Divina Comédia - Paraíso XIX - XXIII

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CANTO XIX



Dante fala à Águia externando uma sua antiga dúvida se alguém possa salvar-se não tendo conhecimento da lei de Cristo. Respondendo, a Águia aproveita a ocasião para repreender os malvados reis cristãos do seu tempo que nunca obterão a graça de Deus.



DE asas pandas formosa se ostentava
Essa imagem, que enlevos de alegria
3 Nas almas enlaçadas excitava,

E rubi cada qual me parecia,
Em que raio de sol, fúlgido ardendo,
6 Os lumes nos meus olhos refrangia.

O que eu agora descrever pretendo
Voz não contou, nem pena há referido,
9 Nem criou fantasia encarecendo.

O bico da Águia vi falar, e o ouvido
Eu e meu nas palavras distinguia,
12 Mas nós e nosso estava no sentido.

— “Porque fui justo e pio” — assim dizia —
“Exaltado me vejo a tanta glória,
15 Que excede a quanto o anelo aspiraria.

“De mim deixei na terra tal memória,
Que apregoam-na os homens pervertidos,
18 Sem exemplos seguir, que narra a história.” —

Como em pira dão lenhos incendidos
Um só calor, aqueles mil amores
21 Da imagem stavam num falar contidos.

Então lhes disse: “Ó vós, perpétuas flores
Do júbilo eternal, que num perfume
24 Sentir fazeis multíplices olores,

“Esta fome fartai, que me consome,
Há largo tempo, na terrestre vida,
27 Onde alimento nunca achar presume.

“Se do céu noutro reino é refletida
A divina Justiça em claro espelho,
30 Sei que sem véus no vosso é percebida.

“Sabeis que, atento, a ouvir-vos me aparelho;
Sabeis também que, nunca saciado,
33 Ardo em desejo que se fez já velho.” —

Qual falcão, do capelo desvendado,
Que a fronte move, as asas exercita
36 E se apavona ledo e alvoroçado,

Tal vi a insígnia, que essa grei bendita,
Louvor da graça divinal, formara,
39 Com hinos próprios da mansão que habita.

Depois dizia: — “Aquele, que traçara
Com seu compasso o mundo e no começo
42 De ocultas, claras cousas o dotara,

“Não pôde tanto seu poder impresso
No universo deixar, que o Eterno Verbo
45 A criação não teve infindo excesso.

“Prova-o bem quem primeiro foi soberbo;
Pois, sendo ele perfeita criatura,
48 Não esperando a luz, caiu acerbo.

“Todo ente, pois, somenos em natura
Conter o Bem sem fim não circunscrito
51 Não pode e em si guarda a mensura.

“Nossa vista, de alcance tão finito,
Posto seja um dos raios dessa Mente,
54 Que as cousas todas enche no infinito,

“Não é, por natureza, tão potente,
Que não discirna a sua Causa Eterna,
57 Do que ela é na verdade diferente.

“Penetra na justiça sempiterna
A vista concedida ao vosso mundo,
60 Bem como o olhar, que pelo mar se interna:

“Se junto ao litoral lhe enxerga o fundo,
No pélago o não vê: certo é que existe,
63 Mas encoberto está por ser profundo.

“Se do Lume não vem, que só persiste
Sempre sereno, a luz torna-se em treva,
66 Ou da carne é veneno, ou sombra triste.

“Já compreendes que o véu romper se deva,
Que a Divina Justiça te escondia,
69 E a tão freqüentes dúvidas te leva.

“Junto ao Indo — tua mente assim dizia —
Um varão vem á luz: de Cristo o nome
72 Nem por voz, nem por letras conhecia.

“Os feitos e desejos são desse home’
Bons no quanto julgar à razão cabe;
75 Em pecar ditos e atos não consome.

“Quando sem fé e sem batismo acabe,
Há justiça em ser ele condenado?
78 Pode ter culpa quem não crê, não sabe?

“Mas tu quem és, que, em tribunal sentado,
Julgas, de léguas em milhões distante,
81 Se mal vês o que a um palmo é colocado?

“Em duvidar, por certo, iria avante
Quem assim sutilezas apurara,
84 Sem a luz da Escritura triunfante.

“Terrenos vermes! raça estulta, ignara!
A primeira Vontade, por si boa,
87 De si, Supremo Bem, se não separa.

“Justo é somente o que com ela soa,
A si nenhum criado bem a tira,
90 Todo o bem, radiando, ela afeiçoa.” —

Como a cegonha, que o seu ninho gira,
Os filhotes já tendo apascentado,
93 Enquanto cada qual, farto, a remira,

Assim, os olhos quando eu tinha alçado
Fez o pássaro santo; e asas movia,
96 Por múltiplas vontades sustentado.

Volteando cantou; depois dizia:
“As notas não comprendes do meu canto,
99 Como os mortais de Deus sabedoria.” —

As flamas quando já do Esp’rito Santo
Quedaram nessa imagem, que alcançara
102 Aos Romanos do mundo temor tanto,

Prosseguiu: — “Este reino não depara
Jamais quem não acompanhou a Cristo
105 Nem antes, nem depois que à Cruz se alçara.

