INFERNO ... Cantos I-V ... VI-XI ... XII-XVII ... XVIII-XXIII ... XIV-XXIX ... XXX-XXXIV
PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII
PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII
CANTO XIX
No
sono, Dante tem uma visão misteriosa. Acordando, conta-a a Virgílio, o qual a
explica. Sobem, depois, os Poetas ao quinto compartimento, no qual se purificam
os avarentos, debruçados no chão. Entre eles está o papa Adriano V, Ottobuono
de Fieschi, que lhe pede que a recomende à sua sobrinha Alagia.
CHEGADA
essa hora, em que o calor diurno
Não
mais da lua a frigidez aquece,
3
Pela terra vencido ou por Saturno,
Quando
ao geomante fúlgida aparece
A
Fortuna Maior lá no Oriente,
6
Donde rápida a noite se esvaece,
Sonhando
vi mulher balbuciente,
Que
vesga era nos olhos, nos pés torta,
9
De mãos truncadas e de tez palente.
Eu
a encarava; e como o sol conforta
Os
membros a que a noite o frio agrava,
12
Ao meu olhar assim a quase morta
Língua
movia; o corpo já se alçava,
E
no terreno e lívido semblante
15
A cor, que amor estima, se mostrava.
Soltando
a voz, há pouco titubante,
Doce
canto entoava tão donosa,
18
Que me absorvia o enlevo inebriante.
—
“Sereia sou” — cantava — “deleitosa,
Que
da rota desvia os mareantes,
21
Tanto prazer lhes movo poderosa.
“Detiveram
meus cantos fascinantes
Ulisses
vago; e raros me deixaram,
24
A todos prende o som dos meus descantes.” —
Junto
a mim, mal seus lábios se fecharam,
Eis
se mostrava dama santa e presta:
27
A sereia os seus olhos conturbaram.
—
“Dize, ó Virgílio: que mulher é esta?” —
Bradava
irosa; e o Vate lhe acorria.
30
Respeitoso ante aquela face honesta.
Dela
a dama travava e prosseguia,
Seus
véus rasgava, o ventre desnudando:
33
Desperto ao cheiro infando que saía.
Olhos
abri. Virgílio, me falando:
—
“Três vezes te chamei” — disse — “eia! asinha
36
Vamos, o passo onde entres, procurando.” —
Ergui-me
logo. Alumiados tinha
O
dia os círculos todos do alto monte;
39
Pelas costas surgindo o sol nos vinha.
Após
o Mestre se me inclina a fronte,
Como
a quem, de cuidados oprimido,
42
Curva a cerviz, semelha arco de ponte,
—
“Aqui se passa: vinde!” — proferido
Foi
por voz tão suave, tão beni’na,
45
Que não fora igual som na terra ouvido.
Da
rocha entre os dois muros nos desi’na
Quem
falara, o caminho, asas abrindo,
48
Que tem do cisne a alvura purpurina.
Depois
as níveas plumas sacudindo,
—
“Os que choram” — bradou — “são venturosos
51
De consolo a esperança possuindo!” —
—
“Por que os olhos no chão fitas cuidosos?” —
O
Mestre perguntou, depois que alçou-se
54
Voando o anjo aos ares luminosos.
—
“Em recente visão, Senhor, mostrou-se
Imagem”
— respondi — “que tanto instiga
57
Que inda a sua impressão não mitigou-se.” —
—
“A mágica” — me disse — “viste antiga,
Que
lá mais alto tanta dor motiva?
60
Como o homem viste dela se desliga?
“Não
mais! Avante segue, o alento aviva!
Olhos
volve ao reclamo, com que gira
63
Do Rei Eterno cada esfera altiva.” —
Como
faz o falcão, que os pés remira,
Depois
ao grito acode e, acelerado,
66
Contra a ralé, que avista, ao ar se atira:
Assim
eu; e por onde era cortado,
Para
trânsito dar ao monte erguido,
69
Corri té outro círculo, apressado.
Tendo
ao círculo quinto já subido,
Jazer
vi turba inúmera em lamento:
72
Para baixo era o rosto seu volvido.
“Adhaesit
anima mea pavimento” —
Com
tanta dor diziam suspirando,
75
Que da voz mal caí no entendimento.
—
“Dizei, de Deus eleitos, que, penando,
Colheis
alívio na justiça e esp’rança,
78
Por onde ao cimo iremos caminhando.” —
—
“Se a nossa punição não vos alcança
E
mais pronta quereis ter a subida,
81
À direita e por fora que se avança.” —
Do
meu Guia a pergunta respondida
Foi
por uma alma, que adiante estava:
84
Ser outra idéia eu cri nisso escondida.
Então,
olhos voltando, interrogava
Virgílio,
que aprovou com ledo gesto
87
O desejo, que o rosto denotava.
Da
permissão do Mestre usando presto,
Daquele
ente acerquei-me doloroso,
90
Que se fez por palavras manifesto.
—
“Tu, que, expiando as culpas lacrimoso,
Apressas
de te erguer à glória o dia,
93
Por mim pára em teu pranto fervoroso.
“Quem
foste? Por que assim jazeis?” — dizia
“No
mundo, donde venho vivo, impetre
96
Por teu bem querer cousa da valia?” —
—
“Convém que o teu espírito penetre
Desta
pena a razão; porém primeiro
99
Scias quod ego fui sucessor Petri.
“Do
meu solar o título altaneiro
Origem
teve nesse rio belo,
102
Que entre Chiaveri e Siestre flui ligeiro
“Em
pouco mais de um mês vi que desvelo
Custa
guardar o grande manto puro:
105
Todo outro fardo é pluma em paralelo.
“Quanto
— ai de mim! — de converter fui duro!
Mas,
apenas Pastor em Roma eleito,
108
Eu soube quanto mente o mundo impuro.
“Não
gozou paz, nem quietação meu peito;
Mais
alto já subir se não pudera:
111
Então da vida eterna ardi no afeito.
“Minha
alma, triste e mísera, perdera
De
Deus o amor em sórdida avareza:
114
Esta pena, que vês, bem merecera
“De
tal pecado mostra-se a graveza
Aqui
pelo castigo, em que se expia:
117
No monte outro não há de mor asp’reza.
“Como
ao céu nossa vista não se erguia,
Nas
cousas terreais embevecida,
120
Assim justiça à terra a prende e lia.
“Como
a avareza em nós tinha extinguida
A
propensão ao bem, aos santos feitos,
123
Assim nos tem justiça a ação tolhida.
