A DIVINA COMÉDIA...
INFERNO ... Cantos I-V ... VI-XI ... XII-XVII ... XVIII-XXIII ... XIV-XXIX ... XXX-XXXIV
PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII
PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII
INFERNO ... Cantos I-V ... VI-XI ... XII-XVII ... XVIII-XXIII ... XIV-XXIX ... XXX-XXXIV
PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII
PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII
—PURGATÓRIO—
CANTO I
Saindo
do Inferno, Dante respira novamente o ar puro e vê fulgentíssimas estrelas.
Encontra-se na ilha do Purgatório.O guardião da ilha, Catão Uticense, pergunta
aos dois Poetas qual é o motivo da sua jornada. Ele os instrui, depois,
relativamente ao que devem fazer, antes de iniciar a subida do monte.
DO
engenho meu a barca as velas solta
Para
correr agora em mar jucundo,
3
E ao despiedoso pego a popa volta.
Aquele
reino cantarei segundo,
Onde
pela alma a dita é merecida
6
De ir ao céu livre do pecado imundo.
Ressurja
ora a poesia amortecida,
Ó
Santas Musas, a quem sou votado;
9
Unir ao canto meu seja servida
Calíope
o som alto e sublimado,
Que
às Pegas esperar não permitira
12
Lhes fosse o atrevimento perdoado.
Suave
cor de oriental safira,
Que
se esparzia no sereno aspeito
15
Do ar até onde o céu primeiro gira,
Recreia
a vista; e eu ledo me deleito
Em
surdindo da estância tenebrosa,
18
Que tanto os olhos contristara e o peito.
A
bela estrela, a amor auspiciosa
Sorrir
alegre faz todo o Oriente,
21
Vela os Peixes, que a seguem, luminosa.
Ao
outro pólo endereçando a mente,
Volto-me
à destra, e os astros quatro vejo,
24
Que vira só a primitiva gente.
Folgar
o céu parece ao seu lampejo.
Do
Norte, ó região, viúva hás sido,
27
De os contemplar te não foi dado ensejo.
Depois
de os remirar, já dirigido
Olhos
havia para o pólo oposto,
30
Donde a Carroça havia-se partido,
Eis
noto um velho, perto de mim posto,
Que
reverência tanta merecia,
33
Que mais do pai não deve o filho ao rosto.
Nas
longas barbas nívea cor saía,
Sendo
na coma sua semelhante,
36
Que em dupla trança ao peito lhe caía.
A
luz dos santos astros rutilante
De
fulgor tanto lhe aclarava o gesto,
39
Que o vi, como se o sol lhe fosse adiante.
—
“Quem sois que em contra o rio escuro e mesto
Do
eterno cárcere heis fugido os laços?” —
42
Movendo as nobres plumas, disse presto.
“Quem
vos guiou alumiando os passos
Para
a profunda noite haver deixado,
45
Que enluta sempre os infernais espaços?
“As
leis do abismo acaso se hão quebrado?
O
céu dá, seus decretos revogando,
48
Que dos maus seja o meu domínio entrado?” —
Travou
de mim Virgílio, me exortando
Por
voz, aceno e mãos: como queria
51
Os joelhos curvei, olhos baixando.
—
“De motu meu não vim” — lhe respondia —
De
Dama aos rogos, que do céu descera
54
Socorro este homem, sirvo-lhe de guia.
Pois
que é desejo teu que a nossa vera
Condição
definida mais te seja,
57
Prestar me cumpro explicação sincera.
“Aura
da vida este home’inda bafeja,
Mas
tanto, de imprudente, se arriscara,
60
Que é maravilha vivo ainda esteja.
“Disse
como a salvá-lo me apressara:
Por
onde os passos dirigir pudesse
63
Essa vereda só se deparara.
“Mostrei-lhe
a gente, que por má padece;
Mostrar-lhe
intento os que ora estão purgando
66
Pecados no lugar, que te obedece.
“Longo
seria como o vou guiando
Dizer-te:
é força do alto a que me impele,
69
Para te ver e ouvir o encaminhando,
Digna-te,
pois, bení’no ser com ele:
A
liberdade anela, que é tão cara:
72
Sabe-o bem quem por ela a vida expele.
“Por
ela a morte não te há sido amara
Em
Útica, onde a veste foi deixada,
75
Que em Juízo há de ser de luz tão clara.
“Por
nós eterna lei não é violada:
Ele
inda vive; Minos não me empece;
78
No círc’lo estou, onde acha-se encerrada
“Tua
Márcia, que em casto olhar parece
Rogar-te
ainda que por tua a tenhas:
81
Lembrando-a em favor nosso te enternece.
“Ir
deixa aos reinos teus, não nos retenhas;
Hei
de a Márcia dizê-lo agradecido,
84
Se lá de ti falar-se não desdenhas.” —
—
“Márcia, a meus olhos tão jucunda há sido
Que
— tornou-lhe Catão — eu de bom grado
87
No mundo quanto quis lhe hei concedido.
“Estando
além do rio detestado,
Mover-me
ora não pode: este preceito
90
Me foi, deixando o Limbo, decretado.
“Se
por dama celeste hás sido eleito,
Como
disseste, é vã lisonja agora;
93
O que requeres em seu nome aceito.
“Vai,
pois: cingindo este homem sem demora
De
liso junco, lava-lhe o semblante;
96
Toda a impureza seja posta fora.
“Cumpre
que, quando ele estiver perante
O
anjo, que do céu vier primeiro,
99
Névoa nenhuma os olhos lhe quebrante.
“Lá
onde baixa o ponto derradeiro
Do
mar batido, esta ilha tem viçoso
102
Juncal que alastra todo o seu nateiro.
“Não
pode vegetal rijo ou frondoso
Ter
vida ali; porque não dobraria
105
Ao embate das ondas caprichoso.
“Aqui
tornar inútil vos seria.
Vereis
ao sol, que surge, o melhor passo
108
Para subir do monte à penedia.” —
Sumiu-se.
Ergui-me, então, sem mais espaço,
E
em silêncio; olhos fitos no semblante
111
De Virgílio, amparei-me com seu braço.