“Dizem muitos em grita — Cristo! Cristo!
Menos perto, em juízo, do que o infido
108 Lhe hão de ser que jamais conheceu Cristo.

“Há de os danar o Etíope descrido,
Quando em grei rica e pobre eternamente
111 For o gênero humano repartido.

“Dos reis cristãos o que dirão em frente
Os Persas, lendo no volume aberto,
114 Onde tanto flagício está patente?

“Ali hão de se ver entre os de Alberto
Os que serão em breve registados:
117 De Praga o reino tornarão deserto.

Se hão de ver sobre o Sena acumulados
Os do Rei, que a moeda falsifica,
120 Da fera morto aos dentes afiados.

Se há de ver a soberba, atroce, inica
Quem me demência o Escocês e o Bretão lança:
123 Nenhum nos seus confins contente fica.

“E se há de ver quanto em luxúria avança
O Rei de Espanha e o que a Boêmia rege,
126 Que mostra ao seu dever tanta esquivança.

“Ninguém ao Coxo de Sião inveje:
Com I sua bondade se assinala,
129 Com M o que em contrário ama e protege

“Se há de ver que a avareza à ignávia iguala
No Rei da ilha, em que morreu Anquise,
132 E donde o fogo, a trovejar, se exala.

“Porque do seu valor mal se ajuíze,
Em cifra a história sua é resumida,
135 Que muito em pouco espaço localize,

“Será patente a vergonhosa vida
Do tio e desse irmão, que hão desonrado
138 Dois cetros e a ascendência enobrecida.

“O Rei de Portugal será notado
E o Rei de Noruega e mais aquele,
141 Que de Veneza os cunhos tem falsado.

“Ditosa Hungria! que de si repele
O jugo da opressão! Feliz Navarra,
144 Quando em seus montes que defensa vele!

“E creiam todos que já d’isto em arra
Nicósia e Famagusta se lamentam,
Bramindo de uma fera sob a garra:

148 Os exemplos dos mais não o escarmentam.” —



28. Noutro reino, em outra ordem de bem-aventurados. — 34. Qual falcão de capelo desvendado, libertado pelo caçador que lhe tira a venda. — 46. Quem primeiro foi soberbo, Lúcifer. — 102. Aos Romanos do mundo temor tanto etc., a águia era a insígnia de Roma. — 110-11. Quando em grei rica e pobre etc., quando os justos e os pecadores serão divididos eternamente em duas partes, uma delas rica de todos os bens e a outra pobre e danada. — 115. Alberto I, de Áustria, que em 1304 devastou a Boêmia. — 119-120. Rei que a moeda falsifica etc., Filipe o Belo, que falsificou o dinheiro para pagar os mercenários, morreu em 1314 por efeito de uma queda de cavalo, numa caçada. — 122. O Escocês e o Bretão etc., os reis Roberto da Escócia e Eduardo da Inglaterra, em guerra entre si. — 125. O rei da Espanha, Fernando IV; e o que a Boêmia rege, Venceslau IV. — 127-129. O coxo de Sião etc., Carlos II de Anjou, rei de Apúlia e de Jerusalém, será marcado no livro da justiça divina com I pela sua bondade e com 1000 (M) pelas suas malvadezas. — 131. O rei da ilha em que morreu Anquise, Frederico II de Aragão, rei da Sicília. — 137-136. Do tio, Jaime, rei de Maiorca e Minorca; desse irmão, Jaime II, rei de Aragão. — 139. O rei de Portugal, D. Diniz, o lavrador. — 140-141. O rei de Noruega, Acon VII; e mais aquele etc., o rei de Ragusa, na Dalmácia, que falsificou a moeda de Veneza. — 143. Feliz Navarra etc., o Poeta faz votos para que a Navarra se defenda contra o opressão dos reis franceses para não cair na opressão como a ilha de Chipre (Nicósia e Famagosta são cidades dessa ilha), que está sendo tiranizada por Henrique II.

CANTO XX



A Águia louva alguns reis antigos que foram justos e virtuosos. Depois solve a Dante uma dúvida, como possam estar no Céu alguns espíritos que, na sua opinião, quando em vida não tinham tido fé cristã.



QUANDO esse astro, que a todos alumia
Deste hemisfério nosso já descende
3 E se consome em toda parte o dia,

O céu, que dele só de antes se acende,
Cintilante se mostra de repente
6 Por mil luzeiros, em que um só resplende.

Do céu surgiu-me essa mudança à mente
Depois que o santo pássaro calou-se,
9 Dos reis, no mundo, insígnia refulgente;

Pois desses vivos lumes ateou-se
Inda mais o clarão, hino cantando,
12 Que na memória instável apagou-se.

Ó doce amor! num riso te velando,
Quanto indicas arder nos esplendores,
15 Que estão santo pensar só respirando!.

Quando as gemas sublimes nos fulgores,
De que o sexto planeta se adornava
18 Findaram seus angélicos dulçores,

De rio o murmurar ouvir julgava,
Que, em claras espadanas debruçado
21 Com sua veia abundante as rochas lava.

Da cít’ra em braço como o som formado,
Como o sopro na avena penetrando
24 Em melódicas notas modulado,

Assim formou-se um murmúrio brando,
Que subiu, logo após, da ave formosa,
27 Pelo canal do colo, se exalando.

