
Constança ações do esposo seu decanta.
“Ali
vedes o Rei de simples vida
Sentado
à parte, Henrique de Inglaterra:
132
Teve este em ramos seus melhor saída.
“Mais
abaixo notai sentado em terra
Marquês
Guilherme e para o alto olhando,
Por
quem, sofrendo Alexandria guerra,
136
Montferrat, Canavese estão chorando.” —
4.
Otávio, o imperador Augusto. — 94. Rodolfo, de Habsburgo, imperador de 1273 a
1291. — 96. Quem etc., o imperador Henrique VII, que tentou pôr ordem na
Itália. — 98. Esse reino etc., a Boêmia, onde nasce o rio Moldava (Molta), que
desemboca no Elba (Albia). — 100. Otocar II, adversário de Rodolfo, foi de
melhor índole que seu filho Venceslau. — 103. O que não tem nariz agudo, Filipe
III de França, pai de Filipe o Belo e de Carlos de Valois. — 104. Esse outro,
Henrique I de Navarra, sogro de Filipe o Belo e pai de Joana I. — 109. Do
flagelo da França, Filipe o Belo. — 112. Esse membrudo, Pedro III de Aragão,
que, depois da revolução das Vésperas, conquistou a Sicília. — 113. Ao que
nariz tem desmarcado, Carlos I de Ànjou que, vencendo Manfredo, conquistou a
Sicília. — 115-20. Se o mancebo, Afonso III, primogênito de Pedro de Aragão,
que morreu moço, foi melhor príncipe do que os seus sucessores, Jaime II no
reino de Aragão e Frederico na Sicília. — 126. Apúlia etc., os reinos de
Provença e de Nápoles lamentam a morte de Carlos I, pois são mal governados
pelo seu sucessor Carlos II. — 127-29. O fruto etc., tão inferior é Carlo II de
Anjou a Carlos I, quanto este foi inferior a Pedro III. — 131. Henrique III, da
Inglaterra, o qual teve um bom sucessor na pessoa de Eduardo I. — 134. Marquês
Guilherme, senhor de Monferrato, cuja morte originou uma guerra desastrosa para
os seus súditos.
CANTO
VIII
No
começo da noite dois anjos descem do Céu para expelir a serpe maligna que quer
entrar no vale. Entre as sombras que se aproximam dos Poetas, Dante reconhece
Nino Visconti, de Pisa. Conrado Malaspina pede a Dante notícias de Lunigiana,
sua pátria; Dante responde elogiando a sua família.
ERA
o tempo, em que mais saudade sente
Do
navegante o coração no dia
3
Do adeus a amigos, que relembra ausente;
E
ao novel peregrino amor crucia,
Distante
a voz do campanário ouvindo,
6
Que ao dia a morte, flébil, denuncia.
Não
mais ouvia os olhos dirigindo
Perto
um espírito vi que levantado,
9
Acenava, que ouvissem-no pedindo.
E,
havendo as duas mãos juntas alçado,
Parecia,
olhos fitos no Oriente,
12
A Deus dizer: És todo o meu cuidado!
Te
lucis entoou devotamente
Com
tão suave, tão piedoso canto,
15
Que me enlevava em êxtase a mente.
Com
igual devoção e igual encanto,
Nas
supernas esferas engolfados,
18
Repetiram os outros o hino santo.
Leitor,
tem da alma os olhos afiados
Para
os véus da verdade penetrares:
21
Fácil é, tão sutis são, tão delgados.
A
nobre turba, após os seus cantares,
Calou-se;
então notei que, como à espera,
24
Pálida e humilde a vista erguia aos ares.
E
vi sair descendo, da alta esfera
Anjos
dois, empunhando flamejantes
27
Gládios a que truncada a ponta era.
Verdes
quais folhas novas vicejantes
As
vestes suas são, as agitando
30
As plumas das suas asas viridantes.
Um
acima de nós se colocando,
Baixara
o outro sobre o lado oposto,
33
Desta arte as almas de permeio estando.
A
flava coma via-lhes: seu rosto
Contemplar
impossível me seria:
36
Confunde a vista o lúcido composto.
“Do
sólio ambos descendem de Maria”
Sordelo
diz — “a do vale por amparo,
39
Onde a serpente vai chegar ímpia.”
Por
onde ela viesse estando ignaro
Em
torno olhei e, do terror tomado,
42
Busquei refúgio ao pé do amigo caro.
Sordel
prossegue: — “É de falar chegado
Àqueles
grandes spíritos o instante:
45
Ledos serão de ver-vos ao seu lado.” —
Para
baixar ao val me foi bastante
Três
passos dar: um spírito fitava
48
Perscrutadora vista em meu semblante.
Já
de sombras o ar se carregava;
Mas
aos seus e aos meus olhos embaraço
51
Não era para ver-se o que ali stava.
A
mim vem, eu para ele aperto o passo:
—
“Nino exímio juiz quanto me agrada
54
Ver-te liberto do infernal regaço!”
De
afeto após a mostra reiterada,
Inquiriu:
— “Por longínquas águas quando
57
Chegaste ao pé da altura alcantilada?”
—
“Oh!” — lhe tornei — “esta manhã, passando
Pela
triste mansão: ainda a vida
60
Primeiro gozo e a outra vou buscando.” —
Mal
fora esta resposta proferida,
Nino
e Sordel, de pasmo, recuaram;
63
Como se fora maravilha ouvida.