—
“Comigo, ó filho” — diz-me — “segue avante.
Atrás
voltemos; pois daqui se inclina
114
O plano para o mar, que jaz distante.” —
Fugia
ante a alva a sombra matutina;
Já
nos ficava aos olhos descoberta,
117
Posto remota, a oscilação marina.
Pela
planície andávamos deserta,
Como
quem trilha a estrada, que perdera,
120
E teme não achar vereda certa.
Chegando
à parte, onde não pudera
Do
rocio triunfar o sol nascente,
123
Porque à sombra o frescor pouco modera,
Sobre
a relva meu Mestre brandamente
As
mãos ambas abriu: o movimento
126
Lhe noto e, o compreendo, diligente,
As
lacrimosas faces lhe apresento.
Virgílio
as cores restaurou-me ao gesto,
129
Que desbotara o inferno nevoento.
Vimos
à erma praia a passo lesto:
Nunca
sobre águas suas navegara
132
Homem que o mundo torne a ver molesto.
Cingido
fui, como Catão mandara.
Portento!
A humilde planta renascida,
Qual
antes vi no solo, onde a arrancara,
136
Sem diferença, de súbito crescida.
10.
Calíope — Musa da epopéia. — 11. Pegas, as filhas de Pierio, desafiaram as
Musas para cantarem com elas e, vencidas, foram transformadas em pegas. — 19. A
bela estrela, Vênus. — 21. Os Peixes, a constelação dos Peixes. — 31. Um velho
etc., Catão Uticense, que, para não entregar-se a Júlio César, suicidou-se em
Útica. — 40. Rio escuro e mesto, o Aqueronte. — 79. Márcia, esposa de Catão.
CANTO II
Estão
os Poetas ainda na praia, incertos em relação ao caminho, quando chega uma
barca, guiada por um Anjo, da qual saem almas destinadas ao Purgatório. Uma
delas, o músico Casella, amigo de Dante, a convite do Poeta, começa a cantar
uma sua canção. Os dois Poetas e as almas ficam a ouvir o canto harmonioso.
Sobrevém. porém, o severo Catão, que as repreende, e as almas fogem para o
monte.
RESPLENDECIA
o sol já no horizonte
Que
tem meridiano, onde iminente
3
O zênite fica de Solima ao monte.
Na
parte oposta a noite diligente
Do
Ganges co’as Balanças se elevava,
6
Que lhe caem da mão, quando é excedente.
Já
nesse tempo a idade transformava
A
branca e rósea cor da bela Aurora
9
Noutra, que a de áureos pomos simulava.
Do
mar ao longo inda éramos nessa hora,
Como
quem, na jornada embevecido,
12
Se apressa em mente, os pés, porém, demora:
Eis,
qual sobre manhã, enrubescido,
Das
névoas através, Marte chameja
15
No ponente das ondas refletido,
Uma
luz (praza a Deus de novo a veja!)
Tão
veloz pelo mar vi deslizando,
18
Que não há vôo de ave, que igual seja.
Maior
mostrou-se e mais fulgente, quando,
Depois
de ter-me ao Guia meu voltado,
21
De novo olhei o seu brilho contemplando.
Nívea
forma também, a cada lado,
Lhe
divisei; abaixo aparecia
24
De igual cor outro vulto assinalado.
Té
asas discernir permanecia
O
sábio Mestre meu silencioso.
27
Mas então, como o nauta conhecia,
Bradou:
“Curva os joelhos respeitoso,
Junta
as mãos: eis de Deus um mensageiro!
30
De ora avante hás de ver outros ditoso.
“Vê
que, aos humanos meios sobranceiro,
Para
vir de tão longe velas, remos
33
Possui das asas no volver ligeiro.
“Como
ele as alça para o céu já vemos,
Eternas
plumas suas agitando;
36
Não mudam como dos mortais sabemos.” —
Em
tanto, mais e mais se apropinquando,
Mais
clara sobressai a ave divina:
39
Olhos abaixo à luz me deslumbrando.
O
anjo logo à riba a nave inclina,
Tão
rápida, tão leve, que parece
42
Voar somente na amplidão marina.
Na
popa erguido o nauta resplendece:
Feliz
quanto é lhe está na fronte escrito;
45
Das almas turba ao mando lhe obedece.
In
exitu Israel de Egypto
A
uma voz cantavam juntamente
48
E o mais, que foi no santo salmo dito.
Sinal
da Cruz lhes fez devotamente:
Todos
então à riba se lançaram
51
E tornou, como veio, incontinente.
Em
volta remirando, os que ficaram
Pareciam
de espanto apoderados,
54
Como quem a estranheza se acercaram.
O
sol frechava os lumes seus dourados,
Lá
do meio do céu tendo expelido
57
O Capricórnio a tiros reiterados,
Quando
as almas, que haviam descendido,
Perguntam-nos:
— “Sabeis, para indicar-nos,
60
Por onde o monte pode ser subido?”
Tornou
Virgílio: — “Vos apraz julgar-nos
Do
lugar sabedores; mas viandantes,
63
Como sois vós, deveis considerar-nos.
Chegáramos
aqui, de vós, pouco antes,
Por
estrada tão árdua e temerosa,
66
Que esta subida a par, jogo é de infantes.” —
Notando
aquela turba, curiosa,
Que
eu, pelo respirar, era homem vivo,
69
Enfiou ante a vista portentosa.
E
como, a quem da paz ramo expressivo
Presenta,
o povo acerca-se cuidoso
72
Em tropel de notícias por motivo:
O
bando assim das almas venturoso
Em
meu rosto atentava alvoroçado,
75
Quase esquecido de ir a ser formoso.
Uma,
tendo-se às mais adiantado
A
me abraçar correu com tanto afeito,
78
Que fui de impulso igual arrebatado.
Sombras
vãs, verdadeiras só no aspeito!
Três
vezes quis nos braços estreitá-la,
81
Só as três vezes estreitei ao peito.
Ante
o espanto, que o gesto me assinala,
Sorriu-se;
e, como já se retirasse,
84
Avançando, eu tentei acompanhá-la.
