INFERNO ... Cantos I-V ... VI-XI ... XII-XVII ... XVIII-XXIII ... XIV-XXIX ... XXX-XXXIV
PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII
PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII
CANTO XII
O
Minotauro está de guarda ao sétimo círculo. Vencida a ira dele, chegam os
Poetas ao vale, em cujo primeiro compartimento vêem um rio de sangue fervendo,
no qual são punidos os que praticaram violências contra a vida ou as coisas do
próximo. Uma esquadra de Centauros anda em volta do paul vigiando os
condenados, frechando-os se tentam sair do rio de sangue. Alguns desses
Centauros pretendem deter os Poetas, porém Virgílio os domina, conseguindo que
um deles os escolte e transporte na garupa a Dante. Na passagem o Centauro, que
é Nesso, fala a respeito dos danados que sofrem a pena no rio de sangue.
DA
descida era o passo tão fragoso
E
tal por quem lá estava à guarda e atento,
3
Que se fazia à vista pavoroso.
Como
a ruína, que daquém de Trento,
O
Ádige feriu, por terremoto
6
Ou por faltar de chofre o fundamento;
Do
viso ao val do monte, que foi roto,
Tão
derrocada vê-se a penedia,
9
Que a descê-la o caminho é quase imoto.
A
ribanceira assim nos parecia.
E
à borda do penedo fracassado
12
De Creta o monstro infame se estendia,
Da
falsa vaca torpemente nado.
Apenas
viu-nos, se mordeu fremente,
15
Como quem pela raiva é devorado.
“Cuidas”
— bradou-lhe o sábio incontinente —
“Ser
de Atenas o príncipe, o que à morte
18
Lá sobre a terra te arrojou valente?
“Arreda,
bruto! Que este é de outra sorte;
Da
tua irmã não recebera ensino;
21
De vós outros vem ver a pena forte”.
Qual
touro desprendido, quando o tino
Mortal
golpe lhe rouba, que não pode
24
Correr, mas salta a vacilar mofino:
Assim
o Minotauro. O Mestre acode
Dizendo-me:
“Demanda presto a entrada
27
E desce, enquanto em vascas se sacode”. —
A
quebrada descíamos formada
De
pedras soltas; cada qual, movida,
30
Cedia, em sendo por meus pés calcada.
E
eu cismava. Ele disse: — “Tens sorvida
A
mente na ruína, que do horrendo
33
Monstro a ira defende já vencida.
“Deves
saber que, de outra vez descendo
Até
o extremo lá do baixo inferno,
35
Esta rocha não vi, como a estás vendo,
“Mas,
pouco antes de vir se bem discerno,
Aquele
que há tomado a grande presa,
39
A Dite, lá no círculo superno,
“Deste
val tremeu tanto a profundeza,
Que
sentisse pensei todo o universo
42
O amor, com que alguém diz ter certeza
“De
que ao caos muita vez será converso.
Foi
aqui, noutras partes, nesse instante,
45
Roto o velho penhasco em treva imerso.
“Mas
olha o vale: o rio é não distante
De
sangue, onde verás fervendo aquele,
48
Que violência exerceu no semelhante.
“Ó
ira louca, ó ambição, que impele
Na
curta vida nossa, ao inferno arrasta
51
E para sempre nos submerge nele!” —
Eis
uma cava divisei mui vasta,
Que
abrangia, arqueada, o plano inteiro,
54
Como dissera quem do mal me afasta.
No
espaço, a que o penhasco é sobranceiro,
Centauros
correm, setas agitando,
57
Como soíam no viver primeiro.
Descer
nos vendo, pára o ardido bando.
Três
de entre eles então nos demandaram,
60
Os arcos e arremessos preparando.
Os
brados de um de longe nos soaram:
—
“Vós, que desceis, dizei a pena vossa;
63
De lá falai, ou tiros se disparam!” —
Virgílio
respondeu: — “Resposta nossa
Terá
Quiron de perto, sem demora.
66
Sempre te dana a pressa que te apossa”. —
Tocou-me
e disse: — “Quem nos fala agora
É
Nesso, o que morreu por Dejanira;
69
Mas se vingou de quem fatal lhe fora.
“Esse
do meio, que o seu peito mira,
Aio
de Aquiles, é Quiron famoso;
72
Esse outro é Folo, sempre aceso em ira”. —
Aos
mil em volta ao rio sanguinoso
As
almas seteavam, que excediam,
75
Mais do que é dado, o líquido horroroso.
Àqueles
monstros que ágeis se moviam,
Chegamo-nos.
Quiron com seta ajeita
78
Os cabelos, que os lábios lhe encobriam.
Quando
desta arte a larga boca afeita,
Disse
à companha: — “Haveis já reparado
81
Que move aquele tudo, em que os pés deita?
“Nunca
assim pés de morto hão caminhado”.
O
Guia meu, que junto já lhe estava
84
Do peito, onde era um ser noutro enleado,
—
“Vivo está, vem comigo” — lhe tornava —
“A
visitar o val maldito, escuro
87
Para cumprir dever, que lho ordenava.
“Deixando
de cantar o hosana puro
Alguém
me há cometido o cargo novo.
90
Não é ladrão, nem eu esp’rito impuro:
Em
nome do poder, por quem eu movo
Os
passos meus em tão medonha estrada,
93
Envia algum, que escolhas no teu povo,
“Por
nos mostrar a parte acomodada
Ao
vau, e no seu dorso haver transporte
96
Quem não é sombra ao vôo aparelhada”.
Quiron
volveu-se à destra e a Nesso forte
—
“Torna atrás” — disse — “e serve-lhes de guia:
99
Que outro bando o caminho lhes não corte!” —
Já
partimos na fida companhia,
As
ondas costeando rubras, quentes,
102
Donde agudo estridor ao ar subia.
Té
os cílios no sangue os padecentes
Eu
vi. Disse o Centauro: — “São tiranos
105
Truculentos e em roubo preminentes.
“Chora-se
aqui por feitos desumanos.
Alexandre
aqui está, Dionísio antigo
108
Que gemer fez Sicília tantos anos.
“De
negra coma, aqui sofre o castigo
Azzolino;
e o que está, louro, ao seu lado
111
Obizzio d’Este, ao qual (verdade eu digo)
“Roubara
a vida o pérfido enteado”. —
E
o Vate, a quem voltei-me, assim dizia:
114
— “O segundo lugar me é reservado”. —
Pouco
além parou Nesso: olhar queria
Uma
turba, que, estando submergida,
117
Toda a cabeça para fora erguia,
Disse,
indicando uma alma retraída:
“Perante
Deus um coração ferira,
120
Que inda Londres venera estremecida”. —
A
cabeça vi de outros, que subira
Do
rio à superfície e o inteiro busto,
123
Suas feições no mundo eu distinguira:
Ia
baixando o sangue até que a custo
Os
pés cobria a quem passar quisesse:
126
O fosso ali vencemos já sem custo.
“Se
desta parte o borbulhão parece
Do
rio escassear, eu te asseguro”
129
— Disse Nesso — “que mais engrossa e desce
“Na
parte oposta até juntar-se ao escuro
Pego
em que, como hás visto, a tirania
132
As penas dá no seu tormento duro.
“A
divina justiça lá crucia
Esse
Átila, que açoite foi da terra,
135
Pirro e Sexto; e redobrar-se a agonia
“Dos
dois Renatos, que tamanha guerra
Fizeram
nas estradas, salteando,
—
O Pazzo e o de Corneto”. — E a fala cerra.
139
Voltou depois do rio o vau passando.
12-13.
De Creta o monstro infame, o Minotauro, nascido de um touro e de Pasifae, o
qual foi morto por Teseu. — 64. Quiron, centauro morto por Hércules, quando do
rapto de Dejanira. — 107 Alexandre, tirano de Fere na Tessália ou Alexandre de
Macedônia. — Dionísio, tirano de Siracusa. — 110. Azzolino, Ezzelino III de
Romano, tirano da Marca Trevisana. — Obizzio, d’Este, tirano de Ferrara. —
118-120 Uma alma, etc., Guido de Monfort, que matou a Arrigo, irmão de Eduardo
I, rei da Inglaterra, cujo coração foi colocado num monumento. — 134. Átila,
rei dos Hunos, chamado o flagelo de Deus. — Pirro, filho de Aquiles que matou a
Príamo.
CANTO
XIII
Os
dois Poetas entram no segundo compartimento, onde são punidos os violentos
contra si mesmos e os dilapidadores dos próprios bens. Os primeiros são
transformados em árvores, cujas negras folhas as Hárpias dilaceram; os outros
são perseguidos por cães famintos que os despedaçam. Dante encontra Pedro des
Vignes, de quem ouve os motivos pelos quais se suicidou e as leis divinas em
relação aos suicidas. Vê depois o senense Lano e o paduano Jacob de
Sant’Andréa. Ouve, enfim, de um suicida florentino, qual é a causa dos males da
sua pátria.
NÃO
stava ainda Nesso do outro lado,
Quando
nós por um bosque penetramos,
3
Dos vestígios de passos não marcado.
Não
fronde verde, mas escura, ramos
Não
lisos, mas travados e nodosos,
6
Não pomos, puas com veneno achamos.
Por
silvados mais densos, mais umbrosos,
Do
Cecina a Corneto, a besta brava,
9
Não foge, agros deixando deleitosos.
Das
Hárpias o bando aqui pousava.
Que
expeliram de Strófade os Troianos,
12
Vaticinando o mal, que os aguardava.
