INFERNO ... Cantos I-V ... VI-XI ... XII-XVII ... XVIII-XXIII ... XIV-XXIX ... XXX-XXXIV
PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII
PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII
CANTO
XXIV
Beatriz
roga aos santos que iluminem o intelecto de Dante. Eles manifestaram o seu
assentimento. O mais luminoso entre os santos, S. Pedro, aproxima-se mais do
Poeta, o interroga sobre a Fé. O apóstolo aprova inteiramente as respostas de
Dante o abençoa, cingindo-o três vezes com o seu esplendor.
“Ó
SODALÍCIO, à ceia convidado
Do
cordeiro de Deus, que dá sustento
3
Tal, que o apetite heis sempre saciado,
Se
inda antes de chegar ao passamento
Preliba
este homem — assim Deus dispensa —
6
Da mesa, em que comeis, tênue fragmento:
Alívio
dai-lhe em sua sede imensa.
Na
fonte sempre hauris, de que deriva
9
Quanto ele, sôfrego aspirando, pensa.” —
Disse
então Beatriz. Com flama viva,
À
guisa de cometa, a grei contente,
12
Como esferas em pólos, gira ativa.
Em
relógio quem põe atenta a mente,
Das
rodas uma cuida estar sem moto
15
E correndo estar outra velozmente:
Pelo
vário compasso que lhes noto
Nas
coréias, já lento, já apressado,
18
Da glória sua a estimativa adoto.
Do
círc’lo em mor beleza assinalado
Um
lume vi surgir tão venturoso,
21
Que outro nenhum ficara avantajado.
Em
torno a Beatriz girou formoso
Por
vezes três com tão divino canto,
24
Que trasladar não posso o som donoso.
Screver
não cabe à pena enlevo tanto,
Cores
não tem palavra ou fantasia,
27
Que exprimam propriamente o doce encanto.
—
“Santa irmã nossa, que dessa arte envia
Devotos
rogos, teu ardente afeito
30
Dessa bela coréia me desvia.” —
Parando,
o bento lume ao claro aspeito
De
Beatriz o sopro há dirigido,
33
Que falou do que eu disse pelo jeito.
—
“Eterna luz desse varão subido,
Que
de Deus” — torna — “as chaves da alegria
36
Que infinda à terra deu, hás recebido,
“Deste
homem como queiras avalia
O
saber sobre a Fé lhe perguntando,
39
Pela qual sobre o mar andaste um dia.
“Se
bem crê, se bem spera, terno amando,
Certo
sabeis, pois tens fitado a vista
42
Onde tudo se está representando.
“Mas
como cidadãos o céu conquista
Pela
Fé verdadeira, para honrá-la
45
Explique ele por que na Fé persista.” —
O
bacharel apresta-se e não fala
Té
que o Mestre a questão haja of’recido,
48
Por aprová-la, não por terminá-la:
Assim,
de todas as razões munido,
Dispus-me,
enquanto Beatriz se explica,
51
A tal assunto, por tal Mestre arguido.
—
“Teu pensar, bom cristão, me significa:
O
que é Fé?” — Presto, ouvindo, o rosto alçava
54
Para a luz, que a questão desta arte indica.
Voltei-me
a Beatriz: já me acenava
Para
que sem detença água fizesse
57
Brotar da interna fonte, onde a guardava.
—
“A graça, que concede eu me confesse
Ao
sublime Primópilo” — assim digo —
60
“Permita que os conceitos claro expresse!
“Como
escrito, Pai meu,” — depois prossigo —
“Foi
com verdade pelo irmão amado,
63
Que Roma em bom caminho pôs contigo,
“É
a Fé a substância do esperado
E
argumento evidente do invisível:
66
Da Fé a essência assim tenho julgado.” —
Tornou-me:
— “O parecer teu é plausível,
Se
o porque foi substância definida
69
E argumento te fica inteligível.” —
—
“De mistérios” — disse eu — “soma crescida,
A
mim nestas esferas revelada,
72
Está na terra aos olhos escondida.
“Sua
existência em crença é só firmada,
Em
que se fundamenta alta Esperança:
75
Substância, pois, tem sido intitulada.
“E
como em crença o raciocínio lança
As
premissas sem ter mais outra vista,
78
Por isso de argumento o nome alcança.” —
—
“Se quanto lá na terra homem conquista
Por
doutrina, assim fosse comprendido,
81
Lugar faltava ao engenho do sofista” —
Daquele
aceso amor foi respondido;
E
mais: — “Nesta moeda examinado
84
Metal e peso muito bem tem sido.
“Mas
diz: na bolsa a tens arrecadado?” —
—
“Sim” — tornei — “tão redonda é, tão polida,
87
Que do bom cunho estou certificado.” —
A
voz então, desse esplendor saída
Perguntou-me:
— “Essa pedra preciosa,
90
Em que toda virtude se acha erguida
“Donde
a tens?” — Eu: — “A chuva copiosa,
Pelo
Espírito Santo derramada
93
Na Lei antiga e nova portentosa,
“Razão
é, porque foi-me demonstrada
Com
agudeza tal, que outra seria
96
Obtusa, se lhe fora comparada.” —
—
“Porque divina lei pareceria
A
nova e a antiga” — a voz logo retorna —
99
“Que a tão profunda convicção te guia?” —
—
“É prova que a verdade clara torna
De
obras a série” — eu disse — “a que natura
102
Nunca ferro aqueceu, bateu bigorna.” —
A
luz me replicou: — “Quem te assegura
Que
as obras fossem tais? Quem defendido
105
Por provas deve ser. Quem mais to jura?
Então
falei: — “Se o mundo convertido
Sem
milagres de Cristo à lei se houvesse,
108
Este o maior milagre houvera sido;
“Porque
pobre, em jejum, para ter messe
Semeado
hás na terra ótima planta:
111
Onde foi vinha, hoje espinhal só cresce.” —
Mal
concluía, quando a corte santa
Nas
esferas — Louvemos Deus! — entoa
114
Nessa toada, em que no céu se canta.
Do
sublime Barão, que até a c’roa
De
ramo em ramo me elevado havia,
117
Naquele exame, a voz de novo soa.
—
“A graça com tua mente consorcia
Tanto,
que por teus lábios tem falado:
120
Té aqui respondeste o que cumpria.
“Dou,
pois, assenso ao que me tens tornado;
Mas
tua crença exprime, lhe acrescendo
123
De que fonte à tua alma ela há brotado.” —
—
“Ó Santo Padre, ó Spírito, que vendo
Stás
quanto creste, tanto que chegaste
126
Ao Sepulcro, o mais moço antecedendo,
“Direi”
— lhe torno — “(assim determinaste)
Da
minha Fé a fórmula evidente,
129
Sua origem direi como ordenaste.
“Em
um só Deus eu creio onipotente,
Eterno,
que, imutável, os céus move
132
No desejo e no amor sempre clemente.
“São,
para que tal crença se comprove,
Metafísica
e física discretas;
135
Mas da verdade a prova também chove
“Por
Moisés, pelos salmos, por profetas,
Pelo
Evangelho e escritos, que inspirado
138
Vos tem o Esp’rito Santo, almas seletas.
“Nas
Três Pessoas creio afervorado;
Creio
na essência delas Una e Trina,
141
Tanto que é stá com são bem conjugado.
“O
que de altos mistérios da divina
Condição
digo, em traços mil se assela
144
Em mim pela evangélica doutrina.
“Este
o princípio, esta a fagulha bela,
Que
depois se dilata em flama ardente
147
E em mim cintila, qual nos céus estrela.” —
Qual
patrão, que de servo diligente
Aprazíveis
notícias escutando,
150
Feito o silêncio, o abraça de contente,
Assim,
quando acabei, me abençoando
E
cantando, três vezes me acercava
O
esplendor apostólico, mostrando
154
Das respostas que eu dei quanto folgava.
20.
Um lume, S. Pedro. — 39. Pela qual sobre o mar andaste um dia, sobre as águas
do Mar de Tiberíade, S. Mateus, Ev. XIV. — 59. Primópilo, assim chamava-se, no
exército romano, o centurião da primeira coorte; aqui indica S. Pedro. — 62.
Irmão amado, S. Paulo. - 64-66. A fé etc., Dante repete a definição que da fé
deu S. Paulo na Epístola aos Hebreus, XI, 1. — 98. A nova e a antiga, o novo e
o velho testamento. — 106-108. Se o mundo convertido etc., Dante repete a
argumentação de S. Agostinho, De Civ. Dei, livro XXIV, cap. 5. — 125-126. Que
chegaste ao sepulcro etc. S. Pedro chegou ao sepulcro de Jesus, depois da
ressurreição, antes de S. João Evangelista. João XX, 1-9.
CANTO XXV
S.
Tiago examina o Poeta sobre a Esperança, perguntando em que ela consiste, se
ele a possui, de onde veio nele. À segunda pergunta responde Beatriz; às outras
duas responde Dante. Aproxima-se S. João Evangelista, e diz a Dante que o seu
corpo, apesar da comum opinião, morrendo, ficara na Terra.
SE
este sacro poema houver podido
(Em
que tem posto a mão o céu e a terra
3
E em que hei por tanto tempo emagrecido)
Aquele
ódio abrandar que me desterra
Do
belo aprisco, onde eu dormi cordeiro,
6
Contrário aos lobos, que lhe movem guerra;
Com
voz e lã melhor que de primeiro
Voltando,
eu do batismo sobre a fonte
9
Hei-de, vate, cingir-me de loureiro;
Pois
lá entrei na fé, que uma alma insonte
Aproxima
de Deus e causa há sido
12
De girar Pedro em torno à minha fronte.
Então
a nós um lume vem saído
Da
grei, a que a primeira pertencia
15
Dos vigários, que há Cristo instituído.
Beatriz,
resplendente de alegria,
—
“Olha!” — me disse — “Eis o Barão famoso
18
Por quem vai-se à Galízia em romaria!
Quando
à consorte acerca-se amoroso
O
pombo, cada qual mostra, girando
21
Entre arrulhos o ardor seu amoroso:
Os
dois Príncipes vi tão ledos, quando
Da
glória sua no esplendor se acolhem
24
O manjar, que se frui no céu louvando.
Depois
que as saudações entre si colhem
Coram
me cada um tácito fica
27
Com tais clarões, que de os olhar me tolhem.