Suavemente
disse que eu parasse,
Pedi-lhe,
com certeza a conhecendo,
87
Que um pouco a praticar se demorasse:
—
“Como te amei” — me respondeu — “vivendo
No
mortal corpo, assim eu te amo agora.
90
Por que vais? Dize: ao teu desejo atendo.” —
“Caro
Casella” — disse-lhe — “hei de embora
Tornar,
ao fim desta jornada, à vida.
93
Por que de vir hás delongado a hora?” —
“Se
a passagem negou-me requerida
Anjo,
que as almas, quando apraz-lhe, guia,
96
Ofensa não me fez imerecida;
“Pois
a justo querer obedecia.
Na
barca em paz, três meses há somente,
99
A todos dá a entrada apetecida.
“Eu,
que na plaga então era presente,
Onde
no mar o Tibre as águas deita
102
Por ele aceito fui benignamente,
“A
essa foz seus vôos endireita;
Pois
sempre ali a grei stá reunida,
105
Às penas do Aqueronte não sujeita.” —
—
“Se não é por lei nova proibida
Memória
e usança do amoroso canto,
108
Que as mágoas todas me adoçou da vida,
“Praza-te
amigo, confortar um tanto
Minha
alma, que molesta, que amofina
111
Star envolta no corpóreo manto.” —
—
“Amor que em minha mente raciocina” —
Entoou
ele então com tal doçura,
114
Que o som donoso inda alma me domina.
Ao
Mestre, a mim, a todos a brandura
Do
saudoso cantar tanto elevava,
117
Que de ai a mente nossa então não cura.
Na
toada, absorvida, se engolfava,
Eis
de repente o velho venerando:
120
— “Que fazeis, descuidosos?” — nos bradava.
“Pois
estais na indolência assim ficando?
Ide
ao monte, a despir essa impureza,
123
Que a vista vos está de Deus vedando!” —
Quais
pombos, que dos agros na largueza,
Em
desejado pascigo embebidos,
126
Como olvidada a natural braveza,
Súbito
arrancaram, de temor pungidos,
Se
algum mal iminente lhes parece,
129
De cuidados maiores possuídos:
Tal
a recente grei o canto esquece,
E,
como homem, que vai sem ter roteiro,
Corre
à costa, que aos olhos se oferece:
133
Não foi nosso partir menos ligeiro.
1-3.
Resplendecia etc., colocando o Purgatório num hemisfério antípoda àquele da
terra, o Poeta nota que onde ele estava o sol despontava e na mesma hora em
Jerusalém (Solima) descia a noite. — 46. In exitu, etc., primeiro verso do
Salmo 114. — 91. Casella, músico florentino amigo de Dante e que havia musicado
algumas canções dele. — 119. O Velho, Catão.
CANTO III
Os
dois Poetas se aprestam a subir o monte. Enquanto estão procurando o lugar onde
a subida seja mais fácil, vêem um grupo de almas que lhes vêm ao encontro.
Perguntam a elas onde seja a subida. Uma das almas se dá a conhecer a Dante. É
Manfredo, rei de Nápoles e da Sicília. Ele narra como morreu, pedindo a Deus,
na hora extrema. Estão juntas com ele, as almas dos que foram inimigos da Santa
Igreja.
ENQUANTO
aquela fuga repentina
Pela
planície as sombras impelia
3
Ao monte, que a razão a amar ensina,
Ao
sócio meu fiel eu me cingia:
Como
sem ele houvera prosseguido?
6
Quem para alçar-me esforço me daria?
De
remorsos parece possuído.
Ó
consciência pura e sublimada,
9
Leve falta pesar te dá subido!
Quando
atalhava a pressa, que é vedada
A
quem dos atos no decoro atente,
12
Eu, que sentira a mente angustiada,
Tornando
ao meu intento afoutamente
Os
olhos à eminência levantava,
15
Que para o céu mais alto eleva a frente.
Nas
espaldas o sol nos dardejava
Rubra
luz, que o meu corpo interrompia,
18
Pois aos seus raios óbice formava.
Escuro
ante mim só aparecia
O
solo: eu, de abandono receoso,
21
Voltei-me ao lado onde era o sábio Guia.
Virgílio
então me encara. — “Suspeitoso
Te
mostras?” — diz — “Cuidavas, porventura,
24
Que eu não mais te acompanhe cuidadoso?
“Surge
Vésper lá onde a sepultura
Guarda
o corpo em que sombra já fizera
27
Tomando-o a Brindes, Nápole o assegura.
“Se
ante mim não a vês, não te devera
Dar
pasmo como lá no firmamento
30
Se a luz a luz não tolhe e não movera.
“Para
calma sentir, frio ou tormento
Dispôs-nos
corpo a suma Potestade.
33
Como o fez? Não nos deu conhecimento.
“Fátuo
é quem julga à humana faculdade
Franco
o infindo caminho e sempiterno,
36
Por onde segue o Ente Uno em Trindade.
“Homem,
vos baste o quia: se ao superno
Saber
alevantar-vos fosse dado,
39
Da Virgem ao seio não baixara o Eterno.
“Já
viste porfiar sem resultado
Os
que, cevar podendo seu desejo,
42
Em perpétua aflição o têm tornado.
“De
Aristóteles falo neste ensejo,
De
Platão, de outros mais.” — Baixando a fronte,
45
Calou; mostrava torvação e pejo.
Chegamos
nós em tanto ao pé do monte
Onde
era a rocha de tal modo erguida,
48
Que de subir capaz ninguém se conte.
A
vereda mais erma e desabrida,
Que
de Léria a Túrbia se encaminha,
51
Dá, confrontada, cômoda subida.
E
o Mestre, assim falando, os pés detinha:
“Quem
sabe onde a este monte o passo ascende?
54
Como aqui sem ter asas se caminha?”
Enquanto,
baixo o rosto, o Mestre entende
Na
jornada, em sua mente interrogando,
57
E pela altura a vista se me estende,
Divisei
turba a nós endireitando
Da
mão destra; o seu passo era tão lento,
60
Que não me parecia estar andando.