Ao
Vate este volveu-se; e se escutaram
Vozes
de Nino a outro: — “Vem, Conrado, —
66
De Deus ver o que as leis determinaram!”
—
“Por essa gratidão” — a mim voltado
Disse
— “que ao Ente deves invisível,
69
Cuja ação compreender nos é vedado.
“Te
imploro que, em passando o mar temível,
Digas
à filha minha que suplique
72
Por mim: Deus à inocência é tão sensível!
“Não
creio que em prol meu a mãe se aplique
Depois
que os brancos véus trocou demente:
75
Dor terá infeliz! — que mortifique.
“Se
conhece, por ela, facilmente
Quanto
em mulher de amor fogo perdura
78
Se o caminho falece e o olhar freqüente.
“Não
lhe fará tão bela sepultura
A
víbora com que Milão se ostenta,
81
Como a fizera o galo de Galura.” —
Assim
dizia Nino. Ainda o alenta
O
justo zelo, que traduz no rosto,
84
Que brando ardendo, o ânimo aviventa.
Ávido
os olhos tinha eu no céu posto,
À
parte em que os luzeiros são mais lentos,
87
Qual roda onde o seu eixo está disposto.
E
o Mestre: — “Os olhos ao que tens atentos?” —
Respondi-lhe:
— “Aos três astros luminosos,
90
Que o pólo acendem, célicos portentos.” —
—
“As quatro estrelas” — me tornou — “formosas,
Que
por manhã já vimos, se ocultaram.
93
Aí mesmo estas surgem fulgurosas.” —
Sordel,
quando estas vozes me voaram,
O
tira a si dizendo: — “eis o inimigo!” —
96
Os olhos o seu dedo acompanharam.
Do
val na parte exposta ver consigo
Uma
serpe, que a rastos coleava:
99
Talvez o pomo deu, de Eva perigo.
Entre
as ervas e flores avançava,
A
um lado e a outro a fronte volteando;
102
Lambendo o dorso, a língua dilatava.
Não
pude ver como ao réptil nefando
Os
celestes açores se enviaram;
105
Mas atônito os vi ambos pairando.
O
sussurro que as asas no ar formaram,
Em
sentido, fugiu presto a serpente:
108
Os anjos logo aos postos seus tornaram.
A
sombra, que viera incontinênti
Do
juizo ao chamado enquanto o assalto
111
Durou, me estava olhando atentamente
—
“Tenha o fanal, que te conduz ao alto
No
teu desejo válido alimento!
114
De luz para subir não sejas falto!
“Mas
se houveste” — me diz — “conhecimento
De
Valdimagra ou terra que confina,
117
Declara: eu de poder lá tive aumento.
“Chamado
fui Conrado Malaspina;
Não
o antigo, porém seu descendente:
120
Amor, que tive aos meus aqui se afina.” —
—
“Lá não fui” — respondi-lhe reverente —
“Mas
da Europa em que parte a excelsa fama
123
Dos feitos vossos não tem eco ingente?
“A
glória que o solar vosso proclama,
Honra
o domínio, honra os seus senhores
126
Quem nunca os viu louvores seus aclama.
“Juro,
e tão certo eu veja os esplendores
Do
céu, que a vossa raça guarda intatos
129
Da opulência e bravura altos primores.
“Por
sua índole egrégia, por seus atos,
Enquanto
ao mundo um chefe mau transvia,
132
Só ela segue o bem e o prova em fatos.” —
—
“Vai!” — disse — “Antes que o belo astro do dia
Sete
vezes penetre nesse espaço,
135
Que o Áries cobre na celeste via,
“Tão
boa opinião com fundo traço
Melhor
será na tua fronte impressa
Do
que de outro por voz a cada passo,
139
Se do Sumo Querer ordem não cessa.” —
1.
Era o tempo etc., começava a cair a noite. — 13. Te lucis etc., começo de um
hino da Igreja. — 19-21. Leitor etc., o Poeta adverte que além do sentido
literal o que vai dizer tem um sentido alegórico. — 53. Nino exímio juiz,
Ugolino Visconti, juiz de Galura, na Sardenha. — 65. Conrado, Conrado
Malaspina, marquês de Lunigiana. — 71. À filha minha, Joana, filha de Nino. —
73. A mãe, Beatriz d’Este, viúva de Nino, desposara em segundas núpcias a
Galeazzo Visconti. — 80. A víbora, brasão da família Visconti. — 119. O antigo,
o avô de Conrado Malaspina, do mesmo nome. — 136. Tão boa opinião etc., em 1306
Dante teve boa acolhida nos Castelos dos Malaspina, em Lunigiana.
CANTO IX
Ao
despontar do novo dia Dante adormece e, no sono é transportado por Luzia até a
Porta do Purgatório. Aproximam-se da entrada e aqui um anjo abre-lhes a porta,
depois de ter gravado na testa de Dante sete PP.
JÁ
clareava de Titão antigo
A
concubina as fímbrias do oriente,
3
Deixando os braços do seu doce amigo;
Era-lhe
a fronte de astros refulgente,
Figura
do animal frio formando,
6
Que vibra a cauda contra a humana gente.