“Pés
e mãos ata em vínculos estreitos:
Enquanto
a Deus prouver, nós, estendidos,
126
Imóveis estaremos nesses leitos.” —
De
joelhos e de olhos abatidos
Quis
falar-lhe; mas ele, conhecendo
129
Esse meu ato só pelos ouvidos,
—
“Por que te curvas?” — me atalhou dizendo.
—
“Em reverência à vossa dignidade:
132
Cumpro um dever dessa arte procedendo.” —
—
“Ergue-te, irmão! Não erres! Em verdade,
Eu
como tu, e o universo inteiro
135
A lei seguimos de uma só vontade.
“Do
Evangelho o sentido verdadeiro
Que
disse — neque nubente — se entendeste,
138
Verás o meu pensar quanto é certeiro.
“Vai-te
agora, demais te detiveste.
Saudável
pranto empece a tua estada:
141
Perdão apressam lágrimas, disseste.
“Sobrinha
tenho, Alagia foi chamada:
É
boa, se da raça tão funesta
Não
pervertê-la a tradição danada.
145
Somente esta no mundo ora me resta.” —
1.
Essa hora etc., a manhã, pouco antes do alvorecer. — 5. A Fortuna maior, uma
das combinações que os geomantes desenhavam para adivinhar a sorte e que se
parecia à constelação do Aquário e, em parte, à dos Peixes. — 7. Mulher
balbuciente etc., símbolo dos vícios. — 19-26. Dama Santa, símbolo da prudência
e das virtudes — Sereia — metade mulher e metade peixe. — 62. Reclamo,
instrumento com o qual o caçador atrai as aves. — 73. Adhaesit anima mea
pavimento, a minha alma esteve pregada ao chão (às coisas materiais), Salmo C
XIX, 25. — 99. Scias quod ego fui sucessor Petri, saibas que fui sucessor de
Pedro. É o espírito do papa Adriano V, Ottobuono dei Fieschi, conde de Lavagna.
— 137. Neque nubent, palavras de Jesus aos saduceus; no Céu não há núpcias. Com
essa expressão Adriano V quer que Dante entenda que ele não deve mais
considerá-lo esposo ou chefe da Igreja. — 142. Alagia dei Fieschi, casada com
Moroello Malaspína.
CANTO XX
Os
dois poetas ouvem uma alma recordar exemplos de pobreza honesta e da
generosidade benfazeja. É Hugo Capeto, fundador da casa dos reis da França, o
qual censura asperamente os seus descendentes. Ouve-se, no entanto, tremer o
monte e cantar “Gloria in excelsis Deo.”
EM
luta, o bem querer ao mau se alteia.
Por
contentar essa alma, eu, descontente,
3
Da água tirei a esponja, inda cheia.
Sigo
os passos do guia diligente,
Do
monte à extrema borda caminhando,
6
Como em muro entre ameias, cautamente.
O
espaço mais largo enchia o bando,
Que
a avareza, do mundo atroz imiga,
9
Expurga, pranto em fio derramando.
Maldita
sempre seja, Loba antiga,
Mais
do que as outras feras cobiçosas!
12
Jamais a fome tua se mitiga!
Ó
céu, cuja carreira portentosa
As
condições se crê reger da vida,
15
Quando virá quem lance a besta ascosa?
A
passo lento e escasso era a subida,
Atento
eu indo à turba, que exprimia
18
Por carpir lamentoso a dor sentida.
Eis
ante nós dizer: — “Doce Maria!” —
Uma
voz escutei no amargo pranto,
21
Qual mulher que no parto a dor crucia.
Acrescentou:
— “Bem pobre foste e tanto,
Que
à luz trouxeste lá no humilde hospício
24
Do seio virginal o fruto santo.” —
E
logo após ainda: — “Ó bom Fabrício,
Com
virtude antes pobre ser quiseste
27
Do que a opulência possuir com vício.” —
De
tal prazer meu coração se veste
Ouvindo,
que avançava pressuroso
30
Por que ao perto, maior atenção preste.
Também
contava esse ato generoso,
Que
em prol das virgens Nicolau fizera
33
Para guardar-lhes puro o estado honroso.
—
“Alma, que tão bem falas, diz sincera,
Quem
foste?” — lhe disse eu — “Por que somente
36
A tua voz a virtude aqui venera?
“Se
eu à vida tornar, que brevemente
Levar-me
deve ao suspirado porto,
39
Em te ser grato ficarei contente.” —
E
ele: — “Falarei, não por conforto
Lá
do mundo esperar, mas porque tanta
42
Graça refulge em ti antes de morto.
“Estirpe
fui dessa maligna planta
Que
o solo esteriliza à cristandade:
45
Se frutos bons produz, fato é que espanta.
“A
vingança, se houvessem faculdade,
Lilla,
Bruges, Conai, Grandja tomaram;
48
Férvido a peço à Suma Potestade.
“Na
terra Hugo Capeto me chamaram:
Dos
Filipes fui tronco e dos Luíses,
51
Que novamente a França dominaram.
“Foi
meu pai carniceiro. Os infelizes
Antigos
Reis progênie não deixando,
54
Exceto um monge, às minhas mãos felizes,
“Parar
daquele reino veio o mando.
Tanto
prestígio tinha, tal pujança
57
Dos povos na vontade fui ganhando,
“Que
a c’roa o meu querer cingir alcança
Do
filho meu à fronte, em que começa
60
A prole ungida desses Reis de França.
“O
provençal grã dote havendo, cessa
Na
raça minha a prístina vergonha:
63
Somenos, mas aos bons não fora avessa.
“Rapinas
pela força e ardis, que sonha
Começando,
invadiu por penitência
66
Pontois, Normandia com Gasconha.
“Carlos,
Itália entrando, em penitência
Vitimou
Conradino; e triunfante
69
Ao céu mandou Tomás, por penitência.
“Em
tempo, do presente não distante,
Inda
outro Carlos vir de França vejo
72
E fama a si e aos seus dar mais sonante.
“Sai
sem armas; traz só naquele ensejo
Lança
de Judas, que a Florença aponta:
75
Rasga-lhe o peito, como é seu desejo.
“Terás
não terras, mas pecado e afronta,
Que
se lhe há de tornar tanto mais grave,
78
Quanto ele a tem de pouco preço em conta.
“Outro,
que preso sai da própria nave,
Vejo
a filha vender, como fizera
81
Aos escravos pirata: ó pai suave!
“Avareza!
o que mais de ti se espera,
Se
o meu sangue a tal raiva hás arrastado,
84
Que te deu sua carne em pasto, ó fera?
“Para
o mal igualar, porvir, passado,
Entrando
Alagni flor-de-lis se ostenta,
87
E Cristo em seu Vigário é cativado.
“Injúrias
vejo novas que exp’rimenta,
Fel,
vinagre sorver o vejo ainda
90
E entre vivos ladrões ter morte lenta.
“Vejo
o novo Pilatos, que, não finda
A
sanha sua, sem decreto assalta
93
O Templo aceso na cobiça infinda.
“Senhor
meu! Pois que excesso nenhum falta,
Quando
ante a punição serei ditoso,
96
Que oculta, o teu juízo adoça e exalta?
“Quanto
ao que me inquiriste curioso,
As
palavras, que, há pouco, eu dirigia
99
Do Spírito Santo à Esposa fervoroso,
“São
nossas orações enquanto é dia.
Mas
contrários exemplos invocamos,
102
Quando a sombra da noite principia.
“Então
Pigmalião nós recordamos
Que
foi traidor, ladrão e parricida
105
A sua sede de ouro condenamos.
“E
a miserável condição de Mida,
Do
rogo seu estulto resultado,
108
Sempre do mundo inteiro escarnecida.
“De
Acam o louco feito é memorado.
Que
os despojos roubara, e ainda a ira
111
De Josué receia amendrontado.
“Com
seu marido acusa-se Safira
E
louva-se o mau fim de Heliodoro.
114
Por todo o monte imenso brado gira
“Contra
o que tirou vida a Polidoro.
—
Dize do ouro o sabor, Crasso avarento! —
117
Também clamamos todo nós em coro.
“Qual
murmura, qual grita em seu lamento,
Segundo
o afeto que o estimula e agita,
120
Segundo é fraco ou forte o sentimento.
“Eu
único não era, pois, que em grita
O
bem, que ao dia é próprio ia dizendo:
123
Não alçava outro perto a voz bendita.” —
Essa
alma já deixáramos, fazendo
Esforço
por vencer a altura ingente,
126
Que adiante se estava oferecendo,
Eis
tremer sinto o monte de repente.
O
coração no peito se me esfria,
129
Qual réu, que à morte arrasta-se palente.
Delos,
por certo, assim não se movia,
Quando
por ninho a preferiu Latona,
132
Que os dois olhos do céu parir queria.
De
toda parte um brado então ressona
Tanto,
que o Mestre, para mim voltando,
135
— “Não há risco” — me diz — “teu Guia o abona!”
Gloria
in excelsis Deo — era entoado,
Quanto
a voz perceber foi permitido
138
Do ponto, a que o rumor me foi levado.
Quedos,
como os pastores tendo ouvido
À
vez primeira outrora aquele canto,
141
Ficamos té findar moto e soído.
Depois
seguimos no caminho santo,
Vendo
as almas prostradas sobre a terra,
144
Sempre a verter o costumado pranto.
E
se a memória nisto em mim não erra,
Jamais
desejo, que a ignorância acende,
147
Na mente me excitara tanta guerra,
Quanto
naquele instante em mim contende.
Nem
pela pressa, eu perguntar ousava,
Nem
o que ouvia o espírito compreende.
151
Tímido assim e pensativo andava.
10.
Loba antiga, a avareza. — 23. Humilde hospício, a gruta de Belém, onde nasceu
Jesus. — 25. Bom Fabrício, C. Fabrício, general romano, que recusou o dinheiro
que o inimigo de Roma lhe oferecia. — 32. Nicolau, S. Nicolau, bispo de Mira,
que dotou várias jovens pobres. — 43. Estirpe fui, Hugo Capeto, fundador da
dinastia dos de França. — 52. Foi meu pai, etc. Segundo a tradição, Hugo Capeto,
filho de um carniceiro, desposou a filha do último rei carlovíngio. — 61. O
provençal, Carlos I de Anjou por casamento herdou a Provença. — 67. Carlos,
Itália entrando, Carlos I de Anjou, conquistou o reino de Nápoles, mandou matar
a Conradino de Suábia e, segundo uma tradição, fez envenenar a S. Tomás de
Aquino, quando este se dirigia para o concilio de Lião. — 71. Outro Carlos, de
Valois, que foi a Florença em veste de pacificador e expulsou os Brancos, entre
os quais Dante. — 86. Entrando Alagni etc., o papa Bonifácio VIII, em 1303, por
ordem de Filipe o Belo, foi aprisionado em Alagni. — 103. Pigmalião, matou a
traição seu tio Siqueu para roubá-lo. — 106. Mida, rei mitológico, recebeu a
faculdade de transformar em ouro tudo o que tocava, morreu de fome. — 109.
Acam, guerreiro israelita, depois da conquista de Jericó, desobedecendo às
ordens de Josué, escondeu o que saqueou e foi condenado à morte. — 112. Safira
e seu marido Ananias, querendo roubar o dinheiro pertencente à comunidade
cristã, foram fulminados. — 113. Heliodoro, entrara no templo de Jerusalém para
roubar, mas foi expulso por um cavalo a patadas. — 115. O que tirou a vida a
Polidoro, Polinestor, rei da Trácia matou a Polidoro, filho de Príamo, para
roubá-lo. — 116. Crasso, romano, homem muito rico e avarento. — 130. Delos,
ilha do mar Egeu. Segundo a mitologia, era instável, antes que nela se
estabelecesse Latona, que deu à luz Apolo e Diana. — 136. Glória in excelsis
Deo, é o canto dos anjos na noite em que nasceu Jesus.
CANTO XXI
Enquanto
os dois Poetas continuam no seu caminho, uma alma se aproxima deles. É o poeta
latino Estácio, o qual explica que o abalo do monte que se deu pouco antes foi
o sinal de que, purificado dos seus pecados, ele pode subir ao Céu. Sabendo que
está falando com Virgílio, Estácio demonstra-lhe o seu afeto.
A
SEDE natural, que não sacia
Senão
a água, que, súplice, implorava
3
Ao senhor a mulher de Samaria,
Molestando-me,
os passos me apressava
Após
meu Guia na impedida estrada,
6
E do justo castigo o dó me entrava.
Eis,
como escreve Lucas na sagrada
História
que Jesus aparecera,
9
Ressurgido, aos dois sócios na jornada,
Uma
sombra surgiu; trás nós viera.
Andando
aquela turba contemplava:
12
Dela fé nem o Mestre, nem eu dera.
—
“Deus vos dê paz, irmãos!” — assim falava.
Voltamo-nos
de súbito, e Virgílio,
15
Cortês no gesto, a saudação tornava
Logo
dizendo: — “Do feliz concílio
Te
receba na paz a santa corte,
18
Que a mim me desterrou no eterno exílio!”
—
“Como andais” — respondeu — “com passo forte.
Se
Deus no céu vos não permite a entrada?
21
Quem vos conduz na altura desta sorte?” —
—
“Os sinais de que a fronte está marcada
Deste
homem por um anjo” — diz meu Guia —
24
“To mostram di’no da eternal morada,
“Mas,
como aquela, que, incessante fia,
Não
lhe havia inda a estriga consumido,
27
Que impõe Cloto ao que a vida principia,
“Subir
só não teria ao céu podido
A
sua alma, irmã tua, como é minha,
30
Pois não há, como nós, ver conseguido.
“Do
inferno às fauces fui tirado asinha
Para
guiá-lo, e o guiarei contente
33
No que do meu saber não passe a linha.
“Se
puderes, me diz, por que o eminente
Monte,
há pouco, tremeu, e desde a c’roa
36
À base retumbou clamor ingente.” —
A
pergunta ao desejo tão boa soa,
Que
ouvi-la a sede ardente me alivia,
39
Somente uma esperança mitigou-a.
—
“Quanto hás notado” — a sombra respondia —
“Em
nada os ritos da montanha altera:
42
De estranheza motivo não seria.
“Mudança
aqui supor se não pudera:
Subindo
ao céu quem pertencer-lhe deve,
45
A causa dá-se que esse efeito opera.
“Nunca
saraiva, chuva, orvalho ou neve
Nesta
montanha cai, passando a altura
48
Dos três degraus que estão na escada breve.
“Aqui
não vê-se nuvem clara ou escura,
Relâmpago
não luz, nem de Taumante
51
Mostra-se a filha, que tão pouco dura.
“Jamais
daqueles três degraus avante,
Em
que de Pedro o sucessor domina,
54
Seco vapor se eleva um só instante.
“Tremor
talvez a sua base inclina;
Mas
não atua no alto oculto vento,
57
Que não sei como dentro se amotina.
“Quando
já de estar puro o sentimento
Uma
alma tem e se ala ao céu, que a chama,
60
Segue o tremor e o grito ao movimento.
“Seu
querer a pureza lhe proclama,
Prova
que tem de alçar-se a liberdade
63
Por força do desejo, em que se inflama.
“Antes
o tem; mas contra essa vontade
A
divina justiça ardor lhe inspira
66
Por pena, como o teve por maldade.
“Eu
que em martírio decorridos vira
Anos
quinhentos, à melhor morada,
69
Momentos poucos há, pus livre a mira.
“Eis
do tremor a causa declarada!
Do
Senhor eis por que, louvor cantando,
72
Rogou cada alma em breve ser chamada!” —
Calou-se.
E como, a tanto mais gozando
Está
quem bebe, quanto é mor a sede,
75
Indizível prazer tive escutando.
—
“Vejo” — disse Virgílio — “agora a rede,
Que
vos prende e depois dá liberdade,
78
Donde o tremor e o júbilo procede.
“Explicar-me
te praza ainda, em verdade,
Quem
tu foste e a razão por que hás jazido
81
Séc’los tantos em tanta asperidade.” —
—
“No tempo em que o bom Tito, protegido
Por
Deus, vingou as chagas que verteram
84
Sangue, por Judas” — replicou — “vendido,
“Na
terra o nobre título me deram,
Que
mais honra perdura, e fui famoso:
87
Inda os lumes da fé me não vieram.
“Dos
meus cantos o som foi tão donoso,
Que
de Tolosa a si me atraiu Roma:
90
C’roas me deu de mirto glorioso.
“De
Estácio o nome ainda o tempo doma;
Tebas
cantei e Aquiles esforçado:
93
Este das forças me exauriu a soma.
“Do
vivo ardor, que a mente me há tomado,
Na
flama divinal a causa estava,
96
Que em milhares de engenhos há brilhado.
“Mãe
e nutriz a Eneida me alentava;
Estro
bebi caudal no seio puro;
99
Quanto vali da Eneida derivava.
“Para
viver no tempo (te asseguro)
Em
que existiu Virgílio, mais um ano
102
Passara no, que deixo, exílio duro.” —
Estas
vozes ouvindo, o Mantuano
Olhou-me.
— Cala-te! — sem falar dizia;
105
Mas a vontade está sujeita a engano.
Ou
no pranto ou no riso se anuncia
Tão
rápida a paixão, quando se acende,
108
Que o querer nos sinceros prende e lia.
Sorri-me,
como que sagaz, compreende.
Calou-se
o esp’rito; e me encarava atento
111
Nos olhos onde a mente mais se entende.
—
“Sejas” — disse — “feliz no excelso intento!
Explica-me,
porém, por que em teu rosto
114
Lampejar vi sorriso de momento.” —
Entre
os extremos dois estava eu posto:
Um
diz — silêncio! — outro a falar me instiga.
117
Suspiro, e o Mestre atenta em meu desgosto.
Responde,
que ao silêncio nada obriga,
“Fique”
— disse — “a verdade bem patente,
120
O que anela saber ele consiga.” —
—
“Maravilha causou provavelmente” —
Tornei-lhe
— “antigo espírito, o meu riso;
123
Maior será me ouvindo, certamente.
“Virgílio
é quem me guia ao Paraíso:
Para
deuses e heróis cantar tiveste
126
Por ele o esforço que lhe foi preciso.
“Se
outra causa em meu riso supuseste,
Te
enganaste: o motivo declarado
129
Nas palavras está que lhe disseste.” —
Quer
os pés abraçar do Mestre amado,
E
o Mestre: — “Irmão, que fazes?” — lhe dizia —
132
“Vê que és sombra e de sombra estás ao lado!”
Erguendo-se
ele: — “Tanto me extasia
O
amor” — disse — “em que por ti me acendo,
Que
da nossa vaidade me esquecia,
136
Tratar sombras, quais corpos, pretendendo.” —
2-3.
Água que suplica etc., a água simbólica que a Samaritana pediu a Jesus, isto é,
a verdade. — 7. Como escreve Lucas, Evang. XXIV, 13-15. — 25. Aquela que,
incessante fia etc., Laquesis não fiara ainda todo o fio que Cloto ajuntou e
que representa o decorrer da vida dos homens. — 48. Dos três degraus, onde está
a porta do Purgatório. — 50. De Taumante a filha, Íris, mensageira de Juno, foi
transformada em arco-íris. — 53. O sucessor de Pedro, o anjo. — 82-83. O Bom
Tito, vingou as chagas etc., Tito, destruindo Jerusalém, vingou a morte de
Jesus Cristo. — 91. Estácio, o poeta latino Papinio Estácio, autor de
“Tebaida”, morto no ano 96, d.C.
CANTO
XXII
Subindo
ao sexto compartimento, Estácio diz a Virgílio que, não pelo pecado da avareza,
mas pela sua prodigalidade, teve de ficar muito tempo no quinto compartimento;
e, por não ter declarado publicamente a sua conversão ao cristianismo, precisou
ficar muito tempo no quarto compartimento. Virgílio o informa a respeito de muitos
ilustres personagens da antigüidade que estão no Limbo. Chegando os Poetas no
sexto compartimento, encontram uma árvore cheia de pomos perfumados, da qual
saem vozes que louvam a virtude da temperança.
O
ANJO atrás já tínhamos deixado,
Que
para o sexto círc’lo nos guiava,
3
Um P na fronte havendo-me apagado.
E
à turba, que a justiça desejava,
Tinha
dito Beati docemente
6
Com sitio e, após tais vozes, se calava.
Mais
que em toda a jornada antecedente
Eu,
ligeiro, seguia sem fadiga
9
Os Vates, que subiam velozmente.
—
“Aquele amor, com que virtude instiga,
Reproduz”
— disse o Mestre — “a própria chama
12
Mostras de si apenas dar consiga.
“Dês
que, da vida terminada a trama,
Do
inferno ao limbo, Juvenal descendo,
15
Saber me fez o afeto, que te inflama,
“Tão
vivo bem-querer sabe te rendo,
Quanto
haver pode a incógnita pessoa,
18
Contigo ora suave andar me sendo.
“Mas
dize (e como amigo me perdoa,
Se
em falar há nímia confiança
21
E em prática amigável arrazoa):
“Como
avareza fez em ti liança
Com
ciência, que o estudo te alcançava
24
E em que punhas cuidados e esperança?”
Às
palavras do Mestre pronto estava
Estácio,
e lhe sorrindo: — “O que me hás dito
27
Penhor caro é de afeto” — lhe tornava.
“Muitas
vezes da dúvida o conflito
Por
aparência errônea é suscitado,
30
Até que a exata causa surja ao esp’rito.
“Fica
em tua pergunta declarado
Creres
que eu fora avaro noutra vida,
33
Por ser no círc’lo a avaros destinado.
“Pois
sabe que a avareza repelida
Por
mim foi nimiamente, e a demasia
36
De luas em milhares foi punida.
“Minha
alma eterno fardo volveria,
Se
atenção tanta em mim não despertasse
39
A indi’nação, que nos teus versos via,
“Quando
lançaste dos mortais à face:
—
“A que extremos impeles os humanos,
42
Fome de ouro sacrílega e rapace!” —
“Então
do excesso em despender, os danos
Aprender
pude, agro pesar sentindo
45
Desse pecado e de outros tantos insanos.
“Chorarão,
tosquiados ressurgindo,
Quantos
não têm sabido à penitência
48
Dar-se em vida ou sua hora extrema em vindo!
“Cada
culpa e a que tem contrária essência
Aqui
a pena dão conjuntamente,
51
No martírio expurgando a virulência.
“Estive
entre essa turba penitente,
Que
o desvario chora da avareza
54
Por ter sido no oposto renitente.” —
—
“Quando cantaste de armas a crueza,
Que
duplamente molestou Jocasta” —
57
Disse o cantor da pastoril simpleza —
“Pois
que de Clio então o ardor te arrasta,
Inda
o fervor da fé não te incendia,
60
E o bem sem fé para salvar não basta:
“Que
sol, que estrela, em treva tão sombria
Te
aclarou e dessa arte alçar pudeste
63
Velas após o pescador, que se ia?” —
—
“Primeiro” — disse Estácio — “tu me deste
Do
Parnaso a beber na doce fonte
66
E de Deus santa luz ver me fizeste.
“Hás
sido, como à noite o guia insonte,
Que
leva a luz, mas o seu bem não prova,
69
E aqueles serve, de quem vai na fronte,
“Quando
disseste — “O séc’lo se renova,
Volta
a justiça, volta a idade de ouro,
72
E progênie do céu descende nova.” —
“Por
ti ganhei a fé, de vate o louro:
Isto
deve, porém, ser-te explicado;
75
Dê ao desenho a cor de claro o foro,
“Já
stava o mundo inteiro alumiado
Da
vera crença que do reino eterno
78
Os mensageiros tinham propagado.
“O
vaticínio teu, Mestre superno,
Aos
predicantes novos se adatava;
81
Por isso, os freqüentando, o bem discerne.
“Tanto
a virtude sua me enlevava,
Que,
quando os perseguiu Domiciano,
84
Ao pranto seu meu pranto acompanhava.
“Enquanto
estiver no viver humano,
Dei-lhes
socorro e o seu exemplo austero
87
Ódio inspirou-me às seitas do erro insano.
“Antes
já de cantar o cerco fero
De
Tebas no batismo renascera:
90
Mas, de medo, ocultei meu crer sincero.
“Gentio
largo tempo eu parecera;
Por
isso hei tantos séc’los padecido
93
No círc’lo quarto; a pena merecera.
“Tu
a quem devo, pois, ter conseguido
O
véu rasgar, que tanto bem cobria.
96
Pois que tempo em subir é concedido,
“Onde
Terêncio diz-me ora estancia?
Onde
está Plauto Varro com Cecílio?
99
À qual parte do inferno a culpa os lia?” —
—
“Aqueles, Pérsio e eu” — tornou Virgílio —
E
os outros mais o Grego acompanhamos
102
Predileto das Musas; lá no exílio
“Do
círculo primeiro demoramos
Vezes
freqüentes do famoso monte,
105
Das Camenas assento praticamos.
“Eurípede
é conosco e Anacreonte,
Simônide,
Agaton e outros inda
108
Gregos, que cingem de laurel a fronte.
“Stão
heroínas, que cantaste: a linda
Antígone,
Deifile com Argia,
112
Ismênia, em quem tristeza nunca finda;
“Vê-se
também a que mostrou Langia,
Tétis
se vê e de Tirésia a filha,
114
E das irmãs Deidama em companhia” —
Os
dois, da poesia maravilha,
Calaram-se,
ao que os cerca atentos stando,
117
Vencida sendo da subida a trilha.
Das
ancilas do dia atrás ficando
A
quarta, logo a quinta se jungia
120
Ao carro ardente, ao alto o encaminhando,
“Quando
o Mestre — “Eu suponho” — nos dizia
“Que
nós à destra caminhar devemos,
123
Volteando, como antes se fazia.” —
Desta
arte na exp’riência a mestra havemos,
E
no andar prosseguimos confiados,
126
Porque de Estácio o assenso recebemos.
Iam
diante os Vates afamados,
E
eu logo após, nas vozes escutando
129
Arcanos da poesia sublimados,
Eis
rompe esse colóquio doce e brando
Uma
árvore, que à estrada em meio achamos:
132
Lindos pomos na fronde estão cheirando.
Vão
para cima decrescendo os ramos
De
abeto; estes descendo diminuem:
135
Para alguém não subir — acreditamos.
Límpidos
jorros do penedo ruem
Da
parte, em que a montanha a entrada mura;
138
Sobre as folhas em rocio as gotas fluem.
Estácio
com Virgílio se apressura
Para
essa árvore, quando voz, da fronde,
141
Gritou: — “Não gozareis desta doçura!
“Maria
(e o seu desejo não se esconde)
Atende
mais das bodas à grandeza
144
Que ao seu gosto; e por vós ora responde.
“Das
Romanas à antiga singeleza
Água
bastava; e Daniel ciência
147
Logrou, tendo em desprezo a régia mesa.
“Chamou-se
de ouro a idade da inocência;
Fez
as glandes a fome saborosas;
150
Água em néctar tornou da sede a ardência.
“Ao
Batista iguarias bem gostosas
Mel,
gafanhotos foram no deserto:
Assim
fez grandes obras gloriosas,
154
“Como pelo Evangelho ficou certo.” —
5-6.
Beati etc., S. Mateus V, 6: “Beati qui esurient et sitium justitiam.” — 14.
Juvenal, poeta satírico latino. — 56. Jocasta, mãe de Eteocles e Polinices,
irmãos inimigos que originaram a guerra de Tebas. — 58. Clio, musa da história.
— 63. O pescador, S. Pedro. — 83. Domiciano, imperador romano que reinou do ano
81 ao 96. d.C. — 97-100. Terêncio, Plauto, Varro, Cecilio, Pérsio, poetas
latinos. — 101-102. O grego... predileto das Musas, Homero.— 106-107.
Euripedes, Simônides, Anacreonte, Agaton, poetas gregos. — 110. Antígone, filha
de Édipo, rei de Tebas; Deifile, esposa de Tideo; Argia, esposa de Polinice. —
111. Ismênia, filha de Édipo. — 112. A que mostrou Langia, Isifiles, que
mostrou o rio Langia às tropas sedentas de Adrastro. — 113. Tétís, mãe de
Aquiles; de Tirésia a filha, Dafne. — 114. Deidama, filha do rei Licomedes. —
142-144. Maria etc., a mãe de Jesus para honrar a festa dos noivos de Caná,
pediu ao filho que transformasse a água em vinho. — 146-147. Daniel etc., o
profeta Daniel que adquiriu sabedoria pela sua abstinência.
CANTO
XXIII
No
sexto compartimento estão as almas dos gulosos. Elas são atormentadas pela fome
e pela sede; Dante descreve a sua horrível magreza. O Poeta reconhece o seu
parente Forense Donati, o qual louva a sua viúva, Nella, e repreende a
impudicícia das mulheres florentinas.
FITAVA
os olhos sobre a rama verde,
Qual
caçador, que após um passarinho,
3
Correndo, parte da existência perde.
Quando
o que me era mais que pai: — “Filhinho,
O
tempo” — disse — “que nos está marcado,
6
Quer mais útil emprego. Eia! a caminho!” —
Voltando
o rosto, a passo acelerado
Os
sábios sigo e, atento ao que falavam,
9
Não me sentia, andando, fatigado.
Plangentes
vozes súbito entoavam
Labia,
Domine, mea por maneira,
12
Que piedade e prazer me provocaram.
—
“Do que ouço”— disse então — “ó Pai, me inteira.”—
—
“Almas” — tornou — “talvez que o meio tentam,
15
Que o peso à sua dívida aligeira.” —
Peregrinos
solícitos que atentam
Só
na jornada, achando estranha gente,
18
Vontam-se apenas, mas o passo alentam:
Tal
após nós vem turba diligente;
Em
devoto silêncio se acercava;
21
Olhou-nos e afastou-se prestamente.
Os
olhos encovados nos mostrava,
Pálida
a face e o rosto descarnado,
24
Sobre os ossos a pele se estirava.
Não
creio que Erisicton devastado
Tanto
da fome horrível estivesse
27
Quando das forças viu-se abandonado.
Eu
cogitava: — “O povo aqui padece,
Que
Solima perdeu, quando Maria
30
Carnes comeu ao filho, que perece.” —
Cad’olho
anel sem pedra parecia:
O
que na humana face lesse “omo”
33
Bem claro o M aqui distinguiria.
Quem
crer pudera, não sabendo como,
Efeito
de desejo ser, nascido
36
Do frescor de água, junto a odor de pomo?
Atônito
inquiria o que haja sido
De
tal fome a razão, não manifesta,
39
Que tal magreza tenha produzido,
Eis
lá da profundez da sua testa
Uma
alma olhos volvia e me encarava,
42
Gritando: — “Mereci graça como esta?” —
Quem
fora o gesto seu não me indicava;
Mas
tive pela voz prova segura
45
Do que o aspecto seu não revelava.
Foi
súbito clarão em noite escura,
Do
rosto avivou traços deformados
48
Forese conheci nessa figura.
—
“Ai! não fiquem teus olhos assombrados”
—
Dizia — “a lepra ao ver que me descora,
51
E estes ossos mesquinhos, descarnados!
“Dize
a verdade de ti próprio agora:
De
quais almas te vejo companheiro?
54
Não haja, rogo, em responder demora.” —
—
“Como outrora é meu dó tão verdadeiro,
Vendo-te
o vulto que chorei já morto,
57
Tão dif’rente do que era de primeiro,
“Dize,
por Deus, por que és tão sem conforto:
Tolhe-me
a fala a vista, que me espanta;
60
Responder-te não posso, em mágoa absorto.” —
—
“De tal poder” — tornou — “essa água e planta
Sabedoria
eterna tem dotado,
63
Que consumação em mim produziu tanta.
“Os
que o rosto, cantando, têm banhado
De
pranto, havendo entregue à gula a vida,
66
Sobem, na fome e sede, o santo estado.
“A
fome, a sede sente-se incendida
Dos
pomos pelo aroma e por frescura
69
Das águas, sobre as ramas espargida.
“Cada
vez que giramos na fragura,
Revive
nossa pena e mais agrava;
72
Erro chamando pena o que é doçura.
“Esse
desejo ardente de nós trava,
Que
fez Cristo dizer — Eli! contente,
75
Quando o sangue em prol nosso na Cruz dava.” —
—
“Forese” — hei respondido incontinênti —
“Dês
que deixaste a terreal morada
78
Passaram-se anos cinco escassamente;
“Se
a força de pecar stava esgotada
Antes
de vir da dor bendita a hora,
81
Em que alma é com seu Deus conciliada,
“Como
te vejo nesta altura agora?
Lá
embaixo encontrar-te acreditara,
84
Onde o tempo com tempo se melhora.” —
—
“Conduziu-me tão cedo Nela cara,
Por
pranto, que incessante há derramado,
87
Do martírio a tragar doçura amara.
“De
orações e suspiros sufragado
Assim,
me alcei da encosta, onde se espera,
90
E fui dos outros círc’los resgatado.
“Tanto
mais Deus com dileção esmera
Aquela,
que extremoso amei na terra,
93
Quanto, só, em virtude ela é sincera.
“Pois
a Barbagia de Sardenha encerra
Mulheres
por pudor bem mais notadas,
96
Que a Barbagia, onde o vício acende guerra.
“Queres
tu, doce irmão, manifestadas
Idéias
minhas? Pouco dista o dia
99
Das vozes nesta prática empregadas,
“Em
que proíba o púlpito a ousadia
Das
impudentes damas florentinas,
102
Que têm, mostrando os seios, ufania.
“Morais
ou quaisquer outras disciplinas
Hão
mister para andarem bem cobertas
105
As mulheres pagãs ou marroquinas?
“Mas,
se tais despejadas foram certas
Do
castigo, que está-lhes iminente,
108
Bocas teriam para urrar abertas.
“E,
se, antevendo, não me engana a mente,
Grande
angústia hão de ter antes que nasça
111
Barba ao que em berço embala-se inocente.
“Ah!
de dizer quem sejas faz-me a graça!
Não
por mim; mas a turba atenta mira
114
Teu corpo e a sombra, que com ele passa.” —
—
“Se agora à mente” — eu disse — “te surgira
O
que outrora um pra o outro havemos sido,
117
Desprazer inda agudo te pungira.
“Há
pouco, me há do mundo conduzido
Quem
me precede; havia então rotunda
120
A irmã do que vês aparecido.” —
E
o sol mostrei — “Por noite a mais profunda
Dos
verdadeiros mortos me há guiado,
123
Quando a carne inda os ossos me circunda.
“Tenho
depois, por ele confortado,
Desta
montanha pelos círc’los vindo,
126
Que em vós corrige o que trazeis errado.
“Quanto
disse, acompanha-me, cumprindo
Té
onde a Beatriz veja o semblante:
129
Então sem ele avante irei seguindo.
“Ei-lo!
É Virgílio o guia meu constante!
É
aquele outro a sombra venturosa
Por
quem o vosso reino, vacilante,
133
Tremeu, quando partiu-se jubilosa.” —
11.
Labia mea etc., verso 17 do Salmo 50: “Abre-me os lábios, ó Senhor, e a minha
boca te louvará.” — 25. Erisiton, tendo injuriado a Geres foi punido com fome
insaciável. — 28-29. O povo aqui padece çue Solima perdeu etc., o povo de
Jerusalém sofreu tanto a fome, que, segundo o historiador hebreu Flavio José,
uma mulher chamada Maria comeu o seu próprio filho. — 32. O que na humana face
lesse “omo“, na face humana está escrita a palavra “omo“ (homem), os olhos
representando os dois o e o nariz com as sobrancelhas o m. — 48. Forese Donati,
parente de Dante, morto em 1296. — 74. Cristo dizer: Eli!, Cristo crucificado,
pouco antes de morrer, disse: “Eli, Eli, lamma sabactani”, isto é: “Meu Deus,
meu Deus, por que me desamparaste?”
CANTO
XXIV
Forese
mostra a Dante outras almas de gulosos, entre as quais a de Bonagiunta de
Lucca, que prediz ao Poeta que se enamorará de uma mulher da sua cidade, e lhe
louva o estilo da poesia. Procedendo, os Poetas encontram outra árvore e ouvem
outros exemplos de intemperança castigada.
NÃO
era o passo e o praticar mais lento
Um
do que outro; igualmente prosseguiam,
3
Qual nau servida por galerno vento.
As
sombras, que duas vezes pareciam
Mortas,
nos cavos olhos grande espanto,
6
De estar eu vivo certas, exprimiam.
Eu,
a falar continuando, entanto,
Disse:
— “Conosco para ir retarda
9
Sua ascensão essa alma ao reino santo.
Mas,
rogo-te declara: onde é Picarda?
Afamada
por feitos há pessoa
12
Entre a gente, que sôfrega me esguarda?” —
—
“Tanto era minha irmã gentil e boa
Que
não sei qual foi mais: triunfa leda
15
No Olimpo, onde alcançou formosa c’roa.
“Nomes
dizer de mortos não se veda
Aqui”
— Forese torna; e logo ajunta: —
18
“Tanto a fome as feições nossas depreda!”
“Este
que vês de Lucca é Bonagiunta;
E
aquela alma (seu dedo ia apontando),
21
Mais que todas desfeita, que lhe é junta,
“Foi
Tours; já na Igreja exerceu mando.
Stá,
por jejuns, anguilas de Bolsena,
24
Ver na ceia, afogadas, expurgando.” —
Muitos
mais nomeou, que sofrem pena;
E
todos demonstravam star contentes
27
De ouvir dizer Forese o que os condena.
Em
vão de fome vi mover os dentes
Ubaldino
de Pila e Bonifaço,
30
Que regeu com seu bago muitas gentes.
Misser
Marchese vi, que largo espaço
Com
menos sede em Forli consumia.
33
Em beber; mas julgava-o inda escasso.
Mas,
como o que repara e que aprecia
Escolhendo,
ao de Lucca eu me inclinava,
36
Porque mais conhecer-me parecia.
Submissa
voz da boca lhe soava,
Causa
do mal, que trouxe-lhe o castigo:
39
“Gentucca” ou não sei que pronunciava.
—
“Ó alma” — disse — “que falar comigo
Queres,
ao claro te explicar procura:
42
Satisfeita serás como contigo.
—
“Mulher nasceu, mas inda é virgem pura,
Por
quem” — torna — “hás de amar minha cidade,
45
Posto assunto haja sido de censura.
