Divina Comédia - Paraíso XXIX - XXXIII

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CANTO XXIX



Beatriz esclarece a Dante que os anjos foram criados por Deus no mesmo tempo em que foram criados os céus. Fala-lhe dos anjos fiéis e dos anjos rebeldes, os quais foram precipitados no Inferno. Censura os falsos filósofos e os padres mentirosos que esquecem que o escopo da predicação é persuadir os homens a serem cristãos, e vendem as indulgências para obter bens materiais.



QUANDO aos dois gentis filhos de Latona,
Um por Áries coberto, outro por Libra,
3 A um tempo cinge do horizonte a zona,

Quanto espaço o zênite os equilibra,
Té que mude o hemisfério e, desprendido
6 Deste cinto um e outro se deslibra,

Tanto calou-se Beatriz, luzido
De riso tendo o rosto e olhos fitando
9 Nesse Ponto que os meus tinha vencido.

— “Teu desejo” — falou-me — “antecipando
Agora não te inquiro: já o hei visto
12 No centro de todo o ubi e todo o quando.

“Não para ter mais perfeição, pois isto
Fora impossível, mas porque fulgindo
15 O seu splendor dizer pudesse, — Existo, —

“Na Eternidade, o tempo não medindo
Nem o lugar, criar se há dignado
18 Amores nove o Eterno Amor se abrindo.

“Antes não tinha na inação ficado:
Nem antes, nem depois era existente,
21 Quando Deus sobre as águas foi levado.

“Matéria e forma puras, juntamente,
Quais setas de tricorde arco voando
24 Saíram do ato da Infalível Mente.

“Como, em vidro, em cristal, em âmbar quando
Luz do sol toca, é logo refletida
27 Do vir ao ser distância não se dando,

“Tal a obra triforme, concluída
De uma só vez, no ser raiou perfeita
30 Sem star parte por outra antecedida.

“Ordem foi concriada, a que é sujeita
Cada substância; o cimo foi marcado
33 No mundo a que por ato puro é feita;

“À força pura imo lugar stá dado;
São no meio travados força e ato
36 Por nó que indissolúvel se há tornado.

“Jerônimo escreveu que longo trato
De séc’los antes de outro mundo feito
39 Fora dos anjos o império nato.

“A verdade, porém, stá no conceito
De escritores, que influi o Espírito Santo
42 Verás, pensando, da verdade o efeito.

“Razão em parte o vê também, porquanto
Compreender não pudera que os motores
45 Inertes fossem por espaço tanto.

“Sabes, pois, onde e quando esses Amores
Criados foram e de qual maneira:
48 Do teu desejo apago três ardores.

“Em menos tempo do que a soma inteira
De um a vinte se faz, dos anjos parte
51 Turbou vosso elemento sobranceira.

“Fiel a outra emprega-se dessa arte,
Que vês: assim girando jubilosa,
54 Deste excelso mister se não disparte.

“O mal causou soberba criminosa
Do que hás visto no abismo do tormento,
57 Do mundo sob a mole ponderosa.

“Mas estes, com modesto pensamento,
Mostraram-se à Bondade agradecidos,
60 Que lhes deu tão sublime entendimento.

“Na vista se exaltando, enriquecidos
São de mérito e graça iluminante,
63 Por querer certo e firme dirigidos.

“Não duvides; e sabe, de ora avante,
Que receber a graça é meritório,
66 Segundo o afeto mostrar-se constante.

“Já, pois, este celeste consistório,
Se quanto ora te hei dito a mente alcança,
69 Bem podes contemplar sem adjutório.

“Como em vossas escolas se afiança,
Na terra, que é da angélica natura
72 O querer, o entender, o ter lembrança,

“Eu devo ainda revelar-te a pura
Verdade, que entre vós se há confundido,
75 Sendo enleada por tão má leitura.

“Estas substâncias, o prazer obtido
De verem Deus, jamais rosto voltaram
78 Dos olhos a que nada oculto há sido.

“Seu ver, novos objetos não cortaram;
Não há razão, por que se lhes suponha
81 Rememorar idéias, que passaram.

“Assim na terra sem dormir se sonha,
Crendo e não crendo proferir verdade:
84 Neste caso há mais culpa e mais vergonha.

“De opiniões não tendes fixidade
Filosofando, tanto vos transporta
87 Da ostentação e de o pensar vaidade.

“No céu menos do que isto se suporta —
Ser a Santa Escritura desdenhada
90 Ou ter inteligência errada e torta.

“Para ser pelo mundo semeada
Quanto sangue custou pouco se atenta,
93 E quanto a crença humilde a Deus agrada.

“Qual para alardear engenho, inventa;
Quando o Santo Evangelho está calado
96 Tais invenções o púlpito comenta.

“Qual diz que a lua, tendo atrás voltado,
No ato da Paixão de Cristo, houvera,
99 Interpondo-se, a luz do Sol velado.

“Qual afirma que o lume se escondera
Por si mesmo; e o eclipse à Índia, à Espanha
102 Comum como à Judéia, se fizera.