—
“Aos que vêm” — disse ao Mestre — “mira atento;
Por
eles pode ser conselho dado,
63
Se o não te of’rece o próprio pensamento...” —
Olhou-me,
e com semblante asserenado
—
“À turba vagarosa” — tornou — “vamos,
66
E a esperança te esforce, ó filho amado!” —
Passos
mil para a grei nos caminhamos
E
de tiro de pedra inda à distância,
69
Por mão destra arrojada, nos chamamos
Quando
aqueles espíritos estância
Junto
aos penhascos vi fazer, cerrados,
72
Qual transviado da incerteza em ânsia.
“Vós,
eleitos ao bem, no bem finados” —
Disse
Virgílio — “pela paz ditosa,
75
Em que sois todos, creio, esperançados,
“Dizei-me
onde a montanha alta e fragosa
Subir
permite, um pouco se inclinando:
78
Do tempo a perda ao sábio é desgostosa.” —
Como
as ovelhas o redil deixando
A
uma, duas, três e a cerviz tendo
81
Baixa as outras vão tímidas ficando;
Todas
como a primeira, se movendo,
Conchegam-se-lhe
ao dorso, se ela pára,
84
O porque, simples, quietas não sabendo:
Assim
a demandar-nos se apressara
A
venturosa grei, que no meneio
87
Traz a moléstia e o pudor na cara.
Tomada
foi, porém, de tanto enleio,
Por
minha sombra em vendo a luz cortada
90
A destra, em direção da rocha ao seio,
Que
a vanguarda parou, como torvada:
Pelos
mais sem detença foi seguida,
93
Mas sem lhes star a causa revelada.
—
“A explicação previno apetecida:
Que
um vivo corpo vedes confesso
96
E a luz do sol por este interrompida.
“Não
haja em vós de maravilha excesso;
Do
céu pela virtude socorrido,
99
Da montanha atingir quer o cabeço.” —
Disse
Virgílio. — E foi-lhe respondido:
—
“Voltai-vos; caminhai de nós diante.” —
102
E o lugar indicavam referido.
—
“Sem que um momento deixes ir avante,
Quem
quer que sejas, olha-me e declara”, —
105
Disse um deles, — “se hás visto o meu semblante.” —
Volvi-me,
olhos fitando em quem falara.
Formoso
e louro, tinha heróico aspeito;
108
Um golpe o seu sobrolho separara.
Tornei-lhe
— “não” — tomado de respeito.
—
“Olha!” — falou a sombra me indicando
111
Larga ferida no alto do seu peito.
“Vês
Manfredo — sorriu-se me falando —
Que
neto foi da Imperatriz Constança.
114
A minha bela filha diz, voltando,
(Mãe
daqueles por quem tanta honra alcança
Aragão
com Sicília) o que hás sabido,
117
Qual a verdade seja lhe afiança.
“Depois
que foi o corpo meu ferido
De
golpes dois mortais, a Deus piedoso
120
Alma entreguei, chorando arrependido.
“Fui
de horrendos pecados criminoso,
Mas
a Bondade Infinda acolhe e abraça
123
Quem perdão lhe suplica pesaroso.
“Se
o Bispo que enviou Clemente à caça
Do
meu cadáver, respeitado houvesse
126
Esse preceito da Divina Graça,
“Do
corpo meu os ossos me parece,
Que
em frente à ponte, ao pé de Benevento,
129
Em guarda o grave acervo inda tivesse.
“Agora
os banha a chuva e açouta o vento,
Do
reino meu distantes, junto ao Verde,
132
Onde os lançou sem luz, sem saimento.
“Mas
anátema tanto alma não perde
Que,
quando verde a esp’rança lhe floresce,
135
Do eterno amor do Criador deserde.
“Por
certo, em contumácia o que fenece
Contra
a Igreja, ainda quando se arrependa
138
Na hora extrema sua, aqui padece
“Tempo,
que trinta vezes compreenda
Da
impenitência o espaço, se ao decreto
141
Preces não trazem benfazeja emenda.
“Vês,
pois, que podes me tornar quieto:
Revelando
à piedade de Constança
Que
interdito me hás visto ainda exceto
145
Pelas preces de lá muito se alcança.” —
25.
Surge Vésper etc., o cadáver de Virgílio de Brindes foi transportado para
Nápoles, onde, neste momento, descia a noite. — 37. Vos baste o guia, chega
saber o que é, sem procurar a razão. — 50. De Léria a Túrbia, o caminho entre
estas duas aldeias da Ligúria. — 112. Manfredo, filho do imperador Frederico II
e neto da imperatriz Constança. — 114-16. Minha bela filha, Constança, esposa
de Pedro III de Aragão teve dois filhos: Jaime que sucedeu ao pai em Aragão e
Frederico, rei de Sicília. — 124. Se o bispo etc., Bartolomeu Pignatelli, bispo
de Cosenza, por ordem do papa Clemente IV, desenterrou o corpo de Manfredo, que
era excomungado, e o mandou jogar no Rio Verde. — 133. Anátema, excomunhão dos
papas.
CANTO IV
Seguindo
os conselhos recebidos, os Poetas, através de um caminho apertado e difícil,
sobem ao primeiro salto. Virgílio explica a Dante que, encontrando-se em
hemisfério antípoda àquela terra, o Sol gira em direção contrária. Vendo muitas
almas recolhidas à sombra de um rochedo, e aproximando-se a elas, Dante
reconhece o seu amigo Belacqua. Ai estão os espíritos preguiçosos dos que
esperaram para arrepender-se o termo da vida.
QUANDO
ou pelo prazer ou por desgosto
Das
faculdades uma é possuída,
3
Concentrando-se, o espírito indisposto
Se
mostra à ação, de outra qualquer nascida;
Verdade,
que refuta a crença errada
6
— Quem em nós uma alma está noutra acendida.
E,
pois, se vendo, ouvindo, alma engolfada,
Lia-se
à cousa, que a atenção cativa,
9
Sem sentir vai-lhe o tempo à desfilada.
Pois
faculdade só no ouvir ativa
Difere
dessa, em que alma se domina:
12
Uma presa, outra a vínculos se esquiva.
Experiência
ao claro isto me ensina.
Aquela
sombra atônito escutando,
15
Já com cinqüenta graus o sol se empina,
Sem
que eu me apercebido houvesse, quando
Ao
ponto fomos, onde a turba, unida,
18
— “Haveis o que anelais!” — disse, bradando.
Estando
a vinha já madurecida,
Pelo
aldeão de espinhos com braçada
21
Da sebe a estreita aberta é defendida.
Mais
larga é que a vereda alcantilada
Por
onde fui subindo após meu Guia,
24
Quando a grei nos deixou abençoada.
A
Noli e a San-Leo por árdua via
Com
pés se vai, Bismântua assim se alcança;
27
Ter asas de ave aqui mister seria;
Ou
asas de um desejo, que não cansa,
Para
o vate seguir que, desvelado,
30
Me servia de luz, me dava esp’rança.
Por
carreiro entre penhas escavado,
Sempre
de agudas pontas empecido,
33
Pelas mãos cada passo era ajudado.
Chegados
da alta escarpa ao topo erguido
Da
eminência no dorso descoberto,
36
— “Por onde ir”— disse então —“Mestre querido?”
—
“Eia!” — tornou — “não dês um passo incerto!
Vai
subindo após mim pela montanha;
39
Guia acharemos no caminho esperto.” —
Não
mede a vista elevação tamanha:
Linha
que o centro corte de um quadrante,
42
Por certo a ingrimidez não lhe acompanha.
Sem
forças já, falei-lhe titubante:
—
“Volve a face, pai meu: olha piedoso
45
Que só me deixas, indo por diante” —
—
“Para ali, filho” — diz — “te alça animoso!” —
E
o seu braço indicava uma planura,
48
Que torneia o declive temeroso.
Dessas
vozes esforça-me a doçura
Tanto,
que a rastos lhe seguia o passo
51
Até meus pés tocarem nessa altura.
Sentamo-nos
a par, então, de espaço
Ao
nascente voltados, qual viageiro
54
A estrada olhando, que calcara lasso;
Abaixo
os olhos dirigi primeiro,
Ao
sol voltei depois; notei pasmado
57
Da esquerda o lume vir desse luzeiro.
Disse
Virgílio ao ver quanto enleado
Stava,
o carro da luz considerando
60
Que era entre nós e o Aquilão entrado:
—
“Se um e outro hemisfério alumiando,
Castor
e Pólux junto a si tivera
63
O vasto espelho, que ora está brilhando,
“Da
Ursa ainda mais propínqua à esfera,
A
roda do Zodíaco observaras,
66
Se a costumada estrela não perdera.
“Meditando,
a verdade logo acharas,
Se
colocados de Sião o monte,
69
E este outro na terra imaginaras,
“Ambos
guardando idêntico horizonte
E
hemisférios diversos, onde passa
72
Estrada, em que tão mal correu Fetonte,
“E
se a razão em ti não for escassa,
Verás
que, enquanto a um vai por um lado,
75
Ao outro pelo oposto o sol perpassa.” —
—
“Tanto ao claro jamais, ó Mestre amado,
Como
ora, o meu esp’rito compreendera,
78
Quando estava por dúvida nublado.
“Que
o círc’lo médio da mais alta esfera,
Que
sempre Equador chama-se em certa arte
81
Entre o inverno e o sol se considera,
“Deve
(se pude a mente penetrar-te)
Para
o norte volver-se, e, no entretanto,
84
Viam-no Hebreus de Áustro pela parte.
“Agora,
se te apraz, dize-me quanto
Hemos
de andar; que os olhos, da eminência
87
Não atingindo o fim, se enchem de espanto.” —
—
“Da montanha” — responde — “é a excelência
Fadiga
no começo causar grave;
90
Quem mais sobe acha menos resistência.
“Ao
tempo, em que te parecer suave
Tanto,
que a subas ágil e ligeiro,
93
Como descendo da água o curso a nave,
“No
termo te acharás deste carreiro:
Após
afã desfrutarás repouso:
96
Quanto digo hás de ver que é verdadeiro” —
Mal
acabando o Mestre carinhoso,
Perto
soa uma voz: — “Talvez te seja,
99
Antes de lá chegar, preciso um pouso.” —
Volveu-se
cada qual para que veja
Quem
falara; alta penha deparamos;
102
Então só vemos que à mão sestra esteja.
Multidão,
cercando-nos, achamos
Que
à sombra demorava quietamente;
105
Por desídia detidos os julgamos.
Mostra-se
um mais que os outros negligente:
Sentado
abraça as pernas, tendo o rosto
108
Recostado aos joelhos, qual dormente.
Disse
então: — “Vê senhor, quanto disposto
É
à inércia o que ali stá parecendo:
111
Como irmão da preguiça fica posto.” —
Ele
um pouco voltou-se olhos movendo
Para
o meu lado, sem mudar postura,
114
— “Pois vai tu, que és valente!” — me dizendo.
Reconheci
quem era. Inda me dura
Da
agra ascensão em parte o grande ofêgo;
117
Mas endereço os passos à figura.
A
fronte mal ergueu, quando me achego.
—
“Como conduz o sol carro à esquerda
120
Tens reparado?” — disse com sossego.
Por
meneio tão lento e voz tão lerda
Fui
algum tanto a riso provocado.
123
— “Belacqua” — disse eu — “mas a tua perda
Não
choro. Por que estás aqui sentado?
Esperas
guia? Acaso, como outrora,
126
Da preguiça te sentes cativado?” —
Tornou-me:
— “Irmão, subir que importa agora?
De
Deus o anjo, que defende a entrada,
129
Me deixaria dos martírios fora.
“Tanto
a porta me tem de ser vedada,
Quanto
no mundo me durara a vida:
132
Pesei-me só a morte ao ver chegada.
“Mas
antes ser me pode permitida
Pela
oração de quem da Graça goza;
135
Que vai outra, do céu desatendida?” —
Mas
o Vate seguia na penosa
Jornada.
