Divina Comédia - Purgatório I - VI


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—PURGATÓRIO—

CANTO I



Saindo do Inferno, Dante respira novamente o ar puro e vê fulgentíssimas estrelas. Encontra-se na ilha do Purgatório.O guardião da ilha, Catão Uticense, pergunta aos dois Poetas qual é o motivo da sua jornada. Ele os instrui, depois, relativamente ao que devem fazer, antes de iniciar a subida do monte.



DO engenho meu a barca as velas solta
Para correr agora em mar jucundo,
3 E ao despiedoso pego a popa volta.

Aquele reino cantarei segundo,
Onde pela alma a dita é merecida
6 De ir ao céu livre do pecado imundo.

Ressurja ora a poesia amortecida,
Ó Santas Musas, a quem sou votado;
9 Unir ao canto meu seja servida

Calíope o som alto e sublimado,
Que às Pegas esperar não permitira
12 Lhes fosse o atrevimento perdoado.

Suave cor de oriental safira,
Que se esparzia no sereno aspeito
15 Do ar até onde o céu primeiro gira,

Recreia a vista; e eu ledo me deleito
Em surdindo da estância tenebrosa,
18 Que tanto os olhos contristara e o peito.

A bela estrela, a amor auspiciosa
Sorrir alegre faz todo o Oriente,
21 Vela os Peixes, que a seguem, luminosa.

Ao outro pólo endereçando a mente,
Volto-me à destra, e os astros quatro vejo,
24 Que vira só a primitiva gente.

Folgar o céu parece ao seu lampejo.
Do Norte, ó região, viúva hás sido,
27 De os contemplar te não foi dado ensejo.

Depois de os remirar, já dirigido
Olhos havia para o pólo oposto,
30 Donde a Carroça havia-se partido,

Eis noto um velho, perto de mim posto,
Que reverência tanta merecia,
33 Que mais do pai não deve o filho ao rosto.

Nas longas barbas nívea cor saía,
Sendo na coma sua semelhante,
36 Que em dupla trança ao peito lhe caía.

A luz dos santos astros rutilante
De fulgor tanto lhe aclarava o gesto,
39 Que o vi, como se o sol lhe fosse adiante.

— “Quem sois que em contra o rio escuro e mesto
Do eterno cárcere heis fugido os laços?” —
42 Movendo as nobres plumas, disse presto.

“Quem vos guiou alumiando os passos
Para a profunda noite haver deixado,
45 Que enluta sempre os infernais espaços?

“As leis do abismo acaso se hão quebrado?
O céu dá, seus decretos revogando,
48 Que dos maus seja o meu domínio entrado?” —

Travou de mim Virgílio, me exortando
Por voz, aceno e mãos: como queria
51 Os joelhos curvei, olhos baixando.

— “De motu meu não vim” — lhe respondia —
De Dama aos rogos, que do céu descera
54 Socorro este homem, sirvo-lhe de guia.

Pois que é desejo teu que a nossa vera
Condição definida mais te seja,
57 Prestar me cumpro explicação sincera.

“Aura da vida este home’inda bafeja,
Mas tanto, de imprudente, se arriscara,
60 Que é maravilha vivo ainda esteja.

“Disse como a salvá-lo me apressara:
Por onde os passos dirigir pudesse
63 Essa vereda só se deparara.

“Mostrei-lhe a gente, que por má padece;
Mostrar-lhe intento os que ora estão purgando
66 Pecados no lugar, que te obedece.

“Longo seria como o vou guiando
Dizer-te: é força do alto a que me impele,
69 Para te ver e ouvir o encaminhando,

Digna-te, pois, bení’no ser com ele:
A liberdade anela, que é tão cara:
72 Sabe-o bem quem por ela a vida expele.

“Por ela a morte não te há sido amara
Em Útica, onde a veste foi deixada,
75 Que em Juízo há de ser de luz tão clara.

“Por nós eterna lei não é violada:
Ele inda vive; Minos não me empece;
78 No círc’lo estou, onde acha-se encerrada

“Tua Márcia, que em casto olhar parece
Rogar-te ainda que por tua a tenhas:
81 Lembrando-a em favor nosso te enternece.

“Ir deixa aos reinos teus, não nos retenhas;
Hei de a Márcia dizê-lo agradecido,
84 Se lá de ti falar-se não desdenhas.” —

— “Márcia, a meus olhos tão jucunda há sido
Que — tornou-lhe Catão — eu de bom grado
87 No mundo quanto quis lhe hei concedido.

“Estando além do rio detestado,
Mover-me ora não pode: este preceito
90 Me foi, deixando o Limbo, decretado.

“Se por dama celeste hás sido eleito,
Como disseste, é vã lisonja agora;
93 O que requeres em seu nome aceito.

“Vai, pois: cingindo este homem sem demora
De liso junco, lava-lhe o semblante;
96 Toda a impureza seja posta fora.

“Cumpre que, quando ele estiver perante
O anjo, que do céu vier primeiro,
99 Névoa nenhuma os olhos lhe quebrante.

“Lá onde baixa o ponto derradeiro
Do mar batido, esta ilha tem viçoso
102 Juncal que alastra todo o seu nateiro.

“Não pode vegetal rijo ou frondoso
Ter vida ali; porque não dobraria
105 Ao embate das ondas caprichoso.

“Aqui tornar inútil vos seria.
Vereis ao sol, que surge, o melhor passo
108 Para subir do monte à penedia.” —

Sumiu-se. Ergui-me, então, sem mais espaço,
E em silêncio; olhos fitos no semblante
111 De Virgílio, amparei-me com seu braço.

— “Comigo, ó filho” — diz-me — “segue avante.
Atrás voltemos; pois daqui se inclina
114 O plano para o mar, que jaz distante.” —

Fugia ante a alva a sombra matutina;
Já nos ficava aos olhos descoberta,
117 Posto remota, a oscilação marina.

Pela planície andávamos deserta,
Como quem trilha a estrada, que perdera,
120 E teme não achar vereda certa.

Chegando à parte, onde não pudera
Do rocio triunfar o sol nascente,
123 Porque à sombra o frescor pouco modera,

Sobre a relva meu Mestre brandamente
As mãos ambas abriu: o movimento
126 Lhe noto e, o compreendo, diligente,

As lacrimosas faces lhe apresento.
Virgílio as cores restaurou-me ao gesto,
129 Que desbotara o inferno nevoento.

Vimos à erma praia a passo lesto:
Nunca sobre águas suas navegara
132 Homem que o mundo torne a ver molesto.

Cingido fui, como Catão mandara.
Portento! A humilde planta renascida,
Qual antes vi no solo, onde a arrancara,

136 Sem diferença, de súbito crescida.



10. Calíope — Musa da epopéia. — 11. Pegas, as filhas de Pierio, desafiaram as Musas para cantarem com elas e, vencidas, foram transformadas em pegas. — 19. A bela estrela, Vênus. — 21. Os Peixes, a constelação dos Peixes. — 31. Um velho etc., Catão Uticense, que, para não entregar-se a Júlio César, suicidou-se em Útica. — 40. Rio escuro e mesto, o Aqueronte. — 79. Márcia, esposa de Catão.

CANTO II



Estão os Poetas ainda na praia, incertos em relação ao caminho, quando chega uma barca, guiada por um Anjo, da qual saem almas destinadas ao Purgatório. Uma delas, o músico Casella, amigo de Dante, a convite do Poeta, começa a cantar uma sua canção. Os dois Poetas e as almas ficam a ouvir o canto harmonioso. Sobrevém. porém, o severo Catão, que as repreende, e as almas fogem para o monte.



RESPLENDECIA o sol já no horizonte
Que tem meridiano, onde iminente
3 O zênite fica de Solima ao monte.

Na parte oposta a noite diligente
Do Ganges co’as Balanças se elevava,
6 Que lhe caem da mão, quando é excedente.

Já nesse tempo a idade transformava
A branca e rósea cor da bela Aurora
9 Noutra, que a de áureos pomos simulava.

Do mar ao longo inda éramos nessa hora,
Como quem, na jornada embevecido,
12 Se apressa em mente, os pés, porém, demora:

Eis, qual sobre manhã, enrubescido,
Das névoas através, Marte chameja
15 No ponente das ondas refletido,

Uma luz (praza a Deus de novo a veja!)
Tão veloz pelo mar vi deslizando,
18 Que não há vôo de ave, que igual seja.

Maior mostrou-se e mais fulgente, quando,
Depois de ter-me ao Guia meu voltado,
21 De novo olhei o seu brilho contemplando.

Nívea forma também, a cada lado,
Lhe divisei; abaixo aparecia
24 De igual cor outro vulto assinalado.

Té asas discernir permanecia
O sábio Mestre meu silencioso.
27 Mas então, como o nauta conhecia,

Bradou: “Curva os joelhos respeitoso,
Junta as mãos: eis de Deus um mensageiro!
30 De ora avante hás de ver outros ditoso.

“Vê que, aos humanos meios sobranceiro,
Para vir de tão longe velas, remos
33 Possui das asas no volver ligeiro.

“Como ele as alça para o céu já vemos,
Eternas plumas suas agitando;
36 Não mudam como dos mortais sabemos.” —

Em tanto, mais e mais se apropinquando,
Mais clara sobressai a ave divina:
39 Olhos abaixo à luz me deslumbrando.

O anjo logo à riba a nave inclina,
Tão rápida, tão leve, que parece
42 Voar somente na amplidão marina.

Na popa erguido o nauta resplendece:
Feliz quanto é lhe está na fronte escrito;
45 Das almas turba ao mando lhe obedece.

In exitu Israel de Egypto
A uma voz cantavam juntamente
48 E o mais, que foi no santo salmo dito.

Sinal da Cruz lhes fez devotamente:
Todos então à riba se lançaram
51 E tornou, como veio, incontinente.

Em volta remirando, os que ficaram
Pareciam de espanto apoderados,
54 Como quem a estranheza se acercaram.

O sol frechava os lumes seus dourados,
Lá do meio do céu tendo expelido
57 O Capricórnio a tiros reiterados,

Quando as almas, que haviam descendido,
Perguntam-nos: — “Sabeis, para indicar-nos,
60 Por onde o monte pode ser subido?”

Tornou Virgílio: — “Vos apraz julgar-nos
Do lugar sabedores; mas viandantes,
63 Como sois vós, deveis considerar-nos.

Chegáramos aqui, de vós, pouco antes,
Por estrada tão árdua e temerosa,
66 Que esta subida a par, jogo é de infantes.” —

Notando aquela turba, curiosa,
Que eu, pelo respirar, era homem vivo,
69 Enfiou ante a vista portentosa.

E como, a quem da paz ramo expressivo
Presenta, o povo acerca-se cuidoso
72 Em tropel de notícias por motivo:

O bando assim das almas venturoso
Em meu rosto atentava alvoroçado,
75 Quase esquecido de ir a ser formoso.

Uma, tendo-se às mais adiantado
A me abraçar correu com tanto afeito,
78 Que fui de impulso igual arrebatado.

Sombras vãs, verdadeiras só no aspeito!
Três vezes quis nos braços estreitá-la,
81 Só as três vezes estreitei ao peito.

Ante o espanto, que o gesto me assinala,
Sorriu-se; e, como já se retirasse,
84 Avançando, eu tentei acompanhá-la.

Suavemente disse que eu parasse,
Pedi-lhe, com certeza a conhecendo,
87 Que um pouco a praticar se demorasse:

— “Como te amei” — me respondeu — “vivendo
No mortal corpo, assim eu te amo agora.
90 Por que vais? Dize: ao teu desejo atendo.” —

“Caro Casella” — disse-lhe — “hei de embora
Tornar, ao fim desta jornada, à vida.
93 Por que de vir hás delongado a hora?” —

“Se a passagem negou-me requerida
Anjo, que as almas, quando apraz-lhe, guia,
96 Ofensa não me fez imerecida;

“Pois a justo querer obedecia.
Na barca em paz, três meses há somente,
99 A todos dá a entrada apetecida.

“Eu, que na plaga então era presente,
Onde no mar o Tibre as águas deita
102 Por ele aceito fui benignamente,

“A essa foz seus vôos endireita;
Pois sempre ali a grei stá reunida,
105 Às penas do Aqueronte não sujeita.” —

— “Se não é por lei nova proibida
Memória e usança do amoroso canto,
108 Que as mágoas todas me adoçou da vida,

“Praza-te amigo, confortar um tanto
Minha alma, que molesta, que amofina
111 Star envolta no corpóreo manto.” —

— “Amor que em minha mente raciocina” —
Entoou ele então com tal doçura,
114 Que o som donoso inda alma me domina.

Ao Mestre, a mim, a todos a brandura
Do saudoso cantar tanto elevava,
117 Que de ai a mente nossa então não cura.

Na toada, absorvida, se engolfava,
Eis de repente o velho venerando:
120 — “Que fazeis, descuidosos?” — nos bradava.

“Pois estais na indolência assim ficando?
Ide ao monte, a despir essa impureza,
123 Que a vista vos está de Deus vedando!” —

Quais pombos, que dos agros na largueza,
Em desejado pascigo embebidos,
126 Como olvidada a natural braveza,

Súbito arrancaram, de temor pungidos,
Se algum mal iminente lhes parece,
129 De cuidados maiores possuídos:

Tal a recente grei o canto esquece,
E, como homem, que vai sem ter roteiro,
Corre à costa, que aos olhos se oferece:

133 Não foi nosso partir menos ligeiro.



1-3. Resplendecia etc., colocando o Purgatório num hemisfério antípoda àquele da terra, o Poeta nota que onde ele estava o sol despontava e na mesma hora em Jerusalém (Solima) descia a noite. — 46. In exitu, etc., primeiro verso do Salmo 114. — 91. Casella, músico florentino amigo de Dante e que havia musicado algumas canções dele. — 119. O Velho, Catão.

CANTO III



Os dois Poetas se aprestam a subir o monte. Enquanto estão procurando o lugar onde a subida seja mais fácil, vêem um grupo de almas que lhes vêm ao encontro. Perguntam a elas onde seja a subida. Uma das almas se dá a conhecer a Dante. É Manfredo, rei de Nápoles e da Sicília. Ele narra como morreu, pedindo a Deus, na hora extrema. Estão juntas com ele, as almas dos que foram inimigos da Santa Igreja.



ENQUANTO aquela fuga repentina
Pela planície as sombras impelia
3 Ao monte, que a razão a amar ensina,

Ao sócio meu fiel eu me cingia:
Como sem ele houvera prosseguido?
6 Quem para alçar-me esforço me daria?

De remorsos parece possuído.
Ó consciência pura e sublimada,
9 Leve falta pesar te dá subido!

Quando atalhava a pressa, que é vedada
A quem dos atos no decoro atente,
12 Eu, que sentira a mente angustiada,

Tornando ao meu intento afoutamente
Os olhos à eminência levantava,
15 Que para o céu mais alto eleva a frente.

Nas espaldas o sol nos dardejava
Rubra luz, que o meu corpo interrompia,
18 Pois aos seus raios óbice formava.

Escuro ante mim só aparecia
O solo: eu, de abandono receoso,
21 Voltei-me ao lado onde era o sábio Guia.

Virgílio então me encara. — “Suspeitoso
Te mostras?” — diz — “Cuidavas, porventura,
24 Que eu não mais te acompanhe cuidadoso?

“Surge Vésper lá onde a sepultura
Guarda o corpo em que sombra já fizera
27 Tomando-o a Brindes, Nápole o assegura.

“Se ante mim não a vês, não te devera
Dar pasmo como lá no firmamento
30 Se a luz a luz não tolhe e não movera.

“Para calma sentir, frio ou tormento
Dispôs-nos corpo a suma Potestade.
33 Como o fez? Não nos deu conhecimento.

“Fátuo é quem julga à humana faculdade
Franco o infindo caminho e sempiterno,
36 Por onde segue o Ente Uno em Trindade.

“Homem, vos baste o quia: se ao superno
Saber alevantar-vos fosse dado,
39 Da Virgem ao seio não baixara o Eterno.

“Já viste porfiar sem resultado
Os que, cevar podendo seu desejo,
42 Em perpétua aflição o têm tornado.

“De Aristóteles falo neste ensejo,
De Platão, de outros mais.” — Baixando a fronte,
45 Calou; mostrava torvação e pejo.

Chegamos nós em tanto ao pé do monte
Onde era a rocha de tal modo erguida,
48 Que de subir capaz ninguém se conte.

A vereda mais erma e desabrida,
Que de Léria a Túrbia se encaminha,
51 Dá, confrontada, cômoda subida.

E o Mestre, assim falando, os pés detinha:
“Quem sabe onde a este monte o passo ascende?
54 Como aqui sem ter asas se caminha?”

Enquanto, baixo o rosto, o Mestre entende
Na jornada, em sua mente interrogando,
57 E pela altura a vista se me estende,

Divisei turba a nós endireitando
Da mão destra; o seu passo era tão lento,
60 Que não me parecia estar andando.

— “Aos que vêm” — disse ao Mestre — “mira atento;
Por eles pode ser conselho dado,
63 Se o não te of’rece o próprio pensamento...” —

Olhou-me, e com semblante asserenado
— “À turba vagarosa” — tornou — “vamos,
66 E a esperança te esforce, ó filho amado!” —

Passos mil para a grei nos caminhamos
E de tiro de pedra inda à distância,
69 Por mão destra arrojada, nos chamamos

Quando aqueles espíritos estância
Junto aos penhascos vi fazer, cerrados,
72 Qual transviado da incerteza em ânsia.

“Vós, eleitos ao bem, no bem finados” —
Disse Virgílio — “pela paz ditosa,
75 Em que sois todos, creio, esperançados,

“Dizei-me onde a montanha alta e fragosa
Subir permite, um pouco se inclinando:
78 Do tempo a perda ao sábio é desgostosa.” —

Como as ovelhas o redil deixando
A uma, duas, três e a cerviz tendo
81 Baixa as outras vão tímidas ficando;

Todas como a primeira, se movendo,
Conchegam-se-lhe ao dorso, se ela pára,
84 O porque, simples, quietas não sabendo:

Assim a demandar-nos se apressara
A venturosa grei, que no meneio
87 Traz a moléstia e o pudor na cara.

Tomada foi, porém, de tanto enleio,
Por minha sombra em vendo a luz cortada
90 A destra, em direção da rocha ao seio,

Que a vanguarda parou, como torvada:
Pelos mais sem detença foi seguida,
93 Mas sem lhes star a causa revelada.

— “A explicação previno apetecida:
Que um vivo corpo vedes confesso
96 E a luz do sol por este interrompida.

“Não haja em vós de maravilha excesso;
Do céu pela virtude socorrido,
99 Da montanha atingir quer o cabeço.” —

Disse Virgílio. — E foi-lhe respondido:
— “Voltai-vos; caminhai de nós diante.” —
102 E o lugar indicavam referido.

— “Sem que um momento deixes ir avante,
Quem quer que sejas, olha-me e declara”, —
105 Disse um deles, — “se hás visto o meu semblante.” —

Volvi-me, olhos fitando em quem falara.
Formoso e louro, tinha heróico aspeito;
108 Um golpe o seu sobrolho separara.

Tornei-lhe — “não” — tomado de respeito.
— “Olha!” — falou a sombra me indicando
111 Larga ferida no alto do seu peito.

“Vês Manfredo — sorriu-se me falando —
Que neto foi da Imperatriz Constança.
114 A minha bela filha diz, voltando,

(Mãe daqueles por quem tanta honra alcança
Aragão com Sicília) o que hás sabido,
117 Qual a verdade seja lhe afiança.

“Depois que foi o corpo meu ferido
De golpes dois mortais, a Deus piedoso
120 Alma entreguei, chorando arrependido.

“Fui de horrendos pecados criminoso,
Mas a Bondade Infinda acolhe e abraça
123 Quem perdão lhe suplica pesaroso.

“Se o Bispo que enviou Clemente à caça
Do meu cadáver, respeitado houvesse
126 Esse preceito da Divina Graça,

“Do corpo meu os ossos me parece,
Que em frente à ponte, ao pé de Benevento,
129 Em guarda o grave acervo inda tivesse.

“Agora os banha a chuva e açouta o vento,
Do reino meu distantes, junto ao Verde,
132 Onde os lançou sem luz, sem saimento.

“Mas anátema tanto alma não perde
Que, quando verde a esp’rança lhe floresce,
135 Do eterno amor do Criador deserde.

“Por certo, em contumácia o que fenece
Contra a Igreja, ainda quando se arrependa
138 Na hora extrema sua, aqui padece

“Tempo, que trinta vezes compreenda
Da impenitência o espaço, se ao decreto
141 Preces não trazem benfazeja emenda.

“Vês, pois, que podes me tornar quieto:
Revelando à piedade de Constança
Que interdito me hás visto ainda exceto

145 Pelas preces de lá muito se alcança.” —



25. Surge Vésper etc., o cadáver de Virgílio de Brindes foi transportado para Nápoles, onde, neste momento, descia a noite. — 37. Vos baste o guia, chega saber o que é, sem procurar a razão. — 50. De Léria a Túrbia, o caminho entre estas duas aldeias da Ligúria. — 112. Manfredo, filho do imperador Frederico II e neto da imperatriz Constança. — 114-16. Minha bela filha, Constança, esposa de Pedro III de Aragão teve dois filhos: Jaime que sucedeu ao pai em Aragão e Frederico, rei de Sicília. — 124. Se o bispo etc., Bartolomeu Pignatelli, bispo de Cosenza, por ordem do papa Clemente IV, desenterrou o corpo de Manfredo, que era excomungado, e o mandou jogar no Rio Verde. — 133. Anátema, excomunhão dos papas.

CANTO IV



Seguindo os conselhos recebidos, os Poetas, através de um caminho apertado e difícil, sobem ao primeiro salto. Virgílio explica a Dante que, encontrando-se em hemisfério antípoda àquela terra, o Sol gira em direção contrária. Vendo muitas almas recolhidas à sombra de um rochedo, e aproximando-se a elas, Dante reconhece o seu amigo Belacqua. Ai estão os espíritos preguiçosos dos que esperaram para arrepender-se o termo da vida.



QUANDO ou pelo prazer ou por desgosto
Das faculdades uma é possuída,
3 Concentrando-se, o espírito indisposto

Se mostra à ação, de outra qualquer nascida;
Verdade, que refuta a crença errada
6 — Quem em nós uma alma está noutra acendida.

E, pois, se vendo, ouvindo, alma engolfada,
Lia-se à cousa, que a atenção cativa,
9 Sem sentir vai-lhe o tempo à desfilada.

Pois faculdade só no ouvir ativa
Difere dessa, em que alma se domina:
12 Uma presa, outra a vínculos se esquiva.

Experiência ao claro isto me ensina.
Aquela sombra atônito escutando,
15 Já com cinqüenta graus o sol se empina,

Sem que eu me apercebido houvesse, quando
Ao ponto fomos, onde a turba, unida,
18 — “Haveis o que anelais!” — disse, bradando.

Estando a vinha já madurecida,
Pelo aldeão de espinhos com braçada
21 Da sebe a estreita aberta é defendida.

Mais larga é que a vereda alcantilada
Por onde fui subindo após meu Guia,
24 Quando a grei nos deixou abençoada.

A Noli e a San-Leo por árdua via
Com pés se vai, Bismântua assim se alcança;
27 Ter asas de ave aqui mister seria;

Ou asas de um desejo, que não cansa,
Para o vate seguir que, desvelado,
30 Me servia de luz, me dava esp’rança.

Por carreiro entre penhas escavado,
Sempre de agudas pontas empecido,
33 Pelas mãos cada passo era ajudado.

Chegados da alta escarpa ao topo erguido
Da eminência no dorso descoberto,
36 — “Por onde ir”— disse então —“Mestre querido?”

— “Eia!” — tornou — “não dês um passo incerto!
Vai subindo após mim pela montanha;
39 Guia acharemos no caminho esperto.” —

Não mede a vista elevação tamanha:
Linha que o centro corte de um quadrante,
42 Por certo a ingrimidez não lhe acompanha.

Sem forças já, falei-lhe titubante:
— “Volve a face, pai meu: olha piedoso
45 Que só me deixas, indo por diante” —

— “Para ali, filho” — diz — “te alça animoso!” —
E o seu braço indicava uma planura,
48 Que torneia o declive temeroso.

Dessas vozes esforça-me a doçura
Tanto, que a rastos lhe seguia o passo
51 Até meus pés tocarem nessa altura.

Sentamo-nos a par, então, de espaço
Ao nascente voltados, qual viageiro
54 A estrada olhando, que calcara lasso;

Abaixo os olhos dirigi primeiro,
Ao sol voltei depois; notei pasmado
57 Da esquerda o lume vir desse luzeiro.

Disse Virgílio ao ver quanto enleado
Stava, o carro da luz considerando
60 Que era entre nós e o Aquilão entrado:

— “Se um e outro hemisfério alumiando,
Castor e Pólux junto a si tivera
63 O vasto espelho, que ora está brilhando,

“Da Ursa ainda mais propínqua à esfera,
A roda do Zodíaco observaras,
66 Se a costumada estrela não perdera.

“Meditando, a verdade logo acharas,
Se colocados de Sião o monte,
69 E este outro na terra imaginaras,

“Ambos guardando idêntico horizonte
E hemisférios diversos, onde passa
72 Estrada, em que tão mal correu Fetonte,

“E se a razão em ti não for escassa,
Verás que, enquanto a um vai por um lado,
75 Ao outro pelo oposto o sol perpassa.” —

— “Tanto ao claro jamais, ó Mestre amado,
Como ora, o meu esp’rito compreendera,
78 Quando estava por dúvida nublado.

“Que o círc’lo médio da mais alta esfera,
Que sempre Equador chama-se em certa arte
81 Entre o inverno e o sol se considera,

“Deve (se pude a mente penetrar-te)
Para o norte volver-se, e, no entretanto,
84 Viam-no Hebreus de Áustro pela parte.

“Agora, se te apraz, dize-me quanto
Hemos de andar; que os olhos, da eminência
87 Não atingindo o fim, se enchem de espanto.” —

— “Da montanha” — responde — “é a excelência
Fadiga no começo causar grave;
90 Quem mais sobe acha menos resistência.

“Ao tempo, em que te parecer suave
Tanto, que a subas ágil e ligeiro,
93 Como descendo da água o curso a nave,

“No termo te acharás deste carreiro:
Após afã desfrutarás repouso:
96 Quanto digo hás de ver que é verdadeiro” —

Mal acabando o Mestre carinhoso,
Perto soa uma voz: — “Talvez te seja,
99 Antes de lá chegar, preciso um pouso.” —

Volveu-se cada qual para que veja
Quem falara; alta penha deparamos;
102 Então só vemos que à mão sestra esteja.

Multidão, cercando-nos, achamos
Que à sombra demorava quietamente;
105 Por desídia detidos os julgamos.

Mostra-se um mais que os outros negligente:
Sentado abraça as pernas, tendo o rosto
108 Recostado aos joelhos, qual dormente.

Disse então: — “Vê senhor, quanto disposto
É à inércia o que ali stá parecendo:
111 Como irmão da preguiça fica posto.” —

Ele um pouco voltou-se olhos movendo
Para o meu lado, sem mudar postura,
114 — “Pois vai tu, que és valente!” — me dizendo.

Reconheci quem era. Inda me dura
Da agra ascensão em parte o grande ofêgo;
117 Mas endereço os passos à figura.

A fronte mal ergueu, quando me achego.
— “Como conduz o sol carro à esquerda
120 Tens reparado?” — disse com sossego.

Por meneio tão lento e voz tão lerda
Fui algum tanto a riso provocado.
123 — “Belacqua” — disse eu — “mas a tua perda

Não choro. Por que estás aqui sentado?
Esperas guia? Acaso, como outrora,
126 Da preguiça te sentes cativado?” —

Tornou-me: — “Irmão, subir que importa agora?
De Deus o anjo, que defende a entrada,
129 Me deixaria dos martírios fora.

“Tanto a porta me tem de ser vedada,
Quanto no mundo me durara a vida:
132 Pesei-me só a morte ao ver chegada.

“Mas antes ser me pode permitida
Pela oração de quem da Graça goza;
135 Que vai outra, do céu desatendida?” —

Mas o Vate seguia na penosa
Jornada. — “Vem!” — dizia — “Resplandece
O sol no meio-dia; e tenebrosa

139 Sobre Marrocos ora a Noite desce.” —



5. A crença errada etc., de atribuir ao homem diversas almas, crença dos platônicos e dos maniqueus. — 15. Já com cinqüenta graus etc., o Sol percorre 15 graus por hora; portanto haviam passado quase 3 horas e meia. — 25-26. Noli, na Ligúria; São Leo, perto de Urbino; Bismântua, perto de Urbino. — 57. Da esquerda etc., o Purgatório se encontra num hemisfério antípoda, e portanto o sol aparecia a Dante pela esquerda quando no nosso hemisfério parece levantar-se à direita e caminhar à esquerda. — 68. Sião, Jerusalém, que é o lugar antípoda ao Purgatório. — 123. Belacqua, florentino, fabricante de instrumentos musicais, amigo de Dante. — 139. Sobre Marrocos, sendo meio-dia no Purgatório, em Jerusalém, no hemisfério oposto, era meia-noite, e a noite começava em Marrocos.

CANTO V



Prosseguindo os dois Poetas a sua viagem, encontram uma multidão de almas que se aproximam deles, depois de ter percebido que Dante é vivo. São espíritos de pessoas que saíram da vida por morte violenta, mas no fim se arrependeram e perdoaram a seus inimigos.



OS passos do meu Guia acompanhando,
Dessas almas um pouco era distante,
3 Quando uma, atrás de nós, o dedo alçando,

— “Vede! A luz” — exclamou — “não é brilhante
À sestra do que vai mais demorado;
6 Pelo meneio a um vivo é semelhante.”

Olhos volvi daquela voz ao brado,
E as vi notar, de maravilha cheias,
9 Como eu, andando, a sombra tinha ao lado.

— “Por que tanto, ó meu filho, assim te enleias?”
Disse o Mestre. — “Por que deténs o passo?
12 Acaso o murmurar daqui receias?

“Segue-me: a vozes vãs ouvido escasso!
Qual torre, inabalável sê, dos ventos
15 À fúria opondo válido embaraço;

“Quem firmeza não tem nos pensamentos,
Do fim se aparta, a que alma se endereça
18 E, assim, malogra, instável, seus intentos.

— “Sigo-te!” — ao Mestre meu tornei depressa.
Cumpria assim falar; meu voto incende
21 O rubor, que ao perdão a falta apressa.

Entanto por atalho a costa ascende
Adiante de nós turba cantando
24 Devota Miserere, e ao cimo tende.

Ao ver que estava o corpo meu vedando
Dos luminosos raios a passagem
27 O canto suspendeu, rouco “oh!” soltando

E dois dos seus em forma de mensagem
Correndo contra nós assim falaram:
30 “Quem sois, que assim fazeis esta viagem?”

Disse Virgílio: — “Aos que vos enviaram
Tornai que ao corpo do homem que estais vendo
33 Vitais alentos inda não deixaram.

“Se os passos, como cuido, estão detendo,
Por ver-lhe a sombra, a causa é conhecida;
36 Terão proveito, as honras lhe fazendo.” —

Mais prontos que os vapores à descida
Da noite, o ar sereno aluminando,
39 Ou névoa, ao pôr do sol, do céu varrida,

Partem, à grei de novo se ajuntando;
Como esquadrão, que corre à desfilada,
42 Voltam todos, a nós se arremessando.

“Ao nosso encontro vem turba avultada;
Pretensões todos têm” — disse-me o Guia
45 — “Andando, os ouve; não convém parada.”

— “Ó alma, que do céu vais à alegria
No próprio corpo, em que feliz nasceste,
48 Demora o passo um pouco” — a grei dizia,

“De entre nós vê se alguém reconheceste
Para ao mundo levares a notícia;
51 Por que deter-te ainda não quiseste?

“Morte a todos causou cruel nequícia;
Pecamos sempre até que à final hora
54 Do céu a luz se nos mostrou propícia.

“Assim, contritos, perdoando, fora
Fomos da vida, a paz com Deus já feita;
57 De o ver desejo nos acende agora.”

— “A feição vossa” — eu disse — “é tão desfeita,
Que nenhum reconheço; mas, se acaso
60 Ser útil posso no que a vós respeita,

“Pela paz, a servir-vos já me emprazo,
Que busco, deste sábio acompanhado,
63 De mundo em mundo, no mais breve prazo.”

“Cada qual” — me tornou — “está confiado
Em ti, mister não há teu juramento,
66 Se não faltar poder ao teu bom grado.

“Aos outros me antecipo: ao rogo atento,
Tu se fores à terra que demora
69 Entre a Romanha e a que é de Carlo assento,

“Aos meus em Fano compassivo exora
Que com preces sufraguem-me piedosos
72 Para o mal expurgar que fiz outrora.

“Nasci lá, sofri golpes espantosos,
Que a existência cortaram-me tão cara,
75 De Antenórios nos planos pantanosos,

“Onde o funesto fim nunca esperara.
Assim o quis do Marquês d’Este a ira,
78 Que o exício meu injusto aparelhara.

“Ah! se, fugindo, me acolhesse a Mira
Quando alcançou-me de Oriais perto,
81 Eu fora inda hoje aonde se respira.

“Mas, correndo ao paul, sem rumo certo,
Caí, no ceno e juncos enleado:
84 De sangue um lago fez meu peito aberto.”

“Se for” — outro então disse — “executado
Desejo que te impele ao alto monte,
87 Sê por mim de piedade impressionado.

“De Montefeltro fui e fui Buonconte;
De mim Joana, e ninguém mais, não cura;
90 Entre todos por isso abaixo a fronte.”

— “Que força — que má ventura
Tão longe te arrastou de Campaldino,
93 Que se ignora onde tens a sepultura?”

— “Oh!” — replicou-me — “Ao pé de Casentino
Um rio passa que se chama Arquiano,
96 Nascido lá sobre o Ermo, no Apenino.

“De dor lá onde o perde o nome, insano,
Cheguei: ao pé fugia, e, traspassado,
99 O colo meu ensangüentava o plano.

“Da vista e fala ao ser desamparado,
No suspiro final bradei — Maria! —
102 E o corpo meu tombou, da alma deixado.

“Direi verdade: aos vivos o anuncia.
De Deus anjo tomando-me, o do inferno
105 — “Servo do Céu, mo tomas?” lhe bramia.

“Dele me usurpas o princípio eterno
Por uma tênue lágrima fingida;
108 Mas do seu corpo cabe-me o governo.

“Bem sabes que nos ares recolhida
Vaporosa umidade em chuva desce,
111 Quando é do frio às regiões subida

“Como quem com maldade o engenho tece,
Névoas e vento acumulava, usando
114 Da pujança infernal que lhe obedece.

“Depois, o dia terminado estando,
Do Pratomagno à serra, o vale envolve
117 Em treva, ao céu a abóbada enlutando.

“Túmido o ar, em catadupas volve,
E a água que na terra não se entranha,
120 Espumosa em torrentes se revolve.

“Veloz os álveos aos arroios ganha,
E para o régio rio se arrojando,
123 Os óbices abate, que se assanha.

“Junto à foz meu cadáver encontrando
Levanta-o Arquiano impetuoso
126 Ao Arno o impele, os braços desligando

“Da cruz que fiz no transe doloroso.
Por fundo e margens rola-o, sepultado
129 Na areia o deixa, que arrastara iroso.” —

— “Ah! quando à luz do mundo hajas tornado,
Quando repouses da jornada extensa” —
132 Foi por terceiro espírito impetrado:

“De Pia recordando-te, em mim pensa;
Siena fizera o que desfez Marema.
Sabe-o quem me esposara e em recompensa

136 No dedo pôs-me anel com rica gema.” —



24. Miserere, o salmo que começa com essa palavra. — 68-69. A terra que demora etc., a Marca de Ancona. — 73. Nasci lá etc. Quem fala é Jacopo de Cassero, de Fano, que foi assassinado pelos sicários do Marquês Azzo III d’Este, quando se dirigia a Milão, em 1298. — 75. De Antenórios etc. no território de Pádua (cidade que se diz fundada por Antenor). — 88. Buonconte de Montefeltro, filho de Guido (Inf. XXVII), capitão gibelino, morreu na batalha de Campaldino. — 89. Joana, sua esposa. — 96. Ermo de Camaldoli. — 122. Regio rio, o Arno. — 133. Pia del Guastelloni. Casada com um gentil-homem da família Tolomei, ficou viúva e casou novamente com Nello Pannocchieschi, que a fez matar, talvez desconfiado da sua fidelidade, num castelo da Marema, em 1295.

CANTO VI



Dante promete às almas que a eles se recomendaram que não se esquecerá delas quando voltar ao mundo dos vivos. Os dois Poetas encontram o poeta Sordello, o qual, ao ouvir o nome da sua pátria, Mântua, abraça o mantuano Virgílio. Esse espisódio move Dante a uma violenta invectiva contra as divisões e as guerras internas que devastam a Itália.



QUANDO o jogo da zara é terminado,
Na amargura, o que perde, só ficando,
3 Os bons lances ensaia contristado.

A turba o vencedor acompanhando,
Qual vai diante qual por trás o prende,
6 Ao lado qual se está recomendando:

A este e àquele sem deter-se atende;
O que lhe alcança a mão parte se apressa;
9 De importunos desta arte se defende.

Cerca-me assim a multidão espessa,
Ora a uns ora a outros me volvendo,
12 De cada qual me livro por promessa.

O Aretino aqui stava: golpe horrendo,
De Ghin Tacco por mau, cortou-lhe a vida,
15 E o que na fuga se afogou, horrendo.

Aqui rogou-me em súplica sentida,
Frederico Novello e esse Pisano
18 Por quem Mazucco ação fez tão subida.

Vi o Conde Orso e aquele que o seu dano
Mortal, pelo ódio e inveja, recebera,
21 Como dizia, não por feito insano.

Aludo a Pedro Brosse. A que ora impera,
Do Brabante, se apressa a ter cautela,
24 Se não, da grei maldita a estância a espera.

Quando enfim, pude me esquivar àquela
Turba, que preces sôfrega pedia
27 Para a entrada apressar na mansão bela,

— “Em texto expresso” — eu disse — “ó douto Guia,
Do teu livro afirmaste que a vontade
30 Do céu por orações não se movia.

“Mas pede-as essa grei com ansiedade:
Seria acaso vã sua esperança?
33 Ou compreender não pude essa verdade?” —

— “Seu sentido a tua mente” — disse — “alcança;
Por vã essa esperança não falece;
36 Quanto é certa a razão nô-lo afiança:

“A Justiça do céu não desfalece,
Porque flama de amor num só momento
39 O devedor redime, que padece.

“Lá onde expus aquele pensamento
Não podia oração solver pecado,
42 Pois distante de Deus estava o intento.

“Porém neste problema sublimado
À mente por que há suma ciência
45 Te será puro lume revelado.

“Por quem? Por Beatriz. A continência
Feliz ridente lhe verás, ao viso
48 Quando houveres subido da eminência.” —

Tornei: — “Andar mais presto ora é preciso;
Como de antes, não sinto mor fadiga,
51 E da montanha a sombra já diviso.” —

— “Como podemos, é mister prossiga
O passo, enquanto o dia não se finda;
54 Mas te engana o desejo que te instiga.

“Antes do cimo aguardarás a vinda
Desse astro oculto agora pela encosta;
57 Não refranges os raios seus ainda.

“Aquela sombra vê, de parte posta,
Que, em soledade, atenta nos esguarda:
60 A vereda dirá melhor disposta.” —

Chegamo-nos. Ó nobre alma lombarda,
Como estavas altiva e desdenhosa.
63 Dos olhos no meneio grave e tarda!

Ela em nós encarou silenciosa,
Mas deixava-nos vir, nos observando,
66 Qual leão no repouso, majestosa.

Virgílio apropinquou-se, lhe rogando
Nos mostrasse a mais cômoda subida:
69 Respondeu-lhe, somente perguntando

Qual fora a pátria nossa e a nossa vida.
A falar o meu Guia começava:
72 “Em Mântua...” quando a sombra, comovida,

A ele se enviou donde se achava,
“Sordello sou” — dizendo — “em Mântua amada
75 Nasci também.” — E amplexo os estreitava.

Ah! serva Itália, da aflição morada!
Nau sem piloto em pego tormentoso!
78 Rainha outrora em lupanar tornada!

Esse espírito nobre e deleitoso
Nome escutando só da doce terra,
81 Logo o patrício acolhe carinhoso:

Os vivos raivam no teu solo em guerra;
Se encarniça um no outro ferozmente
84 Os que um só muro, uma só cava encerra.

Busca, ó mísera Itália, diligente
No mantimo teu, busca em teu seio:
87 Onde acha paz a tua infausta gente?

Justiniano em vão te ajeitar veio
A brida; a sela fica abandonada:
90 Maior vergonha te há causado o freio.

Ah! Cúria! Aos teus deveres dedicada
Deixar-te cumpre a César todo o mundo,
93 Como a lei quer por Cristo decretada!

Vê como, aos maus instintos se entregando
Ira-se a fera por faltar-lhe espora,
96 Depois que inábil mão stá governando.

Alberto de Germânia! Atente agora
Que é tornada indômita e bravia:
99 Cavalgado a deveras ter outrora!

Do céu justo castigo deveria
Os teus ferir — tão novo e tão sabido,
102 Que espante o sucessor da monarquia!

Tu e o teu genitor heis consentido,
Distantes, por cobiça, em terra estranha,
105 Que do Império o jardim steja esquecido.

Vê, descuidoso, na aflição tamanha,
Capelletti e Montecchi entristecidos.
108 Monaldi e Filippeschi, alvo de sanha.

Vem, cruel, ver fiéis teus suprimidos:
De tanto opróbrio seu toma vingança.
111 Vê como em Santaflor estão regidos!

Vem ver tua Roma! De carpir não cansa!
Viúva e só a todo o instante clama:
114 Vem, César! Vem! Não mates minha esp’rança!

Vem ver como a si próprio o povo se ama!
E se por nós piedade não te move,
117 Mova-te o zelo pela tua fama!

Se me é dado dizer, Supremo Jove,
Dos homens por amor sacrificado,
120 Mal tanto a nos olhar não te comove?

Ou tens ao nosso mal aparelhado,
Lá dos conselhos teus no abismo imenso,
123 Algum bem, ao saber nosso vedado?

As cidades de Itália um tropel denso
De tiranos subjuga e, qual Marcelo
126 Se aclama o faccioso, à pátria infenso.

Hás de, Florença minha, haver por belo
Este episódio a ti não referente,
129 Mercê do povo teu, de outros modelo.

Muitos, justiça tendo em peito e mente,
Por desfechar seu arco ensejo aguardam:
132 Teu povo a tem nos lábios permanente.

Muitos de encargos públicos se guardam;
Mas teu povo solícito se of’rece,
135 Gritando: — ”Pronto estou! em darmos tardam!” —

Exulta! A causa o mundo bem conhece:
Tens prudência, tens paz, possuis riqueza.
138 Falo a verdade, e o efeito transparece.

Atenas, Sparta, que a tão suma alteza
Por leis e instituições se sublimaram,
141 Sem governo viveram na incerteza,

Se, Florença, contigo se comparam,
Que em novembro tens visto revogadas
144 Leis sutis, que em outubro se forjaram.

Quantas vezes hão sido transformadas,
Em breve tempo, lei, moeda, usança?
147 Quantas índoles e forma renovadas?

Se vês ao claro e tens viva a lembrança,
Ao enfermo hás de achar que és semelhante,
Que, no leito jazendo, não descansa;

151 Em vão se agita, a dor vai por diante.




1. Jogo da zara — jogo de dados. — 13. O Aretino etc., o juiz Benincasa de Laterina, que foi assassinado pelo famoso bandoleiro Ghino del Tacco. — 15. E o que etc., Guccio Tarlati, de Pietramala, morreu afogado no Arno, perseguindo os inimigos derrotados numa batalha. — 17. Frederico Novello, morto ao socorrer os Tarlati de Pietramala. — Esse Pisano, Farinata degli Scornegiani, morto a traição. Seu pai Mazucco, que se fizera frade, perdoou ao assassino do filho. — 19. Conde Orso degli Alberti, assassinado por um seu primo. — E aquele, Pedro Brosse, médico de Filipe III de França, enforcado sob falsas acusações. — 28-30. Em texto expresso etc. Virgílio na “Eneida” (livro VI) negou que pudessem modificar-se os decretos do Céu. — 42. Pois distante etc., a prece só foi aceita depois do advento do Cristianismo. — 74. Sordello de’ Visconti de Mântua, poeta, jurisconsulto e guerreiro do século XIII. — 88. Justiniano, que consolidou a legislação romana. — 97. Alberto de Germânia, Alberto I, filho do imperador Rodolfo, eleito em 1296. — 107-8. Cappelletti e Montecchi, famílias de Verona. Monaldi e Filippeschi, famílias de Orvieto. — 111. Santaflor, feudo imperial nas vizinhanças de Siena. — 118. Supremo Jove, Jesus Cristo. — 125. Qual Marcelo, Cláudio Marcelo, adversário de Júlio César.



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