“Em Florença não há cópia tamanha
De Lapi e Bindi quanto só num ano
105 O púlpito de contos desentranha.

“Desta arte a ovelha, que não sabe o engano,
Do pasto volta túmida de vento,
108 Desculpa não lhe dá não vendo o dano.

“Não disse Jesus Cristo ao seu convento:
Parti e ao mundo apregoai mentira;
111 Mas deu-lhes da verdade o fundamento;

“Ele tão alto, em sua voz se ouvira,
Que foi-lhes o Evangelho escudo e lança
114 Nos prélios, de que a Fé vitriz saíra.

“Ora em sermões o trocadilho, a chança
Estão na voga; o riso provocando
117 Incha o capuz; por nada mais se cança*.

“Se o vulgo vira o pássaro nefando,
Que em cógula se aninha, não quisera
120 Indulgências, em que se anda confiando;

“Stultícia tal da terra se apodera,
Que, em prova e testemunho não firmado,
123 Qualquer a dá-las apto considera.

“De Santo Antônio assim medra o cevado
E outros muitos, que os porcos mais ascosos,
126 Que pagam com dinheiro não cunhado.

“Mas longa vai a digressão; cuidosos
Os olhos volve à verdadeira estrada;
129 O tempo é curto, andemos pressurosos.

“É tanto a grei dos anjos avultada,
Que nem por voz, nem por humana mente
132 Ser pode a conta sua calculada.

“Bem te demonstra a reflexão prudente
Que não diz dos milhares, que revela
135 A soma Daniel precisamente.

“A luz primeira, que irradia nela,
É por maneiras tantas recebida,
138 Quantos fulgores são, que a fazem bela.

“E, pois que a percepção logo é seguida
Do amor, do afeto angélico a doçura
141 Está em graus diversos aquecida.

“Do Poder Eternal vê, pois, a altura
E grandeza, que em espelhos tão brilhantes
A sua imagem multiplica pura,

145 Permanecendo um sempre como de antes.”



1-9. Quando aos dois etc. Quanto tempo o Sol e a Lua, quando essas duas estrelas estão – o Sol perto de Aries no poente, e a Lua perto da Libra no oriente – encontrando-se simultaneamente no mesmo horizonte por poucos momentos, tanto tempo Beatriz ficou calada, fixando o Ponto luminoso, isto é Deus. — 18. Amores nove, os nove círculos de anjos. — 22. Matéria e forma etc.; Deus criou no mesmo tempo a forma pura (os anjos), a matéria pura (os elementos), a forma conjunta à matéria (os corpos e as almas). — 31-36. Ordem foi concriada etc.; na parte superior do Universo foram colocados os anjos (ato puro); na inferior a matéria pura; e no meio a forma conjunta à matéria. — 37-41. Jerônimo etc. S. Jerônimo escreveu que os anjos foram criados antes do mundo sensível; mas o Poeta está de acordo com outros escritores, que se baseiam sobre os livros sagrados. — 50-51. Dos anjos parte etc., os anjos rebeldes convulsionaram a Terra. — 56. Do que hás visto etc., Lúcifer. — 97-102. Qual diz etc. Os pregadores discutem sem base nenhuma sobre a origem do eclipse que se deu no dia da morte de Jesus. — 104. Lapi e Bindi, nomes comuns em Florença, no tempo de Dante. — 109. Convento, os Apóstolos. — 124. De Santo Antônio etc.; com essas fraudes os padres engordam.

* Conservou-se a grafia original (cança) em lugar da atual (cansa) para preservar a rima. [NE]



CANTO XXX



Os nove coros angélicos aos poucos vão desaparecendo, Dante volve os seus olhos novamente para Beatriz, cuja beleza é agora maravilhosa a tal ponto que renuncia a descrevê-la. Eles estão no Empíreo, e Dante vê um rio de luz, cujas ribas estão esmaltadas de flores. Do rio saem centelhas que formam flores e depois voltam para as ondas. Enfim vê uma grande rosa de luz na qual aparecem anjos e os bem-aventurados. No meio há um trono preparado para o imperador Henrique VII.



TALVEZ milhas seis mil de nós distando,
A hora sexta ferve e deste mundo
3 A sombra vai-se ao nível inclinando,

Quando o meio do céu, p’ra nós profundo,
Tal se faz que não mostra o seu semblante
6 Mais de uma estrela deste val ao fundo;

E enquanto vem do sol a radiante
Núncia, o céu olhos cerra, adormecido
9 Um após outro até o mais brilhante:

Tal o triunfo, sem cessar movido
De gáudio, em torno ao Ponto deslumbroso,
12 Que parece, contendo estar contido,

Extinguiu-se aos meus olhos vagaroso.
Não vendo a pompa mais, a amor cedendo,
15 A Beatriz voltei-me fervoroso.

Num só louvor eu, resumir querendo
Dela o que vezes mil tenho cantado,
18 Frustara o intento, o esforço meu perdendo.

Pelo humano ideal imaginado
Não seria o primor, que vi mas, creio,
21 Gozá-lo todo, só a Deus é dado.

Neste árduo passo superado, anseio:
Vate jamais em trágico poema
24 Ou cômico sentiu tamanho enleio;

Quanto a vista ao clarão do sol mais trema.
Tanto a memória do seu doce riso
27 As potências do espírito me algema.

Dês que vi do seu gesto o paraíso
Na terra até me alçar a visão pura
30 Meu canto renovar não foi preciso.

Mas seguir-lhe a sublime formosura
Nos versos meus agora não me atrevo,
33 Como artista, que o extremo esforço apura.

Beatriz, sendo tal que a deixar devo
A tuba, mais que a minha, sonorosa,
36 Enquanto esta árdua empresa ao termo levo,

Com gesto e voz de guia cuidadosa,
— “Ao céu que é pura luz” — disse — “ao presente
39 Alçamo-nos da esfera mais vultosa,

“Luz intelectual, de amor ardente,
Amor do sumo bem, que enche a alegria;
42 Alegria em dulçores transcendente.

“Do céu verás, na santa bizarria,
Uma e outra milícia: uma no aspeto
45 Que hás de ver do final Juízo em dia.”

Como aos visivos espíritos direto
Relâmpago, que a ação lhes tolhe e os priva
48 De discernir o mais patente objeto,

Circunfluiu-me assim uma luz viva
Com véu do seu fulgor, que me impedia
51 Em claridade ver tanto excessiva.

— “Sempre o Amor, que este céu tanto extasia,
Por ser o círio à flama aparelhado,
54 Este saudar a quem recebe envia.” —

Bem não tinha estas vozes escutado,
Eis senti que virtude milagrosa
57 A força minha havia sublimado;

Senti vista mais que antes poderosa
E tal, que a luz mais penetrante e pura
60 Afrontar poderia valorosa.

Fúlvido lume um rio me afigura,
Entre margens correndo, que esmaltava
63 A primavera da celeste altura.

Do seio essa corrente arremessava
Centelhas; que entre as flores se espargiam
66 Como rubis, que o ouro circundava.

Quando ébrias de perfumes pareciam
Reprofundavam na ribeira bela:
69 Se umas entravam, outras emergiam.

— “O desejo, que te urge e te desvela,
De saber quanto vês maravilhado
72 Me agrada neste excesso que revela.

“Não serás em tal sede saciado
Senão dessa água tendo já bebido” —
75 Dos meus olhos o sol me há declarado.

“Os topázios, que movem-se, o luzido
Rio e das flores o matiz ridente
78 Prefácio umbroso da verdade hão sido.

“Não, por ser isto impenetrável à mente,
Mas por defeito da fraqueza tua,
81 Que te veda visão tanto eminente.” —

Não há criança, que tão presto rua
Ao seio maternal, em despertando
84 Mais tarde do que está na usança sua,

Como eu: melhor espelho desejando
Fazer dos olhos, à água me inclinava,
87 Que flui, pureza e perfeição nos dando.

Das pálpebras apenas se molhava
A borda, a forma, que antes vi comprida,
90 Do rio, circular se apresentava.

Como quem sob a máscara escondida
A face teve e logo diferente
93 Se mostra, essa aparência removida,

Assim flores, centelhas, mais fulgente
Alegria mostraram e eu já via
96 Do céu ambas as cortes claramente,

Ó de Deus esplendor, por quem já via
O triunfo do reino da verdade,
99 Dá-me valor; que eu diga o que já via.

Lá alto há luz de tanta claridade,
Que Deus visível faz à criatura,
102 Que em vê-lo tem da paz a f’licidade.

Ela se estende em circular figura,
Tão vasta que o seu âmbito faria
105 Ao sol desmarcadíssima cintura.

Um raio era o que dela aparecia
Refletido no Móbile Primeiro,
108 A que assim vida e influxo principia.

Qual em cristal do próximo ribeiro
Se espelha, como para ver as flores
111 E verdura, que o vestem, lindo outeiro,

Miravam-se, da luz aos esplendores,
De degraus em milhões almas tornadas
114 Da terra para os célicos fulgores.

Se claridades tantas derramadas
Stão no imo degrau, como da Rosa
117 No cimo hão de as grandezas ser esmadas?

Sem turbar-me, a amplitude portentosa,
Notava o qual e o quanto da alegria,
120 Em que se enleva aquela grei ditosa.

De perto, ao longe igual resplendecia;
Pois onde por si mesmo Deus governa
123 Da natureza a lei não mais regia.

Ao centro áureo da Rosa sempiterna,
Que em degraus dilatada rescendia
126 Louvor ao sol da primavera eterna,

Como quem cala, mas falar queria,
Beatriz, me atraindo, disse: — “Atenta
129 Dos brancos véus na imensa jerarquia

“O espaço vê, que esta cidade ostenta!
Quanto cada fileira está cerrada!
132 A poucos lugar vago se apresenta.

“Essa grande cadeira assinalada
Já de coroa, que te move espanto,
135 Antes de teres nesta boda entrada,

“Será de Henrique excelso, que há de o manto
Vestir de Augusto, para a Itália vindo
138 Antes de afeita ao regimento santo.

“Cega cobiça, a tantos iludindo,
Iguais vos torna a infante, que sem tino
141 De ama o seio não quer, fome sentindo.

“Será então Prefeito no divino
Foro aquele, que, oculto ou descoberto,
144 Não há de ser de acompanhá-lo di’no.

“A Deus, porém, apraz que esteja perto
Tempo, em que perderá cargo sagrado!
Terá com Simão Mago o lugar certo,

148 E o de Anagni será mais soterrado.” —



1-6. O Poeta quer que se entenda como desapareceu aos seus olhos a visão de que é objeto o canto anterior; e compara o desaparecimento ao apagar-se das estrelas no começo do dia. — 7-8. Do sol a radiante núncia, a aurora. — 44. Uma e outra milícia, os santos que combateram contra os vícios e os anjos fiéis, que combateram contra os rebeldes. 44-45. Uma no aspecto etc., os santos com os corpos com os quais aparecerão no Juízo Final. — 116. Rosa; o imenso círculo no qual se encontram os bem-aventurados tem a forma de uma rosa. — 136. Henrique VII, eleito imperador em 1308, coroado em Milão em 1311, e em Roma em 1312. Morreu em Buoncovento em 1313. — 142. Prefeito no divino foro, papa. — 143-144. Aquele etc., Clemente V que aparentemente será seu amigo, mas ocultamente será seu inimigo. — 147. Terá com Simão Mago o lugar certo, no Inferno entre os simoníacos. — 148. O de Anagni, Bonifácio VIII.



CANTO XXXI



Enquanto Dante contempla a rosa do Paraíso, Beatriz sobe e vai ocupar o lugar que lhe pertence, no meio dos bem-aventurados. S. Bernardo é o último guia de Dante. Ele lhe indica a Virgem Maria, toda brilhante de luz celeste.



FORMA assumindo de uma branca rosa,
Tinha ante os olhos a milícia santa,
3 Que em seu sangue fez Cristo sua Esposa.

A outra, que, adejando, vê, decanta
Do Onipotente a glória, que a enamora,
6 E a bondade, que deu-lhe alteza tanta,

Bem como abelhas, cujo enxame agora
Nas flores se apascenta, agora torna
9 À colmeia, onde os favos elabora,

Descia à flor imensa que se adorna
De folhas tantas, e depois subia
12 Ao centro, onde o amor seu sempre sojorna.

Nas faces viva flama refulgia,
Nas asas ouro, em tudo mais alvura,
15 Que a candidez da neve escurecia.

De sólio em sólio entrando na flor pura
E as asas agitando, derramavam
18 Ardor e paz, colhidos lá na altura.

As multidões aladas, que giravam,
Ao Senhor se interpondo e à flor brilhante,
21 Nem vista, nem splendores atalhavam,

Que a luz divina cala penetrante
No universo, segundo ele merece;
24 Nada lhe empece o brilho triunfante.

O gaudioso império, onde aparece
A par da grei antiga a grei recente
27 De olhos, de amor num fito se embevece.

Trina luz, que, num astro unicamente,
Fulgindo, alma lhes tens inebriada,
30 Conosco nas procelas sê clemente!

Se os Bárbaros, da terra enregelada
Vindos, que Hélice cobre cada dia
33 No seu giro, do filho acompanhada,

A pompa ao ver, que a Roma enobrecia,
Pasmavam, quando já Latrão famoso
36 Do mundo as maravilhas precedia;

Da terra eu ido ao trono luminoso,
Exalçado do tempo à eterna vida
39 E de Florença ao reino virtuoso,

Quanto havia de ter a alma transida!
Nem ouvir, nem falar apetecera:
42 Tanta alegria ao passo estava unida!

Bem como o peregrino considera
O templo, a que seu voto o conduzira,
45 E o que vê recontar, tornando, espera,

Na ardente luz a minha vista gira
De degrau em degrau, e agora acima,
48 Abaixo logo e em derredor remira.

Rostos eu vi, que a caridade anima
Com lume divinal; seu doce riso
51 Por suave atrativo se sublima.

Sem deterem-se mais do que o preciso,
Os olhos meus haviam rodeado
54 Em sua forma geral o Paraíso:

Vivo desejo em mim stando ateado,
A Beatriz voltei-me; ter queria
57 A solução do que era inexplicado

Ao que eu pensava o oposto respondia:
Nos gloriosos trajos de um eleito,
60 Em vez de Beatriz, um velho eu via.

Nos olhos transluzia-lhe e no aspeito
Alegria beni’na e o continente
63 De pai era, à ternura sempre afeito.

— “E Beatriz?” — exclamo eu de repente.
Tornou-o: — “Baixar me fez do meu assento
66 Por contentar o teu desejo ardente.

“Verás, do cimo ao círc’lo tércio atento,
Beatriz nesse trono colocada,
69 Que lhe há dado imortal merecimento.” —

Olhos alçando, à Dama sublimada,
Divisei que de c’roa era cingida,
72 Da eterna luz, em refração, formada.

Da região etérea a mais subida
Vista mortal, no pego profundando,
75 De tão longe não fora dirigida,

Como olhos meus, em Beatriz fitando.
Via-a, porém: a efígie livremente
78 Descia a mim do vulto venerando.

— “Senhora! Esp’rança minha permanente!
Que não temeste, por me dar saúde,
81 Teus vestígios deixar no inferno horrente!

“De tantas cousas, quantas eu ver pude
Ao teu grande valor e alta bondade
84 A graça referir devo e virtude.

“Sendo eu servo, me deste a liberdade,
Pelos meios e vias conduzido,
87 De que dispunha a tua potestade.

“Seja eu do teu valor fortalecido,
Porque minha alma, que fizeste pura
90 Te agrade ao ser seu vínculo solvido.” —

Desta arte orei. Lá da sublime altura,
Em que estava sorrindo-se encarou-me;
93 Depois voltou-se à eterna Formosura.

— “Por chegares” — o velho assim falou-me —
“Ao termo da jornada, como anelas,
96 A que seu rogo e santo amor mandou-me,

“Teus olhos voem pelas flores belas:
Eles mais hão-de se acender, no esguardo
99 Para alçar-se ao divino raio, em vê-las.

“E a Rainha do céu, por quem eu ardo
Cheio de amor, nos há de ser beni’na,
102 Pois sou seu servo, o seu fiel Bernardo.” —

Como quem da Croácia se destina
A ver Santo Sudário em romaria,
105 Por fama antiga da feição divina;

Devoto a contemplar se não sacia,
Dizendo em si: “ó Jesus! meu Deus piedoso!
108 Tal o semblante vosso parecia!”

Assim notei o afeito caridoso
Daquele, que em seus êxtases no mundo
111 A paz celeste prelibou ditoso.

— “Filho da graça, este viver jucundo
Ser-te não pode” — prosseguia — “noto,
114 Se os olhos teus não alças cá do fundo.

“Dos círculos atenta ao mais remoto:
Lá no trono a Rainha está sentada;
117 Seu reino, o céu, lhe é súdito e devoto.” —

O rosto ergui. Bem como na alvorada
A parte, em que o sol nasce no horizonte
120 Excede a que franqueia à noite entrada,

Assim, quase a subir de vale a monte,
No píncaro eminente parte eu via
123 Vencer em lume a qualquer outra fronte.

Como lá donde espera-se do dia
O carro, que perdeu Fetonte, a flama
126 Aumenta e noutros pontos se embacia,

Assim essa pacífica oriflama
Se avivava no meio; e a cada lado
129 Por modo igual se enfraquecia a chama.

De milhares o centro rodeado
Stava de anjos voando como em festa,
132 Cada um na arte e no brilho assinalado.

De os ver e ouvir contento manifesta
A Beldade: que extremos de alegria
135 A outros santos nos seus olhos presta.

Se eu tivera opulenta fantasia
E a eloqüência não menos, desse encanto
138 Um só traço exprimir não poderia.

No vivo lume e ao ver Bernardo quanto
Os meus olhos, absortos, se fitavam,
Volveu-lhe os seus, acesos de ardor tanto,

142 Que a mais fervor meu êxtase enalçavam.



2. A milícia santa, os santos. — 3. Os outros, os anjos. — 32. Hélice, a ninfa Hélice ou Calixto que foi transformada por Júpiter na constelação da Ursa Maior. — 33. Do filho acompanhada, o filho de Hélice foi transformado na constelação da Ursa Menor. — 35. Latrão, foi por algum tempo a sede dos imperadores romanos. — 102. Bernardo, S. Bernardo, abade de Clairvaux, na Borgonha, que foi devotado ao culto da Virgem Maria. — 104. Santo Sudário, ou Verônica (imagem verdadeira), imagem de Jesus impressa num véu, relíquia que se conserva em Roma. — 116. A rainha, a virgem Maria. — 125. O carro que perdeu Fetonte, o sol. — 127. Oriflama, estandarte de guerra dos reis de França; aqui indica a Virgem.

CANTO XXXII



S. Bernardo esclarece a Dante a composição da rosa do Paraíso. De um lado estão os santos cristãos; do outro os hebreus, que acreditaram no Cristo que devia vir. Entre uns e outros a Virgem Maria. Embaixo de Maria, mulheres hebréias; mais embaixo as crianças mortas logo depois do batismo.



DE contemplar no seu prazer sorvido,
De instruir-me, espontâneo, se incumbia,
3 E este santo discurso há proferido:

— “A chaga, que sarou e ungiu Maria
Abrira a bela, que aos seus pés sentada
6 Divisas, do homem no primeiro dia.

“Stá na tércia fileira entronizada
Logo abaixo Raquel; resplendente
9 Ao lado Beatriz vês colocada.

“Sara, Rebeca, Judite e a prudente
Bisavó do cantor, que lamentara,
12 Miserere clamando, a culpa ingente:

“Num degrau cada uma se depara
Da rosa, folha a folha, descendendo
15 Como seu nome a minha voz declara.

“Estão, do degrau sétimo descendo,
Como de lá subindo, em seguimento
18 Hebréias, dividida a Rosa sendo:

“Formam elas, assim, repartimento,
Segundo em Cristo a fé predominara,
21 Da santa escada em todo o comprimento.

“Da parte, em que da flor se completara
Em cada folha o número, exalçado
24 Vês quem a Cristo no porvir sperara;

“Da parte, onde o hemiciclo é sinalado
De alguns lugares vagos, se apresenta
27 Quem creu em Cristo ao mundo já chegado.

“Como de um lado a divisão se ostenta,
Da Virgem pelo trono demarcada
30 E pelos mais, que a vista representa,

“Assim do oposto a sede destinada
Ao que no ermo e martírio sempre há sido
33 Santo e em dois anos da infernal estada,

“Lugar que, tem por conta, há precedido
Aos de Francisco, de Agostinho, Bento
36 E outros, de um degrau cada um descido.

“De Deus ora contempla o sábio intento:
Igualmente a fé nova e a antiga crença
39 Hão de encher o jardim do firmamento.

“Abaixo do degrau da escada imensa,
Que as divisões reparte, está sentado
42 Ninguém, porque ao seu mérito pertença,

“Mas pelo alheio, e ao modo decretado.
Seus corpos tais espíritos deixaram
45 Antes que discernir lhes fosse dado.

“Bem à luz da evidência to declaram
Pela voz infantil e pelo gesto:
48 Olha, escuta, e tuas dúvidas se aclaram.

“Duvidas e o não fazes manifesto;
Sutil pensar em nó te prende estreito;
51 Mas deste enleio vou livrar-te presto.

“Crer-se não pode em casual efeito
Do reino divinal no infindo espaço;
54 Nem há fome, nem sede ou triste aspeito.

“De eternas leis vincula tudo o laço,
E, como o anel no dedo, justamente
57 Da criação responde tudo ao traço.

“Portanto aquela prematura gente
Sine causa não sobe à vida eterna;
60 Mais ou menos, cada um entra excelente.

“Deste reino o Monarca, que o governa
De amor em tanto extremo, em tal ventura,
63 Que desejo nenhum além se interna,

“Criando, de sua face na doçura,
Os espíritos, dota-os a seu grado.
66 Isto basta saber: não mais apura.

“Ao claro está nos gêmeos demonstrado,
Que haviam, — na Escritura se refere,
69 Já no materno ventre batalhado.

“Assim a luz altíssima confere
A grinalda da Graça dignamente
72 Segundo a cor da coma, que prefere.

“Graduação, portanto, diferente
Lhes cabe sem ter méritos na vida:
75 Visão primeira os distinguiu somente.

“Nos primitivos tempos conseguida
Estava a salvação, quando a inocência
78 À fé dos pais se achava reunida.

“Às primeiras idades em seqüência,
Dos filhos trouxe às asas inocentes
81 Circuncisão, virtude e permanência.

“Depois de anunciada a Graça às gentes.
Sem batismo perfeito haver de Cristo
84 Não valeu a inocência desses entes.

“Ora atento na face, que à de Cristo
Mais se assemelha; a sua luz tão pura
87 Só te pode dispor a veres Cristo.” —

Vi chover de alegria tal ternura,
Que a Maria os espíritos levavam
90 Para voar criados nessa altura,

Que quanto os olhos antes contemplavam
Tais portentos patentes não fizera:
93 Os assomos de Deus se revelavam.

Dos anjos o primeiro, que viera,
Cantando “Ave, Maria, gratia plena”,
96 Ante Maria as asas estendera.

Respondendo à divina cantilena
De toda parte a gloriosa corte,
99 Resplendeu cada face mais serena.

— “Ó santo Pai, que a caridade forte
Em prol meu fez deixar o doce assento,
102 A ti marcado por eterna sorte,

Diz-me que anjo com tal contentamento
Da soberana a fronte olha divina,
105 No amor mostra do fogo o encendimento.” —

Desta arte inda vali-me da doutrina
Daquele, que enlevava-se em Maria,
108 Como no sol a estrela matutina.

Tornou-me: — “Alacridade e bizarria,
Quanta em anjo haver possa e nalma humana,
111 Há nele; assim nos dá suma alegria:

“Foi ele o que à bendita Soberana
Levou a palma, o filho de Deus quando
114 Quis assumir a nossa carga insana.

“Minhas vozes tua vista acompanhando,
Do justíssimo império alça aos formosos
117 Patrícios, de alto nome, venerando.

“Os dois, que acima brilham, venturosos
Por starem perto da Sob’rana Augusta;
120 São desta Flor princípios gloriosos:

“À sestra sua aquele, que se ajusta,
O Pai é que, tentado por mau gosto
123 Tanta amargura à sua prole custa.

À destra o Pai primeiro se acha posto
Da santa Igreja; as chaves lhe entregara
126 Da Rosa Cristo e o fez o seu preposto.

“E o que antes de morrer vaticinara
Duros tempos daquela amada Esposa,
129 Que por lanças e cravos se alcançara,

“Fica-lhe a par; e, junto, a glória goza
O capitão da gente ingrata, insana,
132 Que viveu de maná, revel, teimosa.

“Em frente a Pedro vês que senta-se Ana,
Tão leda a excelsa Filha contemplando,
135 Que imóveis olhos tem, cantado hosana.

“Em frente ao Pai dos homens venerando,
É Luzia: a Beatriz há suplicado,
138 Quando ias para o abismo te inclinando

“Mas da tua visão o assinalado
Tempo foge: paremos, pois, fazendo
141 Do pano, que há, vestido bem talhado.

“E para o Amor Primeiro olhos erguendo,
Saibamos se do seu fulgor no seio
144 Penetras, quanto possas te absorvendo.

“Mas, de que retrocedas no receio,
Movendo as asas, em vez de ir avante,
147 Impetra graça, de piedade cheio,

“Daquela, que em valer é tão pujante.
Em mente a voz me segue fervoroso,
Com vivo afeto e coração amante.” —

151 E esta santa oração disse piedoso:



5. A bela que aos seus pés etc. Eva. — 8. Raquel, mulher de Jacob. — 10-11. Sara, mulher de Abrão; Rebeca, mulher de Isaque; Judite, que livrou o povo de Israel, matando Olofernes; a prudente bisavó etc., Rute, bisavó de Davi. — 32. Ao que etc., S. João Batista. — 35. Francisco, Agostinho e Bento, santos fundadores de ordens religiosas. — 67-69. Gêmeos, Esaú e Jacob. — 79-81. Às primeiras idades etc., nos tempos que passaram de Abrão até Cristo, a circuncisão era requisito indispensável para a salvação. — 82-84. Depois de enunciada etc., depois de Cristo é indispensável o batismo. — 85. Na face que à de Cristo etc., Maria Virgem. — 112. Foi ele o que etc., Gabriel. — 122. O pai etc., Adão. — 124. O pai primeiro etc., S. Pedro. — 127-129. E o que etc., S. João Evangelista. — 131. O capitão etc., Moisés. — 133. Ana, mãe da Virgem. — 137. Luzia, Santa Luzia, virgem e mártir, v. Inferno II, 97-102.

CANTO XXXIII



S. Bernardo pede à Virgem Maria que conceda a Dante contemplar a Deus. O Poeta vê um tríplice círculo no qual está revelada a Trindade divina. No círculo médio vê figurada a efígie humana. No espírito de Dante se forma o desejo de conhecer o modo da união da natureza divina com a humana. Um repentino esplendor lhe revela o mistério da encarnação de Cristo; e aqui termina a sublime visão.



“VIRGEM Mãe, por teu Filho procriada,
Humilde e sup’rior à criatura,
3 Por conselho eternal predestinada!

“Por ti se enobreceu tanto a natura
Humana, que o Senhor não desdenhou-se
6 De se fazer de quem criou, feitura.

“No seio teu o amor aviventou-se,
E ao seu ardor, na paz da eternidade,
9 O germe desta flor assim formou-se.

“Meridiana Luz da Caridade
És no céu! Viva fonte de esperança
12 Na terra és para a fraca humanidade!

“Há tal grandeza em ti, há tal pujança,
Que quer sem asas voe o seu anelo
15 Quem graça aspira em ti sem confiança.

“Ao mísero, que roga ao teu desvelo
Acode, e, às mais das vezes, por vontade
18 Livre, te praz sem súplica valê-lo.

“Em ti misericórdia, em ti piedade,
Em ti magnificência, em ti se aduna
21 Na criatura o que haja de bondade.

“Esse mortal, que da ínfima lacuna
Do mundo até o empíreo, passo a passo,
24 Viu quanto a vida esp’ritual reuna,

“Te exora auxílio ao seu esforço escasso:
A mente sublunar lhe seja dado
27 A Suma Dita no celeste espaço.

“Eu que, no meu ardor, nunca aspirado
Hei mais por mim o que em prol dele peço
30 Meus rogos todos alço esperançado.

“Te digna conseguir que o véu espesso
Da humanidade sua despareça,
33 E assim lhe seja o Sumo Bem concesso.

“Depois da alta visão dá que ainda eu peça
Que conserves, Rainha Onipotente,
36 Sempre pura sua alma e ao mal avessa.

“De perversas paixões guarda-o clemente:
Vê Beatriz e o céu inteiro unidos,
39 Juntando as mãos, ao voto meu fervente!” —

Os olhos, que por Deus são tão queridos
No santo orador fitos demonstraram
42 Que eram seus ternos rogos atendidos.

Após ao Lume eterno se elevaram,
Em que, se deve crer, da criatura
45 Olhos, em modo tal, não profundavam.

E dos desejos eu, que à mor altura
Suba, o ardor cessar, como devia,
48 Senti, me apropinquando da ventura.

Bernardo, me acenando, me sorria,
Que para cima olhasse; mas eu estava
51 Já por mim mesmo tal qual me queria.

A vista, que em pureza sublimava,
Do alto, que é por si toda a Verdade,
54 Mais e mais pelos raios penetrava.

E o que eu vi, desde então, na imensidade
Transcendeu quanto o verbo humano intente:
57 Cede a memória a tanta majestade.

Qual homem, que, a sonhar, vê claramente,
Depois só guarda a sensação impressa,
60 E o mais em todo lhe não volta à mente;

Tal eu; quase a visão inteira cessa.
Mas no meu coração quase destila
63 Doçura que em seu êxtase começa.

Assim ao sol a neve se aniquila,
Assim na leve folha, entregue ao vento,
66 Se dispersava o orác’lo da Sibila.

Flama excelsa, que o humano pensamento
Excedes tanto, oh! presta ao meu, piedosa,
69 Um pouco de inefável luzimento.

E a língua minha faz tão poderosa,
Que uma centelha só da tua Glória
72 Aos pósteros transmita venturosa;

Pois que, em parte surgindo-me à memória
E sendo por meus versos celebrada,
75 Melhor se entenderá tua vitória.

Da luz pela agudeza suportada,
Eu me perdera, creio, com certeza,
78 Se da luz fora a vista desviada.

E, recordo-me, pois mor afouteza
Tomei, tanto, que face a face olhando,
81 Encarar pude na Infinita Alteza.

Tu ó Graça abundante, me animando,
Olhos fitar ousei na luz eterna,
84 A visão almejada consumando.

E lá na profundeza vi que se interna
Unido pelo amor num só volume
87 O que pelo universo se esquaderna:

Acidente, substância e o seu costume,
Conjuntos entre si por tal maneira,
90 Que da verdade exprimo um frouxo lume.

Creio que a forma universal inteira
Vi desse nó; porquanto mais ao largo
93 Sinto, ao dizer, ledice verdadeira.

Um só instante à mente dá letargo
Maior, que séc’los vinte e cinco à empresa
96 Que admirar fez Netuno a sombra de Argo.

De êxtase assim minha alma toda presa,
Atenta, absorta, imóvel se imergia,
99 E sempre em contemplar mais stava acesa.

E essa Luz tal efeito produzia,
Que em deixá-la por ver dif’rente aspeto
102 Consentir impossível me seria:

Que o Bem da sua aspiração objeto,
Todo está nela; é tudo lá perfeito,
105 Como fora de lá tudo é defeto.

Meu dizer de ora avante mais estreito
Será no que recordo que o do infante
108 Ainda ao seio maternal afeito;

Não porque presentasse outro semblante
A viva Luz, que a contemplar eu stava,
111 Antes, como depois, sempre constante;

Mas, como, olhando, a vista se alentava,
A Imutável Essência parecia
114 Mudar, quando só eu me transformava.

Na substância profunda e clara eu via
Da excelsa Luz três círc’los dicernidos
117 Por cores três, de igual periferia,

Íris de íris, um de outro refletidos
Estavam, flama o têrcio parecia
120 Spirando, por igual, de um, de outro unidos,

Quanto é curta expressão! Quanto a excedia
Meu pensar, ao que eu vi, este já sendo
123 Tal, que pouco bastante não diria.

Lume eterno, que a sede em ti só tendo,
Só te entendes, de ti sendo entendido,
126 E te amas e sorris só te entendendo!

O girar, que, dessa arte concebido
Via em ti como flama refletida,
129 Quanto foi dos meus olhos abrangido,

No seio seu da própria cor tingida
A própria efígie humana oferecia:
132 Foi nela a vista minha submergida!

Geômetra, que o espírito crucia
Para o cir’lo medir, em vão procura
135 Princípio, que ao seu fim mais conviria:

Assim eu ante a nova visão pura
Ver anelara como a image’ humana
138 Ao círculo se adapta e ali perdura.

Às asas minhas fora empresa insana,
Se clareado a mente não me houvesse
141 Fulgor, que a posse da verdade aplana.

À fantasia aqui valor fenece;
Mas a vontade minha a idéias belas,
Qual roda, que ao motor pronta obedece,

145 Volvia o Amor, que move sol e estrelas.



66. O orác’lo da Sibila; Virgílio (Eneida III) diz que a Sibila Cumana escrevia os seus oráculos sobre folhas soltas e depois as jogava no ar, sendo dispersadas pelo vento. — 94-96, Um só instante etc., um só instante do tempo transcorrido depois da visão me causa maior esquecimento que não aquele que vinte e cinco séculos causaram ao episódio dos Argonautas, o qual surpreendeu a Netuno. — 118-120. Íris de íris etc., o Filho parecia refletido no outro, no Pai como íris de íris; e o terceiro, o Espírito Santo parecia fogo procedente de um e de outro. — 127-131. O girar que, dessa arte etc., aquele dos círculos, isto é, o segundo, que parecia refletido do outro, pareceu-me tivesse efígie humana, tingida, porém, de cor divina. — 134. Para o círc’lo medir, para encontrar a quadratura do círculo, isto é um quadrado cuja área seja igual à de um determinado círculo. — 143. Mas a vontade minha etc., mas o Amor, isto é, Deus, que move o Sol e as estrelas, movia a minha vontade, concordemente à sua, como uma roda que obedece ao motor.

***


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