Então em voz tornou-se harmoniosa,
Que do bico em palavras irrompia:
30 Em minha alma insculpiram-se ansiosa.

— “Na parte atenta, que em mim vê” — dizia —
“Que até na águia mortal afronta ousada
33 O sol, quando rutila ao meio-dia;

“Porque dos fogos, de que sou formada,
Aqueles, com que a vista me cintila,
36 No céu graduação tem sublimada,

“Esse, que brilha em meio por poupila,
Foi o régio cantor do Esp’rito Santo,
39 Que a Arca trasladou de vila em vila.

“Conhece ora a valia de seu canto,
Qual foi o efeito desse ardente zelo,
42 Galardão recebendo tal e tanto.

“Dos cinco, que o sobrolho me ornam belo,
Consolou o que ao bico está mais perto
45 Viúva em dó do filho, seu desvelo.

“Quanto custa lhe está bem descoberto
A Cristo não seguir, pela exp’riência
48 Do céu e do penar pungente e certo.

“E o que está logo após na circunf’rência
Do sobrolho, onde vês arco superno,
51 Morte adiou por vera penitência.

“Conhece agora que o juízo eterno
Não muda, se o rogar do arrependido
54 Em crástino tornar fato hodierno.

“A mim e às leis esse outro há transferido
À Grécia, do Pontífice em proveito:
57 Boa intenção mau fruto há produzido.

“Conhece agora que o maligno efeito
Dessa obra pia lhe não é nocivo,
60 Posto haja o mundo horrendo desproveito.

“O que vês do sobrolho no declive
Guilherme é, por quem chora o reino opresso
63 De Frederico e Carlo ao mando esquivo.

“Conhece agora bem com quanto excesso
Ao Rei justo ama o céu: do seu semblante
66 Ainda no fulgor se mostra expresso.

“Quem crer pudera em vosso mundo errante
Que entre estas luzes santas quinta seja
69 Rifeu Troiano, da justiça amante?

“Conhece agora que mistério esteja
Na Graça — aquilo, que inda o mundo ignora —
72 Bem que o fundo inefável não lhe veja.” —

Qual codorniz que os vôos seu demora,
Paira cantando e cala-se, enlevada
75 Nas doçuras finais da voz sonora:

Tal parece-me a imagem sinalada
Pelo eterno prazer, que, a seu desejo,
78 Faz que seja quanto é cousa criada.

Posto a dúvida minha neste ensejo,
Como no vidro a cor, fosse patente,
81 Não mais espero a solução, que almejo.

Cedendo à força do seu peso urgente.
Prorrompo logo: — Que mistério imenso! —
84 Da águia o júbilo fez-se mais fulgente.

Brilho tendo nos olhos mais intenso
A sacrossanta forma respondia
87 Por não mais ter-me atônito e suspenso:

— “Bem vejo que tu crês” — assim dizia —
“Não porque entendas, mas porque assevero:
90 Ocultas cousas são, mas fé te guia.

“És como quem da cousa o nome vero
Aprende; mas inota fica a essência,
93 Se não a explica espírito sincero.

“Dos céus o reino sofre um violência
Do ardente amor e da esperança viva,
96 Que triunfam da própria Onipotência.

“Mas não é, qual vitória humana, esquiva:
Vencido é Deus por ser assim servido;
99 Tem, vencido, vitória decisiva.

“Maravilhado, ao veres, te hás sentido,
Do meu sobrolho a luz quinta e primeira
102 Neste império aos eleitos concedido.

“Não morreram gentios: crença inteira
No Redentor futuro ou no já vindo
105 Tinham antes da hora derradeira.

“À vida um, lá do inferno ressurgindo,
Onde não se corrige o condenado,
108 A mercê recebeu anelo infindo,

“Vivo anelo, que ardor tanto empenhado
Em suplicar a Deus tal graça havia,
111 Que pôde o seu querer ser abalado.

“Quando voltou à carne e à luz do dia,
Em que não fez detença a alma ditosa,
114 Naquele há crido que a salvar podia;

“E foi na fé, no amor tão fervorosa,
Que ao passar nova morte há merecido
117 Sublimar-se à existência gloriosa.

“E do outro, pela Graça protegido,
Que provém de uma origem tão profunda,
120 Que a nascente olho algum não lhe há sabido,

“Foi no amor à justiça sem segunda:
De graça em graça a Redenção futura
123 Mostrou-lhe Deus revelação jucunda.

“À fé se entrega; e a sua mente pura
A perversão gentílica rejeita,
126 Do mundo repreendendo a vida impura

“As damas três que achavam-se à direita,
Do carro, o seu batismo efetuaram,
129 Anos mil precedendo a lei perfeita.

“Ó predestinação! Não te alcançaram
A raiz esses olhos, que a primeira
132 Cousa jamais ao todo interpretaram.

“Mortais! Oh! não julgueis tão de carreira!
Porque nós que Deus vemos não sabemos
135 Dos preferidos seus a grei inteira.

“Esta ignorância por ditosa havemos;
Que o nosso bem por este bem se afina,
138 De ser quanto Deus quer o que queremos.” —

Por essa imagem de feição divina
Assim, para aclarar-me a curta vista,
141 Dada me foi suave medicina:

E como a um bom cantor bom citarista
Acompanha, vibrar fazendo a corda,
144 E desta arte mais graça o canto aquista,

Assim a fala (a mente me recorda)
Da ave santa os luzeiros dois seguiam
Como dos olhos o bater concorda,

148 Com sua voz igualmente se moviam.



37. Esse, que brilha etc., Davi rei de Israel e autor dos Salmos. — 44. Consolou o que, o imperador Trajano, que foi justo com a viúva (V. Canto X, 82 do Purgatório). — 46-48. Quanto custa etc. Uma crença popular afirmava que Trajano tivesse sido libertado do Inferno pelas preces de S. Gregório. Por isso Trajano podia estabelecer uma comparação entre o Inferno e o Paraíso. — 49-51. E o que está etc., Esequias, rei de Judá, o qual, pela predição do profeta Isaías soube que estava no fim da sua vida, mas, pedindo a Deus, obteve mais quinze anos de vida e expiou os seus pecados. — 55-57. Esse outro etc., Constantino que transferiu para Bizâncio a capital do Império Romano. — 62. Guilherme II, rei de Apúlia e da Sicília. — 63. Frederico II de Aragão e Carlos II Anjou. — 69. Rifeu Troiano, personagem da Eneida; homem justo e honesto, morreu combatendo pela sua pátria. — 101. A luz quinta e primeira, Rifeu e Trajano. — 103-105. Crença inteira no Redentor futuro ou no já vindo, Rifeu acreditou na futura paixão de Jesus, Trajano na paixão que Cristo já tinha sofrido. — 127. As damas três, as três virtudes teologais. — 129. Anos mil etc., mil anos antes que Cristo instituísse o batismo.



CANTO XXI



Dante sobe do céu de Júpiter ao de Saturno, no qual encontra as almas dos que se dedicaram na vida à celeste contemplação, onde vê uma escada altíssima pela qual vai subindo o descendo uma multidão de almas resplendentes. S. Pedro Damião vai ao encontro do poeta e lhe fala do dogma da predestinação.



DE Beatriz no gesto o entendimento,
Acompanhando os olhos, embebia;
3 De ai não cuidava absorto o pensamento

Beatriz, sem sorrir-se, me dizia:
— “O sorriso contenho; de outra sorte,
6 Como Semele, em cinzas te veria.

“Minha beleza, viste já, mais forte
Refulge, quanto mais se eleva a escada,
9 Por onde ascende para a eterna corte.

“Teu vigor, se não fora moderada,
Ao seu fulgor, de todo fenecera,
12 Qual fronde, pelo raio espedaçada.

“À sétima chegamos clara esfera,
Que sob o peito do Leão ardente
15 Da luz mais viva do que de antes era.

“Teus olhos acompanhe pronta a mente;
Sejam-te espelho a quanto este astro belo,
18 Que um espelho é também, fará patente.” —

Quem bem coubesse a força do desvelo,
Com que a vista em seu gesto se pascia,
21 Quando voltei-me a impulso de outro anelo,

Quanto contente fui conheceria,
Minha guia celeste obedecendo,
24 Após uma gozando outra alegria.

No cristal, que, em seu giro se movendo,
O nome do Monarca tem querido,
27 Que a todo vício foi flagelo horrendo,

De áurea cor, em que o sol é refletido,
Escada vi de tão sublime altura,
30 Que o topo aos olhos stava-me escondido.

Pelos degraus brilhando com luz pura
Descia soma tanta de esplendores,
33 Que os clarões todos ver se me afigura.

Como, ao seu modo, aos matinais albores,
As gralhas, pelos ares se movendo,
36 Aquecem-se, do frio nos rigores,

Umas se vão não mais voltar querendo,
Tornam outras, buscando o pouso amado,
39 Rodam outras, os vôos seus contendo:

Tal dos lumes o bando sublimado
Pela escada formosa parecia,
42 Até certo degrau terem tocado.

E o que parou mais perto resplendia
Tão claro, que eu pensei: — Luz, que eu venero
45 Em ti, amor, em que ardes, denuncia.

Mas Beatriz de quem sinal espero
Pra dizer ou calar, grave emudece:
48 Eu pois o anelo meu, reprimir quero.

Ela, que o meu pensar então conhece,
Pois quem tudo prevê lho manifesta,
51 — “Cumpre” — disse — “o que a mente ora apetece.” —

E comecei: — “Direito não me presta
A resposta o meu mérito apoucado:
54 Mas por aquela, que o valor me empresta,

“Espírito ditoso, que velado
Stás por tua alegria, me declara
57 Por que tão perto a mim te hás colocado;

“E por que muda está na esfera clara
Do paraíso a doce sinfonia,
60 Que tão devota noutras escutara.” —

— “Como os olhos o ouvido” — respondia —
“Tens mortal: nesta esfera não se canta,
63 Nem Beatriz sorri, como soía.

“Tantos degraus desci da escala santa
De prazer por te dar mostra evidente
66 Em vozes e na luz que me abrilhanta.

“Não que me apresse o afeto mais ardente,
Pois lá por cima igual ou mais se acende,
69 Como te prova o flamejar ingente.

“Mas alta caridade, que nos prende
A quem por seu querer tudo governa,
72 Quais vês, marca os lugares como entende.” —

— “Bem conheço” — tornei — “sacra luzerna,
Como o livre amor do céu na corte
75 Basta para cumprir vontade eterna;

“Mas como, entre a dos teus santa coorte,
Tu só chamado a este cargo hás sido,
78 Por discernir não hei mente assaz forte.” —

A voz final não tendo proferido,
Qual veloz roda, sobre si girando,
81 Volveu-se o lume, súbito movido.

O amor, que encerrava, então falando
— “Em mim dardeja” — disse — “a luz divina,
84 Esta, que me circunda, penetrando.

“Com meu ver, sua ação, que assim combina,
Tanto me alteia, que a Suprema Essência,
87 Donde ela emana, a mim se descortina.

“Daí vem do meu júbilo esta ardência;
Pois a minha visão quanto é mais clara,
90 Da claridade em mim sobe a eminência.

“Alma, porém, que mais no céu se aclara,
O serafim, que em Deus mais se embevece,
93 Resposta ao teu dizer não deparara.

“Tanto o que me perguntas desparece
Dos eternos conselhos no infinito,
96 Que a vista a todos pávida esmorece.

“Ao mundo isto por ti deve ser dito,
Que da verdade saiba quanto aberra,
99 Os pés movendo ao transcedente fito.

“Alma, que é flama aqui, fumo é na terra:
O que no céu jamais saber alcança,
102 Como ver pode, quando a cinza a encerra?” —

Em tanto enleio o seu dizer me lança,
Que humilde, outras perguntas evitando,
105 Em lhe saber o nome pus a esp’rança.

— “De mares dois no meio demorando,
De Florenca não longe, estão rochedos,
108 Aos trovões sobranceiros se empinando.

“Catria chama-se a giba dos penedos:
Ao pé se vê um claustro consagrado
111 Da alma com Deus aos místicos segredos.” —

Terceira vez o santo me há tornado.
E disse, prosseguindo: — “Nessa ermida
114 Somente a Deus servir me hei dedicado.

“Com suco de oliveira por comida,
Contente a calma e frio suportava,
117 Passando ali contemplativo a vida.

“Nesse retiro ao céu se aparelhava
Ampla seara; estéril tanto agora,
120 Que o véu já cai que o mal dissimulava.

“Fui Pedro Damiano; um Pedro outrora
Dito Pecador junto ao Ádria esteve
123 Na casa em que invocou Nossa Senhora.

“Da vida me restava espaço breve,
Quando ao claustro arrancado, me cingiram
126 Chapéu, que a indignas fontes já se deve.

“Magros descalços a missão cumpriram,
O Vaso de Eleição e Cefas, tendo
129 O pão de cada dia, que pediram.

“Hoje o pastor, a custo se movendo,
Anda de um lado ao do outro carregado,
132 Quem o sustente por de trás querendo.

“Seu manto, o palafrém tendo embuçado,
Dois brutos numa pele está fingindo:
135 Ó paciência, quanto hás suportado!” —

Calou-se. Luzes mil eu vi, fulgindo,
Descer em veloz giro a excelsa escada:
138 Seu brilho, em cada volta, ia subindo.

Parando em torno a essa alma afortunada,
A voz em som tão alto despediram,
Que não pudera ser de outro igualada.

142 Não sei, torvado, o que elas proferiram.



6. Semele, amada por Júpiter, a conselho da ciumenta Juno, pediu ao deus que se lhe mostrasse em todo o esplendor da sua majestade e morreu abrasada. — 25. No cristal, que, em seu giro se movendo etc., no lúcido planeta que, girando no universo, tem o nome de Saturno, o qual reinou no século de ouro, no qual foi banida do mundo qualquer malícia. — 121-123. Pedro Damiano, monge beneditino, foi prior do mosteiro de Santa Cruz; e, posteriormente, em 1057 foi nomeado cardeal pelo papa Estevão IX. Pedro Pecador, S. Pedro degli Onesti, fundador do convento de Santa Maria do Porto, perto de Ravena. — 128. O Vaso de Eleição, S. Paulo; Cefas, S. Pedro.

CANTO XXII



Outros espíritos bem-aventurados aproximam-se do Poeta, entre eles S. Bento, o qual lhe indica alguns dos seus santos companheiros; depois lamenta profundamente a corrupção da ordem por ele fundada. Sobe daí o Poeta à oitava esfera que é a das Estrelas Fixas.



VOLTEI-ME a Beatriz, de espanto entrado,
Qual menino, que busca sempre o amparo
3 De pessoa, em quem mais há confiado.

Beatriz, como a mãe, que ao filho caro
Súbito acorre ao vê-lo espavorido,
6 Com voz, que sói lhe ser terno anteparo,

— “Ao céu” — disse — “não vês que foste erguido?
Ignoras tu que o céu em tudo é santo
9 E a caridade a tudo há presidido?

“Pois comover-te o grito pôde tanto,
Oh! quanto o meu sorriso te abalara
12 E dos celestes coros o alto canto!

“Se esse grito os seus rogos revelara,
Já de agora souberas a vingança,
15 Que inda antes de morrer, verás, amara.

“Do céu a espada pune sem tardança,
Mas sem pressa, conquanto o não pareça
18 A quem no medo aguarde e na esperança

“Mas por voltar o rosto ora começa:
Que tens de ver espíritos famosos,
21 Se a vista, como eu digo, se endereça.” —

Como ordenara, os olhos curiosos
Alcei: glóbulos vejo mais de cento,
24 Que os raios seus cruzavam luminosos.

Eu estava como quem reprime atento
Do desejo o aguilhão, e receava
27 Por perguntas mostrar molesto intento;

Eis uma dessas pér’las, que ostentava
Entre as outras mais brilho, mais grandeza.
30 Para dar-me contento se acercava.

— “Se como eu” — disse a sua voz — “certeza
Da caridade houvesse, que em nós arde,
33 Teu desejo exprimiras com franqueza.

“Por que maior demora não retarde
Teu fim sublime, eu te darei resposta,
36 Posto em silêncio o teu pensar se aguarde.

“O monte, que o Cassino tem na encosta,
Estava, em seu cabeço, povoado
39 Por gente ignara, ao erro e ao mal disposta

“Ali, primeiro, o Nome hei proclamado
Daquele, que aos humanos a verdade
42 Trouxe que humanos tanto há sublimado.

“Da Graça em mim luziu tal claridade,
Que salvar pude os povos circunstantes
45 Do culto, que perdera a humanidade.

“Eremitas hão sido esses brilhantes
Fogos, que vês: na flama se acenderam,
48 Que frutos brota e flores vicejantes.

“Macário e Romualdo aqueles eram,
Estes os meus irmãos, que, os pés firmando
51 No claustro, os corações ao Senhor deram.” —

— “Esse afeto, que mostras me falando” —
Tornei — “e o bem-querer, que tão patente
54 Nos esplendores vossos ’stou notando,

“O ânimo dilata-me: igualmente
O sol faz, quando à rosa purpurina
57 O seio desabrocha rescendente.

“E, pois, te rogo, ó Padre meu, te inclina
A declarar-me se a mercê mereço
60 De ver-te a face, mas sem véu, beni’na.” —

— “O teu sublime anelo todo apreço
Há de achar” — disse — “irmão, na extrema esfera,
63 Onde todos e o meu terão seu apreço.

“Madura, inteira ali se considera
Perfeita a aspiração; ali somente
66 Demora cada parte sempre onde era.

“Sem pólos, sem lugar é permanente;
Até lá nossa escada vai subindo;
69 Foge-te à vista a sua altura ingente.

“Viu-a Jacó, o topo lhe atingindo,
Quando em sua visão a contemplava
72 De inumeráveis anjos refulgindo.

“Mas ninguém por subi-la os pés destrava
Hoje da terra; e a minha regra escrita
75 Inutilmente nos papéis se grava.

“A morada monástica bendita
É covil; o capuz se há transformado
78 E farinha contém ruim, maldita.

“Não seja usura havida por pecado
Tão grave contra Deus, quanto a avareza,
81 Que aos monges tem os corações eivado;

“Pois quanto a Igreja poupa é da pobreza,
Que de Deus por amor seu pão mendiga,
84 Não pra cevo a parentes, ou a torpeza.

“Na terra a carne ao homem tanto obriga,
Que haver um bom princípio não bastara
87 Entre a planta em nascendo e a sua espiga.

“Sem ouro e prata Pedro começara,
Eu com jejuns, com orações; convento
90 Francisco humildemente levantara.

“De cada qual à origem estando atento,
Verás o branco em negro transformado,
93 Se depois tens seu fim no pensamento.

“Maior milagre foi, quando tornado
Para trás, o Jordão do mar fugia,
96 Do que socorro a tanto mal levado.” —

Calou-se, e a santa grei logo se unia;
Cerrou-se a grei, e o espírito com ela,
99 Qual turbilhão, na altura se encobria.

Na escada alcei-me após, da dama bela
Ao oceano; por seu poder mudada
102 A natureza minha se revela.

Naturalmente nunca acelerada
Descida houve na terra, nem subida,
105 Que possa ao meu voar ser igualada.

Seja-me assim, leitores, concedida
A glória, pela qual choro e suspiro,
108 Bata nos peitos de alma compungida,

Como eu, enquanto o dedo meto e tiro,
Do fogo o signo, de que está seguido
111 O Tauro, vi, e entrei logo em seu giro.

Gloriosas estrelas, luz que hás sido
Por grã virtude a causa de que emana
114 Humilde engenho, que há em mim nascido,

Convosco na carreira, em que se afana,
Andava o que a mortal vida origina,
117 Quando aspirei primeiro ar da Toscana.

E quanto permitiu Graça Divina
Nesse alto céu entrar, que vos compreende,
120 Por vós passar me deu sorte beni’na.

Por vós devoto anelo em mim se acende
Para alcançar virtude nesse forte,
123 Árduo passo que a si me atrai, me prende.

— “Perto à ventura extrema és de tal sorte,
Que a vista clara tens e penetrante” —
126 Diz Beatriz, o meu formoso norte.

“Mas antes de te ergueres mais avante,
Remira abaixo, e vê, por mim guiado,
129 Sob os pés quanto mundo está distante;

“Por que teu peito, em júbilo inundado,
Seja presente ao povo triunfante,
132 Que nesta esfera avança extasiado.” —

Então, volvendo os olhos anelante
Às sete esferas, nosso globo vejo
135 Tal, que sorri-me do seu vil semblante.

Quem lhe dá pouco apreço em todo ensejo
Aplaudo, e grande sábio, em meu conceito,
138 É quem põe noutra parte o seu desejo.

Vejo da filha de Latona o aspeito
Sem a sombra, que fosse em parte densa,
141 Em parte rara imaginar me há feito.

Do filho, Hiperião, a flama intensa
Pude olhar; perto e em torno lhe giravam
144 Maia e Dione em volta pouco extensa.

Como aos do pai e filho temperavam
De Jove os fogos, vi e o movimento
147 Vário, que em roda ao centro seu formavam.

Dos orbes sete eu contemplava atento
Grandeza e rapidez, e comprendia
150 Distâncias e postos seus no firmamento.

Como o curso dos Gêmeos eu seguia
De montes, mares via todo envolto
O canto estreito, em que homem se gloria:

154 Olhos depois aos belos olhos volto.



13-15. Se esses gritos etc., se tivesses ouvido o que foi dito, saberias a vingança de Deus sobre os maus padres, que virá bem cedo. — 37-39. O monte que o Cassino etc., Montecassino, sobre o qual S. Bento, no V século, fundou o célebre mosteiro, no local onde havia um templo a Apolo. — 49. Macário (S.), de Alexandria, que, no século IV, fundou vários mosteiros; Romualdo (S.), monge do século X, nascido em Ravena, que fundou a ordem dos Camaldolenses. — 70. Viu-a Jacó etc., o patriarca Jacó viu em sonho uma escada que da terra subia até o Céu, Gen. XXVIII, 12. — 74. A minha regra escrita etc. Na terra ninguém observa a minha regra de viver religiosamente. — 94. Maior milagre etc., quando Deus fez com que o Jordão retirasse suas águas e o mar Vermelho deixasse seu leito descoberto para o povo de Israel passar Jos. III, 14. — 110-111. O signo, a constelação dos Gêmeos. — 115-117. Convosco etc., Dante nasceu no mês de maio, quando o Sol se encontra no signo dos Gêmeos. — 139. Filha de Latona, a Lua. — 142. Hiperião; alguns mitólogos fazem do Sol um nume diferente de Febo e filho de Hiperião. — 144. Máia, mãe de Mercúrio; Dione, mãe de Vênus. — 145-146. Aos do pai etc., Júpiter (Jove) temperava a frieza do pai (Saturno) e o calor do filho (Marte).



CANTO XXIII



Descem Cristo e Maria no meio de anjos e de almas bem-aventuradas. Cristo, porém, logo desaparece; e o arcanjo Gabriel, em forma de chama, coroa a Maria. Depois, Maria sobe no Empíreo reunindo-se ao seu divino filho.



QUANDO tudo em seus véus a noite esconde,
Sobre o ninho dos filhos seus amados
3 Ave, pousada entre a dileta fronde,

Para ver os seus gestos desejados
E buscar cibo que lhes dê sustento,
6 Desvelos, que lhes são bem compensados,

Da rama espia o tempo de olho atento
E com sôfrego anelo espera o dia,
9 Da alvorada aguardando o nascimento;

Tal vigilante Beatriz eu via
Para a plaga voltada luminosa,
12 Onde mais lento o sol me parecia.

Vendo-a assim pronta em vista e cuidadosa,
Homem fiquei, que melhorar-se aspira
15 E na esperança alenta a alma cuidosa.

Porém, breve, a demora logo expira
Entre atentar e ver que o céu se aclara
18 Com luz, que, viva mais e mais, subira.

— “Eis a milícia” — a dama diz preclara —
“Da vitória de Cristo! Eis a colheita,
21 Que o giro entre as esferas nos depara!”

Parece a face ter de flamas feita;
Arde nos olhos seus tanta alegria,
24 Que a palavra a dizê-la não se ajeita.

Qual Trívia em plenilúnios irradia
Entre as ninfas eternas se sumindo,
27 De que o céu nos recessos se alumia,

Sobre milhões de fogos refulgindo
Um sol vi, que os clarões seus lhes prestava,
30 Como aos astros o nosso a luz partindo.

Por entre o aceso lume fulgurava
A Divina Substância tão brilhante
33 Que a vista, contemplando-a, desmaiava.

— “Ó Beatriz! Ó guia doce e amante!” —
Tornou-me: — “O que te enleia a inteligência
36 Força invencível tem, sem semelhante.

“Aqui stá o Saber e a Onipotência,
Que para o céu caminho abrindo à terra,
39 Cumpriu-lhe inextinguivel apetência.”

Como o fogo da nuvem se descerra,
No seio, estreito já, se dilatando,
42 E, devendo subir, baixa e se aterra,

Assim, entre delícias se alargando,
Alma senti num êxtase arroubada;
45 Qual fui não sei, de todo me olvidando.

“Abre os olhos e vê qual sou tornada;
Pois te foi dado ver tanto portento
48 Já posso, ora a sorrir ser contemplada.” —

Estava eu como quem, no pensamento
De passada visão vestígio tendo
51 Salvá-los quer em vão do esquecimento,

Quando a sublime oferta recebendo,
De gratidão me entrei, que não se apaga
54 Do livro, em que o passado está vivendo.

Se quantos c’as irmãs Polínia afaga,
Com dulcíssimo leite os alentando,
57 Por eloqüência me ajudassem maga,

Na milésima parte eu, me afanando,
Cantar não conseguira o santo riso,
60 Que raiava no aspeito venerando.

Desta arte, descrevendo o Paraíso
Saltar deve este meu sacro poema,
63 Como em caminho às vezes é preciso.

Mas quem pensar que é ponderoso o tema
E débil o ombro, que lhe está sujeito,
66 A mal não levará, se ao cargo eu trema.

Não é para baixel pequeno e estreito
O mar que a proa vai cortando agora,
69 Nem para nauta a se poupar afeito.

— “Porque tanto o meu gesto te enamora,
Que não contemplas o jardim formoso,
72 Que aos doces raios de Jesus se enflora?

“Tem a Rosa, em que o Verbo milagroso
Carne se fez; os lírios têm, que ensinam
75 O bom caminho pelo odor mimoso.” —

Assim diz Beatriz. Pois me dominam
Seus conselhos, aos transes se oferecem
78 Meus olhos, que ante a luz débeis se inclinam.

À sombra estando, às vezes me aparecem
Prados vestidos de formosas flores
81 Do sol aos raios que entre nuvens descem;

Assim turbas distingo de esplendores,
A que do alto baixaram mil ardentes
84 Clarões sem ver a causa dos fulgores.

Ó Virtude beni’na que esplendentes
Os fazes, deste espaço, assim subindo,
87 Aos meus olhos, pra ver-te inda impotentes.

Da bela flor o doce nome ouvindo,
Que noite e dia invoco sempre, atento
90 No lume, que maior stava fulgindo,

Quando em sua grandeza e luzimento
Vi com meus olhos essa viva estrela,
93 Que vence, como aqui, no firmamento;

Do céu baixando flama se revela,
Que em forma circular, como coroa
96 Cingiu-a, se agitando em torno dela.

A melodia que mais branda soa
Na terra e as almas para si mais tira,
99 Trovão seria, que das nuvens troa,

Comparada à doçura dessa lira,
Que, do azul mais suave em céu vestido,
102 C’roava a bela, divinal safira.

— “Sou angélico amor, que, assim movido,
Mostro o prazer, que vem do seio santo,
105 Que ao Salvador do mundo albergue há sido.

“Hei de girar, do céu Senhora, enquanto
Deres, do filho entrando em companhia,
108 À suma esfera mais divino encanto.” —

Cantava assim da c’roa a melodia.
Dos outros lumes todos almo canto
111 O nome proclamava de Maria.

Dos orbes o primeiro, régio manto,
Que sente mais fervor, que mais se anima,
114 Do Supremo Senhor ao sopro, tanto

De nós distante se internava acima,
Que o aspecto seu na imensidade pura,
117 De distinguir a vista desanima.

Dos olhos meus a força em vão se apura,
Seguir querendo a flama coroada,
120 Que após seu Filho ergueu-se para a altura.

Qual criança, de leite saciada,
Que, ávida ainda, à mãe estende os braços,
123 No afeto seu mostrando-se inflamada,

Cada esplendor, subindo nos espaços,
Tendia-se, a Maria revelando
126 Quanto os prendem de amor excelso os laços.

Depois ver se fizeram modulando
“Regina coeli” em tanta consonância,
129 Que me perdura na alma esse hino brando.

Oh! dos celestes prêmios que abundância
Se contém nesses cofres, que hão guardado
132 Frutos colhidos na terrena estância!

No céu se frui tesouro acumulado,
No pranto e em Babilônia conseguido,
135 Onde o ouro ficara desdenhado.

Do filho de Maria conduzido,
Lá triunfa, por sua alta vitória,
Das duas leis aos santos reunido,

139 Quem guarda chaves da celeste glória.




25. Trívia, é um dos nomes de Diana, isto é da lua. — 29. Um sol, Jesus Cristo. — 32. A divina substância, Jesus Cristo — 37. O Saber e a Onipotência, Jesus Cristo — 55. Polínia, a musa da poesia lírica. — 73. Rosa, a rosa mística, a Virgem Maria. — 74. Os lírios, os Apóstolos. — 88. Da bela flor o nome etc., a Virgem Maria. — 92. Essa viva estrela, a Virgem Maria. — 112. Dos orbes o primeiro, régio manto, o nono céu, isto é, o primeiro móvel, que envolve os oito céus inferiores. — 119. A flama coroada, a Virgem Maria, coroada pelo arcanjo Gabriel. — 138. Das duas leis os santos, os santos do Velho e do Novo Testamento. — 139. Quem guarda as chaves etc., S. Pedro.



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