No
lugar, em que estávamos, se alçando
Dos
passos seus havia a Noite andado,
9
E o terceiro ia as asas inclinando,
Quando
eu, tendo o que Adam nos há legado,
De
sono sobre a relva fui vencido,
12
Lá onde junto aos quatro era sentado.
Ante-manhã,
na hora, em que gemido
Triste
a andorinha a soluçar começa,
15
Talvez na antiga dor pondo o sentido;
Já
não stando da carne mais opressa
A
mente e livre do pensar terreno,
18
Quase divina por visões pareça,
Pairar
sonhei que via no ar sereno
De
áureas plumas uma águia, que mostrava
21
Querer baixar, das asas pelo aceno.
Estar
eu na montanha imaginava,
Onde
os seus Ganimede abandonara
24
Alado à corte excelsa, que o esperava.
E
eu pensava: talvez esta ave rara,
Caçar
aqui soindo, a nédia preia
27
Fazer noutros lugares desdenhara;
A
traçar giros vários avistei-a:
Eis,
terrível, qual raio, a mim se envia,
30
E lá do fogo à região me alteia.
Esta
águia, então julguei, comigo ardia
Tanto,
que foi o sonho meu quebrado
33
Pelo fingido incêndio, que eu sentia.
Como,
acordando, Aquiles espantado
Ficou
por não saber onde se achava
36
No lugar aos seus olhos devassado,
Quando
a mãe que a Quíron o arrebatava,
O
transportou a Sciro adormecido,
39
Donde astúcia depois lho retirava:
Assim
fiquei ao ser desvanecido
Das
pálpebras o sono, semelhante
42
A quem desmaia em cor de horror transido.
Junto
a mim eu só vi naquele instante
Virgílio;
o sol duas horas já media;
45
Ao mar tinha eu voltado inda o semblante.
—
“Não teme!” — estas palavras proferia —
“Sê
tranqüilo, o bom porto não mais dista,
48
Alarga o coração, não entibia;
“O
Purgatório já daqui se avista.
Onde
a rocha é fendida está a entrada,
51
A rocha o cinge e tolhe o aspeto à vista.
“Ao
romper da alva ao dia antecipada,
Quando
no vale em sono eras jazendo
54
Sobre a ervinha de flores esmaltada,
“Eis
mostrou-se uma Dama nos dizendo:
Sou
Luzia; pois dorme, vou trazê-lo,
57
Leve assim a jornada lhe fazendo —
“Ficando
as nobres almas com Sordelo,
Tomou-te;
e como já raiasse o dia
60
Subiu: seguiu seus passos, com desvelo
“Depôs-te;
e por seus olhos me dizia
Que
próxima ali stava a entrada aberta.
63
Ela se foi e o sono te fugia.” —
Como
quem stando em dúvida, se acerta,
Converte
o seu temor em confiança,
66
Logo em sendo a verdade descoberta:
Assim
me achei mudado. Ele que alcança
Que
esforçado já stou, vai por diante
69
Pela altura; o meu passo após avança.
Vês,
leitor, que assunto altissonante
Se
faz; e não estranhes se mais arte
72
Mor lustre lhe acrescenta de ora avante.
Acercamo-nos,
pois, da rocha à parte,
Onde
eu antes rotura divisava
75
Como em muralha fenda que reparte;
Ora
uma porta e degraus três notava
Para
entrar, cada qual de cor dif’rente,
78
E um porteiro que tácito ficava.
E,
de mais perto olhando, claramente
No
mais alto degrau o vi sentado:
81
Ofuscava-me a face refulgente.
Na
destra um gládio eu tinha empunhado,
que
tão vivos lampejos refletia,
84
Que em vão fitava os olhos deslumbrado.
—
“Parai e respondei-me” — principia —
“Que
intentais? Quem vos guia na jornada?
87
Efeitos não temeis dessa ousadia?” —
—
“Dama do céu, de tudo isso inteirada”
—
Falou Virgílio — “disse-nos: — Avante!
90
Não longe fica a porta desejada.” —
—
“Seja ela aos vossos passos luz brilhante”
—
Logo beni’no o anjo nos tornava —
93
“Aos degraus nossos vinde por diante.” —
Chegamos:
o degrau primeiro estava
De
alvo mármor tão terso, tão polido,
96
Que a minha imagem nele se espelhava.
Era
escuro o segundo e não brunido,
Tosca
pedra o formava e calcinada;
99
Ao longo a via e de través fendido.
De
pórfiro o terceiro e carregada
Tinha
a cor de vermelho flamejante,
102
Qual sangue, que da veia flui rasgada.
Neste
firmava o anjo rutilante
Os
pés, ao limiar sentado estando,
105
Que ser me pareceu de um só diamante.
Tirado
por Virgílio vou-me alçando
Jubiloso.
Ele disse — “Humildemente
108
Requer, que te abra a porta deprecando.” —
Aos
sacros pés dobrei devoto a frente;
Misericórdia,
vezes três batendo
111
Nos peitos, para abrir pedi fervente.
Da
espada a ponta sete PP me havendo
Na
testa aberto, disse o anjo: — “Lava
114
Lá dentro estes sinais te arrependendo.” —
Chaves
duas tomou quando acabava,
De
sob as vestes, onde a cor, atento
117
De terra seca eu cinzas observava.
Uma
era de ouro, a outra era de argento.
Primeiro
a branca, após a flava aplica
120
À porta: foi completo o meu contento.
—
“Se emperrada das duas uma fica
E
não dá volta” — disse — “à fechadura,
123
Isto entrada defesa significa.
“Se
mais preço um tem, noutra se apura
Mais
arte para abrir e mais engenho,
126
Das molas cede-lhe a prisão mais dura.
“Mandou
Pedro de quem as chaves tenho
Que
em abri-la antes erre que em cerrá-la
129
Aos que a exoram com ardente empenho.” —
Tocando
a santa entrada, ainda nos fala:
—
“Penetrai; mas, de agora, vos previno,
132
Quem olha para trás pra fora abala.” —
Os
portões já se movem do divino
Recinto,
e os espigões, rangendo, giram
135
Nos gonzos de metal sonoro e fino:
Quando,
vãos de Metelo os esforços, viram
Roubado
o erário, com estrondo tanto
138
As portas de Tarpéia não se abriram.
Aos
rumores atento, doce canto —
Te
Deum laudamus escutar julgava,
141
De conceitos unido ao meigo encanto.
Ouvindo,
em mim a sensação calava,
Que
a voz bem modulada nos motiva,
Quando
com ternos sons de órgão se trava;
145
Que uma voz emudece, outra se esquiva.
1.
De Titão antigo etc., a concubina do velho Titão é a aurora. — 5-6. Animal frio
etc., talvez a constelação dos Peixes ou do Escorpião. — 23. Onde os seus
Ganimede abandonara, quando Júpiter o fez raptar para servir de copeiro aos
deuses, no Olimpo. — 34. Aquiles espantado etc., Tétis, mãe de Aquiles, o
transportou para a ilha de Sciro, de onde os gregos Ulisses e Diômedes o
conduziram à guerra de Tróia. — 56. Luzia, Santa Luzia. — 112. Sete PP, os sete
pecados mortais. — 136. Quando vãos de Metelo os esforços etc., as portas do
Purgatório se abriram com maior estrondo do que se abriram as portas da rocha
Tarpéia, quando, apesar da resistência de Cecílio Metelo, Júlio César as abriu
para apossar-se do dinheiro público.
CANTO X
Os
dois Poetas sobem ao primeiro compartimento do Purgatório, cuja escarpa é de
mármore, no qual estão esculpidos vários espisódios de humildade. Eles os
observam e no entanto vêem em sua direção várias almas curvadas sob o peso de
grandes pedras. São as almas dos que no mundo foram soberbos.
PASSADO
estando o limiar da porta,
Das
paixões pelo excesso desusada,
3
Que reta faz supor a estrada torta,
Pelo
estrondo senti que era cerrada.
Se
atrás volvesse os olhos, qual seria
6
A desculpa da falta perpetrada?
Subíamos
por fenda que se abria
Na
rocha, a um lado e ao outro serpeando,
9
Qual onda, que ora acerca, ora desvia.
“Aqui
ser destro cumpre, acompanhando” —
Disse
o Mestre — “o caminho árduo, fragoso,
12
Que as sinuosas voltas vai formando.” —
A
passo íamos, pois, tão vagaroso,
Que
a lua o crescente reclinado
15
Era já no seu leito de repouso,
Quando
aquela estreiteza hemos deixado
Espaços
livres alcançando e abertos,
18
Onde o monte pra trás era inclinado;
Eu
inanido e ambos nós incertos
Da
vereda, em planura enfim paramos,
21
Mais solitária que áridos desertos.
Do
precipício a borda calculamos
Distar
da oposta, em que o rochedo alteia,
24
Comprimento que em homens três achamos.
Na
extensão, que ante mim se patenteia,
Da
direita ou da esquerda igual largura
27
Nessa cornija aos olhos se franqueia.
Não
déramos um passo na planura,
Quando
notei que a escarpa sobranceira,
30
Que ascender não permite a sua altura,
Era
alvo mármor, tendo a face inteira
Talhada
com primor, que a Policleto
33
Tomara e à natureza a dianteira.
O
anjo, que da paz trouxe o decreto,
Tantos
séc’los com lágrimas pedido,
36
Que o céu abriu, donde o homem stava exceto,
Ao
vivo ali mostrava-se insculpido,
No
gesto e no meneio tão suave,
39
Que em pedra não parece estar fingido.
Quem
não jurara que profere o Ave,
Pois
juntamente figurada estava
42
Quem do supremo amor volvera a chave?
Seu
semblante estas vozes expressava
Ecce
ancilla tão propriamente,
45
Como na cera imagem, que se grava.
—
“Num ponto só não prendas tanto a mente” —
Virgílio
me falou, tendo-me ao lado,
48
Aonde o coração bater se sente.
Para
mais longe olhei: maravilhado
Após
Maria então vi que disposta,
51
Da parte, em que era o Mestre colocado,
Fora
outra história em mármore composta.
Ao
sábio adiantei-me: de mais perto
54
Aos meus olhos melhor ficara exposta.
O
carro com seus bois na rocha aberto
E
a Arca santa que conduz, mirava:
57
Lembra aos profanos o castigo certo.
Em
coros sete o povo ali cantava:
Do
olhar em mim o ouvido dissentia,
60
Pois se um dizia sim, outro negava;
De
igual modo na pedra percebia
Ao
ar o fumo se elevar do incenso:
63
Da vista o asserto o olfato desmentia.
Da
Arca adiante, com fervor imenso,
Dançando
humilde via-se o salmista,
66
Mais e menos que um Rei no zelo intenso.
Mícol,
do régio paço, em frente, a vista
No
Rei fitava, o ato lhe estranhando,
69
Que lhe move desgosto e que a contrista.
Desse
lugar depois eu me afastando,
De
perto contemplar fui outra história,
72
Que além um pouco, estava branquejando.
Aqui
brilhava a preminente glória
Desse
famoso Imperador romano,
75
Por quem Gregório obteve alta vitória.
Ao
natural tirado era Trajano:
Do
freio do corcel mulher tratava;
78
Dizia o pranto sua dor, seu dano.
De
cavalheiros tropa se apinhava,
E
nas bandeiras a águia de ouro alçada
81
Acima dele aos ventos tremulava.
A
infeliz, dos guerreiros rodeada,
Parecia
dizer: — “Senhor, vingança!
84
Morto é meu filho e eu gemo atribulada.”
E
Trajano tornar: — “Toma esperança
Até
que eu volte.” — E a mísera pungida
87
Da dor que, em mãe, a tudo se abalança:
—
“Senhor, se não voltares?” — “Deferida
Serás
de herdeiro meu.” — “Bem que outro faça
90
Que val’, se a obrigação tens esquecida?” —
E
ele: — “Ânimo esforça na desgraça.
Meu
dever cumprirei sem mais espera,
93
Justiça o exige, compaixão me enlaça.” —
Quem
novas cousas nunca vê, fizera
Visível
sobre a pedra esta linguagem:
96
Arte não sobe a tão sublime esfera.
Enquanto
me enleava em cada imagem,
Em
que há dado aos extremos da humildade
99
De operário a perícia mor vantagem,
—
“Eis almas lentamente em quantidade
Acercam-se;
a mais alta” — disse o Guia —
102
“Nos pode encaminhar sua bondade.” —
A
vista, que em portentos se embebia,
De
olhar outros já sôfrega, volvendo,
105
Atentei no que o Mestre me advertia.
Mas,
leitor, que esmoreças não pretendo,
Nem
que os bons pensamentos te faleçam,
108
Como os pecados pune Deus sabendo.
Nem
os martírios nímios te pareçam;
Pensa
bem no porvir; pois, em chegando,
111
O grão Juízo, em caso extremo, cessam.
E
eu disse: — “O que ora a nós vem caminhando
Não
creio sombras ser: o que é portanto?
114
Não sei, a percepção turbada estando.” —
—
“Do seu tormento, que te movo espanto
É
condição à terra irem curvados:
117
Também a vista duvidou-me um tanto.
“Olhos
fita; imagina levantados
Os
que vêm dessas pedras oprimidos:
120
Já vês quanto eles são atormentados.”
Cristãos
soberbos, míseros, perdidos,
Cegos
da alma, que haveis pra trás andado,
123
De tanta confiança possuídos,
Que
vermes somos não vos stá provado,
De
que surge a celeste borboleta,
126
Que incerta voa ao tribunal sagrado?
Por
que do orgulho assim passais a meta,
Se
sois insetos no embrião somente,
129
Vermes de formação inda incompleta?
A
modo de pilar ver-se é freqüente,
Joelhos,
peito unindo, uma figura
132
Cornija ou teto a sustentar ingente.
Da
dor mera ficção move tristura
Em
quem olha: senti então notando
135
Das almas penitentes a postura.
Mais
umas, outras menos, se dobrando
Iam,
segundo o fardo, que traziam;
E
as que eram mais sofridas, pranteando,
139
Não posso mais! — dizer me pareciam.
32.
Policleto, célebre escultor grego. — 34. O anjo, Gabriel. — 42. Quem, etc., a
virgem Maria. — 57. Lembra aos profanos o castigo certo, Oza caiu fulminado por
ter-se aproximado da Arca, que ameaçava cair (Samuel II-6). — 65-66. Dançando
humilde via-se o salmista, Davi dançava precedendo a Arca. — 67. Mícol, esposa
de Davi manifestava censura pelo ato humilde do esposo. — 74-75. Desse famoso
imperador, Trajano, que, segundo uma lenda, o papa Gregório I conseguiu, com
suas preces, voltasse à vida terrena e, batizado, fosse para o Céu. — 124-126.
Que vermes somos etc., como do verme nasce a borboleta, assim nós homens outra
coisa não somos senão vermes dos quais devem surgir as borboletas dignas de
subir ao Céu.
CANTO XI
Virgílio
pergunta às almas que purgam o pecado da soberbia qual é o caminho para subir
ao segundo compartimento, e uma delas dá a indicação requerida. Umberto
Aldobrandeschi dá-se a conhecer e fala com Dante, que, depois, reconhece
Oderisi de Gubbio, pintor e gravador. Oderisi dá-lhe notícia de Provenzano
Salvani, que está junto com eles.
VÓS,
que nos céus estais, ó Padre nosso,
Não
circunscrito, mas porque haveis dado
3
Mais aos primeiros seres o amor vosso,
“Vosso
nome e poder seja louvado!
Graças
à criatura jubilosa
6
Ao saber vosso renda sublimado!
“Do
reino vosso a paz venha ditosa!
Que
vão de havê-la o empenho nos seria,
9
Se não vier da vossa mão piedosa.
“Como
a vós a vontade se humilia
Dos
vossos anjos, entoando hosana,
12
Façam assim os homens cada dia!
“A
substância nos dai quotidiana
Hoje:
sem ela em áspero deserto
15
Se atrasa quem por ir além se afana!
“E
como a quem nos faz mal descoberto
Damos
perdão, nos perdoai clemente,
18
Indi’nos sendo nós, Senhor, por certo.
“Oh!
não deixeis cair a defidente
Virtude
nossa em tentação do imigo!
21
Livrai-nos dele, em nos pungir ardente!
“Não
mais somos, Senhor, nesse perigo,
Em
que precisa esta oração nos seja;
24
Mas não os que hão mister na terra abrigo.” —
Ao
céu rogando que ao seu bem proveja
E
ao nosso, as almas sob o peso andavam,
27
Como o que oprime a quem sonhando esteja.
Com
desigual gravame se arrastavam
Ofegantes
no círculo primeiro,
30
E do pecado as névoas expurgavam,
Se
em bem nosso com zelo verdadeiro,
Oram,
como em seu prol fará no mundo
33
Quem tem no bem querer seu peito useiro?
Ajudemo-las,
pois, vestígio imundo
A
lavar, por que leves, puras sejam,
36
Do céu se alando ao brilho sem segundo.
“Ah!
compaixão, justiça vos consigam
Presto
alívio, e possais, o vôo erguendo,
39
Ir até onde os desejos vos instigam!
“Valei-nos
a vereda nos dizendo
Mais
curta ou a que é menos escarpada,
42
Mais de um caminho a se ascender havendo.
“Ao
companheiro meu assaz pesada
É
a carne de Adam, que inda o reveste:
45
Por mais que esforce, o afana esta jornada.” —
A
voz, que respondeu ao Mestre a este
Dizer,
não sei a que alma pertencia
48
Por indício qualquer, que o manifeste:
—
“Vinde à direita em nossa companhia
Pela
encosta, e vereis o passo estreito,
51
Que uma pessoa viva subiria.
“Se
este penedo não tolhesse o jeito,
A
cerviz orgulhosa me domando
54
E obrigando a juntar o rosto ao peito,
“Deste
homem para a face, atento olhando,
(Não
sei quem é) talvez o conhecera,
57
E assim me fora compassivo e brando.
“Toscano
fui, ilustre pai tivera.
Guilherme
Aldobrandeschi se chamava:
60
O nome seu algum de vós soubera?
“Tanta
arrogância a glória me inspirava
Do
meu solar e os feitos valorosos,
63
Que a nossa mãe comum não mais pensava,
“Olhos
volvendo a todos desdenhosos.
Perdi-me
assim; os atos meus em Siena
66
Foram em Campagnatico famosos.
“Chamei-me
Umberto; da soberba a pena
A
mim não coube só: de igual desgraça
69
Vem a causa que aos meus todos condena.
“Este
fardo, que os passos me embaraça
Mereço,
por cumprir-se a lei divina:
72
Vivo o não fiz, é justo que ora o faça.” —
Enquanto,
ouvindo, a fronte se me inclina,
Uma
das almas (não a que falava)
75
Sob o peso se torce, que a amofina.
E
viu-me e, conhecendo-me, chamava,
Os
olhos seus fitando esbaforida
78
Em mim, que, recurvado a acompanhava.
—
“Oderisi não foste” — eu disse — “em vida,
Honra
de Agubbio, honra daquela arte
81
Que iluminar Paris ora apelida?” —
—
Tornou-me: — “Hoje o pincel (cumpre informar-te)
De
Franco de Bolonha mais agrada:
84
A honra é toda sua, minha em parte.
“Por
mim não fora em vida proclamada
Esta
verdade, quando esta alma ardia
87
Na ambição de primar nessa arte amada.
“Aqui
de tal soberba o mal se expia;
Staria
alhures; mas a Deus eu pude
90
Mostrar que de pecar me arrependia.
“Quanto
a vaidade o peito humano ilude!
Dessa
flor como esvai-se a formosura,
93
Se não seguir-se um séc’lo inculto e rude!
Cimabue
cuidou ter na pintura
A
liça dominado: mas vencido
96
Ficou: a glória Giotto fez-lhe escura.
Assim
de estilo na arte cede um Guido,
A
palma a outro: agora é bem provável
99
Seja de ambos o mestre já nascido.
“Rumor
mundano é como vento instável
Que
a direção varia de repente:
102
Conforme o lado, o nome tem mudável.
“De
ti que fama ficará manente,
Se
da velhice cais no extremo passo,
105
Ou se findas na infância inconsciente,
“De
hoje a mil anos, tempo mais escasso,
Da
eternidade em face, que um momento
108
Ante a esfera a mais tarda lá no espaço?
“Quem
me precede e vai assim tão lento
Na
Toscana entre todos foi famoso:
111
Apenas salvo está do esquecimento.
“Em
Siena, que há regido poderoso,
Quando
perdeu-se a raiva florentina.
114
Soberba então, objeto hoje asqueroso.