— “Vem!” — dizia — “Resplandece
O
sol no meio-dia; e tenebrosa
139
Sobre Marrocos ora a Noite desce.” —
5.
A crença errada etc., de atribuir ao homem diversas almas, crença dos
platônicos e dos maniqueus. — 15. Já com cinqüenta graus etc., o Sol percorre
15 graus por hora; portanto haviam passado quase 3 horas e meia. — 25-26. Noli,
na Ligúria; São Leo, perto de Urbino; Bismântua, perto de Urbino. — 57. Da
esquerda etc., o Purgatório se encontra num hemisfério antípoda, e portanto o
sol aparecia a Dante pela esquerda quando no nosso hemisfério parece levantar-se
à direita e caminhar à esquerda. — 68. Sião, Jerusalém, que é o lugar antípoda
ao Purgatório. — 123. Belacqua, florentino, fabricante de instrumentos
musicais, amigo de Dante. — 139. Sobre Marrocos, sendo meio-dia no Purgatório,
em Jerusalém, no hemisfério oposto, era meia-noite, e a noite começava em
Marrocos.
CANTO V
Prosseguindo
os dois Poetas a sua viagem, encontram uma multidão de almas que se aproximam
deles, depois de ter percebido que Dante é vivo. São espíritos de pessoas que
saíram da vida por morte violenta, mas no fim se arrependeram e perdoaram a
seus inimigos.
OS
passos do meu Guia acompanhando,
Dessas
almas um pouco era distante,
3
Quando uma, atrás de nós, o dedo alçando,
—
“Vede! A luz” — exclamou — “não é brilhante
À
sestra do que vai mais demorado;
6
Pelo meneio a um vivo é semelhante.”
Olhos
volvi daquela voz ao brado,
E
as vi notar, de maravilha cheias,
9
Como eu, andando, a sombra tinha ao lado.
—
“Por que tanto, ó meu filho, assim te enleias?”
Disse
o Mestre. — “Por que deténs o passo?
12
Acaso o murmurar daqui receias?
“Segue-me:
a vozes vãs ouvido escasso!
Qual
torre, inabalável sê, dos ventos
15
À fúria opondo válido embaraço;
“Quem
firmeza não tem nos pensamentos,
Do
fim se aparta, a que alma se endereça
18
E, assim, malogra, instável, seus intentos.
—
“Sigo-te!” — ao Mestre meu tornei depressa.
Cumpria
assim falar; meu voto incende
21
O rubor, que ao perdão a falta apressa.
Entanto
por atalho a costa ascende
Adiante
de nós turba cantando
24
Devota Miserere, e ao cimo tende.
Ao
ver que estava o corpo meu vedando
Dos
luminosos raios a passagem
27
O canto suspendeu, rouco “oh!” soltando
E
dois dos seus em forma de mensagem
Correndo
contra nós assim falaram:
30
“Quem sois, que assim fazeis esta viagem?”
Disse
Virgílio: — “Aos que vos enviaram
Tornai
que ao corpo do homem que estais vendo
33
Vitais alentos inda não deixaram.
“Se
os passos, como cuido, estão detendo,
Por
ver-lhe a sombra, a causa é conhecida;
36
Terão proveito, as honras lhe fazendo.” —
Mais
prontos que os vapores à descida
Da
noite, o ar sereno aluminando,
39
Ou névoa, ao pôr do sol, do céu varrida,
Partem,
à grei de novo se ajuntando;
Como
esquadrão, que corre à desfilada,
42
Voltam todos, a nós se arremessando.
“Ao
nosso encontro vem turba avultada;
Pretensões
todos têm” — disse-me o Guia
45
— “Andando, os ouve; não convém parada.”
—
“Ó alma, que do céu vais à alegria
No
próprio corpo, em que feliz nasceste,
48
Demora o passo um pouco” — a grei dizia,
“De
entre nós vê se alguém reconheceste
Para
ao mundo levares a notícia;
51
Por que deter-te ainda não quiseste?
“Morte
a todos causou cruel nequícia;
Pecamos
sempre até que à final hora
54
Do céu a luz se nos mostrou propícia.
“Assim,
contritos, perdoando, fora
Fomos
da vida, a paz com Deus já feita;
57
De o ver desejo nos acende agora.”
—
“A feição vossa” — eu disse — “é tão desfeita,
Que
nenhum reconheço; mas, se acaso
60
Ser útil posso no que a vós respeita,
“Pela
paz, a servir-vos já me emprazo,
Que
busco, deste sábio acompanhado,
63
De mundo em mundo, no mais breve prazo.”
“Cada
qual” — me tornou — “está confiado
Em
ti, mister não há teu juramento,
66
Se não faltar poder ao teu bom grado.
“Aos
outros me antecipo: ao rogo atento,
Tu
se fores à terra que demora
69
Entre a Romanha e a que é de Carlo assento,
“Aos
meus em Fano compassivo exora
Que
com preces sufraguem-me piedosos
72
Para o mal expurgar que fiz outrora.
“Nasci
lá, sofri golpes espantosos,
Que
a existência cortaram-me tão cara,
75
De Antenórios nos planos pantanosos,
“Onde
o funesto fim nunca esperara.
Assim
o quis do Marquês d’Este a ira,
78
Que o exício meu injusto aparelhara.
“Ah!
se, fugindo, me acolhesse a Mira
Quando
alcançou-me de Oriais perto,
81
Eu fora inda hoje aonde se respira.
“Mas,
correndo ao paul, sem rumo certo,
Caí,
no ceno e juncos enleado:
84
De sangue um lago fez meu peito aberto.”
“Se
for” — outro então disse — “executado
Desejo
que te impele ao alto monte,
87
Sê por mim de piedade impressionado.
“De
Montefeltro fui e fui Buonconte;
De
mim Joana, e ninguém mais, não cura;
90
Entre todos por isso abaixo a fronte.”
—
“Que força — que má ventura
Tão
longe te arrastou de Campaldino,
93
Que se ignora onde tens a sepultura?”
—
“Oh!” — replicou-me — “Ao pé de Casentino
Um
rio passa que se chama Arquiano,
96
Nascido lá sobre o Ermo, no Apenino.