“Este
prenúncio levas da verdade;
Se
por meu murmurar te hás enganado,
48
Trazer-te há de o porvir à claridade,
“Se
vejo aquele diz, que à luz há dado
Versos
novos, que assim têm seu começo:
51
Damas que haveis de amor na mente entrado.
—
“Que vês em mim” — lhe respondi — “confesso
Quem
screve o que somente Amor lhe inspira:
54
O que em meu peito diz falando expresso.
“O
óbice ora vejo que eu não vira
Que
ao Notário a Guittone a mim tolhia
57
O doce estilo da moderna lira.
“As
vossas plumas vejo que à porfia
Seguem
de perto o inspirador potente;
60
Tanto alcançar às nossas não cabia.
“Quem,
por mais agradar, mais alto a mente
Erguer
que, não discerne um do outro estilo.”
63
Disse e calou-se de o dizer contente.
Como
aves, que no inverno o noto asilo
Buscando
ora num bando incorporadas,
66
Ora em fila apressadas vão-se ao Nilo,
Essas
almas assim já demoradas,
Volvendo
o rosto rápidas fugiram,
69
Da magreza e vontade auxiliadas.
Como
aquele a quem forças se esvaíram
Correndo
afrouxa os passos para o alento
72
Cobrar, em quanto os sócios se retiram;
Forese
assim que a passo andava lento
Deixou
passar a santa grei dizendo:
75
— “Quando de ver-te inda terei contento?” —
—
“Quanto haja de viver” — fui respondendo —
“Não
sei; por menos que me dure a vida
78
Mais ao seu termo os meus desejos tendo.
“Que
onde foi a existência concedida
Mais
escassa a virtude é cada dia:
81
Ruína espera triste e desmedida.
—
“O que mor culpa tem” — me retorquia —
“À
cauda de um corcel vejo arrastado
84
Ao vale, onde o pecado não se expia:
“Vai
sempre, sempre mais acelerado
Aquele
bruto na carreira fera:
87
Fica vilmente o corpo lacerado.
“Não
há de girar muito cada espera
(Para
o céu se voltava) antes que seja
90
Claro o que te explicar eu não pudera.
“Adeus,
porém: quem neste reino esteja
Ao
tempo dê seu preço verdadeiro;
93
O que eu perco ao teu lado já sobeja.”
Como
a campanha deixa um cavaleiro,
A
galope veloz se arremessando,
96
Por ter na liça as honras de primeiro:
Forese
assim de nós foi-se alongando.
Fiquei
dos dois espíritos ao lado,
99
Que o mundo está por mestres proclamando.
Quando
em distância tanta era apartado,
Que
as vistas nesse andar o acompanharam,
102
Como a mente ao que havia revelado.
Eis
perto aos olhos meus, que se voltaram,
De
outra árvore de pomos carregada
105
Os ramos vicejantes se mostraram.
As
mãos alçava multidão cerrada
À
fronde em brados; turba semelhava
108
De infantes, por desejos vãos turbada,
Um
objeto implorando a quem negava,
E
que o mostrando ainda mais acende
111
Desejo, que a cobiça lhes agrava.
Foi-se,
porém, porque ninguém a atende.
Da
grande árvore então nos acercamos,
114
Que a todo o rogo e pranto desatende.
Uma
voz de entre as folhas escutamos:
—
“Ide-vos logo; não chegueis ao perto!
117
Eva o fruto há mordido de outros ramos:
“Stão
longe estes de lá provêm de certo.” —
Então
de lado os passos dirigimos,
120
Unidos no caminho, que era aberto.
—
“Lembrai esses malditos” — inda ouvimos —
“Filhos
das nuvens, duplos na figura,
123
Que atacaram Teseus, ébrios cadimos;
“E
os que em beber acharam tal doçura,
Que
os não quis Gedeão na companhia,
126
A Madiã marchando lá da altura.”
Por
junto à borda o passo se volvia,
E
as penas escutamos dos pecados
129
Mortais, que outrora a gula cometia.
Já
pela estrada solitária entrados,
Demos
mais de mil passos inda avante,
132
Contemplando, em silêncio mergulhados.
—
“Em que cismais vós outros?” — retumbante
Soou
voz. — Fiquei logo em sobressalto
135
Como o corcel de medo titubante.
Para
ver levantei a fronte ao alto:
Aos
olhos, dera em fusão, no forno ardente,
138
Vidro ou metal não dera igual assalto,
Como
o anjo que eu vi resplendecente.
Dizia:
— “A volta dai para a subida!
141
Quem quer paz para aqui vai certamente.” —
Daquele
aspecto a vista foi tolhida:
Como
quem pelo ouvido os passos guia,
144
Fui caminhando, aos Vates em seguida.
E
qual aura de maio, que anuncia
A
alvorada, das flores espalhando
147
E das ervas o aroma, que extasia,
Tal
sobre a fronte um sopro senti brando,
Senti
mover-se a pluma: então rescende
150
Odor celeste, o olfato me enlevando
Dizer
senti: — “Feliz o que se acende
Na
Graça o que, da gula desligado,
Ao
sabor do apetite não se prende,
154
Comendo quanto é justo sem pecado!” —
10.
Picarda, irmã de Forese Donati. — 19. Bonagiunta degli Orbicciani, poeta
contemporâneo de Dante. — 22. Tours, o papa Martinho IV, que foi cônego da
catedral de Tours. — 29. Ubaldino de Pila, de nobre família pisana. — Bonifaço,
Bonifazio dei Fieschi, arcebispo de Ravenna. — 31. Messer Marchese de
Rigogliosi, gentil-homem de Forli. — 39-43 Gentucca, senhora de Lucca, que
Dante amou, quando em 1314 esteve em Lucca na casa do seu amigo Uguccione della
Faggiuola. — 51. Damas etc., primeiro verso de uma canção de Dante em louvor de
Beatriz. — 56. O notário, Jacopo de Lentini. — Guittone de Arezzo. — 82. O que
mor culpa tem, Corso Donati, irmão de Forese, chefe do partido dos Pretos, foi
assassinado em 1308. — 121-123. Esses malditos... filhos das nuvens etc., os
Centauros, que foram mortos por Teseu quando tentavam raptar Ipodamia. —
124-126. Os que não quis Gedeão etc., os soldados hebreus que Gedeão, seguindo
os conselhos de Deus, não quis por companheiros, porque beberam avidamente,
ajoelhando-se na fonte.
A DIVINA COMÉDIA...
INFERNO ... Cantos I-V ... VI-XI ... XII-XVII ... XVIII-XXIII ... XIV-XXIX ... XXX-XXXIV
PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII
PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII