Divina Comédia - Purgatório XIX - XXV

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CANTO XIX



No sono, Dante tem uma visão misteriosa. Acordando, conta-a a Virgílio, o qual a explica. Sobem, depois, os Poetas ao quinto compartimento, no qual se purificam os avarentos, debruçados no chão. Entre eles está o papa Adriano V, Ottobuono de Fieschi, que lhe pede que a recomende à sua sobrinha Alagia.



CHEGADA essa hora, em que o calor diurno
Não mais da lua a frigidez aquece,
3 Pela terra vencido ou por Saturno,

Quando ao geomante fúlgida aparece
A Fortuna Maior lá no Oriente,
6 Donde rápida a noite se esvaece,

Sonhando vi mulher balbuciente,
Que vesga era nos olhos, nos pés torta,
9 De mãos truncadas e de tez palente.

Eu a encarava; e como o sol conforta
Os membros a que a noite o frio agrava,
12 Ao meu olhar assim a quase morta

Língua movia; o corpo já se alçava,
E no terreno e lívido semblante
15 A cor, que amor estima, se mostrava.

Soltando a voz, há pouco titubante,
Doce canto entoava tão donosa,
18 Que me absorvia o enlevo inebriante.

— “Sereia sou” — cantava — “deleitosa,
Que da rota desvia os mareantes,
21 Tanto prazer lhes movo poderosa.

“Detiveram meus cantos fascinantes
Ulisses vago; e raros me deixaram,
24 A todos prende o som dos meus descantes.” —

Junto a mim, mal seus lábios se fecharam,
Eis se mostrava dama santa e presta:
27 A sereia os seus olhos conturbaram.

— “Dize, ó Virgílio: que mulher é esta?” —
Bradava irosa; e o Vate lhe acorria.
30 Respeitoso ante aquela face honesta.

Dela a dama travava e prosseguia,
Seus véus rasgava, o ventre desnudando:
33 Desperto ao cheiro infando que saía.

Olhos abri. Virgílio, me falando:
— “Três vezes te chamei” — disse — “eia! asinha
36 Vamos, o passo onde entres, procurando.” —

Ergui-me logo. Alumiados tinha
O dia os círculos todos do alto monte;
39 Pelas costas surgindo o sol nos vinha.

Após o Mestre se me inclina a fronte,
Como a quem, de cuidados oprimido,
42 Curva a cerviz, semelha arco de ponte,

— “Aqui se passa: vinde!” — proferido
Foi por voz tão suave, tão beni’na,
45 Que não fora igual som na terra ouvido.

Da rocha entre os dois muros nos desi’na
Quem falara, o caminho, asas abrindo,
48 Que tem do cisne a alvura purpurina.

Depois as níveas plumas sacudindo,
— “Os que choram” — bradou — “são venturosos
51 De consolo a esperança possuindo!” —

— “Por que os olhos no chão fitas cuidosos?” —
O Mestre perguntou, depois que alçou-se
54 Voando o anjo aos ares luminosos.

— “Em recente visão, Senhor, mostrou-se
Imagem” — respondi — “que tanto instiga
57 Que inda a sua impressão não mitigou-se.” —

— “A mágica” — me disse — “viste antiga,
Que lá mais alto tanta dor motiva?
60 Como o homem viste dela se desliga?

“Não mais! Avante segue, o alento aviva!
Olhos volve ao reclamo, com que gira
63 Do Rei Eterno cada esfera altiva.” —

Como faz o falcão, que os pés remira,
Depois ao grito acode e, acelerado,
66 Contra a ralé, que avista, ao ar se atira:

Assim eu; e por onde era cortado,
Para trânsito dar ao monte erguido,
69 Corri té outro círculo, apressado.

Tendo ao círculo quinto já subido,
Jazer vi turba inúmera em lamento:
72 Para baixo era o rosto seu volvido.

“Adhaesit anima mea pavimento” —
Com tanta dor diziam suspirando,
75 Que da voz mal caí no entendimento.

— “Dizei, de Deus eleitos, que, penando,
Colheis alívio na justiça e esp’rança,
78 Por onde ao cimo iremos caminhando.” —

— “Se a nossa punição não vos alcança
E mais pronta quereis ter a subida,
81 À direita e por fora que se avança.” —

Do meu Guia a pergunta respondida
Foi por uma alma, que adiante estava:
84 Ser outra idéia eu cri nisso escondida.

Então, olhos voltando, interrogava
Virgílio, que aprovou com ledo gesto
87 O desejo, que o rosto denotava.

Da permissão do Mestre usando presto,
Daquele ente acerquei-me doloroso,
90 Que se fez por palavras manifesto.

— “Tu, que, expiando as culpas lacrimoso,
Apressas de te erguer à glória o dia,
93 Por mim pára em teu pranto fervoroso.

“Quem foste? Por que assim jazeis?” — dizia
“No mundo, donde venho vivo, impetre
96 Por teu bem querer cousa da valia?” —

— “Convém que o teu espírito penetre
Desta pena a razão; porém primeiro
99 Scias quod ego fui sucessor Petri.

“Do meu solar o título altaneiro
Origem teve nesse rio belo,
102 Que entre Chiaveri e Siestre flui ligeiro

“Em pouco mais de um mês vi que desvelo
Custa guardar o grande manto puro:
105 Todo outro fardo é pluma em paralelo.

“Quanto — ai de mim! — de converter fui duro!
Mas, apenas Pastor em Roma eleito,
108 Eu soube quanto mente o mundo impuro.

“Não gozou paz, nem quietação meu peito;
Mais alto já subir se não pudera:
111 Então da vida eterna ardi no afeito.

“Minha alma, triste e mísera, perdera
De Deus o amor em sórdida avareza:
114 Esta pena, que vês, bem merecera

“De tal pecado mostra-se a graveza
Aqui pelo castigo, em que se expia:
117 No monte outro não há de mor asp’reza.

“Como ao céu nossa vista não se erguia,
Nas cousas terreais embevecida,
120 Assim justiça à terra a prende e lia.

“Como a avareza em nós tinha extinguida
A propensão ao bem, aos santos feitos,
123 Assim nos tem justiça a ação tolhida.

“Pés e mãos ata em vínculos estreitos:
Enquanto a Deus prouver, nós, estendidos,
126 Imóveis estaremos nesses leitos.” —

De joelhos e de olhos abatidos
Quis falar-lhe; mas ele, conhecendo
129 Esse meu ato só pelos ouvidos,

— “Por que te curvas?” — me atalhou dizendo.
— “Em reverência à vossa dignidade:
132 Cumpro um dever dessa arte procedendo.” —

— “Ergue-te, irmão! Não erres! Em verdade,
Eu como tu, e o universo inteiro
135 A lei seguimos de uma só vontade.

“Do Evangelho o sentido verdadeiro
Que disse — neque nubente — se entendeste,
138 Verás o meu pensar quanto é certeiro.

“Vai-te agora, demais te detiveste.
Saudável pranto empece a tua estada:
141 Perdão apressam lágrimas, disseste.

“Sobrinha tenho, Alagia foi chamada:
É boa, se da raça tão funesta
Não pervertê-la a tradição danada.

145 Somente esta no mundo ora me resta.” —



1. Essa hora etc., a manhã, pouco antes do alvorecer. — 5. A Fortuna maior, uma das combinações que os geomantes desenhavam para adivinhar a sorte e que se parecia à constelação do Aquário e, em parte, à dos Peixes. — 7. Mulher balbuciente etc., símbolo dos vícios. — 19-26. Dama Santa, símbolo da prudência e das virtudes — Sereia — metade mulher e metade peixe. — 62. Reclamo, instrumento com o qual o caçador atrai as aves. — 73. Adhaesit anima mea pavimento, a minha alma esteve pregada ao chão (às coisas materiais), Salmo C XIX, 25. — 99. Scias quod ego fui sucessor Petri, saibas que fui sucessor de Pedro. É o espírito do papa Adriano V, Ottobuono dei Fieschi, conde de Lavagna. — 137. Neque nubent, palavras de Jesus aos saduceus; no Céu não há núpcias. Com essa expressão Adriano V quer que Dante entenda que ele não deve mais considerá-lo esposo ou chefe da Igreja. — 142. Alagia dei Fieschi, casada com Moroello Malaspína.

CANTO XX



Os dois poetas ouvem uma alma recordar exemplos de pobreza honesta e da generosidade benfazeja. É Hugo Capeto, fundador da casa dos reis da França, o qual censura asperamente os seus descendentes. Ouve-se, no entanto, tremer o monte e cantar “Gloria in excelsis Deo.”



EM luta, o bem querer ao mau se alteia.
Por contentar essa alma, eu, descontente,
3 Da água tirei a esponja, inda cheia.

Sigo os passos do guia diligente,
Do monte à extrema borda caminhando,
6 Como em muro entre ameias, cautamente.

O espaço mais largo enchia o bando,
Que a avareza, do mundo atroz imiga,
9 Expurga, pranto em fio derramando.

Maldita sempre seja, Loba antiga,
Mais do que as outras feras cobiçosas!
12 Jamais a fome tua se mitiga!

Ó céu, cuja carreira portentosa
As condições se crê reger da vida,
15 Quando virá quem lance a besta ascosa?

A passo lento e escasso era a subida,
Atento eu indo à turba, que exprimia
18 Por carpir lamentoso a dor sentida.

Eis ante nós dizer: — “Doce Maria!” —
Uma voz escutei no amargo pranto,
21 Qual mulher que no parto a dor crucia.

Acrescentou: — “Bem pobre foste e tanto,
Que à luz trouxeste lá no humilde hospício
24 Do seio virginal o fruto santo.” —

E logo após ainda: — “Ó bom Fabrício,
Com virtude antes pobre ser quiseste
27 Do que a opulência possuir com vício.” —

De tal prazer meu coração se veste
Ouvindo, que avançava pressuroso
30 Por que ao perto, maior atenção preste.

Também contava esse ato generoso,
Que em prol das virgens Nicolau fizera
33 Para guardar-lhes puro o estado honroso.

— “Alma, que tão bem falas, diz sincera,
Quem foste?” — lhe disse eu — “Por que somente
36 A tua voz a virtude aqui venera?

“Se eu à vida tornar, que brevemente
Levar-me deve ao suspirado porto,
39 Em te ser grato ficarei contente.” —

E ele: — “Falarei, não por conforto
Lá do mundo esperar, mas porque tanta
42 Graça refulge em ti antes de morto.

“Estirpe fui dessa maligna planta
Que o solo esteriliza à cristandade:
45 Se frutos bons produz, fato é que espanta.

“A vingança, se houvessem faculdade,
Lilla, Bruges, Conai, Grandja tomaram;
48 Férvido a peço à Suma Potestade.

“Na terra Hugo Capeto me chamaram:
Dos Filipes fui tronco e dos Luíses,
51 Que novamente a França dominaram.

“Foi meu pai carniceiro. Os infelizes
Antigos Reis progênie não deixando,
54 Exceto um monge, às minhas mãos felizes,

“Parar daquele reino veio o mando.
Tanto prestígio tinha, tal pujança
57 Dos povos na vontade fui ganhando,

“Que a c’roa o meu querer cingir alcança
Do filho meu à fronte, em que começa
60 A prole ungida desses Reis de França.

“O provençal grã dote havendo, cessa
Na raça minha a prístina vergonha:
63 Somenos, mas aos bons não fora avessa.

“Rapinas pela força e ardis, que sonha
Começando, invadiu por penitência
66 Pontois, Normandia com Gasconha.

“Carlos, Itália entrando, em penitência
Vitimou Conradino; e triunfante
69 Ao céu mandou Tomás, por penitência.

“Em tempo, do presente não distante,
Inda outro Carlos vir de França vejo
72 E fama a si e aos seus dar mais sonante.

“Sai sem armas; traz só naquele ensejo
Lança de Judas, que a Florença aponta:
75 Rasga-lhe o peito, como é seu desejo.

“Terás não terras, mas pecado e afronta,
Que se lhe há de tornar tanto mais grave,
78 Quanto ele a tem de pouco preço em conta.

“Outro, que preso sai da própria nave,
Vejo a filha vender, como fizera
81 Aos escravos pirata: ó pai suave!

“Avareza! o que mais de ti se espera,
Se o meu sangue a tal raiva hás arrastado,
84 Que te deu sua carne em pasto, ó fera?

“Para o mal igualar, porvir, passado,
Entrando Alagni flor-de-lis se ostenta,
87 E Cristo em seu Vigário é cativado.

“Injúrias vejo novas que exp’rimenta,
Fel, vinagre sorver o vejo ainda
90 E entre vivos ladrões ter morte lenta.

“Vejo o novo Pilatos, que, não finda
A sanha sua, sem decreto assalta
93 O Templo aceso na cobiça infinda.

“Senhor meu! Pois que excesso nenhum falta,
Quando ante a punição serei ditoso,
96 Que oculta, o teu juízo adoça e exalta?

“Quanto ao que me inquiriste curioso,
As palavras, que, há pouco, eu dirigia
99 Do Spírito Santo à Esposa fervoroso,

“São nossas orações enquanto é dia.
Mas contrários exemplos invocamos,
102 Quando a sombra da noite principia.

“Então Pigmalião nós recordamos
Que foi traidor, ladrão e parricida
105 A sua sede de ouro condenamos.

“E a miserável condição de Mida,
Do rogo seu estulto resultado,
108 Sempre do mundo inteiro escarnecida.

“De Acam o louco feito é memorado.
Que os despojos roubara, e ainda a ira
111 De Josué receia amendrontado.

“Com seu marido acusa-se Safira
E louva-se o mau fim de Heliodoro.
114 Por todo o monte imenso brado gira

“Contra o que tirou vida a Polidoro.
— Dize do ouro o sabor, Crasso avarento! —
117 Também clamamos todo nós em coro.

“Qual murmura, qual grita em seu lamento,
Segundo o afeto que o estimula e agita,
120 Segundo é fraco ou forte o sentimento.

“Eu único não era, pois, que em grita
O bem, que ao dia é próprio ia dizendo:
123 Não alçava outro perto a voz bendita.” —

Essa alma já deixáramos, fazendo
Esforço por vencer a altura ingente,
126 Que adiante se estava oferecendo,

Eis tremer sinto o monte de repente.
O coração no peito se me esfria,
129 Qual réu, que à morte arrasta-se palente.

Delos, por certo, assim não se movia,
Quando por ninho a preferiu Latona,
132 Que os dois olhos do céu parir queria.

De toda parte um brado então ressona
Tanto, que o Mestre, para mim voltando,
135 — “Não há risco” — me diz — “teu Guia o abona!”

Gloria in excelsis Deo — era entoado,
Quanto a voz perceber foi permitido
138 Do ponto, a que o rumor me foi levado.

Quedos, como os pastores tendo ouvido
À vez primeira outrora aquele canto,
141 Ficamos té findar moto e soído.

Depois seguimos no caminho santo,
Vendo as almas prostradas sobre a terra,
144 Sempre a verter o costumado pranto.

E se a memória nisto em mim não erra,
Jamais desejo, que a ignorância acende,
147 Na mente me excitara tanta guerra,

Quanto naquele instante em mim contende.
Nem pela pressa, eu perguntar ousava,
Nem o que ouvia o espírito compreende.

151 Tímido assim e pensativo andava.



10. Loba antiga, a avareza. — 23. Humilde hospício, a gruta de Belém, onde nasceu Jesus. — 25. Bom Fabrício, C. Fabrício, general romano, que recusou o dinheiro que o inimigo de Roma lhe oferecia. — 32. Nicolau, S. Nicolau, bispo de Mira, que dotou várias jovens pobres. — 43. Estirpe fui, Hugo Capeto, fundador da dinastia dos de França. — 52. Foi meu pai, etc. Segundo a tradição, Hugo Capeto, filho de um carniceiro, desposou a filha do último rei carlovíngio. — 61. O provençal, Carlos I de Anjou por casamento herdou a Provença. — 67. Carlos, Itália entrando, Carlos I de Anjou, conquistou o reino de Nápoles, mandou matar a Conradino de Suábia e, segundo uma tradição, fez envenenar a S. Tomás de Aquino, quando este se dirigia para o concilio de Lião. — 71. Outro Carlos, de Valois, que foi a Florença em veste de pacificador e expulsou os Brancos, entre os quais Dante. — 86. Entrando Alagni etc., o papa Bonifácio VIII, em 1303, por ordem de Filipe o Belo, foi aprisionado em Alagni. — 103. Pigmalião, matou a traição seu tio Siqueu para roubá-lo. — 106. Mida, rei mitológico, recebeu a faculdade de transformar em ouro tudo o que tocava, morreu de fome. — 109. Acam, guerreiro israelita, depois da conquista de Jericó, desobedecendo às ordens de Josué, escondeu o que saqueou e foi condenado à morte. — 112. Safira e seu marido Ananias, querendo roubar o dinheiro pertencente à comunidade cristã, foram fulminados. — 113. Heliodoro, entrara no templo de Jerusalém para roubar, mas foi expulso por um cavalo a patadas. — 115. O que tirou a vida a Polidoro, Polinestor, rei da Trácia matou a Polidoro, filho de Príamo, para roubá-lo. — 116. Crasso, romano, homem muito rico e avarento. — 130. Delos, ilha do mar Egeu. Segundo a mitologia, era instável, antes que nela se estabelecesse Latona, que deu à luz Apolo e Diana. — 136. Glória in excelsis Deo, é o canto dos anjos na noite em que nasceu Jesus.

CANTO XXI



Enquanto os dois Poetas continuam no seu caminho, uma alma se aproxima deles. É o poeta latino Estácio, o qual explica que o abalo do monte que se deu pouco antes foi o sinal de que, purificado dos seus pecados, ele pode subir ao Céu. Sabendo que está falando com Virgílio, Estácio demonstra-lhe o seu afeto.



A SEDE natural, que não sacia
Senão a água, que, súplice, implorava
3 Ao senhor a mulher de Samaria,

Molestando-me, os passos me apressava
Após meu Guia na impedida estrada,
6 E do justo castigo o dó me entrava.

Eis, como escreve Lucas na sagrada
História que Jesus aparecera,
9 Ressurgido, aos dois sócios na jornada,

Uma sombra surgiu; trás nós viera.
Andando aquela turba contemplava:
12 Dela fé nem o Mestre, nem eu dera.

— “Deus vos dê paz, irmãos!” — assim falava.
Voltamo-nos de súbito, e Virgílio,
15 Cortês no gesto, a saudação tornava

Logo dizendo: — “Do feliz concílio
Te receba na paz a santa corte,
18 Que a mim me desterrou no eterno exílio!”

— “Como andais” — respondeu — “com passo forte.
Se Deus no céu vos não permite a entrada?
21 Quem vos conduz na altura desta sorte?” —

— “Os sinais de que a fronte está marcada
Deste homem por um anjo” — diz meu Guia —
24 “To mostram di’no da eternal morada,

“Mas, como aquela, que, incessante fia,
Não lhe havia inda a estriga consumido,
27 Que impõe Cloto ao que a vida principia,

“Subir só não teria ao céu podido
A sua alma, irmã tua, como é minha,
30 Pois não há, como nós, ver conseguido.

“Do inferno às fauces fui tirado asinha
Para guiá-lo, e o guiarei contente
33 No que do meu saber não passe a linha.

“Se puderes, me diz, por que o eminente
Monte, há pouco, tremeu, e desde a c’roa
36 À base retumbou clamor ingente.” —

A pergunta ao desejo tão boa soa,
Que ouvi-la a sede ardente me alivia,
39 Somente uma esperança mitigou-a.

— “Quanto hás notado” — a sombra respondia —
“Em nada os ritos da montanha altera:
42 De estranheza motivo não seria.

“Mudança aqui supor se não pudera:
Subindo ao céu quem pertencer-lhe deve,
45 A causa dá-se que esse efeito opera.

“Nunca saraiva, chuva, orvalho ou neve
Nesta montanha cai, passando a altura
48 Dos três degraus que estão na escada breve.

“Aqui não vê-se nuvem clara ou escura,
Relâmpago não luz, nem de Taumante
51 Mostra-se a filha, que tão pouco dura.

“Jamais daqueles três degraus avante,
Em que de Pedro o sucessor domina,
54 Seco vapor se eleva um só instante.

“Tremor talvez a sua base inclina;
Mas não atua no alto oculto vento,
57 Que não sei como dentro se amotina.

“Quando já de estar puro o sentimento
Uma alma tem e se ala ao céu, que a chama,
60 Segue o tremor e o grito ao movimento.

“Seu querer a pureza lhe proclama,
Prova que tem de alçar-se a liberdade
63 Por força do desejo, em que se inflama.

“Antes o tem; mas contra essa vontade
A divina justiça ardor lhe inspira
66 Por pena, como o teve por maldade.

“Eu que em martírio decorridos vira
Anos quinhentos, à melhor morada,
69 Momentos poucos há, pus livre a mira.

“Eis do tremor a causa declarada!
Do Senhor eis por que, louvor cantando,
72 Rogou cada alma em breve ser chamada!” —

Calou-se. E como, a tanto mais gozando
Está quem bebe, quanto é mor a sede,
75 Indizível prazer tive escutando.

— “Vejo” — disse Virgílio — “agora a rede,
Que vos prende e depois dá liberdade,
78 Donde o tremor e o júbilo procede.

“Explicar-me te praza ainda, em verdade,
Quem tu foste e a razão por que hás jazido
81 Séc’los tantos em tanta asperidade.” —

— “No tempo em que o bom Tito, protegido
Por Deus, vingou as chagas que verteram
84 Sangue, por Judas” — replicou — “vendido,

“Na terra o nobre título me deram,
Que mais honra perdura, e fui famoso:
87 Inda os lumes da fé me não vieram.

“Dos meus cantos o som foi tão donoso,
Que de Tolosa a si me atraiu Roma:
90 C’roas me deu de mirto glorioso.

“De Estácio o nome ainda o tempo doma;
Tebas cantei e Aquiles esforçado:
93 Este das forças me exauriu a soma.

“Do vivo ardor, que a mente me há tomado,
Na flama divinal a causa estava,
96 Que em milhares de engenhos há brilhado.

“Mãe e nutriz a Eneida me alentava;
Estro bebi caudal no seio puro;
99 Quanto vali da Eneida derivava.

“Para viver no tempo (te asseguro)
Em que existiu Virgílio, mais um ano
102 Passara no, que deixo, exílio duro.” —

Estas vozes ouvindo, o Mantuano
Olhou-me. — Cala-te! — sem falar dizia;
105 Mas a vontade está sujeita a engano.

Ou no pranto ou no riso se anuncia
Tão rápida a paixão, quando se acende,
108 Que o querer nos sinceros prende e lia.

Sorri-me, como que sagaz, compreende.
Calou-se o esp’rito; e me encarava atento
111 Nos olhos onde a mente mais se entende.

— “Sejas” — disse — “feliz no excelso intento!
Explica-me, porém, por que em teu rosto
114 Lampejar vi sorriso de momento.” —

Entre os extremos dois estava eu posto:
Um diz — silêncio! — outro a falar me instiga.
117 Suspiro, e o Mestre atenta em meu desgosto.

Responde, que ao silêncio nada obriga,
“Fique” — disse — “a verdade bem patente,
120 O que anela saber ele consiga.” —

— “Maravilha causou provavelmente” —
Tornei-lhe — “antigo espírito, o meu riso;
123 Maior será me ouvindo, certamente.

“Virgílio é quem me guia ao Paraíso:
Para deuses e heróis cantar tiveste
126 Por ele o esforço que lhe foi preciso.

“Se outra causa em meu riso supuseste,
Te enganaste: o motivo declarado
129 Nas palavras está que lhe disseste.” —

Quer os pés abraçar do Mestre amado,
E o Mestre: — “Irmão, que fazes?” — lhe dizia —
132 “Vê que és sombra e de sombra estás ao lado!”

Erguendo-se ele: — “Tanto me extasia
O amor” — disse — “em que por ti me acendo,
Que da nossa vaidade me esquecia,

136 Tratar sombras, quais corpos, pretendendo.” —



2-3. Água que suplica etc., a água simbólica que a Samaritana pediu a Jesus, isto é, a verdade. — 7. Como escreve Lucas, Evang. XXIV, 13-15. — 25. Aquela que, incessante fia etc., Laquesis não fiara ainda todo o fio que Cloto ajuntou e que representa o decorrer da vida dos homens. — 48. Dos três degraus, onde está a porta do Purgatório. — 50. De Taumante a filha, Íris, mensageira de Juno, foi transformada em arco-íris. — 53. O sucessor de Pedro, o anjo. — 82-83. O Bom Tito, vingou as chagas etc., Tito, destruindo Jerusalém, vingou a morte de Jesus Cristo. — 91. Estácio, o poeta latino Papinio Estácio, autor de “Tebaida”, morto no ano 96, d.C.

CANTO XXII



Subindo ao sexto compartimento, Estácio diz a Virgílio que, não pelo pecado da avareza, mas pela sua prodigalidade, teve de ficar muito tempo no quinto compartimento; e, por não ter declarado publicamente a sua conversão ao cristianismo, precisou ficar muito tempo no quarto compartimento. Virgílio o informa a respeito de muitos ilustres personagens da antigüidade que estão no Limbo. Chegando os Poetas no sexto compartimento, encontram uma árvore cheia de pomos perfumados, da qual saem vozes que louvam a virtude da temperança.



O ANJO atrás já tínhamos deixado,
Que para o sexto círc’lo nos guiava,
3 Um P na fronte havendo-me apagado.

E à turba, que a justiça desejava,
Tinha dito Beati docemente
6 Com sitio e, após tais vozes, se calava.

Mais que em toda a jornada antecedente
Eu, ligeiro, seguia sem fadiga
9 Os Vates, que subiam velozmente.

— “Aquele amor, com que virtude instiga,
Reproduz” — disse o Mestre — “a própria chama
12 Mostras de si apenas dar consiga.

“Dês que, da vida terminada a trama,
Do inferno ao limbo, Juvenal descendo,
15 Saber me fez o afeto, que te inflama,

“Tão vivo bem-querer sabe te rendo,
Quanto haver pode a incógnita pessoa,
18 Contigo ora suave andar me sendo.

“Mas dize (e como amigo me perdoa,
Se em falar há nímia confiança
21 E em prática amigável arrazoa):

“Como avareza fez em ti liança
Com ciência, que o estudo te alcançava
24 E em que punhas cuidados e esperança?”

Às palavras do Mestre pronto estava
Estácio, e lhe sorrindo: — “O que me hás dito
27 Penhor caro é de afeto” — lhe tornava.

“Muitas vezes da dúvida o conflito
Por aparência errônea é suscitado,
30 Até que a exata causa surja ao esp’rito.

“Fica em tua pergunta declarado
Creres que eu fora avaro noutra vida,
33 Por ser no círc’lo a avaros destinado.

“Pois sabe que a avareza repelida
Por mim foi nimiamente, e a demasia
36 De luas em milhares foi punida.

“Minha alma eterno fardo volveria,
Se atenção tanta em mim não despertasse
39 A indi’nação, que nos teus versos via,

“Quando lançaste dos mortais à face:
— “A que extremos impeles os humanos,
42 Fome de ouro sacrílega e rapace!” —

“Então do excesso em despender, os danos
Aprender pude, agro pesar sentindo
45 Desse pecado e de outros tantos insanos.

“Chorarão, tosquiados ressurgindo,
Quantos não têm sabido à penitência
48 Dar-se em vida ou sua hora extrema em vindo!

“Cada culpa e a que tem contrária essência
Aqui a pena dão conjuntamente,
51 No martírio expurgando a virulência.

“Estive entre essa turba penitente,
Que o desvario chora da avareza
54 Por ter sido no oposto renitente.” —

— “Quando cantaste de armas a crueza,
Que duplamente molestou Jocasta” —
57 Disse o cantor da pastoril simpleza —

“Pois que de Clio então o ardor te arrasta,
Inda o fervor da fé não te incendia,
60 E o bem sem fé para salvar não basta:

“Que sol, que estrela, em treva tão sombria
Te aclarou e dessa arte alçar pudeste
63 Velas após o pescador, que se ia?” —

— “Primeiro” — disse Estácio — “tu me deste
Do Parnaso a beber na doce fonte
66 E de Deus santa luz ver me fizeste.

“Hás sido, como à noite o guia insonte,
Que leva a luz, mas o seu bem não prova,
69 E aqueles serve, de quem vai na fronte,

“Quando disseste — “O séc’lo se renova,
Volta a justiça, volta a idade de ouro,
72 E progênie do céu descende nova.” —

“Por ti ganhei a fé, de vate o louro:
Isto deve, porém, ser-te explicado;
75 Dê ao desenho a cor de claro o foro,

“Já stava o mundo inteiro alumiado
Da vera crença que do reino eterno
78 Os mensageiros tinham propagado.

“O vaticínio teu, Mestre superno,
Aos predicantes novos se adatava;
81 Por isso, os freqüentando, o bem discerne.

“Tanto a virtude sua me enlevava,
Que, quando os perseguiu Domiciano,
84 Ao pranto seu meu pranto acompanhava.

“Enquanto estiver no viver humano,
Dei-lhes socorro e o seu exemplo austero
87 Ódio inspirou-me às seitas do erro insano.

“Antes já de cantar o cerco fero
De Tebas no batismo renascera:
90 Mas, de medo, ocultei meu crer sincero.

“Gentio largo tempo eu parecera;
Por isso hei tantos séc’los padecido
93 No círc’lo quarto; a pena merecera.

“Tu a quem devo, pois, ter conseguido
O véu rasgar, que tanto bem cobria.
96 Pois que tempo em subir é concedido,

“Onde Terêncio diz-me ora estancia?
Onde está Plauto Varro com Cecílio?
99 À qual parte do inferno a culpa os lia?” —

— “Aqueles, Pérsio e eu” — tornou Virgílio —
E os outros mais o Grego acompanhamos
102 Predileto das Musas; lá no exílio

“Do círculo primeiro demoramos
Vezes freqüentes do famoso monte,
105 Das Camenas assento praticamos.

“Eurípede é conosco e Anacreonte,
Simônide, Agaton e outros inda
108 Gregos, que cingem de laurel a fronte.

“Stão heroínas, que cantaste: a linda
Antígone, Deifile com Argia,
112 Ismênia, em quem tristeza nunca finda;

“Vê-se também a que mostrou Langia,
Tétis se vê e de Tirésia a filha,
114 E das irmãs Deidama em companhia” —

Os dois, da poesia maravilha,
Calaram-se, ao que os cerca atentos stando,
117 Vencida sendo da subida a trilha.

Das ancilas do dia atrás ficando
A quarta, logo a quinta se jungia
120 Ao carro ardente, ao alto o encaminhando,

“Quando o Mestre — “Eu suponho” — nos dizia
“Que nós à destra caminhar devemos,
123 Volteando, como antes se fazia.” —

Desta arte na exp’riência a mestra havemos,
E no andar prosseguimos confiados,
126 Porque de Estácio o assenso recebemos.

Iam diante os Vates afamados,
E eu logo após, nas vozes escutando
129 Arcanos da poesia sublimados,

Eis rompe esse colóquio doce e brando
Uma árvore, que à estrada em meio achamos:
132 Lindos pomos na fronde estão cheirando.

Vão para cima decrescendo os ramos
De abeto; estes descendo diminuem:
135 Para alguém não subir — acreditamos.

Límpidos jorros do penedo ruem
Da parte, em que a montanha a entrada mura;
138 Sobre as folhas em rocio as gotas fluem.

Estácio com Virgílio se apressura
Para essa árvore, quando voz, da fronde,
141 Gritou: — “Não gozareis desta doçura!

“Maria (e o seu desejo não se esconde)
Atende mais das bodas à grandeza
144 Que ao seu gosto; e por vós ora responde.

“Das Romanas à antiga singeleza
Água bastava; e Daniel ciência
147 Logrou, tendo em desprezo a régia mesa.

“Chamou-se de ouro a idade da inocência;
Fez as glandes a fome saborosas;
150 Água em néctar tornou da sede a ardência.

“Ao Batista iguarias bem gostosas
Mel, gafanhotos foram no deserto:
Assim fez grandes obras gloriosas,

154 “Como pelo Evangelho ficou certo.” —



5-6. Beati etc., S. Mateus V, 6: “Beati qui esurient et sitium justitiam.” — 14. Juvenal, poeta satírico latino. — 56. Jocasta, mãe de Eteocles e Polinices, irmãos inimigos que originaram a guerra de Tebas. — 58. Clio, musa da história. — 63. O pescador, S. Pedro. — 83. Domiciano, imperador romano que reinou do ano 81 ao 96. d.C. — 97-100. Terêncio, Plauto, Varro, Cecilio, Pérsio, poetas latinos. — 101-102. O grego... predileto das Musas, Homero.— 106-107. Euripedes, Simônides, Anacreonte, Agaton, poetas gregos. — 110. Antígone, filha de Édipo, rei de Tebas; Deifile, esposa de Tideo; Argia, esposa de Polinice. — 111. Ismênia, filha de Édipo. — 112. A que mostrou Langia, Isifiles, que mostrou o rio Langia às tropas sedentas de Adrastro. — 113. Tétís, mãe de Aquiles; de Tirésia a filha, Dafne. — 114. Deidama, filha do rei Licomedes. — 142-144. Maria etc., a mãe de Jesus para honrar a festa dos noivos de Caná, pediu ao filho que transformasse a água em vinho. — 146-147. Daniel etc., o profeta Daniel que adquiriu sabedoria pela sua abstinência.

CANTO XXIII



No sexto compartimento estão as almas dos gulosos. Elas são atormentadas pela fome e pela sede; Dante descreve a sua horrível magreza. O Poeta reconhece o seu parente Forense Donati, o qual louva a sua viúva, Nella, e repreende a impudicícia das mulheres florentinas.



FITAVA os olhos sobre a rama verde,
Qual caçador, que após um passarinho,
3 Correndo, parte da existência perde.

Quando o que me era mais que pai: — “Filhinho,
O tempo” — disse — “que nos está marcado,
6 Quer mais útil emprego. Eia! a caminho!” —

Voltando o rosto, a passo acelerado
Os sábios sigo e, atento ao que falavam,
9 Não me sentia, andando, fatigado.

Plangentes vozes súbito entoavam
Labia, Domine, mea por maneira,
12 Que piedade e prazer me provocaram.

— “Do que ouço”— disse então — “ó Pai, me inteira.”—
— “Almas” — tornou — “talvez que o meio tentam,
15 Que o peso à sua dívida aligeira.” —

Peregrinos solícitos que atentam
Só na jornada, achando estranha gente,
18 Vontam-se apenas, mas o passo alentam:

Tal após nós vem turba diligente;
Em devoto silêncio se acercava;
21 Olhou-nos e afastou-se prestamente.

Os olhos encovados nos mostrava,
Pálida a face e o rosto descarnado,
24 Sobre os ossos a pele se estirava.

Não creio que Erisicton devastado
Tanto da fome horrível estivesse
27 Quando das forças viu-se abandonado.

Eu cogitava: — “O povo aqui padece,
Que Solima perdeu, quando Maria
30 Carnes comeu ao filho, que perece.” —

Cad’olho anel sem pedra parecia:
O que na humana face lesse “omo”
33 Bem claro o M aqui distinguiria.

Quem crer pudera, não sabendo como,
Efeito de desejo ser, nascido
36 Do frescor de água, junto a odor de pomo?

Atônito inquiria o que haja sido
De tal fome a razão, não manifesta,
39 Que tal magreza tenha produzido,

Eis lá da profundez da sua testa
Uma alma olhos volvia e me encarava,
42 Gritando: — “Mereci graça como esta?” —

Quem fora o gesto seu não me indicava;
Mas tive pela voz prova segura
45 Do que o aspecto seu não revelava.

Foi súbito clarão em noite escura,
Do rosto avivou traços deformados
48 Forese conheci nessa figura.

— “Ai! não fiquem teus olhos assombrados”
— Dizia — “a lepra ao ver que me descora,
51 E estes ossos mesquinhos, descarnados!

“Dize a verdade de ti próprio agora:
De quais almas te vejo companheiro?
54 Não haja, rogo, em responder demora.” —

— “Como outrora é meu dó tão verdadeiro,
Vendo-te o vulto que chorei já morto,
57 Tão dif’rente do que era de primeiro,

“Dize, por Deus, por que és tão sem conforto:
Tolhe-me a fala a vista, que me espanta;
60 Responder-te não posso, em mágoa absorto.” —

— “De tal poder” — tornou — “essa água e planta
Sabedoria eterna tem dotado,
63 Que consumação em mim produziu tanta.

“Os que o rosto, cantando, têm banhado
De pranto, havendo entregue à gula a vida,
66 Sobem, na fome e sede, o santo estado.

“A fome, a sede sente-se incendida
Dos pomos pelo aroma e por frescura
69 Das águas, sobre as ramas espargida.

“Cada vez que giramos na fragura,
Revive nossa pena e mais agrava;
72 Erro chamando pena o que é doçura.

“Esse desejo ardente de nós trava,
Que fez Cristo dizer — Eli! contente,
75 Quando o sangue em prol nosso na Cruz dava.” —

— “Forese” — hei respondido incontinênti —
“Dês que deixaste a terreal morada
78 Passaram-se anos cinco escassamente;

“Se a força de pecar stava esgotada
Antes de vir da dor bendita a hora,
81 Em que alma é com seu Deus conciliada,

“Como te vejo nesta altura agora?
Lá embaixo encontrar-te acreditara,
84 Onde o tempo com tempo se melhora.” —

— “Conduziu-me tão cedo Nela cara,
Por pranto, que incessante há derramado,
87 Do martírio a tragar doçura amara.

“De orações e suspiros sufragado
Assim, me alcei da encosta, onde se espera,
90 E fui dos outros círc’los resgatado.

“Tanto mais Deus com dileção esmera
Aquela, que extremoso amei na terra,
93 Quanto, só, em virtude ela é sincera.

“Pois a Barbagia de Sardenha encerra
Mulheres por pudor bem mais notadas,
96 Que a Barbagia, onde o vício acende guerra.

“Queres tu, doce irmão, manifestadas
Idéias minhas? Pouco dista o dia
99 Das vozes nesta prática empregadas,

“Em que proíba o púlpito a ousadia
Das impudentes damas florentinas,
102 Que têm, mostrando os seios, ufania.

“Morais ou quaisquer outras disciplinas
Hão mister para andarem bem cobertas
105 As mulheres pagãs ou marroquinas?

“Mas, se tais despejadas foram certas
Do castigo, que está-lhes iminente,
108 Bocas teriam para urrar abertas.

“E, se, antevendo, não me engana a mente,
Grande angústia hão de ter antes que nasça
111 Barba ao que em berço embala-se inocente.

“Ah! de dizer quem sejas faz-me a graça!
Não por mim; mas a turba atenta mira
114 Teu corpo e a sombra, que com ele passa.” —

— “Se agora à mente” — eu disse — “te surgira
O que outrora um pra o outro havemos sido,
117 Desprazer inda agudo te pungira.

“Há pouco, me há do mundo conduzido
Quem me precede; havia então rotunda
120 A irmã do que vês aparecido.” —

E o sol mostrei — “Por noite a mais profunda
Dos verdadeiros mortos me há guiado,
123 Quando a carne inda os ossos me circunda.

“Tenho depois, por ele confortado,
Desta montanha pelos círc’los vindo,
126 Que em vós corrige o que trazeis errado.

“Quanto disse, acompanha-me, cumprindo
Té onde a Beatriz veja o semblante:
129 Então sem ele avante irei seguindo.

“Ei-lo! É Virgílio o guia meu constante!
É aquele outro a sombra venturosa
Por quem o vosso reino, vacilante,

133 Tremeu, quando partiu-se jubilosa.” —



11. Labia mea etc., verso 17 do Salmo 50: “Abre-me os lábios, ó Senhor, e a minha boca te louvará.” — 25. Erisiton, tendo injuriado a Geres foi punido com fome insaciável. — 28-29. O povo aqui padece çue Solima perdeu etc., o povo de Jerusalém sofreu tanto a fome, que, segundo o historiador hebreu Flavio José, uma mulher chamada Maria comeu o seu próprio filho. — 32. O que na humana face lesse “omo“, na face humana está escrita a palavra “omo“ (homem), os olhos representando os dois o e o nariz com as sobrancelhas o m. — 48. Forese Donati, parente de Dante, morto em 1296. — 74. Cristo dizer: Eli!, Cristo crucificado, pouco antes de morrer, disse: “Eli, Eli, lamma sabactani”, isto é: “Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?”

CANTO XXIV



Forese mostra a Dante outras almas de gulosos, entre as quais a de Bonagiunta de Lucca, que prediz ao Poeta que se enamorará de uma mulher da sua cidade, e lhe louva o estilo da poesia. Procedendo, os Poetas encontram outra árvore e ouvem outros exemplos de intemperança castigada.



NÃO era o passo e o praticar mais lento
Um do que outro; igualmente prosseguiam,
3 Qual nau servida por galerno vento.

As sombras, que duas vezes pareciam
Mortas, nos cavos olhos grande espanto,
6 De estar eu vivo certas, exprimiam.

Eu, a falar continuando, entanto,
Disse: — “Conosco para ir retarda
9 Sua ascensão essa alma ao reino santo.

Mas, rogo-te declara: onde é Picarda?
Afamada por feitos há pessoa
12 Entre a gente, que sôfrega me esguarda?” —

— “Tanto era minha irmã gentil e boa
Que não sei qual foi mais: triunfa leda
15 No Olimpo, onde alcançou formosa c’roa.

“Nomes dizer de mortos não se veda
Aqui” — Forese torna; e logo ajunta: —
18 “Tanto a fome as feições nossas depreda!”

“Este que vês de Lucca é Bonagiunta;
E aquela alma (seu dedo ia apontando),
21 Mais que todas desfeita, que lhe é junta,

“Foi Tours; já na Igreja exerceu mando.
Stá, por jejuns, anguilas de Bolsena,
24 Ver na ceia, afogadas, expurgando.” —

Muitos mais nomeou, que sofrem pena;
E todos demonstravam star contentes
27 De ouvir dizer Forese o que os condena.

Em vão de fome vi mover os dentes
Ubaldino de Pila e Bonifaço,
30 Que regeu com seu bago muitas gentes.

Misser Marchese vi, que largo espaço
Com menos sede em Forli consumia.
33 Em beber; mas julgava-o inda escasso.

Mas, como o que repara e que aprecia
Escolhendo, ao de Lucca eu me inclinava,
36 Porque mais conhecer-me parecia.

Submissa voz da boca lhe soava,
Causa do mal, que trouxe-lhe o castigo:
39 “Gentucca” ou não sei que pronunciava.

— “Ó alma” — disse — “que falar comigo
Queres, ao claro te explicar procura:
42 Satisfeita serás como contigo.

— “Mulher nasceu, mas inda é virgem pura,
Por quem” — torna — “hás de amar minha cidade,
45 Posto assunto haja sido de censura.

“Este prenúncio levas da verdade;
Se por meu murmurar te hás enganado,
48 Trazer-te há de o porvir à claridade,

“Se vejo aquele diz, que à luz há dado
Versos novos, que assim têm seu começo:
51 Damas que haveis de amor na mente entrado.

— “Que vês em mim” — lhe respondi — “confesso
Quem screve o que somente Amor lhe inspira:
54 O que em meu peito diz falando expresso.

“O óbice ora vejo que eu não vira
Que ao Notário a Guittone a mim tolhia
57 O doce estilo da moderna lira.

“As vossas plumas vejo que à porfia
Seguem de perto o inspirador potente;
60 Tanto alcançar às nossas não cabia.

“Quem, por mais agradar, mais alto a mente
Erguer que, não discerne um do outro estilo.”
63 Disse e calou-se de o dizer contente.

Como aves, que no inverno o noto asilo
Buscando ora num bando incorporadas,
66 Ora em fila apressadas vão-se ao Nilo,

Essas almas assim já demoradas,
Volvendo o rosto rápidas fugiram,
69 Da magreza e vontade auxiliadas.

Como aquele a quem forças se esvaíram
Correndo afrouxa os passos para o alento
72 Cobrar, em quanto os sócios se retiram;

Forese assim que a passo andava lento
Deixou passar a santa grei dizendo:
75 — “Quando de ver-te inda terei contento?” —

— “Quanto haja de viver” — fui respondendo —
“Não sei; por menos que me dure a vida
78 Mais ao seu termo os meus desejos tendo.

“Que onde foi a existência concedida
Mais escassa a virtude é cada dia:
81 Ruína espera triste e desmedida.

— “O que mor culpa tem” — me retorquia —
“À cauda de um corcel vejo arrastado
84 Ao vale, onde o pecado não se expia:

“Vai sempre, sempre mais acelerado
Aquele bruto na carreira fera:
87 Fica vilmente o corpo lacerado.

“Não há de girar muito cada espera
(Para o céu se voltava) antes que seja
90 Claro o que te explicar eu não pudera.

“Adeus, porém: quem neste reino esteja
Ao tempo dê seu preço verdadeiro;
93 O que eu perco ao teu lado já sobeja.”

Como a campanha deixa um cavaleiro,
A galope veloz se arremessando,
96 Por ter na liça as honras de primeiro:

Forese assim de nós foi-se alongando.
Fiquei dos dois espíritos ao lado,
99 Que o mundo está por mestres proclamando.

Quando em distância tanta era apartado,
Que as vistas nesse andar o acompanharam,
102 Como a mente ao que havia revelado.

Eis perto aos olhos meus, que se voltaram,
De outra árvore de pomos carregada
105 Os ramos vicejantes se mostraram.

As mãos alçava multidão cerrada
À fronde em brados; turba semelhava
108 De infantes, por desejos vãos turbada,

Um objeto implorando a quem negava,
E que o mostrando ainda mais acende
111 Desejo, que a cobiça lhes agrava.

Foi-se, porém, porque ninguém a atende.
Da grande árvore então nos acercamos,
114 Que a todo o rogo e pranto desatende.

Uma voz de entre as folhas escutamos:
— “Ide-vos logo; não chegueis ao perto!
117 Eva o fruto há mordido de outros ramos:

“Stão longe estes de lá provêm de certo.” —
Então de lado os passos dirigimos,
120 Unidos no caminho, que era aberto.

— “Lembrai esses malditos” — inda ouvimos —
“Filhos das nuvens, duplos na figura,
123 Que atacaram Teseus, ébrios cadimos;

“E os que em beber acharam tal doçura,
Que os não quis Gedeão na companhia,
126 A Madiã marchando lá da altura.”

Por junto à borda o passo se volvia,
E as penas escutamos dos pecados
129 Mortais, que outrora a gula cometia.

Já pela estrada solitária entrados,
Demos mais de mil passos inda avante,
132 Contemplando, em silêncio mergulhados.

— “Em que cismais vós outros?” — retumbante
Soou voz. — Fiquei logo em sobressalto
135 Como o corcel de medo titubante.

Para ver levantei a fronte ao alto:
Aos olhos, dera em fusão, no forno ardente,
138 Vidro ou metal não dera igual assalto,

Como o anjo que eu vi resplendecente.
Dizia: — “A volta dai para a subida!
141 Quem quer paz para aqui vai certamente.” —

Daquele aspecto a vista foi tolhida:
Como quem pelo ouvido os passos guia,
144 Fui caminhando, aos Vates em seguida.

E qual aura de maio, que anuncia
A alvorada, das flores espalhando
147 E das ervas o aroma, que extasia,

Tal sobre a fronte um sopro senti brando,
Senti mover-se a pluma: então rescende
150 Odor celeste, o olfato me enlevando

Dizer senti: — “Feliz o que se acende
Na Graça o que, da gula desligado,
Ao sabor do apetite não se prende,

154 Comendo quanto é justo sem pecado!” —




10. Picarda, irmã de Forese Donati. — 19. Bonagiunta degli Orbicciani, poeta contemporâneo de Dante. — 22. Tours, o papa Martinho IV, que foi cônego da catedral de Tours. — 29. Ubaldino de Pila, de nobre família pisana. — Bonifaço, Bonifazio dei Fieschi, arcebispo de Ravenna. — 31. Messer Marchese de Rigogliosi, gentil-homem de Forli. — 39-43 Gentucca, senhora de Lucca, que Dante amou, quando em 1314 esteve em Lucca na casa do seu amigo Uguccione della Faggiuola. — 51. Damas etc., primeiro verso de uma canção de Dante em louvor de Beatriz. — 56. O notário, Jacopo de Lentini. — Guittone de Arezzo. — 82. O que mor culpa tem, Corso Donati, irmão de Forese, chefe do partido dos Pretos, foi assassinado em 1308. — 121-123. Esses malditos... filhos das nuvens etc., os Centauros, que foram mortos por Teseu quando tentavam raptar Ipodamia. — 124-126. Os que não quis Gedeão etc., os soldados hebreus que Gedeão, seguindo os conselhos de Deus, não quis por companheiros, porque beberam avidamente, ajoelhando-se na fonte.



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