INFERNO ... Cantos I-V ... VI-XI ... XII-XVII ... XVIII-XXIII ... XIV-XXIX ... XXX-XXXIV
PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII
PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII
CANTO
XXIX
Beatriz
esclarece a Dante que os anjos foram criados por Deus no mesmo tempo em que
foram criados os céus. Fala-lhe dos anjos fiéis e dos anjos rebeldes, os quais
foram precipitados no Inferno. Censura os falsos filósofos e os padres
mentirosos que esquecem que o escopo da predicação é persuadir os homens a
serem cristãos, e vendem as indulgências para obter bens materiais.
QUANDO
aos dois gentis filhos de Latona,
Um
por Áries coberto, outro por Libra,
3
A um tempo cinge do horizonte a zona,
Quanto
espaço o zênite os equilibra,
Té
que mude o hemisfério e, desprendido
6
Deste cinto um e outro se deslibra,
Tanto
calou-se Beatriz, luzido
De
riso tendo o rosto e olhos fitando
9
Nesse Ponto que os meus tinha vencido.
—
“Teu desejo” — falou-me — “antecipando
Agora
não te inquiro: já o hei visto
12
No centro de todo o ubi e todo o quando.
“Não
para ter mais perfeição, pois isto
Fora
impossível, mas porque fulgindo
15
O seu splendor dizer pudesse, — Existo, —
“Na
Eternidade, o tempo não medindo
Nem
o lugar, criar se há dignado
18
Amores nove o Eterno Amor se abrindo.
“Antes
não tinha na inação ficado:
Nem
antes, nem depois era existente,
21
Quando Deus sobre as águas foi levado.
“Matéria
e forma puras, juntamente,
Quais
setas de tricorde arco voando
24
Saíram do ato da Infalível Mente.
“Como,
em vidro, em cristal, em âmbar quando
Luz
do sol toca, é logo refletida
27
Do vir ao ser distância não se dando,
“Tal
a obra triforme, concluída
De
uma só vez, no ser raiou perfeita
30
Sem star parte por outra antecedida.
“Ordem
foi concriada, a que é sujeita
Cada
substância; o cimo foi marcado
33
No mundo a que por ato puro é feita;
“À
força pura imo lugar stá dado;
São
no meio travados força e ato
36
Por nó que indissolúvel se há tornado.
“Jerônimo
escreveu que longo trato
De
séc’los antes de outro mundo feito
39
Fora dos anjos o império nato.
“A
verdade, porém, stá no conceito
De
escritores, que influi o Espírito Santo
42
Verás, pensando, da verdade o efeito.
“Razão
em parte o vê também, porquanto
Compreender
não pudera que os motores
45
Inertes fossem por espaço tanto.
“Sabes,
pois, onde e quando esses Amores
Criados
foram e de qual maneira:
48
Do teu desejo apago três ardores.
“Em
menos tempo do que a soma inteira
De
um a vinte se faz, dos anjos parte
51
Turbou vosso elemento sobranceira.
“Fiel
a outra emprega-se dessa arte,
Que
vês: assim girando jubilosa,
54
Deste excelso mister se não disparte.
“O
mal causou soberba criminosa
Do
que hás visto no abismo do tormento,
57
Do mundo sob a mole ponderosa.
“Mas
estes, com modesto pensamento,
Mostraram-se
à Bondade agradecidos,
60
Que lhes deu tão sublime entendimento.
“Na
vista se exaltando, enriquecidos
São
de mérito e graça iluminante,
63
Por querer certo e firme dirigidos.
“Não
duvides; e sabe, de ora avante,
Que
receber a graça é meritório,
66
Segundo o afeto mostrar-se constante.
“Já,
pois, este celeste consistório,
Se
quanto ora te hei dito a mente alcança,
69
Bem podes contemplar sem adjutório.
“Como
em vossas escolas se afiança,
Na
terra, que é da angélica natura
72
O querer, o entender, o ter lembrança,
“Eu
devo ainda revelar-te a pura
Verdade,
que entre vós se há confundido,
75
Sendo enleada por tão má leitura.
“Estas
substâncias, o prazer obtido
De
verem Deus, jamais rosto voltaram
78
Dos olhos a que nada oculto há sido.
“Seu
ver, novos objetos não cortaram;
Não
há razão, por que se lhes suponha
81
Rememorar idéias, que passaram.
“Assim
na terra sem dormir se sonha,
Crendo
e não crendo proferir verdade:
84
Neste caso há mais culpa e mais vergonha.
“De
opiniões não tendes fixidade
Filosofando,
tanto vos transporta
87
Da ostentação e de o pensar vaidade.
“No
céu menos do que isto se suporta —
Ser
a Santa Escritura desdenhada
90
Ou ter inteligência errada e torta.
“Para
ser pelo mundo semeada
Quanto
sangue custou pouco se atenta,
93
E quanto a crença humilde a Deus agrada.
“Qual
para alardear engenho, inventa;
Quando
o Santo Evangelho está calado
96
Tais invenções o púlpito comenta.
“Qual
diz que a lua, tendo atrás voltado,
No
ato da Paixão de Cristo, houvera,
99
Interpondo-se, a luz do Sol velado.
“Qual
afirma que o lume se escondera
Por
si mesmo; e o eclipse à Índia, à Espanha
102
Comum como à Judéia, se fizera.
“Em
Florença não há cópia tamanha
De
Lapi e Bindi quanto só num ano
105
O púlpito de contos desentranha.
“Desta
arte a ovelha, que não sabe o engano,
Do
pasto volta túmida de vento,
108
Desculpa não lhe dá não vendo o dano.
“Não
disse Jesus Cristo ao seu convento:
Parti
e ao mundo apregoai mentira;
111
Mas deu-lhes da verdade o fundamento;
“Ele
tão alto, em sua voz se ouvira,
Que
foi-lhes o Evangelho escudo e lança
114
Nos prélios, de que a Fé vitriz saíra.
“Ora
em sermões o trocadilho, a chança
Estão
na voga; o riso provocando
117
Incha o capuz; por nada mais se cança*.
“Se
o vulgo vira o pássaro nefando,
Que
em cógula se aninha, não quisera
120
Indulgências, em que se anda confiando;
“Stultícia
tal da terra se apodera,
Que,
em prova e testemunho não firmado,
123
Qualquer a dá-las apto considera.
“De
Santo Antônio assim medra o cevado
E
outros muitos, que os porcos mais ascosos,
126
Que pagam com dinheiro não cunhado.
“Mas
longa vai a digressão; cuidosos
Os
olhos volve à verdadeira estrada;
129
O tempo é curto, andemos pressurosos.
“É
tanto a grei dos anjos avultada,
Que
nem por voz, nem por humana mente
132
Ser pode a conta sua calculada.
“Bem
te demonstra a reflexão prudente
Que
não diz dos milhares, que revela
135
A soma Daniel precisamente.
“A
luz primeira, que irradia nela,
É
por maneiras tantas recebida,
138
Quantos fulgores são, que a fazem bela.
“E,
pois que a percepção logo é seguida
Do
amor, do afeto angélico a doçura
141
Está em graus diversos aquecida.
“Do
Poder Eternal vê, pois, a altura
E
grandeza, que em espelhos tão brilhantes
A
sua imagem multiplica pura,
145
Permanecendo um sempre como de antes.”
1-9.
Quando aos dois etc. Quanto tempo o Sol e a Lua, quando essas duas estrelas
estão – o Sol perto de Aries no poente, e a Lua perto da Libra no oriente –
encontrando-se simultaneamente no mesmo horizonte por poucos momentos, tanto
tempo Beatriz ficou calada, fixando o Ponto luminoso, isto é Deus. — 18. Amores
nove, os nove círculos de anjos. — 22. Matéria e forma etc.; Deus criou no
mesmo tempo a forma pura (os anjos), a matéria pura (os elementos), a forma
conjunta à matéria (os corpos e as almas). — 31-36. Ordem foi concriada etc.;
na parte superior do Universo foram colocados os anjos (ato puro); na inferior
a matéria pura; e no meio a forma conjunta à matéria. — 37-41. Jerônimo etc. S.
Jerônimo escreveu que os anjos foram criados antes do mundo sensível; mas o
Poeta está de acordo com outros escritores, que se baseiam sobre os livros
sagrados. — 50-51. Dos anjos parte etc., os anjos rebeldes convulsionaram a
Terra. — 56. Do que hás visto etc., Lúcifer. — 97-102. Qual diz etc. Os
pregadores discutem sem base nenhuma sobre a origem do eclipse que se deu no
dia da morte de Jesus. — 104. Lapi e Bindi, nomes comuns em Florença, no tempo
de Dante. — 109. Convento, os Apóstolos. — 124. De Santo Antônio etc.; com
essas fraudes os padres engordam.
*
Conservou-se a grafia original (cança) em lugar da atual (cansa) para preservar
a rima. [NE]
CANTO XXX
Os
nove coros angélicos aos poucos vão desaparecendo, Dante volve os seus olhos
novamente para Beatriz, cuja beleza é agora maravilhosa a tal ponto que
renuncia a descrevê-la. Eles estão no Empíreo, e Dante vê um rio de luz, cujas
ribas estão esmaltadas de flores. Do rio saem centelhas que formam flores e
depois voltam para as ondas. Enfim vê uma grande rosa de luz na qual aparecem
anjos e os bem-aventurados. No meio há um trono preparado para o imperador
Henrique VII.
TALVEZ
milhas seis mil de nós distando,
A
hora sexta ferve e deste mundo
3
A sombra vai-se ao nível inclinando,
Quando
o meio do céu, p’ra nós profundo,
Tal
se faz que não mostra o seu semblante
6
Mais de uma estrela deste val ao fundo;
E
enquanto vem do sol a radiante
Núncia,
o céu olhos cerra, adormecido
9
Um após outro até o mais brilhante:
Tal
o triunfo, sem cessar movido
De
gáudio, em torno ao Ponto deslumbroso,
12
Que parece, contendo estar contido,
Extinguiu-se
aos meus olhos vagaroso.
Não
vendo a pompa mais, a amor cedendo,
15
A Beatriz voltei-me fervoroso.
Num
só louvor eu, resumir querendo
Dela
o que vezes mil tenho cantado,
18
Frustara o intento, o esforço meu perdendo.
Pelo
humano ideal imaginado
Não
seria o primor, que vi mas, creio,
21
Gozá-lo todo, só a Deus é dado.
Neste
árduo passo superado, anseio:
Vate
jamais em trágico poema
24
Ou cômico sentiu tamanho enleio;
Quanto
a vista ao clarão do sol mais trema.
Tanto
a memória do seu doce riso
27
As potências do espírito me algema.
Dês
que vi do seu gesto o paraíso
Na
terra até me alçar a visão pura
30
Meu canto renovar não foi preciso.
Mas
seguir-lhe a sublime formosura
Nos
versos meus agora não me atrevo,
33
Como artista, que o extremo esforço apura.
Beatriz,
sendo tal que a deixar devo
A
tuba, mais que a minha, sonorosa,
36
Enquanto esta árdua empresa ao termo levo,
Com
gesto e voz de guia cuidadosa,
—
“Ao céu que é pura luz” — disse — “ao presente
39
Alçamo-nos da esfera mais vultosa,
“Luz
intelectual, de amor ardente,
Amor
do sumo bem, que enche a alegria;
42
Alegria em dulçores transcendente.
“Do
céu verás, na santa bizarria,
Uma
e outra milícia: uma no aspeto
45
Que hás de ver do final Juízo em dia.”
Como
aos visivos espíritos direto
Relâmpago,
que a ação lhes tolhe e os priva
48
De discernir o mais patente objeto,
Circunfluiu-me
assim uma luz viva
Com
véu do seu fulgor, que me impedia
51
Em claridade ver tanto excessiva.
—
“Sempre o Amor, que este céu tanto extasia,
Por
ser o círio à flama aparelhado,
54
Este saudar a quem recebe envia.” —
Bem
não tinha estas vozes escutado,
Eis
senti que virtude milagrosa
57
A força minha havia sublimado;
Senti
vista mais que antes poderosa
E
tal, que a luz mais penetrante e pura
60
Afrontar poderia valorosa.
Fúlvido
lume um rio me afigura,
Entre
margens correndo, que esmaltava
63
A primavera da celeste altura.
Do
seio essa corrente arremessava
Centelhas;
que entre as flores se espargiam
66
Como rubis, que o ouro circundava.
Quando
ébrias de perfumes pareciam
Reprofundavam
na ribeira bela:
69
Se umas entravam, outras emergiam.
—
“O desejo, que te urge e te desvela,
De
saber quanto vês maravilhado
72
Me agrada neste excesso que revela.
“Não
serás em tal sede saciado
Senão
dessa água tendo já bebido” —
75
Dos meus olhos o sol me há declarado.
“Os
topázios, que movem-se, o luzido
Rio
e das flores o matiz ridente
78
Prefácio umbroso da verdade hão sido.
“Não,
por ser isto impenetrável à mente,
Mas
por defeito da fraqueza tua,
81
Que te veda visão tanto eminente.” —
Não
há criança, que tão presto rua
Ao
seio maternal, em despertando
84
Mais tarde do que está na usança sua,
Como
eu: melhor espelho desejando
Fazer
dos olhos, à água me inclinava,
87
Que flui, pureza e perfeição nos dando.
Das
pálpebras apenas se molhava
A
borda, a forma, que antes vi comprida,
90
Do rio, circular se apresentava.
Como
quem sob a máscara escondida
A
face teve e logo diferente
93
Se mostra, essa aparência removida,
Assim
flores, centelhas, mais fulgente
Alegria
mostraram e eu já via
96
Do céu ambas as cortes claramente,
Ó
de Deus esplendor, por quem já via
O
triunfo do reino da verdade,
99
Dá-me valor; que eu diga o que já via.
Lá
alto há luz de tanta claridade,
Que
Deus visível faz à criatura,
102
Que em vê-lo tem da paz a f’licidade.
Ela
se estende em circular figura,
Tão
vasta que o seu âmbito faria
105
Ao sol desmarcadíssima cintura.
Um
raio era o que dela aparecia
Refletido
no Móbile Primeiro,
108
A que assim vida e influxo principia.
Qual
em cristal do próximo ribeiro
Se
espelha, como para ver as flores
111
E verdura, que o vestem, lindo outeiro,
Miravam-se,
da luz aos esplendores,
De
degraus em milhões almas tornadas
114
Da terra para os célicos fulgores.
Se
claridades tantas derramadas
Stão
no imo degrau, como da Rosa
117
No cimo hão de as grandezas ser esmadas?
Sem
turbar-me, a amplitude portentosa,
Notava
o qual e o quanto da alegria,
120
Em que se enleva aquela grei ditosa.
De
perto, ao longe igual resplendecia;
Pois
onde por si mesmo Deus governa
123
Da natureza a lei não mais regia.
Ao
centro áureo da Rosa sempiterna,
Que
em degraus dilatada rescendia
126
Louvor ao sol da primavera eterna,
Como
quem cala, mas falar queria,
Beatriz,
me atraindo, disse: — “Atenta
129
Dos brancos véus na imensa jerarquia
“O
espaço vê, que esta cidade ostenta!
Quanto
cada fileira está cerrada!
132
A poucos lugar vago se apresenta.
“Essa
grande cadeira assinalada
Já
de coroa, que te move espanto,
135
Antes de teres nesta boda entrada,
“Será
de Henrique excelso, que há de o manto
Vestir
de Augusto, para a Itália vindo
138
Antes de afeita ao regimento santo.
“Cega
cobiça, a tantos iludindo,
Iguais
vos torna a infante, que sem tino
141
De ama o seio não quer, fome sentindo.
“Será
então Prefeito no divino
Foro
aquele, que, oculto ou descoberto,
144
Não há de ser de acompanhá-lo di’no.
“A
Deus, porém, apraz que esteja perto
Tempo,
em que perderá cargo sagrado!
Terá
com Simão Mago o lugar certo,
148
E o de Anagni será mais soterrado.” —
1-6.
O Poeta quer que se entenda como desapareceu aos seus olhos a visão de que é
objeto o canto anterior; e compara o desaparecimento ao apagar-se das estrelas
no começo do dia. — 7-8. Do sol a radiante núncia, a aurora. — 44. Uma e outra
milícia, os santos que combateram contra os vícios e os anjos fiéis, que
combateram contra os rebeldes. 44-45. Uma no aspecto etc., os santos com os
corpos com os quais aparecerão no Juízo Final. — 116. Rosa; o imenso círculo no
qual se encontram os bem-aventurados tem a forma de uma rosa. — 136. Henrique
VII, eleito imperador em 1308, coroado em Milão em 1311, e em Roma em 1312.
Morreu em Buoncovento em 1313. — 142. Prefeito no divino foro, papa. — 143-144.
Aquele etc., Clemente V que aparentemente será seu amigo, mas ocultamente será
seu inimigo. — 147. Terá com Simão Mago o lugar certo, no Inferno entre os
simoníacos. — 148. O de Anagni, Bonifácio VIII.
CANTO
XXXI
Enquanto
Dante contempla a rosa do Paraíso, Beatriz sobe e vai ocupar o lugar que lhe
pertence, no meio dos bem-aventurados. S. Bernardo é o último guia de Dante.
Ele lhe indica a Virgem Maria, toda brilhante de luz celeste.
FORMA
assumindo de uma branca rosa,
Tinha
ante os olhos a milícia santa,
3
Que em seu sangue fez Cristo sua Esposa.
A
outra, que, adejando, vê, decanta
Do
Onipotente a glória, que a enamora,
6
E a bondade, que deu-lhe alteza tanta,
Bem
como abelhas, cujo enxame agora
Nas
flores se apascenta, agora torna
9
À colmeia, onde os favos elabora,
Descia
à flor imensa que se adorna
De
folhas tantas, e depois subia
12
Ao centro, onde o amor seu sempre sojorna.
Nas
faces viva flama refulgia,
Nas
asas ouro, em tudo mais alvura,
15
Que a candidez da neve escurecia.
De
sólio em sólio entrando na flor pura
E
as asas agitando, derramavam
18
Ardor e paz, colhidos lá na altura.
As
multidões aladas, que giravam,
Ao
Senhor se interpondo e à flor brilhante,
21
Nem vista, nem splendores atalhavam,
Que
a luz divina cala penetrante
No
universo, segundo ele merece;
24
Nada lhe empece o brilho triunfante.
O
gaudioso império, onde aparece
A
par da grei antiga a grei recente
27
De olhos, de amor num fito se embevece.
Trina
luz, que, num astro unicamente,
Fulgindo,
alma lhes tens inebriada,
30
Conosco nas procelas sê clemente!
Se
os Bárbaros, da terra enregelada
Vindos,
que Hélice cobre cada dia
33
No seu giro, do filho acompanhada,
A
pompa ao ver, que a Roma enobrecia,
Pasmavam,
quando já Latrão famoso
36
Do mundo as maravilhas precedia;
Da
terra eu ido ao trono luminoso,
Exalçado
do tempo à eterna vida
39
E de Florença ao reino virtuoso,
Quanto
havia de ter a alma transida!
Nem
ouvir, nem falar apetecera:
42
Tanta alegria ao passo estava unida!
Bem
como o peregrino considera
O
templo, a que seu voto o conduzira,
45
E o que vê recontar, tornando, espera,
Na
ardente luz a minha vista gira
De
degrau em degrau, e agora acima,
48
Abaixo logo e em derredor remira.
Rostos
eu vi, que a caridade anima
Com
lume divinal; seu doce riso
51
Por suave atrativo se sublima.
Sem
deterem-se mais do que o preciso,
Os
olhos meus haviam rodeado
54
Em sua forma geral o Paraíso:
Vivo
desejo em mim stando ateado,
A
Beatriz voltei-me; ter queria
57
A solução do que era inexplicado
Ao
que eu pensava o oposto respondia:
Nos
gloriosos trajos de um eleito,
60
Em vez de Beatriz, um velho eu via.
Nos
olhos transluzia-lhe e no aspeito
Alegria
beni’na e o continente
63
De pai era, à ternura sempre afeito.
—
“E Beatriz?” — exclamo eu de repente.
Tornou-o:
— “Baixar me fez do meu assento
66
Por contentar o teu desejo ardente.
“Verás,
do cimo ao círc’lo tércio atento,
Beatriz
nesse trono colocada,
69
Que lhe há dado imortal merecimento.” —
Olhos
alçando, à Dama sublimada,
Divisei
que de c’roa era cingida,
72
Da eterna luz, em refração, formada.
Da
região etérea a mais subida
Vista
mortal, no pego profundando,
75
De tão longe não fora dirigida,
Como
olhos meus, em Beatriz fitando.
Via-a,
porém: a efígie livremente
78
Descia a mim do vulto venerando.
—
“Senhora! Esp’rança minha permanente!
Que
não temeste, por me dar saúde,
81
Teus vestígios deixar no inferno horrente!
“De
tantas cousas, quantas eu ver pude
Ao
teu grande valor e alta bondade
84
A graça referir devo e virtude.
“Sendo
eu servo, me deste a liberdade,
Pelos
meios e vias conduzido,
87
De que dispunha a tua potestade.
“Seja
eu do teu valor fortalecido,
Porque
minha alma, que fizeste pura
90
Te agrade ao ser seu vínculo solvido.” —
Desta
arte orei. Lá da sublime altura,
Em
que estava sorrindo-se encarou-me;
93
Depois voltou-se à eterna Formosura.
—
“Por chegares” — o velho assim falou-me —
“Ao
termo da jornada, como anelas,
96
A que seu rogo e santo amor mandou-me,
“Teus
olhos voem pelas flores belas:
Eles
mais hão-de se acender, no esguardo
99
Para alçar-se ao divino raio, em vê-las.
“E
a Rainha do céu, por quem eu ardo
Cheio
de amor, nos há de ser beni’na,
102
Pois sou seu servo, o seu fiel Bernardo.” —
Como
quem da Croácia se destina
A
ver Santo Sudário em romaria,
105
Por fama antiga da feição divina;
Devoto
a contemplar se não sacia,
Dizendo
em si: “ó Jesus! meu Deus piedoso!
108
Tal o semblante vosso parecia!”
Assim
notei o afeito caridoso
Daquele,
que em seus êxtases no mundo
111
A paz celeste prelibou ditoso.
—
“Filho da graça, este viver jucundo
Ser-te
não pode” — prosseguia — “noto,
114
Se os olhos teus não alças cá do fundo.
“Dos
círculos atenta ao mais remoto:
Lá
no trono a Rainha está sentada;
117
Seu reino, o céu, lhe é súdito e devoto.” —
O
rosto ergui. Bem como na alvorada
A
parte, em que o sol nasce no horizonte
120
Excede a que franqueia à noite entrada,
Assim,
quase a subir de vale a monte,
No
píncaro eminente parte eu via
123
Vencer em lume a qualquer outra fronte.
Como
lá donde espera-se do dia
O
carro, que perdeu Fetonte, a flama
126
Aumenta e noutros pontos se embacia,
Assim
essa pacífica oriflama
Se
avivava no meio; e a cada lado
129
Por modo igual se enfraquecia a chama.
De
milhares o centro rodeado
Stava
de anjos voando como em festa,
132
Cada um na arte e no brilho assinalado.
De
os ver e ouvir contento manifesta
A
Beldade: que extremos de alegria
135
A outros santos nos seus olhos presta.
Se
eu tivera opulenta fantasia
E
a eloqüência não menos, desse encanto
138
Um só traço exprimir não poderia.
No
vivo lume e ao ver Bernardo quanto
Os
meus olhos, absortos, se fitavam,
Volveu-lhe
os seus, acesos de ardor tanto,
142
Que a mais fervor meu êxtase enalçavam.
2.
A milícia santa, os santos. — 3. Os outros, os anjos. — 32. Hélice, a ninfa
Hélice ou Calixto que foi transformada por Júpiter na constelação da Ursa
Maior. — 33. Do filho acompanhada, o filho de Hélice foi transformado na
constelação da Ursa Menor. — 35. Latrão, foi por algum tempo a sede dos
imperadores romanos. — 102. Bernardo, S. Bernardo, abade de Clairvaux, na
Borgonha, que foi devotado ao culto da Virgem Maria. — 104. Santo Sudário, ou
Verônica (imagem verdadeira), imagem de Jesus impressa num véu, relíquia que se
conserva em Roma. — 116. A rainha, a virgem Maria. — 125. O carro que perdeu
Fetonte, o sol. — 127. Oriflama, estandarte de guerra dos reis de França; aqui
indica a Virgem.
CANTO
XXXII
S.
Bernardo esclarece a Dante a composição da rosa do Paraíso. De um lado estão os
santos cristãos; do outro os hebreus, que acreditaram no Cristo que devia vir.
Entre uns e outros a Virgem Maria. Embaixo de Maria, mulheres hebréias; mais
embaixo as crianças mortas logo depois do batismo.
DE
contemplar no seu prazer sorvido,
De
instruir-me, espontâneo, se incumbia,
3
E este santo discurso há proferido:
—
“A chaga, que sarou e ungiu Maria
Abrira
a bela, que aos seus pés sentada
6
Divisas, do homem no primeiro dia.
“Stá
na tércia fileira entronizada
Logo
abaixo Raquel; resplendente
9
Ao lado Beatriz vês colocada.
“Sara,
Rebeca, Judite e a prudente
Bisavó
do cantor, que lamentara,
12
Miserere clamando, a culpa ingente:
“Num
degrau cada uma se depara
Da
rosa, folha a folha, descendendo
15
Como seu nome a minha voz declara.
“Estão,
do degrau sétimo descendo,
Como
de lá subindo, em seguimento
18
Hebréias, dividida a Rosa sendo:
“Formam
elas, assim, repartimento,
Segundo
em Cristo a fé predominara,
21
Da santa escada em todo o comprimento.
“Da
parte, em que da flor se completara
Em
cada folha o número, exalçado
24
Vês quem a Cristo no porvir sperara;
“Da
parte, onde o hemiciclo é sinalado
De
alguns lugares vagos, se apresenta
27
Quem creu em Cristo ao mundo já chegado.
“Como
de um lado a divisão se ostenta,
Da
Virgem pelo trono demarcada
30
E pelos mais, que a vista representa,
“Assim
do oposto a sede destinada
Ao
que no ermo e martírio sempre há sido
33
Santo e em dois anos da infernal estada,
“Lugar
que, tem por conta, há precedido
Aos
de Francisco, de Agostinho, Bento
36
E outros, de um degrau cada um descido.
“De
Deus ora contempla o sábio intento:
Igualmente
a fé nova e a antiga crença
39
Hão de encher o jardim do firmamento.
“Abaixo
do degrau da escada imensa,
Que
as divisões reparte, está sentado
42
Ninguém, porque ao seu mérito pertença,
“Mas
pelo alheio, e ao modo decretado.
Seus
corpos tais espíritos deixaram
45
Antes que discernir lhes fosse dado.
“Bem
à luz da evidência to declaram
Pela
voz infantil e pelo gesto:
48
Olha, escuta, e tuas dúvidas se aclaram.
“Duvidas
e o não fazes manifesto;
Sutil
pensar em nó te prende estreito;
51
Mas deste enleio vou livrar-te presto.
“Crer-se
não pode em casual efeito
Do
reino divinal no infindo espaço;
54
Nem há fome, nem sede ou triste aspeito.
“De
eternas leis vincula tudo o laço,
E,
como o anel no dedo, justamente
57
Da criação responde tudo ao traço.
“Portanto
aquela prematura gente
Sine
causa não sobe à vida eterna;
60
Mais ou menos, cada um entra excelente.
“Deste
reino o Monarca, que o governa
De
amor em tanto extremo, em tal ventura,
63
Que desejo nenhum além se interna,
“Criando,
de sua face na doçura,
Os
espíritos, dota-os a seu grado.
66
Isto basta saber: não mais apura.
“Ao
claro está nos gêmeos demonstrado,
Que
haviam, — na Escritura se refere,
69
Já no materno ventre batalhado.
“Assim
a luz altíssima confere
A
grinalda da Graça dignamente
72
Segundo a cor da coma, que prefere.
“Graduação,
portanto, diferente
Lhes
cabe sem ter méritos na vida:
75
Visão primeira os distinguiu somente.
“Nos
primitivos tempos conseguida
Estava
a salvação, quando a inocência
78
À fé dos pais se achava reunida.
“Às
primeiras idades em seqüência,
Dos
filhos trouxe às asas inocentes
81
Circuncisão, virtude e permanência.
“Depois
de anunciada a Graça às gentes.
Sem
batismo perfeito haver de Cristo
84
Não valeu a inocência desses entes.
“Ora
atento na face, que à de Cristo
Mais
se assemelha; a sua luz tão pura
87
Só te pode dispor a veres Cristo.” —
Vi
chover de alegria tal ternura,
Que
a Maria os espíritos levavam
90
Para voar criados nessa altura,
Que
quanto os olhos antes contemplavam
Tais
portentos patentes não fizera:
93
Os assomos de Deus se revelavam.
Dos
anjos o primeiro, que viera,
Cantando
“Ave, Maria, gratia plena”,
96
Ante Maria as asas estendera.
Respondendo
à divina cantilena
De
toda parte a gloriosa corte,
99
Resplendeu cada face mais serena.
—
“Ó santo Pai, que a caridade forte
Em
prol meu fez deixar o doce assento,
102
A ti marcado por eterna sorte,
Diz-me
que anjo com tal contentamento
Da
soberana a fronte olha divina,
105
No amor mostra do fogo o encendimento.” —
Desta
arte inda vali-me da doutrina
Daquele,
que enlevava-se em Maria,
108
Como no sol a estrela matutina.
Tornou-me:
— “Alacridade e bizarria,
Quanta
em anjo haver possa e nalma humana,
111
Há nele; assim nos dá suma alegria:
“Foi
ele o que à bendita Soberana
Levou
a palma, o filho de Deus quando
114
Quis assumir a nossa carga insana.
“Minhas
vozes tua vista acompanhando,
Do
justíssimo império alça aos formosos
117
Patrícios, de alto nome, venerando.
“Os
dois, que acima brilham, venturosos
Por
starem perto da Sob’rana Augusta;
120
São desta Flor princípios gloriosos:
“À
sestra sua aquele, que se ajusta,
O
Pai é que, tentado por mau gosto
123
Tanta amargura à sua prole custa.
À
destra o Pai primeiro se acha posto
Da
santa Igreja; as chaves lhe entregara
126
Da Rosa Cristo e o fez o seu preposto.
“E
o que antes de morrer vaticinara
Duros
tempos daquela amada Esposa,
129
Que por lanças e cravos se alcançara,
“Fica-lhe
a par; e, junto, a glória goza
O
capitão da gente ingrata, insana,
132
Que viveu de maná, revel, teimosa.
“Em
frente a Pedro vês que senta-se Ana,
Tão
leda a excelsa Filha contemplando,
135
Que imóveis olhos tem, cantado hosana.
“Em
frente ao Pai dos homens venerando,
É
Luzia: a Beatriz há suplicado,
138
Quando ias para o abismo te inclinando
“Mas
da tua visão o assinalado
Tempo
foge: paremos, pois, fazendo
141
Do pano, que há, vestido bem talhado.
“E
para o Amor Primeiro olhos erguendo,
Saibamos
se do seu fulgor no seio
144
Penetras, quanto possas te absorvendo.
“Mas,
de que retrocedas no receio,
Movendo
as asas, em vez de ir avante,
147
Impetra graça, de piedade cheio,
“Daquela,
que em valer é tão pujante.
Em
mente a voz me segue fervoroso,
Com
vivo afeto e coração amante.” —
151
E esta santa oração disse piedoso:
5.
A bela que aos seus pés etc. Eva. — 8. Raquel, mulher de Jacob. — 10-11. Sara,
mulher de Abrão; Rebeca, mulher de Isaque; Judite, que livrou o povo de Israel,
matando Olofernes; a prudente bisavó etc., Rute, bisavó de Davi. — 32. Ao que
etc., S. João Batista. — 35. Francisco, Agostinho e Bento, santos fundadores de
ordens religiosas. — 67-69. Gêmeos, Esaú e Jacob. — 79-81. Às primeiras idades
etc., nos tempos que passaram de Abrão até Cristo, a circuncisão era requisito
indispensável para a salvação. — 82-84. Depois de enunciada etc., depois de
Cristo é indispensável o batismo. — 85. Na face que à de Cristo etc., Maria
Virgem. — 112. Foi ele o que etc., Gabriel. — 122. O pai etc., Adão. — 124. O
pai primeiro etc., S. Pedro. — 127-129. E o que etc., S. João Evangelista. —
131. O capitão etc., Moisés. — 133. Ana, mãe da Virgem. — 137. Luzia, Santa
Luzia, virgem e mártir, v. Inferno II, 97-102.
CANTO
XXXIII
S.
Bernardo pede à Virgem Maria que conceda a Dante contemplar a Deus. O Poeta vê
um tríplice círculo no qual está revelada a Trindade divina. No círculo médio
vê figurada a efígie humana. No espírito de Dante se forma o desejo de conhecer
o modo da união da natureza divina com a humana. Um repentino esplendor lhe
revela o mistério da encarnação de Cristo; e aqui termina a sublime visão.
“VIRGEM
Mãe, por teu Filho procriada,
Humilde
e sup’rior à criatura,
3
Por conselho eternal predestinada!
“Por
ti se enobreceu tanto a natura
Humana,
que o Senhor não desdenhou-se
6
De se fazer de quem criou, feitura.
“No
seio teu o amor aviventou-se,
E
ao seu ardor, na paz da eternidade,
9
O germe desta flor assim formou-se.
“Meridiana
Luz da Caridade
És
no céu! Viva fonte de esperança
12
Na terra és para a fraca humanidade!
“Há
tal grandeza em ti, há tal pujança,
Que
quer sem asas voe o seu anelo
15
Quem graça aspira em ti sem confiança.
“Ao
mísero, que roga ao teu desvelo
Acode,
e, às mais das vezes, por vontade
18
Livre, te praz sem súplica valê-lo.
“Em
ti misericórdia, em ti piedade,
Em
ti magnificência, em ti se aduna
21
Na criatura o que haja de bondade.
“Esse
mortal, que da ínfima lacuna
Do
mundo até o empíreo, passo a passo,
24
Viu quanto a vida esp’ritual reuna,
“Te
exora auxílio ao seu esforço escasso:
A
mente sublunar lhe seja dado
27
A Suma Dita no celeste espaço.
“Eu
que, no meu ardor, nunca aspirado
Hei
mais por mim o que em prol dele peço
30
Meus rogos todos alço esperançado.
“Te
digna conseguir que o véu espesso
Da
humanidade sua despareça,
33
E assim lhe seja o Sumo Bem concesso.
“Depois
da alta visão dá que ainda eu peça
Que
conserves, Rainha Onipotente,
36
Sempre pura sua alma e ao mal avessa.
“De
perversas paixões guarda-o clemente:
Vê
Beatriz e o céu inteiro unidos,
39
Juntando as mãos, ao voto meu fervente!” —
Os
olhos, que por Deus são tão queridos
No
santo orador fitos demonstraram
42
Que eram seus ternos rogos atendidos.
Após
ao Lume eterno se elevaram,
Em
que, se deve crer, da criatura
45
Olhos, em modo tal, não profundavam.
E
dos desejos eu, que à mor altura
Suba,
o ardor cessar, como devia,
48
Senti, me apropinquando da ventura.
Bernardo,
me acenando, me sorria,
Que
para cima olhasse; mas eu estava
51
Já por mim mesmo tal qual me queria.
A
vista, que em pureza sublimava,
Do
alto, que é por si toda a Verdade,
54
Mais e mais pelos raios penetrava.
E
o que eu vi, desde então, na imensidade
Transcendeu
quanto o verbo humano intente:
57
Cede a memória a tanta majestade.
Qual
homem, que, a sonhar, vê claramente,
Depois
só guarda a sensação impressa,
60
E o mais em todo lhe não volta à mente;
Tal
eu; quase a visão inteira cessa.
Mas
no meu coração quase destila
63
Doçura que em seu êxtase começa.
Assim
ao sol a neve se aniquila,
Assim
na leve folha, entregue ao vento,
66
Se dispersava o orác’lo da Sibila.
Flama
excelsa, que o humano pensamento
Excedes
tanto, oh! presta ao meu, piedosa,
69
Um pouco de inefável luzimento.
E
a língua minha faz tão poderosa,
Que
uma centelha só da tua Glória
72
Aos pósteros transmita venturosa;
Pois
que, em parte surgindo-me à memória
E
sendo por meus versos celebrada,
75
Melhor se entenderá tua vitória.
Da
luz pela agudeza suportada,
Eu
me perdera, creio, com certeza,
78
Se da luz fora a vista desviada.
E,
recordo-me, pois mor afouteza
Tomei,
tanto, que face a face olhando,
81
Encarar pude na Infinita Alteza.
Tu
ó Graça abundante, me animando,
Olhos
fitar ousei na luz eterna,
84
A visão almejada consumando.
E
lá na profundeza vi que se interna
Unido
pelo amor num só volume
87
O que pelo universo se esquaderna:
Acidente,
substância e o seu costume,
Conjuntos
entre si por tal maneira,
90
Que da verdade exprimo um frouxo lume.
Creio
que a forma universal inteira
Vi
desse nó; porquanto mais ao largo
93
Sinto, ao dizer, ledice verdadeira.
Um
só instante à mente dá letargo
Maior,
que séc’los vinte e cinco à empresa
96
Que admirar fez Netuno a sombra de Argo.
De
êxtase assim minha alma toda presa,
Atenta,
absorta, imóvel se imergia,
99
E sempre em contemplar mais stava acesa.
E
essa Luz tal efeito produzia,
Que
em deixá-la por ver dif’rente aspeto
102
Consentir impossível me seria:
Que
o Bem da sua aspiração objeto,
Todo
está nela; é tudo lá perfeito,
105
Como fora de lá tudo é defeto.
Meu
dizer de ora avante mais estreito
Será
no que recordo que o do infante
108
Ainda ao seio maternal afeito;
Não
porque presentasse outro semblante
A
viva Luz, que a contemplar eu stava,
111
Antes, como depois, sempre constante;
Mas,
como, olhando, a vista se alentava,
A
Imutável Essência parecia
114
Mudar, quando só eu me transformava.
Na
substância profunda e clara eu via
Da
excelsa Luz três círc’los dicernidos
117
Por cores três, de igual periferia,
Íris
de íris, um de outro refletidos
Estavam,
flama o têrcio parecia
120
Spirando, por igual, de um, de outro unidos,
Quanto
é curta expressão! Quanto a excedia
Meu
pensar, ao que eu vi, este já sendo
123
Tal, que pouco bastante não diria.
Lume
eterno, que a sede em ti só tendo,
Só
te entendes, de ti sendo entendido,
126
E te amas e sorris só te entendendo!
O
girar, que, dessa arte concebido
Via
em ti como flama refletida,
129
Quanto foi dos meus olhos abrangido,
No
seio seu da própria cor tingida
A
própria efígie humana oferecia:
132
Foi nela a vista minha submergida!
Geômetra,
que o espírito crucia
Para
o cir’lo medir, em vão procura
135
Princípio, que ao seu fim mais conviria:
Assim
eu ante a nova visão pura
Ver
anelara como a image’ humana
138
Ao círculo se adapta e ali perdura.
Às
asas minhas fora empresa insana,
Se
clareado a mente não me houvesse
141
Fulgor, que a posse da verdade aplana.
À
fantasia aqui valor fenece;
Mas
a vontade minha a idéias belas,
Qual
roda, que ao motor pronta obedece,
145
Volvia o Amor, que move sol e estrelas.
66.
O orác’lo da Sibila; Virgílio (Eneida III) diz que a Sibila Cumana escrevia os
seus oráculos sobre folhas soltas e depois as jogava no ar, sendo dispersadas
pelo vento. — 94-96, Um só instante etc., um só instante do tempo transcorrido
depois da visão me causa maior esquecimento que não aquele que vinte e cinco
séculos causaram ao episódio dos Argonautas, o qual surpreendeu a Netuno. —
118-120. Íris de íris etc., o Filho parecia refletido no outro, no Pai como
íris de íris; e o terceiro, o Espírito Santo parecia fogo procedente de um e de
outro. — 127-131. O girar que, dessa arte etc., aquele dos círculos, isto é, o
segundo, que parecia refletido do outro, pareceu-me tivesse efígie humana,
tingida, porém, de cor divina. — 134. Para o círc’lo medir, para encontrar a
quadratura do círculo, isto é um quadrado cuja área seja igual à de um
determinado círculo. — 143. Mas a vontade minha etc., mas o Amor, isto é, Deus,
que move o Sol e as estrelas, movia a minha vontade, concordemente à sua, como
uma roda que obedece ao motor.
***
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