Sorrindo,
Beatriz assim se explica:
—
“Ó alma egrégia, por quem foi descrita
30
Delícia, de que a nossa igreja é rica,
“Aqui
a Esp’rança faz ouvir bendita:
Mostraste-a,
toda vez que aos três há dado
33
Jesus de vê-lo em sua Glória a dita.” —
—
“Ergue o rosto com spírito esforçado,
Pois
da terra quem sobe a tanta altura
36
Ser deve ao brilho nosso afeiçoado.” —
O
ânimo desta arte me assegura
A
luz segunda; a vista, pois, levanto
39
Aos montes, cujo lume a fez escura.
—
“Se o nosso Rei te há dado favor tanto,
Que
vês os condes seus antes da morte
42
Do seu palácio no recinto santo,
“Porque,
vindo é verdade desta corte,
A
Esperança, que tanto os homens prende,
45
Em ti, nos mais o coração conforte.
“O
que ela seja diz, como se acende
Em
tua alma; diz donde se origina.” —
48
Estas palavras inda o santo expende.
E
quem as plumas conduziu beni’na
Das
asas minhas neste vôo ingente,
51
Tornou, por que a resposta me previna:
“A
militante Igreja um mais ardente
Filho
não tem na Esp’rança, como escrito
54
É no Sol, que alumia a nossa mente.
“Eis
por que Deus permite que do Egito,
Para
ver a Sião tinha chegado
57
Antes de estar o tempo seu prescrito.
“Os
outros pontos dois lhe hás perguntado,
Somente
por que à terra ele respira
60
Quanto és desta virtude deleitado.
“Lhos
deixo, sem que assim vangloria aufira;
Poderá
responder ao teu contento,
63
Se a Graça divinal o alenta e inspira.
“Como
discíp’lo, que a seu Mestre atento
De
assunto fala, em que é perito e experto, —
66
Folgando de mostrar zelo e talento,
“Esperança
é” — disse tu — “guardar certo
Da
Glória, pela Graça produzida
69
E mérito provado e descoberto.
“Sendo
luz de astros muitos procedida,
Pelo
sumo cantor do Sumo Guia
72
Foi-me primeiro na alma introduzida.
“Espere
em ti — na excelsa Teodia
Disse
— aquele, que o nome teu conhece:
75
Com fé como eu, quem não conheceria?
“Como
seu rocio, também sobre mim desce
O
da Epístola sacra e, redundante,
78
Outros inunda a chuva, que recresce.”
Falava
assim: do seio coruscante
Daquele
incêndio tremulava chama,
81
Qual relâmpago, súbita, incessante.
Respondeu-me:
— “Esse amor que inda me inflama
Pela
virtude, que me dera alento
84
No martírio, ao findar da vida a trama,
“Atrai-me
a ti, que tens contentamento
Por
ela; e, pois, me diz de qual ventura
87
A Esperança te fez prometimento.” —
E
eu: — “Foi declarado na Escritura
O
sinal (sua forma está sabida)
90
De almas, que, amigas, o Senhor apura
“Disse
Isaías: cada qual cingida
Em
sua pátria será de dupla veste,
93
E a pátria sua é nesta doce vida.
“Por
que mais a verdade manifeste,
Das
cândidas estolas discorrendo
96
Mais claro teu irmão falou do que este.” —
Palavras
tais eu proferido havendo.
“Sperant
in te” ressoa lá da altura,
99
Ao hino os coros todos respondendo.
Lume
entre eles depois tanto fulgura,
Que,
se o Câncer tivesse igual estrela,
102
Fora do inverno um mês luz sem mistura.
Como
leda no baile entra a donzela
E,
para a noiva honrar, dança inocente
105
Sem que vício ou vaidade impere nela:
O
clarão assim vi resplandecente
Aos
dois se apropinquar, que circulavam
108
Quanto convinha ao seu amor ardente.
Entrou
no canto e dança, que formavam:
Qual
sem voz sposa imota, aos três o aspeito
111
De Beatriz os olhos contemplavam.
—
“O santo é este, que estreitava ao peito
O
nosso Pelicano e dele há sido
114
Sobre a cruz à missão sublime eleito.” —
Assim
diz Beatriz. Sempre embebido
O
seu olhar está na luz terceira
117
Depois, como antes de eu a ter ouvido.
Quem
do sol fita os olhos na carreira,
Crendo
vê-lo de eclipse anuviado,
120
Para ver sente o efeito da cegueira:
Por
esse lume assim fui deslumbrado.
—
“Por que te afanas procurando” — fala —
123
“O que no céu não pode ser achado?
“Na
terra o corpo meu à terra iguala,
Até
que o nosso número complete
126
O que eterno propósito assinala.
“Ter
vestes duas só do céu compete
No
claustro aos lumes dois, que se elevaram:
129
Esta verdade ao mundo teu repete.” —
Calou-se
e os esplendores três pararam
E
com eles a doce melodia,
132
De que os sons a coréia acompanharam.
O
remo, assim, que o mar de antes feria,
Se
há fadiga ou perigo, é bem que cesse,
135
Logo ao sinal do apito, que assobia:
Na
mente ai! quanto a comoção recresce,
Quando
o gesto não pude ver formoso
De
Beatriz ainda que eu stivesse
139
Ao seu lado e no mundo glorioso!
1-6.
Se este sacro poema etc. Dante exprime a esperança que o seu Poema abrande os
espíritos dos seus concidadãos e lhe seja concedida a volta a Florença. —
17-18. O Barão etc., S. Tiago, cujo corpo foi sepulto em Compostela, na
Galícia. — 24. O manjar, Deus. — 29-30. Por quem foi descrita etc. refere-se
Dante à chamada epístola católica que, porém, por muitos é atribuída a S. Tiago
Zezedeu. — 32-33. Toda vez etc.: no Evangelho os três apóstolos Pedro, João e
Tiago figuram as três virtudes teologais, a fé, a caridade e a esperança.
CANTO
XXVI
O
apóstolo S. João interroga Dante a respeito da terceira virtude teologal, a
Caridade. Responde Dante e os seus conceitos são aplaudidos por toda a corte
celeste. Beatriz reaviva no Poeta a vista que estava ofuscada. Aproxima-se Adão
que lhe fala e esclarece alguns pontos duvidosos de Dante.
FOSSE
já morta a vista eu receava,
Eis
da fúlgida flama, que ofuscara,
3
Atento fez-me a voz, que assim falava:
—
“Enquanto a força a vista não repara,
Que
em minha nímia luz hás consumido
6
Compensação no discursar depara.
“Começa
e diz pra onde é dirigido
Teu
espírito e sabe que, se escura
9
A vista sentes, não a tens perdido;
“Pois
quem te guia na divina altura
Virtude
tem no olhar, como Anania
12
Nas mãos tivera, que a cegueira cura.” —
—
“Quando bem lhe aprouver” — eu respondia —
“Remédio
aos olhos dê, por onde a chama
15
Com ela entrou, que sempre incendia.
“O
Bem, que pelo céu prazer derrama
Alfa
e Ômega há sido na escritura,
18
Que amor ou forte ou leve em mim proclama.”
Aquela
mesma voz, que me assegura
Não
haver eu de súbito cegado,
21
Inda excitar-me a lhe falar procura.
—
“Por mais estreito crivo ser passado
Deves”
— disse — “e portanto denuncia
24
O que ao fito há teu arco endereçado.” —
—
“Razões” — tornei — “da sã filosofia
E
autoridade, que daqui descende,
27
Me influem desse amor toda a energia.
“O
bem, enquanto bem, quando se entende,
Ateia
amor que é tanto mais ardente,
30
Quanto mais de bondade em si comprende.
“É
pois, essência, em si tanto excelente,
Que
todo bem, que ser lhe possa externo
33
Reflexo é só da sua luz fulgente;
“Atrai,
mais que outra, o espírito, que, terno,
Amando,
conhecer pode a verdade,
36
Que desta prova é o alicerce eterno.
“Dessa
verdade eu vejo a claridade
Naquele,
que demonstra o amor primeiro
39
De todo ente, a quem cabe eternidade.
“Vejo
na voz do Autor, só e verdadeiro,
Que
de si disse, a Moisés falando:
42
— O bem te hei-de mostrar perfeito e inteiro. —
“Também
tu mo revelas, começando
O
sublime pregão, que à terra ensina,
45
Mais que os outros, o arcano venerando.” —
—
“Pela razão” — ouvi — “pela divina
Autoridade,
que com ela acorda,
48
O amor teu, e mais que tudo a Deus destina.
“Diz-me,
porém: não sentes outra corda,
Que
para Deus te arrasta? Faz patente
51
Com quantos dentes esse amor te morda.” —
Da
Águia de Cristo não me foi latente
O
propósito santo e onde queria
54
Na profissão levar-me diligente.
—
“Estímulos, que possam” — lhe eu dizia —
“Para
Deus impelir a humana essência,
57
Tem minha caridade noite e dia;
“Porque
do mundo o ser; minha existência;
A
morte que sofreu para que eu viva;
60
O que espera um cristão da fé na ardência;
“Do
bem, que eu disse, a inteligência ativa,
Me
afastaram do mar do amor culpado,
63
Do santo amor me conduzindo à vida.
“As
flores, de que o horto é todo ornado,
Do
Jardineiro eterno, eu amo tanto,
66
Quanto ele em perfeição lhes tem doado.” —
Calei-me
e resoou melífluo canto
Pelo
céu, que Beatriz acompanhava,
69
Dizendo todos: — Santo! Santo! Santo! —
Como
pungente luz olhos destrava
Do
sono, a vista, o brilho procurando,
72
Que as pálpebras descerra, invade, agrava;
E
o desperto, os motivos ignorando
Da
súbita vigília, olhos desvia,
75
Na mente, entanto, a reflexão calando:
Em
mim, dessa arte, a névoa desfazia
De
Beatriz o olhar, que pelo espaço
78
De mais de milhas mil resplendecia.
Então
mais claro que antes a ver passo:
Quarta
luz perto a nós, maravilhado,
81
Diviso e uma pergunta logo faço.
E
ela: — “Nesse lume, ora chegado,
Seu
Criador contempla a alma primeira
84
Que a Virtude primeira haja criado.” —
Qual
fronde, que, ao soprar da aura ligeira,
O
cimo curva e, logo após, se erguendo
87
Pela força, que a torna sobranceira,
Tal
eu, essas palavras lhe entendendo
Atônito
fiquei; depois seguro
90
Fez-me um desejo, que me estava ardendo.
—
“Único pomo, que nasceu maduro!
Dos
homens pai, que hás visto filha e nora
93
Em cada esposa então e no futuro!
“Devota
e humilde a minha voz te exora!
Fala-me,
pois! Do meu desejo és certo;
96
Almejo ouvir-te, e não to expresso agora.” —
Como
de manto um animal coberto
Movimento,
que os membros seus agita
99
Pelo envoltório, deixa descoberto:
Assim
essa primeira alma bendita
Pelo
tremor da sua luz mostrava
102
O prazer de agradar-me quanto a excita.
—
“Não hei mister declares” — me tornava —
“Teu
desejo, melhor que tu sabendo
105
Quanto a certeza em tua mente grava.
“Nesse
espelho infalível estou lendo,
Em
que é todo o visível refletido,
108
Cousa nenhuma o refletir podendo.
“Ouvir
aspiras quando vindo hei sido
Lá
no santo jardim, donde, guiado
111
Por tão comprida escada, tens subido;
“Quanto
tempo ali fui deliciado;
Da
cólera divina a causa vera;
114
Que idioma falei, por mim formado.
“O
pomo, ó filho meu, não considera
Motivo
só por si do acerbo exílio,
117
Mas ordens transgredir, que Deus me dera.
“Lá
donde Beatriz moveu Virgílio
Quatro
mil e trezentos e dois anos
120
A ventura anelei deste concílio.
“Do
desterro senti na terra os danos,
Enquanto
vezes novecentas trinta
123
Seu giro fez o sol do céu nos planos.
“Antes
que a gente de Nemrod consinta
Em
meter mãos à obra interminável,
126
A língua, que falei, se achava extinta.
“De
homem feitura sempre perdurável
Não
é; vem do capricho e um dia cessa,
129
Do céu segundo o influxo variável.
“A
humana fala a natureza expressa;
Por
ela o modo de falar deixado
132
Ao homem está, segundo lhe interessa.
“Antes
de eu ter no inferno penetrado
El
o supremo bem significava,
135
Que desta leda luz me há circundado;
“Depois
em Eli o nome se mudava;
Qual
rama dos mortais uso varia,
138
Sucede a folha nova à que secava.
“No
monte, que mais alto ao ar se envia
Santa
vida vivi, depois culpada,
Da
hora prima à sétima do dia,
142
Noutro quadrante o sol fazendo entrada.”
2.
Fúlgida flama, S. João Evangelista. — 11. Anania; a mão de Ananias teve a
virtude de restituir a vista a S. Paulo, que ficara cego pela luz do céu que o
investiu (Atos dos Apóstolos IX, 10-17). — 38. — Naquele etc. Dante se refere
ou a Platão ou a Aristóteles, em algum ponto dos seus livros no qual declaram
que Deus é a suprema causa. — 44-45. O sublime pregão, o Evangelho de São João.
— 83-84. Alma primeira, Adão; Virtude primeira, Deus. — 118-120. Lá donde etc.
o limbo. — Dante, seguindo o cálculo d’Eusébio, crê que da criação do mundo até
a morte de Jesus Cristo passaram 5.232 anos, subtraindo dos quais os 950 que
Adão viveu, ficam 4302 anos. — 139-141. No monte etc., Adão viveu no Paraíso
Terrestre, isto é, na parte mais alta do monte Purgatório, apenas sete horas.
CANTO
XXVII
S.
Pedro exprobra os maus pastores da Igreja; e todos os santos manifestam a sua
aprovação às palavras do Apóstolo. Novamente o Poeta contempla a Terra, e,
depois, com Beatriz, eleva-se ao Primeiro Móvel.
GLÓRIA
ao Pai! Glória ao Filho! ao Espírito Santo!
Uníssono
entoava o Paraíso:
3
Senti-me inebriado ao doce canto.
Pareceu-me
o que eu via um doce riso
Do
universo: tomava-me a ebriedade
6
Pelos olhos e ouvidos o juízo.
Ó
júbilo! Ó inefável f’licidade!
De
paz ó vida inteira e de ternura!
9
Riqueza certa, isenta de ansiedade!
Fulgia-me
ante os olhos a luz pura
Dos
esplendores quatro; mais brilhante
12
O que veio primeiro eis se afigura!
E
tal se me apresenta o seu semblante,
Qual
fora Jove, se, aves ele e Marte,
15
A plumagem trocassem rutilante.
A
Providência, que no céu reparte
Tarefa
a cada qual, calar fizera
18
O venturoso coro em toda parte,
Quando
lhe ouvi: — “A cor se em mim se altera
Não
o estranhes: enquanto estou falando
21
Mudança igual em todos ver espera.
“Quem,
meu lugar na terra ora usurpando,
Meu
lugar, meu lugar, vago em presença
24
De Cristo o deixa, converteu nefando
“Meu
cemitério na sentina imensa
De
sangue e podridão, com que o perverso,
27
Do céu lançado, frui delícia intensa.” —
O
céu então eu vi todo submerso
Na
cor, que por manhã e à tarde acende
30
Sobre as nuvens o sol do lado adverso.
Qual
a dama, que à virtude cultos rende
E,
de si bem segura, se enrubesce,
33
Quando torpezas de outra ouve e compreende,
Beatriz
transmudada me parece,
Ao
céu ante a paixão do Onipotente
36
Igual eclipse em seio que envolvesse.
Prosseguiu
logo o Apóstolo eminente;
E
tanto a voz lhe estava demudada,
39
Que mais não fora o vulto seu rubente.
—
“Com sangue meu a Igreja alimentada
Não
foi, nem Lino e Cleto o seu lhe deram
42
De ouro em ganância para ser mudada.
“Como
Calixto e Pio mereceram,
Urbano
e Sixto a sempiterna vida?
45
Pós muito pranto o sangue seu verteram.
“Por
nossos sucessores dividida
Não
quisemos a grei — parte chamada
48
À destra, parte à esquerda repelida;
“Nem
que das chaves fosse a insígnia usada
Por
estandarte em campo sanguinoso
51
Contra cristãos em guerra encarniçada.
“Nem
que, por privilégio mentiroso
De
traficância, em selo eu figurasse
54
Quanta vez de pudor me acendo iroso!
“Com
vestes de pastor lobo rapace
Daqui
em cada pascigo se avista:
57
Para que não surgiu Deus, que os fulminasse?
“De
Gasconha e Cahors raça malquista
Beber-nos
sangue vem: belo começo,
60
O indi’no fim que tens, quanto contrista!
“Mas
Deus que a Roma, do seu mal no excesso,
De
mundo em glória os Cipiões mandava,
63
Dará socorro, como foi-me expresso.
“E
tu, que o peso da matéria grava,
Voltando,
ó filho, ao mundo lhe revela
66
Quanto eu te digo dessa gente prava.” —
Como
o vapor nos ares se congela,
E
em flocos baixa, quando o sol tocado
69
Pelas pontas está da Cabra bela;
Assim
vi eu o éter adornado
De
clarões triunfantes, que detido
72
Haviam-se na altura ao nosso lado.
Tinha-os
a vista na ascensão seguido
E
os seguiu té que enfim subir avante
75
Pelo espaço não foi-lhe permitido.
Que
eu não podia ver mais adiante
Notando,
Beatriz disse: — “Repara
78
Quanto agora, girando, estás distante.” —
Desde
a hora, em que a terra eu contemplara,
Por
todo o arco, que o clima faz primeiro,
81
Do meio até o fim, já me avançara.
A
passagem, que Ulisses aventureiro
Além
Gades tentou e a plaga via,
84
Em que Europa foi cargo prazenteiro,
Naquela
área inda mais divisaria;
Porém
sob os meus pés o sol andava
87
Distância, que a de um signo precedia.
A
namorada mente, em que reinava
Sempre
a Senhora minha, no incentivo,
90
Mais que nunca de olhá-la se inflamava.
Se
de arte ou natureza almo atrativo
Pelos
olhos prender nos pode a mente,
93
Seja em pintura, seja em corpo vivo,
Nada
foram, conjuntas, certamente,
Ante
o enlevo que o peito me ilumina,
96
Quando me volta ao gesto seu ridente.
Virtude,
olhando-a em mim tanto se afina
Que
do ninho de Leda me destrava
99
E ao céu velocíssimo me empina.
Tanto
na altura e brilho se mostrava
Uniforme
este céu, que eu não sabia
102
Qual pouso Beatriz me destinava.
Ela,
porém, que o meu desejo via
No
sorriso tão leda assim começa,
105
Que em seu rosto exultar Deus parecia.
—
“O movimento, que no centro cessa,
Em
torno ao qual, porém, tudo o mais gira,
108
Daqui partindo à roda se endereça.
“Somente
a sua ação este céu tira
Da
soberana Mente, em que se acende
111
O amor, que o move, o influxo, que respira.
“De
luz e amor um círculo o compreende,
Assim
como ele aos mais; deste precinto
114
Unicamente quem lho cinge entende.
“Seu
movimento é por si só distinto,
Por
ele os outros céus medidos sendo,
117
Como dez por metade e por seu quinto.
“Ficas,
portanto, ao claro conhecendo
Como
o tempo a raiz neste céu tenha,
120
As ramas pelos outros estendendo.
“Fatal
cobiça; que os mortais despenha
Em
tão profundo pélago, que alçar-se
123
Do abismo fora a vista em vão se empenha!
“Nos
homens o querer pode enflorar-se,
Mas
de chuvas contínuas açoutado
126
Bom fruto são não há-de conservar-se.
“Fé,
inocência, abrigo têm buscado
Nas
crianças; mas cada qual se esquiva
129
Antes que à face o buço haja apontado.
“Quem
balbucia de comer se priva;
Em
tendo solta a língua, a qualquer hora
132
Mostra em toda iguaria fome ativa.
“Quem
balbucia a mãe respeita e adora;
Mas,
quando a voz já sente desprendida,
135
Vê-la em mortalha o seu desejo exora.
“Assim
de alva se torna enegrecida
A
cutis da gentil filha daquele,
138
Que traz manhã, da noite em despedida.
“Estranheza,
porém, de ti repele
Vendo
o gênero humano transviado:
141
Quem há que em bem regê-lo se desvele?
“Por
força do centésimo olvidado
Inda
antes de deixar Janeiro o inverno,
144
Hão de as esferas dar tão forte brado,
“Que
a fortuna, de esp’rança alvo hodierno
Fará
que as popas dêm lugar às proas,
A
armada correrá com bom governo
148
E após as flores virão frutas boas.” —
10-11.
A luz pura dos esplendores quatro, as almas dos três apóstolos e de Adão. —
13-14. O seu semblante, qual fosse Jove etc., S. Pedro de branco que era ficou
vermelho, como o planeta de Marte. — 22. Quem, meu lugar na terra ora
usurpando, o papa Bonifácio VIII, que, segundo o Poeta, obteve o Papado usando
de fraudes. — 25. Meu cemitério, Roma ou mesmo o Vaticano, onde segundo a
tradição foi sepultado o corpo de S. Pedro. — 41. Lino e Cleto, S. Lino e S.
Cleto foram sucessores de S. Pedro. — 43-44. Sixto foi elevado ao Papado no ano
128; Pio em 154; Calixto em 218 e Urbano em 231. — 58-59. De Gasconha e Cahors;
o Poeta alude a João XXII de Cahors, elevado ao papado em 1316 e a Clemente V
de Gasconha, papa em 1305. — 79-84. Desde a hora etc.; desde a hora em que pela
primeira vez eu olhara para a terra, notei que havia percorrido a quarta parte
da esfera e, por isso, eram passadas seis horas. — 98-99. Ninho de Leda,
constelação dos Gêmeos (Castor e Pólux nasceram dos amores de Leda com o
cisne). — 142-144. Por força do centésimo olvidado etc., antes do mês de
janeiro não mais pertencer ao inverno, e sim à primavera, pela acumulação das
frações de tempo que não foram calculadas na reforma do calendário efetuada por
Júlio César, que ainda vigorava no tempo do Poeta. — 147. A armada, a
humanidade.
CANTO
XXVIII
Dante
volve os olhos para Beatriz, que estava atrás dele; depois mira para a frente e
vê um ponto brilhantíssimo, em torno do qual se movem nove círculos de luz, que
giram mais rapidamente e são mais brilhantes quanto mais próximos estão dele.
Aquele ponto é Deus; os círculos são os coros angélicos.
DEPOIS
que acerca do existir presente
Dos
míseros mortais mostrou verdade
3
Aquela a que emparaísa a mente,
Como
quem vê no espelho a claridade
De
tocha, que de trás esteja acesa,
6
Suspeita inda não tenho da verdade;
E,
para olhar voltado, tem certeza
De
que o vidro é fiel ao que apresenta,
9
Como o canto é do metro a natureza:
Assim
minha memória representa
Que
eu fiz, nos belos olhos me enlevando,
12
Com que amor cativou minha alma isenta.
De
os contemplar, porém, os meus deixando
E
no que esse orbe faz onipotente,
15
Quando em seu giro atenta-se os fitando,
Um
ponto vi, que lume tão fulgente
Dardejava,
que a vista deslumbrada,
18
Fechava-se ante o lume translucente;
Estrela,
ao parecer, mais apoucada,
Junto
dela, de lua figurada,
21
Como estrela ao pé de outra colocada.
Como
a c’roa talvez, que se depara
Cingindo
astro, que a torna luminosa,
24
Quando o vapor que a tem mais condensara,
Ígneo
círc’lo, em carreira impetuosa.
Distante,
ao Ponto mais veloz cercava
27
Do que a esfera que vai mais pressurosa.
Este
círc’lo primeiro outro abraçava;
Ao
terceiro o segundo, outro ao terceiro,
30
Ao quarto o quinto e o sexto o circundava.
Tão
largo o sétimo era, que, inda inteiro,
Abrangido,
por certo, o não teria
33
Aquele, que de Juno é mensageiro.
Oitavo
e nono assim: mas se movia
Mais
lento cada qual, segundo ele era
36
Mais longe do primeiro, que corria.
E
a flama rutilava mais sincera
No
que da Excelsa luz mais perto estava
39
Creio que em fluxo seu mais recebera.
Mas
Beatriz, que o enleio meu notava
—
“Daquele Ponto o céu e a natureza
42
Estão na dependência” — me falava.
“Olha
o círc’lo mais próximo e a presteza,
Que
tanto lhe acelera o movimento:
45
De ardentíssimo amor punge-o a viveza.” —
—
“Se do mundo.” — eu lhe disse — “o regimento
Fosse
qual nestes orbes aparece
48
Do que ouço eu conseguira já contento;
“Mas
no mundo sensível me parece
Ser
cada esfera tanto mais divina,
51
Quanto mais longe do seu centro desce,
“Se
instruir-me o querer teu determina
Neste
seráfico, estupendo templo,
54
Que só com luz e com amor confina,
“Explicar-me
te digna, porque o exemplo
Não
se conforma em tudo ao seu modelo:
57
Por saber a razão em vão contemplo” —
—
“De desatar o nó se ardente anelo
Teus
dedos não contentam, não te espante:
60
Tal é, porque ninguém tentou solvê-lo.” —
Tornou-me
ela e seguiu: — “Terás bastante
No
que direi de luz ao entendimento:
63
Aguça o engenho e escuta vigilante.
“Nos
círc’los corporais o crescimento
Regula
pelo influxo, que é spargido
66
Nas partes que lhes formam complemento.
“Mor
bondade, mor bem tem produzido
De
mor bem foi mor corpo aquinhoado,
69
Se igual primor nas partes é contido.
“O
círc’lo, pois, do qual arrebatado
Gira
o alto universo, é referente
72
Ao de amor e ciência mais dotado.
“Se
à virtude a medida propriamente
Adaptas,
não regendo-te a aparência
75
Das substâncias, que em círc’los tens em frente,
“Mirífica
hás de ver correspondência
Entre
maior e mais, menor e menos
78
Em cada céu e a sua inteligência.” —
Como
os ares são fúlgidos, serenos,
Se
Bóreas sopra aquela face inchando,
81
Que os hálitos difunde mais amenos.
Resolvendo-se
a névoa e se apagando
A
sombra que o hemisfério enegrecia,
84
E o céu, a rir-se, as pompas ostentando:
Assim
eu, quando aquela que me guia
Com
sua explicação minha alma aclara,
87
E a verdade, qual astro, me alumia.
Depois
que as vozes suas rematara,
Bem
como ferro a faiscar fervente,
90
Dos círculos cad’un flamas dispara.
Cada
centelha incêndio faz ingente
Em
soma tal, que a do xadrez passava,
93
Dobrando-se o algarismo infindamente.
De
coro em coro hosana ressoava
Ao
Ponto, que ao seu ubi, onde têm stado
96
E onde sempre estarão pra sempre os trava.
Ela,
o espírito meu vendo atalhado,
Disse-me:
— “Aqueles círculos primeiros
99
Te hão Serafins e Querubins mostrado.
Assim
nos orbes seus volvem ligeiros
Por
semelhar-se ao Ponto e o conseguindo,
102
Segundo a vê-lo estão mais altaneiros.
“Os
Amores, que em torno estão, seguindo,
Tronos
se chamam do divino aspeto
105
O primeiro ternário concluindo.
“Prazer,
bem sabes, todos têm seleto,
Quanto
mais sua vista se aprofunda
108
Na verdade, alto fito do inteleto.
“Desta
arte se conhece que se funda
Mais
na visão celestial ventura
111
Do que no amor, ação, que vem segunda.
“Da
visão é a medida a mercê pura,
Por
vontade e por graça produzida:
114
De grau em grau se enalça a criatura.
“Outro
ternário, que do céu movida.
Germina
em primavera sempiterna,
117
Pelo Áries noturno não despida,
“Hosana
entoa na harmonia eterna
Com
três coros; que soam de alegria
120
Em ordens três, em cujo seio interna.
“Ordens
três compreende a jerarquia,
Dominações,
Virtudes, ocupando
123
Potestades final categoria.
“Nos
penúltimos círculos girando,
Principados
e Arcanjos resplandecem;
126
E dos Anjos, após festivo bando.
“No
Ponto as Ordens todas se embevecem,
De
baixo a Deus são todas atraídas,
129
E uma das outras a atração padecem.
“Contemplando-as,
idéias tão subidas
Dionísio
formou com tanto zelo,
132
Que as fez, como eu, por nomes conhecidas.
“Não
quis Gregório como norma tê-lo;
Neste
céu quando entrou, porém, se ria
135
Do erro, em que estivera, ao percebê-lo.
“Mortal,
que o grã mistério compreendia
E
o disse à terra, não te mova espanto:
Quem
tinha-o visto aqui lhe descobria
139
E mais verdade deste império santo.” —
33.
Aquele que de Juno é mensageiro, Íride, o arco-íris. — 38. Excelsior luz, Deus.
— 64. Circ’los corporais, os céus do mundo sensível. — 67-69. Mor bondade etc.;
os corpos que contêm em si maior bondade difundem maior bem. — 73-78. Se a
virtude etc.; medindo os Céus não pela aparência, mas pela virtude, verás que o
menor que está mais perto de Deus corresponde ao maior no mundo sensível; e
assim por diante. — 94-96. De coro em coro etc.; os coros hosanavam a Deus que
os mantém no seu lugar, onde estiveram e ficarão por toda a eternidade. —
109-111. Desta arte se conhece etc. Era uma questão da escolástica: a beatitude
celeste consiste na visão ou no amor? Dante segue S. Tomás que a põe na visão
de Deus. — 121-126. Ordens três etc. O Poeta colocou nos primeiros três
círculos os Serafins, os Querubins e os Tronos; nos três círculos sucessivos
estão as Dominações, que ensinam a arte de dominar para o bem, as Virtudes que
operam os milagres, e as Potestades que ensinam a respeitar a autoridade. Nos
últimos círculos estão os Principados e os Anjos e Arcanjos. — 131. Dionisio, o
Aeropagita, que escreveu um livro sobre as hierarquias celestes. — 133.
Gregório, o papa S. Gregório Magno que divergiu das opiniões de S. Dionisio
sobre as hierarquias celestes. — 138. Quem tinha-os visto etc., S. Paulo, que
em vida teve uma visão das cousas celestes e foi mestre de S. Dionisio.
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