“De
dor lá onde o perde o nome, insano,
Cheguei:
ao pé fugia, e, traspassado,
99
O colo meu ensangüentava o plano.
“Da
vista e fala ao ser desamparado,
No
suspiro final bradei — Maria! —
102
E o corpo meu tombou, da alma deixado.
“Direi
verdade: aos vivos o anuncia.
De
Deus anjo tomando-me, o do inferno
105
— “Servo do Céu, mo tomas?” lhe bramia.
“Dele
me usurpas o princípio eterno
Por
uma tênue lágrima fingida;
108
Mas do seu corpo cabe-me o governo.
“Bem
sabes que nos ares recolhida
Vaporosa
umidade em chuva desce,
111
Quando é do frio às regiões subida
“Como
quem com maldade o engenho tece,
Névoas
e vento acumulava, usando
114
Da pujança infernal que lhe obedece.
“Depois,
o dia terminado estando,
Do
Pratomagno à serra, o vale envolve
117
Em treva, ao céu a abóbada enlutando.
“Túmido
o ar, em catadupas volve,
E
a água que na terra não se entranha,
120
Espumosa em torrentes se revolve.
“Veloz
os álveos aos arroios ganha,
E
para o régio rio se arrojando,
123
Os óbices abate, que se assanha.
“Junto
à foz meu cadáver encontrando
Levanta-o
Arquiano impetuoso
126
Ao Arno o impele, os braços desligando
“Da
cruz que fiz no transe doloroso.
Por
fundo e margens rola-o, sepultado
129
Na areia o deixa, que arrastara iroso.” —
—
“Ah! quando à luz do mundo hajas tornado,
Quando
repouses da jornada extensa” —
132
Foi por terceiro espírito impetrado:
“De
Pia recordando-te, em mim pensa;
Siena
fizera o que desfez Marema.
Sabe-o
quem me esposara e em recompensa
136
No dedo pôs-me anel com rica gema.” —
24.
Miserere, o salmo que começa com essa palavra. — 68-69. A terra que demora
etc., a Marca de Ancona. — 73. Nasci lá etc. Quem fala é Jacopo de Cassero, de
Fano, que foi assassinado pelos sicários do Marquês Azzo III d’Este, quando se
dirigia a Milão, em 1298. — 75. De Antenórios etc. no território de Pádua
(cidade que se diz fundada por Antenor). — 88. Buonconte de Montefeltro, filho
de Guido (Inf. XXVII), capitão gibelino, morreu na batalha de Campaldino. — 89.
Joana, sua esposa. — 96. Ermo de Camaldoli. — 122. Regio rio, o Arno. — 133.
Pia del Guastelloni. Casada com um gentil-homem da família Tolomei, ficou viúva
e casou novamente com Nello Pannocchieschi, que a fez matar, talvez desconfiado
da sua fidelidade, num castelo da Marema, em 1295.
CANTO VI
Dante
promete às almas que a eles se recomendaram que não se esquecerá delas quando
voltar ao mundo dos vivos. Os dois Poetas encontram o poeta Sordello, o qual,
ao ouvir o nome da sua pátria, Mântua, abraça o mantuano Virgílio. Esse
espisódio move Dante a uma violenta invectiva contra as divisões e as guerras
internas que devastam a Itália.
QUANDO
o jogo da zara é terminado,
Na
amargura, o que perde, só ficando,
3
Os bons lances ensaia contristado.
A
turba o vencedor acompanhando,
Qual
vai diante qual por trás o prende,
6
Ao lado qual se está recomendando:
A
este e àquele sem deter-se atende;
O
que lhe alcança a mão parte se apressa;
9
De importunos desta arte se defende.
Cerca-me
assim a multidão espessa,
Ora
a uns ora a outros me volvendo,
12
De cada qual me livro por promessa.
O
Aretino aqui stava: golpe horrendo,
De
Ghin Tacco por mau, cortou-lhe a vida,
15
E o que na fuga se afogou, horrendo.
Aqui
rogou-me em súplica sentida,
Frederico
Novello e esse Pisano
18
Por quem Mazucco ação fez tão subida.
Vi
o Conde Orso e aquele que o seu dano
Mortal,
pelo ódio e inveja, recebera,
21
Como dizia, não por feito insano.
Aludo
a Pedro Brosse. A que ora impera,
Do
Brabante, se apressa a ter cautela,
24
Se não, da grei maldita a estância a espera.
Quando
enfim, pude me esquivar àquela
Turba,
que preces sôfrega pedia
27
Para a entrada apressar na mansão bela,
—
“Em texto expresso” — eu disse — “ó douto Guia,
Do
teu livro afirmaste que a vontade
30
Do céu por orações não se movia.
“Mas
pede-as essa grei com ansiedade:
Seria
acaso vã sua esperança?
33
Ou compreender não pude essa verdade?” —
—
“Seu sentido a tua mente” — disse — “alcança;
Por
vã essa esperança não falece;
36
Quanto é certa a razão nô-lo afiança:
“A
Justiça do céu não desfalece,
Porque
flama de amor num só momento
39
O devedor redime, que padece.
“Lá
onde expus aquele pensamento
Não
podia oração solver pecado,
42
Pois distante de Deus estava o intento.
“Porém
neste problema sublimado
À
mente por que há suma ciência
45
Te será puro lume revelado.
“Por
quem? Por Beatriz. A continência
Feliz
ridente lhe verás, ao viso
48
Quando houveres subido da eminência.” —
Tornei:
— “Andar mais presto ora é preciso;
Como
de antes, não sinto mor fadiga,
51
E da montanha a sombra já diviso.” —
—
“Como podemos, é mister prossiga
O
passo, enquanto o dia não se finda;
54
Mas te engana o desejo que te instiga.
“Antes
do cimo aguardarás a vinda
Desse
astro oculto agora pela encosta;
57
Não refranges os raios seus ainda.
“Aquela
sombra vê, de parte posta,
Que,
em soledade, atenta nos esguarda:
60
A vereda dirá melhor disposta.” —
Chegamo-nos.
Ó nobre alma lombarda,
Como
estavas altiva e desdenhosa.
63
Dos olhos no meneio grave e tarda!
Ela
em nós encarou silenciosa,
Mas
deixava-nos vir, nos observando,
66
Qual leão no repouso, majestosa.
Virgílio
apropinquou-se, lhe rogando
Nos
mostrasse a mais cômoda subida:
69
Respondeu-lhe, somente perguntando
Qual
fora a pátria nossa e a nossa vida.
A
falar o meu Guia começava:
72
“Em Mântua...” quando a sombra, comovida,
A
ele se enviou donde se achava,
“Sordello
sou” — dizendo — “em Mântua amada
75
Nasci também.” — E amplexo os estreitava.
Ah!
serva Itália, da aflição morada!
Nau
sem piloto em pego tormentoso!
78
Rainha outrora em lupanar tornada!
Esse
espírito nobre e deleitoso
Nome
escutando só da doce terra,
81
Logo o patrício acolhe carinhoso:
Os
vivos raivam no teu solo em guerra;
Se
encarniça um no outro ferozmente
84
Os que um só muro, uma só cava encerra.
Busca,
ó mísera Itália, diligente
No
mantimo teu, busca em teu seio:
87
Onde acha paz a tua infausta gente?
Justiniano
em vão te ajeitar veio
A
brida; a sela fica abandonada:
90
Maior vergonha te há causado o freio.
Ah!
Cúria! Aos teus deveres dedicada
Deixar-te
cumpre a César todo o mundo,
93
Como a lei quer por Cristo decretada!
Vê
como, aos maus instintos se entregando
Ira-se
a fera por faltar-lhe espora,
96
Depois que inábil mão stá governando.
Alberto
de Germânia! Atente agora
Que
é tornada indômita e bravia:
99
Cavalgado a deveras ter outrora!
Do
céu justo castigo deveria
Os
teus ferir — tão novo e tão sabido,
102
Que espante o sucessor da monarquia!
Tu
e o teu genitor heis consentido,
Distantes,
por cobiça, em terra estranha,
105
Que do Império o jardim steja esquecido.
Vê,
descuidoso, na aflição tamanha,
Capelletti
e Montecchi entristecidos.
108
Monaldi e Filippeschi, alvo de sanha.
Vem,
cruel, ver fiéis teus suprimidos:
De
tanto opróbrio seu toma vingança.
111
Vê como em Santaflor estão regidos!
Vem
ver tua Roma! De carpir não cansa!
Viúva
e só a todo o instante clama:
114
Vem, César! Vem! Não mates minha esp’rança!
Vem
ver como a si próprio o povo se ama!
E
se por nós piedade não te move,
117
Mova-te o zelo pela tua fama!
Se
me é dado dizer, Supremo Jove,
Dos
homens por amor sacrificado,
120
Mal tanto a nos olhar não te comove?
Ou
tens ao nosso mal aparelhado,
Lá
dos conselhos teus no abismo imenso,
123
Algum bem, ao saber nosso vedado?
As
cidades de Itália um tropel denso
De
tiranos subjuga e, qual Marcelo
126
Se aclama o faccioso, à pátria infenso.
Hás
de, Florença minha, haver por belo
Este
episódio a ti não referente,
129
Mercê do povo teu, de outros modelo.
Muitos,
justiça tendo em peito e mente,
Por
desfechar seu arco ensejo aguardam:
132
Teu povo a tem nos lábios permanente.
Muitos
de encargos públicos se guardam;
Mas
teu povo solícito se of’rece,
135
Gritando: — ”Pronto estou! em darmos tardam!” —
Exulta!
A causa o mundo bem conhece:
Tens
prudência, tens paz, possuis riqueza.
138
Falo a verdade, e o efeito transparece.
Atenas,
Sparta, que a tão suma alteza
Por
leis e instituições se sublimaram,
141
Sem governo viveram na incerteza,
Se,
Florença, contigo se comparam,
Que
em novembro tens visto revogadas
144
Leis sutis, que em outubro se forjaram.
Quantas
vezes hão sido transformadas,
Em
breve tempo, lei, moeda, usança?
147
Quantas índoles e forma renovadas?
Se
vês ao claro e tens viva a lembrança,
Ao
enfermo hás de achar que és semelhante,
Que,
no leito jazendo, não descansa;
151
Em vão se agita, a dor vai por diante.
1.
Jogo da zara — jogo de dados. — 13. O Aretino etc., o juiz Benincasa de
Laterina, que foi assassinado pelo famoso bandoleiro Ghino del Tacco. — 15. E o
que etc., Guccio Tarlati, de Pietramala, morreu afogado no Arno, perseguindo os
inimigos derrotados numa batalha. — 17. Frederico Novello, morto ao socorrer os
Tarlati de Pietramala. — Esse Pisano, Farinata degli Scornegiani, morto a
traição. Seu pai Mazucco, que se fizera frade, perdoou ao assassino do filho. —
19. Conde Orso degli Alberti, assassinado por um seu primo. — E aquele, Pedro
Brosse, médico de Filipe III de França, enforcado sob falsas acusações. —
28-30. Em texto expresso etc. Virgílio na “Eneida” (livro VI) negou que
pudessem modificar-se os decretos do Céu. — 42. Pois distante etc., a prece só
foi aceita depois do advento do Cristianismo. — 74. Sordello de’ Visconti de
Mântua, poeta, jurisconsulto e guerreiro do século XIII. — 88. Justiniano, que
consolidou a legislação romana. — 97. Alberto de Germânia, Alberto I, filho do
imperador Rodolfo, eleito em 1296. — 107-8. Cappelletti e Montecchi, famílias
de Verona. Monaldi e Filippeschi, famílias de Orvieto. — 111. Santaflor, feudo
imperial nas vizinhanças de Siena. — 118. Supremo Jove, Jesus Cristo. — 125.
Qual Marcelo, Cláudio Marcelo, adversário de Júlio César.
A DIVINA COMÉDIA...
INFERNO ... Cantos I-V ... VI-XI ... XII-XVII ... XVIII-XXIII ... XIV-XXIX ... XXX-XXXIV
PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII
PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII