INFERNO ... Cantos I-V ... VI-XI ... XII-XVII ... XVIII-XXIII ... XIV-XXIX ... XXX-XXXIV
PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII
PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII
CANTO XIX
Dante
fala à Águia externando uma sua antiga dúvida se alguém possa salvar-se não
tendo conhecimento da lei de Cristo. Respondendo, a Águia aproveita a ocasião
para repreender os malvados reis cristãos do seu tempo que nunca obterão a
graça de Deus.
DE
asas pandas formosa se ostentava
Essa
imagem, que enlevos de alegria
3
Nas almas enlaçadas excitava,
E
rubi cada qual me parecia,
Em
que raio de sol, fúlgido ardendo,
6
Os lumes nos meus olhos refrangia.
O
que eu agora descrever pretendo
Voz
não contou, nem pena há referido,
9
Nem criou fantasia encarecendo.
O
bico da Águia vi falar, e o ouvido
Eu
e meu nas palavras distinguia,
12
Mas nós e nosso estava no sentido.
—
“Porque fui justo e pio” — assim dizia —
“Exaltado
me vejo a tanta glória,
15
Que excede a quanto o anelo aspiraria.
“De
mim deixei na terra tal memória,
Que
apregoam-na os homens pervertidos,
18
Sem exemplos seguir, que narra a história.” —
Como
em pira dão lenhos incendidos
Um
só calor, aqueles mil amores
21
Da imagem stavam num falar contidos.
Então
lhes disse: “Ó vós, perpétuas flores
Do
júbilo eternal, que num perfume
24
Sentir fazeis multíplices olores,
“Esta
fome fartai, que me consome,
Há
largo tempo, na terrestre vida,
27
Onde alimento nunca achar presume.
“Se
do céu noutro reino é refletida
A
divina Justiça em claro espelho,
30
Sei que sem véus no vosso é percebida.
“Sabeis
que, atento, a ouvir-vos me aparelho;
Sabeis
também que, nunca saciado,
33
Ardo em desejo que se fez já velho.” —
Qual
falcão, do capelo desvendado,
Que
a fronte move, as asas exercita
36
E se apavona ledo e alvoroçado,
Tal
vi a insígnia, que essa grei bendita,
Louvor
da graça divinal, formara,
39
Com hinos próprios da mansão que habita.
Depois
dizia: — “Aquele, que traçara
Com
seu compasso o mundo e no começo
42
De ocultas, claras cousas o dotara,
“Não
pôde tanto seu poder impresso
No
universo deixar, que o Eterno Verbo
45
A criação não teve infindo excesso.
“Prova-o
bem quem primeiro foi soberbo;
Pois,
sendo ele perfeita criatura,
48
Não esperando a luz, caiu acerbo.
“Todo
ente, pois, somenos em natura
Conter
o Bem sem fim não circunscrito
51
Não pode e em si guarda a mensura.
“Nossa
vista, de alcance tão finito,
Posto
seja um dos raios dessa Mente,
54
Que as cousas todas enche no infinito,
“Não
é, por natureza, tão potente,
Que
não discirna a sua Causa Eterna,
57
Do que ela é na verdade diferente.
“Penetra
na justiça sempiterna
A
vista concedida ao vosso mundo,
60
Bem como o olhar, que pelo mar se interna:
“Se
junto ao litoral lhe enxerga o fundo,
No
pélago o não vê: certo é que existe,
63
Mas encoberto está por ser profundo.
“Se
do Lume não vem, que só persiste
Sempre
sereno, a luz torna-se em treva,
66
Ou da carne é veneno, ou sombra triste.
“Já
compreendes que o véu romper se deva,
Que
a Divina Justiça te escondia,
69
E a tão freqüentes dúvidas te leva.
“Junto
ao Indo — tua mente assim dizia —
Um
varão vem á luz: de Cristo o nome
72
Nem por voz, nem por letras conhecia.
“Os
feitos e desejos são desse home’
Bons
no quanto julgar à razão cabe;
75
Em pecar ditos e atos não consome.
“Quando
sem fé e sem batismo acabe,
Há
justiça em ser ele condenado?
78
Pode ter culpa quem não crê, não sabe?
“Mas
tu quem és, que, em tribunal sentado,
Julgas,
de léguas em milhões distante,
81
Se mal vês o que a um palmo é colocado?
“Em
duvidar, por certo, iria avante
Quem
assim sutilezas apurara,
84
Sem a luz da Escritura triunfante.
“Terrenos
vermes! raça estulta, ignara!
A
primeira Vontade, por si boa,
87
De si, Supremo Bem, se não separa.
“Justo
é somente o que com ela soa,
A
si nenhum criado bem a tira,
90
Todo o bem, radiando, ela afeiçoa.” —
Como
a cegonha, que o seu ninho gira,
Os
filhotes já tendo apascentado,
93
Enquanto cada qual, farto, a remira,
Assim,
os olhos quando eu tinha alçado
Fez
o pássaro santo; e asas movia,
96
Por múltiplas vontades sustentado.
Volteando
cantou; depois dizia:
“As
notas não comprendes do meu canto,
99
Como os mortais de Deus sabedoria.” —
As
flamas quando já do Esp’rito Santo
Quedaram
nessa imagem, que alcançara
102
Aos Romanos do mundo temor tanto,
Prosseguiu:
— “Este reino não depara
Jamais
quem não acompanhou a Cristo
105
Nem antes, nem depois que à Cruz se alçara.
“Dizem
muitos em grita — Cristo! Cristo!
Menos
perto, em juízo, do que o infido
108
Lhe hão de ser que jamais conheceu Cristo.
“Há
de os danar o Etíope descrido,
Quando
em grei rica e pobre eternamente
111
For o gênero humano repartido.
“Dos
reis cristãos o que dirão em frente
Os
Persas, lendo no volume aberto,
114
Onde tanto flagício está patente?
“Ali
hão de se ver entre os de Alberto
Os
que serão em breve registados:
117
De Praga o reino tornarão deserto.
Se
hão de ver sobre o Sena acumulados
Os
do Rei, que a moeda falsifica,
120
Da fera morto aos dentes afiados.
Se
há de ver a soberba, atroce, inica
Quem
me demência o Escocês e o Bretão lança:
123
Nenhum nos seus confins contente fica.
“E
se há de ver quanto em luxúria avança
O
Rei de Espanha e o que a Boêmia rege,
126
Que mostra ao seu dever tanta esquivança.
“Ninguém
ao Coxo de Sião inveje:
Com
I sua bondade se assinala,
129
Com M o que em contrário ama e protege
“Se
há de ver que a avareza à ignávia iguala
No
Rei da ilha, em que morreu Anquise,
132
E donde o fogo, a trovejar, se exala.
“Porque
do seu valor mal se ajuíze,
Em
cifra a história sua é resumida,
135
Que muito em pouco espaço localize,
“Será
patente a vergonhosa vida
Do
tio e desse irmão, que hão desonrado
138
Dois cetros e a ascendência enobrecida.
“O
Rei de Portugal será notado
E
o Rei de Noruega e mais aquele,
141
Que de Veneza os cunhos tem falsado.
“Ditosa
Hungria! que de si repele
O
jugo da opressão! Feliz Navarra,
144
Quando em seus montes que defensa vele!
“E
creiam todos que já d’isto em arra
Nicósia
e Famagusta se lamentam,
Bramindo
de uma fera sob a garra:
148
Os exemplos dos mais não o escarmentam.” —
28.
Noutro reino, em outra ordem de bem-aventurados. — 34. Qual falcão de capelo
desvendado, libertado pelo caçador que lhe tira a venda. — 46. Quem primeiro
foi soberbo, Lúcifer. — 102. Aos Romanos do mundo temor tanto etc., a águia era
a insígnia de Roma. — 110-11. Quando em grei rica e pobre etc., quando os
justos e os pecadores serão divididos eternamente em duas partes, uma delas
rica de todos os bens e a outra pobre e danada. — 115. Alberto I, de Áustria,
que em 1304 devastou a Boêmia. — 119-120. Rei que a moeda falsifica etc.,
Filipe o Belo, que falsificou o dinheiro para pagar os mercenários, morreu em
1314 por efeito de uma queda de cavalo, numa caçada. — 122. O Escocês e o
Bretão etc., os reis Roberto da Escócia e Eduardo da Inglaterra, em guerra
entre si. — 125. O rei da Espanha, Fernando IV; e o que a Boêmia rege,
Venceslau IV. — 127-129. O coxo de Sião etc., Carlos II de Anjou, rei de Apúlia
e de Jerusalém, será marcado no livro da justiça divina com I pela sua bondade
e com 1000 (M) pelas suas malvadezas. — 131. O rei da ilha em que morreu
Anquise, Frederico II de Aragão, rei da Sicília. — 137-136. Do tio, Jaime, rei
de Maiorca e Minorca; desse irmão, Jaime II, rei de Aragão. — 139. O rei de
Portugal, D. Diniz, o lavrador. — 140-141. O rei de Noruega, Acon VII; e mais
aquele etc., o rei de Ragusa, na Dalmácia, que falsificou a moeda de Veneza. —
143. Feliz Navarra etc., o Poeta faz votos para que a Navarra se defenda contra
o opressão dos reis franceses para não cair na opressão como a ilha de Chipre
(Nicósia e Famagosta são cidades dessa ilha), que está sendo tiranizada por Henrique
II.
CANTO XX
A
Águia louva alguns reis antigos que foram justos e virtuosos. Depois solve a
Dante uma dúvida, como possam estar no Céu alguns espíritos que, na sua
opinião, quando em vida não tinham tido fé cristã.
QUANDO
esse astro, que a todos alumia
Deste
hemisfério nosso já descende
3
E se consome em toda parte o dia,
O
céu, que dele só de antes se acende,
Cintilante
se mostra de repente
6
Por mil luzeiros, em que um só resplende.
Do
céu surgiu-me essa mudança à mente
Depois
que o santo pássaro calou-se,
9
Dos reis, no mundo, insígnia refulgente;
Pois
desses vivos lumes ateou-se
Inda
mais o clarão, hino cantando,
12
Que na memória instável apagou-se.
Ó
doce amor! num riso te velando,
Quanto
indicas arder nos esplendores,
15
Que estão santo pensar só respirando!.
Quando
as gemas sublimes nos fulgores,
De
que o sexto planeta se adornava
18
Findaram seus angélicos dulçores,
De
rio o murmurar ouvir julgava,
Que,
em claras espadanas debruçado
21
Com sua veia abundante as rochas lava.
Da
cít’ra em braço como o som formado,
Como
o sopro na avena penetrando
24
Em melódicas notas modulado,
Assim
formou-se um murmúrio brando,
Que
subiu, logo após, da ave formosa,
27
Pelo canal do colo, se exalando.
Então
em voz tornou-se harmoniosa,
Que
do bico em palavras irrompia:
30
Em minha alma insculpiram-se ansiosa.
—
“Na parte atenta, que em mim vê” — dizia —
“Que
até na águia mortal afronta ousada
33
O sol, quando rutila ao meio-dia;
“Porque
dos fogos, de que sou formada,
Aqueles,
com que a vista me cintila,
36
No céu graduação tem sublimada,
“Esse,
que brilha em meio por poupila,
Foi
o régio cantor do Esp’rito Santo,
39
Que a Arca trasladou de vila em vila.
“Conhece
ora a valia de seu canto,
Qual
foi o efeito desse ardente zelo,
42
Galardão recebendo tal e tanto.
“Dos
cinco, que o sobrolho me ornam belo,
Consolou
o que ao bico está mais perto
45
Viúva em dó do filho, seu desvelo.
“Quanto
custa lhe está bem descoberto
A
Cristo não seguir, pela exp’riência
48
Do céu e do penar pungente e certo.
“E
o que está logo após na circunf’rência
Do
sobrolho, onde vês arco superno,
51
Morte adiou por vera penitência.
“Conhece
agora que o juízo eterno
Não
muda, se o rogar do arrependido
54
Em crástino tornar fato hodierno.
“A
mim e às leis esse outro há transferido
À
Grécia, do Pontífice em proveito:
57
Boa intenção mau fruto há produzido.
“Conhece
agora que o maligno efeito
Dessa
obra pia lhe não é nocivo,
60
Posto haja o mundo horrendo desproveito.
“O
que vês do sobrolho no declive
Guilherme
é, por quem chora o reino opresso
63
De Frederico e Carlo ao mando esquivo.
“Conhece
agora bem com quanto excesso
Ao
Rei justo ama o céu: do seu semblante
66
Ainda no fulgor se mostra expresso.
“Quem
crer pudera em vosso mundo errante
Que
entre estas luzes santas quinta seja
69
Rifeu Troiano, da justiça amante?
“Conhece
agora que mistério esteja
Na
Graça — aquilo, que inda o mundo ignora —
72
Bem que o fundo inefável não lhe veja.” —
Qual
codorniz que os vôos seu demora,
Paira
cantando e cala-se, enlevada
75
Nas doçuras finais da voz sonora:
Tal
parece-me a imagem sinalada
Pelo
eterno prazer, que, a seu desejo,
78
Faz que seja quanto é cousa criada.
Posto
a dúvida minha neste ensejo,
Como
no vidro a cor, fosse patente,
81
Não mais espero a solução, que almejo.
Cedendo
à força do seu peso urgente.
Prorrompo
logo: — Que mistério imenso! —
84
Da águia o júbilo fez-se mais fulgente.
Brilho
tendo nos olhos mais intenso
A
sacrossanta forma respondia
87
Por não mais ter-me atônito e suspenso:
—
“Bem vejo que tu crês” — assim dizia —
“Não
porque entendas, mas porque assevero:
90
Ocultas cousas são, mas fé te guia.
“És
como quem da cousa o nome vero
Aprende;
mas inota fica a essência,
93
Se não a explica espírito sincero.
“Dos
céus o reino sofre um violência
Do
ardente amor e da esperança viva,
96
Que triunfam da própria Onipotência.
“Mas
não é, qual vitória humana, esquiva:
Vencido
é Deus por ser assim servido;
99
Tem, vencido, vitória decisiva.
“Maravilhado,
ao veres, te hás sentido,
Do
meu sobrolho a luz quinta e primeira
102
Neste império aos eleitos concedido.
“Não
morreram gentios: crença inteira
No
Redentor futuro ou no já vindo
105
Tinham antes da hora derradeira.
“À
vida um, lá do inferno ressurgindo,
Onde
não se corrige o condenado,
108
A mercê recebeu anelo infindo,
“Vivo
anelo, que ardor tanto empenhado
Em
suplicar a Deus tal graça havia,
111
Que pôde o seu querer ser abalado.
“Quando
voltou à carne e à luz do dia,
Em
que não fez detença a alma ditosa,
114
Naquele há crido que a salvar podia;
“E
foi na fé, no amor tão fervorosa,
Que
ao passar nova morte há merecido
117
Sublimar-se à existência gloriosa.
“E
do outro, pela Graça protegido,
Que
provém de uma origem tão profunda,
120
Que a nascente olho algum não lhe há sabido,
“Foi
no amor à justiça sem segunda:
De
graça em graça a Redenção futura
123
Mostrou-lhe Deus revelação jucunda.
“À
fé se entrega; e a sua mente pura
A
perversão gentílica rejeita,
126
Do mundo repreendendo a vida impura
“As
damas três que achavam-se à direita,
Do
carro, o seu batismo efetuaram,
129
Anos mil precedendo a lei perfeita.
“Ó
predestinação! Não te alcançaram
A
raiz esses olhos, que a primeira
132
Cousa jamais ao todo interpretaram.
“Mortais!
Oh! não julgueis tão de carreira!
Porque
nós que Deus vemos não sabemos
135
Dos preferidos seus a grei inteira.
“Esta
ignorância por ditosa havemos;
Que
o nosso bem por este bem se afina,
138
De ser quanto Deus quer o que queremos.” —
Por
essa imagem de feição divina
Assim,
para aclarar-me a curta vista,
141
Dada me foi suave medicina:
E
como a um bom cantor bom citarista
Acompanha,
vibrar fazendo a corda,
144
E desta arte mais graça o canto aquista,
Assim
a fala (a mente me recorda)
Da
ave santa os luzeiros dois seguiam
Como
dos olhos o bater concorda,
148
Com sua voz igualmente se moviam.
37.
Esse, que brilha etc., Davi rei de Israel e autor dos Salmos. — 44. Consolou o
que, o imperador Trajano, que foi justo com a viúva (V. Canto X, 82 do
Purgatório). — 46-48. Quanto custa etc. Uma crença popular afirmava que Trajano
tivesse sido libertado do Inferno pelas preces de S. Gregório. Por isso Trajano
podia estabelecer uma comparação entre o Inferno e o Paraíso. — 49-51. E o que
está etc., Esequias, rei de Judá, o qual, pela predição do profeta Isaías soube
que estava no fim da sua vida, mas, pedindo a Deus, obteve mais quinze anos de
vida e expiou os seus pecados. — 55-57. Esse outro etc., Constantino que
transferiu para Bizâncio a capital do Império Romano. — 62. Guilherme II, rei
de Apúlia e da Sicília. — 63. Frederico II de Aragão e Carlos II Anjou. — 69.
Rifeu Troiano, personagem da Eneida; homem justo e honesto, morreu combatendo
pela sua pátria. — 101. A luz quinta e primeira, Rifeu e Trajano. — 103-105.
Crença inteira no Redentor futuro ou no já vindo, Rifeu acreditou na futura
paixão de Jesus, Trajano na paixão que Cristo já tinha sofrido. — 127. As damas
três, as três virtudes teologais. — 129. Anos mil etc., mil anos antes que
Cristo instituísse o batismo.
CANTO XXI
Dante
sobe do céu de Júpiter ao de Saturno, no qual encontra as almas dos que se
dedicaram na vida à celeste contemplação, onde vê uma escada altíssima pela
qual vai subindo o descendo uma multidão de almas resplendentes. S. Pedro
Damião vai ao encontro do poeta e lhe fala do dogma da predestinação.
DE
Beatriz no gesto o entendimento,
Acompanhando
os olhos, embebia;
3
De ai não cuidava absorto o pensamento
Beatriz,
sem sorrir-se, me dizia:
—
“O sorriso contenho; de outra sorte,
6
Como Semele, em cinzas te veria.
“Minha
beleza, viste já, mais forte
Refulge,
quanto mais se eleva a escada,
9
Por onde ascende para a eterna corte.
“Teu
vigor, se não fora moderada,
Ao
seu fulgor, de todo fenecera,
12
Qual fronde, pelo raio espedaçada.
“À
sétima chegamos clara esfera,
Que
sob o peito do Leão ardente
15
Da luz mais viva do que de antes era.
“Teus
olhos acompanhe pronta a mente;
Sejam-te
espelho a quanto este astro belo,
18
Que um espelho é também, fará patente.” —
Quem
bem coubesse a força do desvelo,
Com
que a vista em seu gesto se pascia,
21
Quando voltei-me a impulso de outro anelo,
Quanto
contente fui conheceria,
Minha
guia celeste obedecendo,
24
Após uma gozando outra alegria.
No
cristal, que, em seu giro se movendo,
O
nome do Monarca tem querido,
27
Que a todo vício foi flagelo horrendo,
De
áurea cor, em que o sol é refletido,
Escada
vi de tão sublime altura,
30
Que o topo aos olhos stava-me escondido.
Pelos
degraus brilhando com luz pura
Descia
soma tanta de esplendores,
33
Que os clarões todos ver se me afigura.
Como,
ao seu modo, aos matinais albores,
As
gralhas, pelos ares se movendo,
36
Aquecem-se, do frio nos rigores,
Umas
se vão não mais voltar querendo,
Tornam
outras, buscando o pouso amado,
39
Rodam outras, os vôos seus contendo:
Tal
dos lumes o bando sublimado
Pela
escada formosa parecia,
42
Até certo degrau terem tocado.
E
o que parou mais perto resplendia
Tão
claro, que eu pensei: — Luz, que eu venero
45
Em ti, amor, em que ardes, denuncia.
Mas
Beatriz de quem sinal espero
Pra
dizer ou calar, grave emudece:
48
Eu pois o anelo meu, reprimir quero.
Ela,
que o meu pensar então conhece,
Pois
quem tudo prevê lho manifesta,
51
— “Cumpre” — disse — “o que a mente ora apetece.” —
E
comecei: — “Direito não me presta
A
resposta o meu mérito apoucado:
54
Mas por aquela, que o valor me empresta,
“Espírito
ditoso, que velado
Stás
por tua alegria, me declara
57
Por que tão perto a mim te hás colocado;
“E
por que muda está na esfera clara
Do
paraíso a doce sinfonia,
60
Que tão devota noutras escutara.” —
—
“Como os olhos o ouvido” — respondia —
“Tens
mortal: nesta esfera não se canta,
63
Nem Beatriz sorri, como soía.
“Tantos
degraus desci da escala santa
De
prazer por te dar mostra evidente
66
Em vozes e na luz que me abrilhanta.
“Não
que me apresse o afeto mais ardente,
Pois
lá por cima igual ou mais se acende,
69
Como te prova o flamejar ingente.
“Mas
alta caridade, que nos prende
A
quem por seu querer tudo governa,
72
Quais vês, marca os lugares como entende.” —
—
“Bem conheço” — tornei — “sacra luzerna,
Como
o livre amor do céu na corte
75
Basta para cumprir vontade eterna;
“Mas
como, entre a dos teus santa coorte,
Tu
só chamado a este cargo hás sido,
78
Por discernir não hei mente assaz forte.” —
A
voz final não tendo proferido,
Qual
veloz roda, sobre si girando,
81
Volveu-se o lume, súbito movido.
O
amor, que encerrava, então falando
—
“Em mim dardeja” — disse — “a luz divina,
84
Esta, que me circunda, penetrando.
“Com
meu ver, sua ação, que assim combina,
Tanto
me alteia, que a Suprema Essência,
87
Donde ela emana, a mim se descortina.
“Daí
vem do meu júbilo esta ardência;
Pois
a minha visão quanto é mais clara,
90
Da claridade em mim sobe a eminência.
“Alma,
porém, que mais no céu se aclara,
O
serafim, que em Deus mais se embevece,
93
Resposta ao teu dizer não deparara.
“Tanto
o que me perguntas desparece
Dos
eternos conselhos no infinito,
96
Que a vista a todos pávida esmorece.
“Ao
mundo isto por ti deve ser dito,
Que
da verdade saiba quanto aberra,
99
Os pés movendo ao transcedente fito.
“Alma,
que é flama aqui, fumo é na terra:
O
que no céu jamais saber alcança,
102
Como ver pode, quando a cinza a encerra?” —
Em
tanto enleio o seu dizer me lança,
Que
humilde, outras perguntas evitando,
105
Em lhe saber o nome pus a esp’rança.
—
“De mares dois no meio demorando,
De
Florenca não longe, estão rochedos,
108
Aos trovões sobranceiros se empinando.
“Catria
chama-se a giba dos penedos:
Ao
pé se vê um claustro consagrado
111
Da alma com Deus aos místicos segredos.” —
Terceira
vez o santo me há tornado.
E
disse, prosseguindo: — “Nessa ermida
114
Somente a Deus servir me hei dedicado.
“Com
suco de oliveira por comida,
Contente
a calma e frio suportava,
117
Passando ali contemplativo a vida.
“Nesse
retiro ao céu se aparelhava
Ampla
seara; estéril tanto agora,
120
Que o véu já cai que o mal dissimulava.
“Fui
Pedro Damiano; um Pedro outrora
Dito
Pecador junto ao Ádria esteve
123
Na casa em que invocou Nossa Senhora.
“Da
vida me restava espaço breve,
Quando
ao claustro arrancado, me cingiram
126
Chapéu, que a indignas fontes já se deve.
“Magros
descalços a missão cumpriram,
O
Vaso de Eleição e Cefas, tendo
129
O pão de cada dia, que pediram.
“Hoje
o pastor, a custo se movendo,
Anda
de um lado ao do outro carregado,
132
Quem o sustente por de trás querendo.
“Seu
manto, o palafrém tendo embuçado,
Dois
brutos numa pele está fingindo:
135
Ó paciência, quanto hás suportado!” —
Calou-se.
Luzes mil eu vi, fulgindo,
Descer
em veloz giro a excelsa escada:
138
Seu brilho, em cada volta, ia subindo.
Parando
em torno a essa alma afortunada,
A
voz em som tão alto despediram,
Que
não pudera ser de outro igualada.
142
Não sei, torvado, o que elas proferiram.
6.
Semele, amada por Júpiter, a conselho da ciumenta Juno, pediu ao deus que se
lhe mostrasse em todo o esplendor da sua majestade e morreu abrasada. — 25. No
cristal, que, em seu giro se movendo etc., no lúcido planeta que, girando no
universo, tem o nome de Saturno, o qual reinou no século de ouro, no qual foi
banida do mundo qualquer malícia. — 121-123. Pedro Damiano, monge beneditino,
foi prior do mosteiro de Santa Cruz; e, posteriormente, em 1057 foi nomeado
cardeal pelo papa Estevão IX. Pedro Pecador, S. Pedro degli Onesti, fundador do
convento de Santa Maria do Porto, perto de Ravena. — 128. O Vaso de Eleição, S.
Paulo; Cefas, S. Pedro.
CANTO
XXII
Outros
espíritos bem-aventurados aproximam-se do Poeta, entre eles S. Bento, o qual
lhe indica alguns dos seus santos companheiros; depois lamenta profundamente a
corrupção da ordem por ele fundada. Sobe daí o Poeta à oitava esfera que é a das
Estrelas Fixas.
VOLTEI-ME
a Beatriz, de espanto entrado,
Qual
menino, que busca sempre o amparo
3
De pessoa, em quem mais há confiado.
Beatriz,
como a mãe, que ao filho caro
Súbito
acorre ao vê-lo espavorido,
6
Com voz, que sói lhe ser terno anteparo,
—
“Ao céu” — disse — “não vês que foste erguido?
Ignoras
tu que o céu em tudo é santo
9
E a caridade a tudo há presidido?
“Pois
comover-te o grito pôde tanto,
Oh!
quanto o meu sorriso te abalara
12
E dos celestes coros o alto canto!
“Se
esse grito os seus rogos revelara,
Já
de agora souberas a vingança,
15
Que inda antes de morrer, verás, amara.
“Do
céu a espada pune sem tardança,
Mas
sem pressa, conquanto o não pareça
18
A quem no medo aguarde e na esperança
“Mas
por voltar o rosto ora começa:
Que
tens de ver espíritos famosos,
21
Se a vista, como eu digo, se endereça.” —
Como
ordenara, os olhos curiosos
Alcei:
glóbulos vejo mais de cento,
24
Que os raios seus cruzavam luminosos.
Eu
estava como quem reprime atento
Do
desejo o aguilhão, e receava
27
Por perguntas mostrar molesto intento;
Eis
uma dessas pér’las, que ostentava
Entre
as outras mais brilho, mais grandeza.
30
Para dar-me contento se acercava.
—
“Se como eu” — disse a sua voz — “certeza
Da
caridade houvesse, que em nós arde,
33
Teu desejo exprimiras com franqueza.
“Por
que maior demora não retarde
Teu
fim sublime, eu te darei resposta,
36
Posto em silêncio o teu pensar se aguarde.
“O
monte, que o Cassino tem na encosta,
Estava,
em seu cabeço, povoado
39
Por gente ignara, ao erro e ao mal disposta
“Ali,
primeiro, o Nome hei proclamado
Daquele,
que aos humanos a verdade
42
Trouxe que humanos tanto há sublimado.
“Da
Graça em mim luziu tal claridade,
Que
salvar pude os povos circunstantes
45
Do culto, que perdera a humanidade.
“Eremitas
hão sido esses brilhantes
Fogos,
que vês: na flama se acenderam,
48
Que frutos brota e flores vicejantes.
“Macário
e Romualdo aqueles eram,
Estes
os meus irmãos, que, os pés firmando
51
No claustro, os corações ao Senhor deram.” —
—
“Esse afeto, que mostras me falando” —
Tornei
— “e o bem-querer, que tão patente
54
Nos esplendores vossos ’stou notando,
“O
ânimo dilata-me: igualmente
O
sol faz, quando à rosa purpurina
57
O seio desabrocha rescendente.
“E,
pois, te rogo, ó Padre meu, te inclina
A
declarar-me se a mercê mereço
60
De ver-te a face, mas sem véu, beni’na.” —
—
“O teu sublime anelo todo apreço
Há
de achar” — disse — “irmão, na extrema esfera,
63
Onde todos e o meu terão seu apreço.
“Madura,
inteira ali se considera
Perfeita
a aspiração; ali somente
66
Demora cada parte sempre onde era.
“Sem
pólos, sem lugar é permanente;
Até
lá nossa escada vai subindo;
69
Foge-te à vista a sua altura ingente.
“Viu-a
Jacó, o topo lhe atingindo,
Quando
em sua visão a contemplava
72
De inumeráveis anjos refulgindo.
“Mas
ninguém por subi-la os pés destrava
Hoje
da terra; e a minha regra escrita
75
Inutilmente nos papéis se grava.
“A
morada monástica bendita
É
covil; o capuz se há transformado
78
E farinha contém ruim, maldita.
“Não
seja usura havida por pecado
Tão
grave contra Deus, quanto a avareza,
81
Que aos monges tem os corações eivado;
“Pois
quanto a Igreja poupa é da pobreza,
Que
de Deus por amor seu pão mendiga,
84
Não pra cevo a parentes, ou a torpeza.
“Na
terra a carne ao homem tanto obriga,
Que
haver um bom princípio não bastara
87
Entre a planta em nascendo e a sua espiga.
“Sem
ouro e prata Pedro começara,
Eu
com jejuns, com orações; convento
90
Francisco humildemente levantara.
“De
cada qual à origem estando atento,
Verás
o branco em negro transformado,
93
Se depois tens seu fim no pensamento.
“Maior
milagre foi, quando tornado
Para
trás, o Jordão do mar fugia,
96
Do que socorro a tanto mal levado.” —
Calou-se,
e a santa grei logo se unia;
Cerrou-se
a grei, e o espírito com ela,
99
Qual turbilhão, na altura se encobria.
Na
escada alcei-me após, da dama bela
Ao
oceano; por seu poder mudada
102
A natureza minha se revela.
Naturalmente
nunca acelerada
Descida
houve na terra, nem subida,
105
Que possa ao meu voar ser igualada.
Seja-me
assim, leitores, concedida
A
glória, pela qual choro e suspiro,
108
Bata nos peitos de alma compungida,
Como
eu, enquanto o dedo meto e tiro,
Do
fogo o signo, de que está seguido
111
O Tauro, vi, e entrei logo em seu giro.
Gloriosas
estrelas, luz que hás sido
Por
grã virtude a causa de que emana
114
Humilde engenho, que há em mim nascido,
Convosco
na carreira, em que se afana,
Andava
o que a mortal vida origina,
117
Quando aspirei primeiro ar da Toscana.
E
quanto permitiu Graça Divina
Nesse
alto céu entrar, que vos compreende,
120
Por vós passar me deu sorte beni’na.
Por
vós devoto anelo em mim se acende
Para
alcançar virtude nesse forte,
123
Árduo passo que a si me atrai, me prende.
—
“Perto à ventura extrema és de tal sorte,
Que
a vista clara tens e penetrante” —
126
Diz Beatriz, o meu formoso norte.
“Mas
antes de te ergueres mais avante,
Remira
abaixo, e vê, por mim guiado,
129
Sob os pés quanto mundo está distante;
“Por
que teu peito, em júbilo inundado,
Seja
presente ao povo triunfante,
132
Que nesta esfera avança extasiado.” —
Então,
volvendo os olhos anelante
Às
sete esferas, nosso globo vejo
135
Tal, que sorri-me do seu vil semblante.
Quem
lhe dá pouco apreço em todo ensejo
Aplaudo,
e grande sábio, em meu conceito,
138
É quem põe noutra parte o seu desejo.
Vejo
da filha de Latona o aspeito
Sem
a sombra, que fosse em parte densa,
141
Em parte rara imaginar me há feito.
Do
filho, Hiperião, a flama intensa
Pude
olhar; perto e em torno lhe giravam
144
Maia e Dione em volta pouco extensa.
Como
aos do pai e filho temperavam
De
Jove os fogos, vi e o movimento
147
Vário, que em roda ao centro seu formavam.
Dos
orbes sete eu contemplava atento
Grandeza
e rapidez, e comprendia
150
Distâncias e postos seus no firmamento.
Como
o curso dos Gêmeos eu seguia
De
montes, mares via todo envolto
O
canto estreito, em que homem se gloria:
154
Olhos depois aos belos olhos volto.
13-15.
Se esses gritos etc., se tivesses ouvido o que foi dito, saberias a vingança de
Deus sobre os maus padres, que virá bem cedo. — 37-39. O monte que o Cassino
etc., Montecassino, sobre o qual S. Bento, no V século, fundou o célebre
mosteiro, no local onde havia um templo a Apolo. — 49. Macário (S.), de
Alexandria, que, no século IV, fundou vários mosteiros; Romualdo (S.), monge do
século X, nascido em Ravena, que fundou a ordem dos Camaldolenses. — 70. Viu-a
Jacó etc., o patriarca Jacó viu em sonho uma escada que da terra subia até o
Céu, Gen. XXVIII, 12. — 74. A minha regra escrita etc. Na terra ninguém observa
a minha regra de viver religiosamente. — 94. Maior milagre etc., quando Deus
fez com que o Jordão retirasse suas águas e o mar Vermelho deixasse seu leito
descoberto para o povo de Israel passar Jos. III, 14. — 110-111. O signo, a
constelação dos Gêmeos. — 115-117. Convosco etc., Dante nasceu no mês de maio,
quando o Sol se encontra no signo dos Gêmeos. — 139. Filha de Latona, a Lua. —
142. Hiperião; alguns mitólogos fazem do Sol um nume diferente de Febo e filho
de Hiperião. — 144. Máia, mãe de Mercúrio; Dione, mãe de Vênus. — 145-146. Aos
do pai etc., Júpiter (Jove) temperava a frieza do pai (Saturno) e o calor do
filho (Marte).
CANTO
XXIII
Descem
Cristo e Maria no meio de anjos e de almas bem-aventuradas. Cristo, porém, logo
desaparece; e o arcanjo Gabriel, em forma de chama, coroa a Maria. Depois,
Maria sobe no Empíreo reunindo-se ao seu divino filho.
QUANDO
tudo em seus véus a noite esconde,
Sobre
o ninho dos filhos seus amados
3
Ave, pousada entre a dileta fronde,
Para
ver os seus gestos desejados
E
buscar cibo que lhes dê sustento,
6
Desvelos, que lhes são bem compensados,
Da
rama espia o tempo de olho atento
E
com sôfrego anelo espera o dia,
9
Da alvorada aguardando o nascimento;
Tal
vigilante Beatriz eu via
Para
a plaga voltada luminosa,
12
Onde mais lento o sol me parecia.
Vendo-a
assim pronta em vista e cuidadosa,
Homem
fiquei, que melhorar-se aspira
15
E na esperança alenta a alma cuidosa.
Porém,
breve, a demora logo expira
Entre
atentar e ver que o céu se aclara
18
Com luz, que, viva mais e mais, subira.
—
“Eis a milícia” — a dama diz preclara —
“Da
vitória de Cristo! Eis a colheita,
21
Que o giro entre as esferas nos depara!”
Parece
a face ter de flamas feita;
Arde
nos olhos seus tanta alegria,
24
Que a palavra a dizê-la não se ajeita.
Qual
Trívia em plenilúnios irradia
Entre
as ninfas eternas se sumindo,
27
De que o céu nos recessos se alumia,
Sobre
milhões de fogos refulgindo
Um
sol vi, que os clarões seus lhes prestava,
30
Como aos astros o nosso a luz partindo.
Por
entre o aceso lume fulgurava
A
Divina Substância tão brilhante
33
Que a vista, contemplando-a, desmaiava.
—
“Ó Beatriz! Ó guia doce e amante!” —
Tornou-me:
— “O que te enleia a inteligência
36
Força invencível tem, sem semelhante.
“Aqui
stá o Saber e a Onipotência,
Que
para o céu caminho abrindo à terra,
39
Cumpriu-lhe inextinguivel apetência.”
Como
o fogo da nuvem se descerra,
No
seio, estreito já, se dilatando,
42
E, devendo subir, baixa e se aterra,
Assim,
entre delícias se alargando,
Alma
senti num êxtase arroubada;
45
Qual fui não sei, de todo me olvidando.
“Abre
os olhos e vê qual sou tornada;
Pois
te foi dado ver tanto portento
48
Já posso, ora a sorrir ser contemplada.” —
Estava
eu como quem, no pensamento
De
passada visão vestígio tendo
51
Salvá-los quer em vão do esquecimento,
Quando
a sublime oferta recebendo,
De
gratidão me entrei, que não se apaga
54
Do livro, em que o passado está vivendo.
Se
quantos c’as irmãs Polínia afaga,
Com
dulcíssimo leite os alentando,
57
Por eloqüência me ajudassem maga,
Na
milésima parte eu, me afanando,
Cantar
não conseguira o santo riso,
60
Que raiava no aspeito venerando.
Desta
arte, descrevendo o Paraíso
Saltar
deve este meu sacro poema,
63
Como em caminho às vezes é preciso.
Mas
quem pensar que é ponderoso o tema
E
débil o ombro, que lhe está sujeito,
66
A mal não levará, se ao cargo eu trema.
Não
é para baixel pequeno e estreito
O
mar que a proa vai cortando agora,
69
Nem para nauta a se poupar afeito.
—
“Porque tanto o meu gesto te enamora,
Que
não contemplas o jardim formoso,
72
Que aos doces raios de Jesus se enflora?
“Tem
a Rosa, em que o Verbo milagroso
Carne
se fez; os lírios têm, que ensinam
75
O bom caminho pelo odor mimoso.” —
Assim
diz Beatriz. Pois me dominam
Seus
conselhos, aos transes se oferecem
78
Meus olhos, que ante a luz débeis se inclinam.
À
sombra estando, às vezes me aparecem
Prados
vestidos de formosas flores
81
Do sol aos raios que entre nuvens descem;
Assim
turbas distingo de esplendores,
A
que do alto baixaram mil ardentes
84
Clarões sem ver a causa dos fulgores.
Ó
Virtude beni’na que esplendentes
Os
fazes, deste espaço, assim subindo,
87
Aos meus olhos, pra ver-te inda impotentes.
Da
bela flor o doce nome ouvindo,
Que
noite e dia invoco sempre, atento
90
No lume, que maior stava fulgindo,
Quando
em sua grandeza e luzimento
Vi
com meus olhos essa viva estrela,
93
Que vence, como aqui, no firmamento;
Do
céu baixando flama se revela,
Que
em forma circular, como coroa
96
Cingiu-a, se agitando em torno dela.
A
melodia que mais branda soa
Na
terra e as almas para si mais tira,
99
Trovão seria, que das nuvens troa,
Comparada
à doçura dessa lira,
Que,
do azul mais suave em céu vestido,
102
C’roava a bela, divinal safira.
—
“Sou angélico amor, que, assim movido,
Mostro
o prazer, que vem do seio santo,
105
Que ao Salvador do mundo albergue há sido.
“Hei
de girar, do céu Senhora, enquanto
Deres,
do filho entrando em companhia,
108
À suma esfera mais divino encanto.” —
Cantava
assim da c’roa a melodia.
Dos
outros lumes todos almo canto
111
O nome proclamava de Maria.
Dos
orbes o primeiro, régio manto,
Que
sente mais fervor, que mais se anima,
114
Do Supremo Senhor ao sopro, tanto
De
nós distante se internava acima,
Que
o aspecto seu na imensidade pura,
117
De distinguir a vista desanima.
Dos
olhos meus a força em vão se apura,
Seguir
querendo a flama coroada,
120
Que após seu Filho ergueu-se para a altura.
Qual
criança, de leite saciada,
Que,
ávida ainda, à mãe estende os braços,
123
No afeto seu mostrando-se inflamada,
Cada
esplendor, subindo nos espaços,
Tendia-se,
a Maria revelando
126
Quanto os prendem de amor excelso os laços.
Depois
ver se fizeram modulando
“Regina
coeli” em tanta consonância,
129
Que me perdura na alma esse hino brando.
Oh!
dos celestes prêmios que abundância
Se
contém nesses cofres, que hão guardado
132
Frutos colhidos na terrena estância!
No
céu se frui tesouro acumulado,
No
pranto e em Babilônia conseguido,
135
Onde o ouro ficara desdenhado.
Do
filho de Maria conduzido,
Lá
triunfa, por sua alta vitória,
Das
duas leis aos santos reunido,
139
Quem guarda chaves da celeste glória.
25.
Trívia, é um dos nomes de Diana, isto é da lua. — 29. Um sol, Jesus Cristo. —
32. A divina substância, Jesus Cristo — 37. O Saber e a Onipotência, Jesus
Cristo — 55. Polínia, a musa da poesia lírica. — 73. Rosa, a rosa mística, a
Virgem Maria. — 74. Os lírios, os Apóstolos. — 88. Da bela flor o nome etc., a
Virgem Maria. — 92. Essa viva estrela, a Virgem Maria. — 112. Dos orbes o
primeiro, régio manto, o nono céu, isto é, o primeiro móvel, que envolve os
oito céus inferiores. — 119. A flama coroada, a Virgem Maria, coroada pelo
arcanjo Gabriel. — 138. Das duas leis os santos, os santos do Velho e do Novo
Testamento. — 139. Quem guarda as chaves etc., S. Pedro.
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