“A
fama vossa iguala-se à bonina,
Que
flore e morre: o sol, por quem nascera
117
Na terra a prostra e a cor cresta à mofina.” —
Respondi-lhe:
— “O dizer teu em mim gera
Saudável
humildade e o orgulho mata.
120
Esse, que apontas, conta-me quem era.” —
“De
Provenzan Salvani” — diz — “se trata:
Aqui
stá, porque Siena ele cuidara
123
Ter nas mãos — presunção de alma insensata!
“Caminha
assim curvado, e nunca pára
Dês
que a vida perdeu eis o castigo
126
De quem tanto à soberba se entregara!” —
—
“Se o que demora até final perigo
A
penitência” — eu disse — “e errado corre,
129
Subir não pode e aqui não acha abrigo,
“Se
uma oração piedosa o não socorre,
Durante
prazo igual ao da existência,
132
Como ao martírio Provenzan concorre?” —
—
“Quando era” — torna — “no auge da influência,
Sobre
a praça de Siena, suplicando,
135
Ter ante o povo humilde continência,
“De
um amigo o resgate procurando,
Que
era por Carlos em prisão detido,
138
Tremeu angustiado e miserando.
“Não
mais: não sou, de obscuro, compreendido,
Mas
te há de ser em breve isto explicado
Por
filhos dessa terra em que hás nascido. —
142
“Por tão bom feito o ingresso lhe foi dado.”
59.
Guilherme Aldobrandeschi, senhor de Grosseto. Quem fala é o filho Umberto, que
guerreou contra Pisa. — 79. Oderisi de Gubbio, excelente pintor e miniaturista.
— 83. Franco de Bolonha, célebre miniaturista. — 94-96. Giotto e Cimabue,
célebres pintores. Giotto, discípulo de Cimabue, superou o mestre na sua arte.
— 97-98. Um Guido e outro, Guido Cavalcanti superou a Guido Guinicelli na arte
da poesia. — 121. Provenzano Salvani, de Siena, senhor muito poderoso, morto na
batalha de Colle em 1269. — 133-138. Quando era etc., para obter a libertação
de um amigo prisioneiro de Carlos d’Anjou, ele se humilhou a pedir a esmola aos
seus concidadãos.
CANTO XII
Os
dois Poetas continuam a viagem. No pavimento do círculo estão pintados vários
exemplos de soberbia castigada. Um anjo vem junto dos Poetas e os guia até a
escada que sobe ao compartimento sucessivo. Com a asa, depois, apaga da testa
de Dante um dos PP.
A
PAR, como dois bois, que o jugo unira,
Eu
com essa alma opressa e titubeante
3
Ia, enquanto Virgílio permitira.
Eis
disse-me: — “Deixando-a, segue avante:
Deve
fazer de vela e remos força
6
Quem quer à parca impulso dar constante.” —
A
caminhar dispus-me à voz, que esforça,
Erguendo
logo o corpo, inda que a mente
9
Na humildade a modéstia acurve e estorça.
Já
os pés acelero e facilmente
A
Virgílio acompanho: de porfia,
12
Se mostra cada qual mais diligente.
—
“À terra olhos inclina” — então dizia —
“Para
a jornada aligeirar atenta
15
No solo, onde o meu passo aos teus é guia.”
Assim
como na campa se aviventa
A
memória dos mortos, insculpindo
18
Imagem, que a existência representa,
Que
de saudade os corações ferindo,
À
piedade propensos e à ternura,
21
Os vai ao pranto muita vez pungindo:
Assim,
com perfeição sublime e pura,
Figuras
via sobre aquela estrada,
24
Que sobe, serpeando, pela altura.
Via,
a um lado, dos céus precipitada
Das
criaturas a mais bela e nobre,
27
Qual raio, pelo espaço arremessada.
A
vista, o outro, Briaréu descobre
De
projétil celeste transpassado:
30
Gélido a terra desmedido cobre.
Com
Marte e Palas stava figurado
Timbreu,
em torno ao pai de armas fornidos,
33
Vendo o campo de imigos alastrado.
Nemrod
olhos volvia espavoridos,
Junto
à feitura imensa, aos companheiros,
36
Que a Sanaar seguiram-no, descridos.
Ó
Níobe, com braços verdadeiros
Que
dor nos olhos teus aparecia,
39
Os filhos mortos vendo, quais cordeiros!
Saul,
a própria espada te extinguia
Sobre
a montanha Gelboé — maldita,
42
Orvalho ou chuva ali não mais caía.
Ó
louca Aracne, tua face aflita,
De
aranha parte entre os destroços stava
45
Da teia, origem da fatal desdita.
Não
mais a tua imagem cominava;
Num
carro foges, Roboam cruento,
48
À fúria popular, que te assombrava.
Amostrava
ainda o duro pavimento
Como
fez Alcmeon pagar tão caro
51
À mãe o funestíssimo ornamento.
Mostrava
mais como flagício raro
Senaqueribe
no templo assassinado
54
Por filhos, que deveram ser-lhe amparo.
Mostrava
também Ciro degolado
E
Tamíris dizendo acesa em ira
57
— Sede tinhas de sangue, sê saciado! —
A
multidão de Assírios que fugira,
Mostrava
ao verem de Holoferne a morte,
60
E o castigo que os passos lhes seguira.
Via
no pó, nas cinzas Tróia forte:
Ó
soberba Ílion, a pedra dura
63
Mostrava a tua lamentável sorte!
Que
mestre no pincel ou na escultura
Posturas,
sombras tais traçar pudera,
66
Pasmo ao gênio, que atinja a suma altura?
Real
ou morte ou vida aos olhos era:
A
verdade não viu na própria cena
69
Melhor que eu quando a efígie a olhar stivera.
A
fronte entonai, pois, de orgulho plena,
Ó
filhos de Eva, os olhos não baixando
72
Ao caminho, onde achais devida pena!
Mais
íamos no monte caminhando
E
no seu giro o Sol mais avançara
75
Do que eu cuidava, absorto contemplando,
Quando
aquele, que sempre me guiara
Desvelado,
me disse: — “Alça a cabeça!
78
Não te engolfes! atento sê! repara!
“Olha
aquele anjo que caminha à pressa
Ao
nosso encontro: acaba a terra sexta
81
Do dia o lavor certo e outra começa.
“Reverência
em teu gesto manifesta
Para
o anjo à viagem ser propício,
84
Não volta o dia de que pouco resta.” —
Aproveitar
do tempo o benefício
Era
do Mestre a regra; e, pois, naquela
87
Matéria não lhe achei de obscuro o indício.
Já
nos demanda a criatura bela:
Trajava
branco, a face resplendia,
90
Qual, tremulando, matutina estrela.
Braços
abria e asas estendia,
Dizendo:
— “Vinde! que os degraus stão perto:
93
A jornada já fácil se anuncia.” —
Raros
escutam essa voz, por certo:
Ó
gente humana, para o céu nascida,
96
Por que decaís do vento a um sopro incerto?
Imos
à rocha, por degraus partida:
De
uma das asas me roçou na fronte,
99
Prometendo-me próspera subida.
Como
à direita quem se erguer ao monte,
Donde
se avista a igreja que domina
102
A bem regida ao pé de Rubaconte,
Sente
que aos pés a ingremidade inclina
Pela
escada talhada antes que houvesse
105
Em livros e medidas a rapina:
Adoça-se
o pendor assim; pois desce
De
um círc’lo a outro a rocha que alterosa
108
A um lado e ao outro augusto passo of’rece.
Subindo
em melodia tão donosa
Beati
pauperes spiritu escutamos,
111
Que a voz, que o diga é pouco vigorosa
Quão
dif’rentes os áditos que entramos,
Dos
infernais! Aqui suave canto,
114
Lá gritos de ira ouvindo caminhamos.
Vencendo
esses degraus do monte santo
Mais
ágil me sentia: lá no plano
117
Fácil nunca a jornada fora tanto.
Eu
disse: — “Ó Mestre, de que peso insano
Sinto-me
livre, pois no estreito passo,
120
Como de antes agora não afano!” —
—
“Quando os PP que inda tens em vivo traço
Sobre
a fronte” — tornou-me — “se apagarem,
123
Como não hás de ter mais embaraço,
“Segundo
o teu desejo os pés andarem
Sentirás
sem fadiga, e até gozando
126
Deleite, para a altura ao caminharem.”
Como
o que traz, na praça passeando,
Cousa,
que ignora, na cabeça posta,
129
E, por ver sinais de outrem, suspeitando,
À
mão pede socorro; ela, em resposta,
Procura,
acha, um serviço assim rendendo,
132
A que a vista não pode ser disposta:
Assim,
da destra os dedos estendendo,
Conheci
que das letras, que o anjo abrira,
Stavam
somente seis remanescendo.
136
Sorriu-se o Mestre, que o meu gesto vira.
25-27.
Via, a um lado etc., Lúcifer, o anjo que se rebelou contra Deus. — 28. Briareu,
gigante que se rebelou contra Júpiter e foi fulminado. — 31. Marte, Palas e
Timbreu (Apolo), que dominaram os gigantes rebeldes. — 34-35. Nemrod etc., que
na planície de Senaar, começou a construção da torre de Babel. — 37. Níobe,
desprezando Latona por ter esta somente dois filhos, quando ela tinha doze, por
castigo foram todos mortos por Apolo e Diana. — 40-41. Saul, rei de Israel,
derrotado em Gelboé, suicidou-se. — 43-45. Aracne, tendo desafiado Minerva para
saber quem melhor tecia, foi por esta transformada em aranha. — 47. Roboam,
filho de Salomão, oprimiu o povo de Israel no seu reinado e foi obrigado a
fugir em conseqüência de revolta popular. — 50. Alcmeon, matou a própria mãe
Erifiles, pois esta, para ganhar um colar de ouro, havia revelado o esconderijo
do seu marido Anfiarau aos inimigos. — 53. Senaqueribe, rei dos Assírios, foi
morto pelos filhos. — 55-57. Tamíris, rainha dos Massagetas, tendo vencido
Ciro, o mandou matar num odre cheio de sangue, dizendo: Sacia-te de sangue,
monstro. — 59-60. Holofernes, general assírio, morto por Judite durante o sítio
da cidade de Betúlia. — 61-63. Tróia ou Ílion, destruída pelos gregos. — 80. A
terra sexta, a hora sexta, meio-dia. — 102. Rubaconte, ponte de Florença.
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