Asas
têm largas, colo e rosto humanos,
Garras
nos pés, plumoso e ventre enorme,
15
Soam na selva os uivos seus insanos.
E
disse o Mestre: “Convém já te informe
Que
o recinto segundo vais entrando,
18
Onde verás spetáculo disforme,
“Até
que ao areal chegues infando.
Atenta!
E darás fé à narrativa,
21
Que fiz, ainda lá no mundo estando”.
Em
toda parte ouvi grita aflitiva:
Como
não via quem assim gemesse,
24
Parei e a torvação se fez mais viva.
Creio
que o Mestre cria então que eu cresse
Que
esses lamentos enviava aos ares
27
Uma turba, que aos olhos se escondesse;
Pois
disse-me: “De um tronco se quebrares
Um
só raminho, ficarás ciente
30
Desse erro em que se enleiam teus pensares”. —
O
braço estendo então e prontamente
Vergôntea
quebro. O tronco, assim ferido
33
“Por que razão me arrancas?” diz fremente.
De
sangue negro o ramo já tingido,
“Por
que me rompes?” — prosseguiu gemendo —
36
Assomos de piedade nunca hás tido?” —
“Fui
homem, hoje o lenho, que estás vendo!
Mais
compassiva a tua mão seria
39
Se alma aqui fosse de um dragão tremendo”.
Como
acha verde, quando se incendia
Num
extremo s’estorce, no outro estala,
42
Chiando e a umidade fora envia:
Daquela
arvora assim brotava a fala,
E
o sangue; a minha mão já desprendera
45
O ramo, e, entanto, o horror no peito cala.
“Se
de antes ele acreditar pudera”
Lhe
torna o sábio Mestre “alma agravada,
48
O que eu nos versos meus lhe descrevera,
“Por
te ferir sua mão não fora alçada.
Não
crera eu mesmo, e tanto que o induzira
51
Ao feito, que me pesa e desagrada.
“Diz-lhe
quem foste e as dúvidas lhe tira.
O
mal te compensando, a fama tua
54
Há de avivar no mundo, a que retira”. —
E
o tronco: “Alívio tanto à dor, que atua,
Causais,
que de bom grado eu já explico:
57
Ao triste dai que a mágoa exprima sua.
Fui
quem do coração de Frederico
As
chaves tive e usei com tanto jeito,
60
Fechando e desfechando que era rico
“Da
fé com que a mim só rendeu seu peito
No
glorioso cargo fui constante,
63
Força, alento exauri por seu proveito.
“A
torpe meretriz, que, a todo instante
Ao
régio paço olhos venais volvendo,
66
Morte comum, das cortes mal flagrante,
“Contra
mim ódio em todos acendendo,
Por
eles acendeu iras de Augusto,
69
Que honras ledas tornou-me em luto horrendo.
“Ressentindo-me
então do mundo injusto,
Por
fugir seus desdéns, buscando a morte,
72
Comigo iníquo fui eu, que era justo.
“Pelo
tronco em que peno desta sorte,
Que
jamais infiel hei sido, juro,
75
Ao Rei meu, que houve a glória por seu norte,
“De
vós o que voltar à luz adjuro
Que
a memória me salve ao nome honrado,
78
Que vulnerou da inveja o golpe duro”. —
O
vate inda esperou. — “Pois se há calado”. —
Disse-me
“fala, se tu mais desejas
81
E pede-lhe: do tempo és apressado”. —
Tornei:
“Tu mesmo inquires quanto vejas
Mais
convir-me; que eu sinto-me inibido
84
Por mágoas, que em minha alma são sobejas”.
Ele
então: “— Se o desejo teu cumprido
For
por este homem, nobremente usando,
87
Te apraza, encarcerada alma, ao pedido
“Nosso
atender, e como nos mostrando
Se
liga ao tronco o esp’rito e se é factível
90
Soltar-se um dia, o vínculo quebrando”. —
Soprou
de rijo o lenho; e perceptível
Aquele
som desta arte nos dizia:
93
— “Resposta breve dou quanto é possível.
“Quando
os laços do corpo uma alma ímpia
Destrói
por si, do seu furor no enleio
96
Ao círc’lo sete Minos logo a envia.
“Na
selva tomba e aonde acaso veio,
E
como o seu destino lhe consente,
99
Aí, qual grão germina de centeio,
“Vai
crescendo até ser árvore ingente:
As
Hárpias, que a fronde lhe devoram,
102
Causam-lhe dor, que rompe em voz plangente.
“Hemos
de ir onde os corpos nossos moram,
Como
as outras, mas sem que os revistamos,
105
Mor pena aos que em perdê-los prestes foram.
“Arrastados
serão por nós: aos ramos
Pendentes
ficarão nesta floresta
108
Nos troncos, em que, assim, vedes, penamos”. —
Ouvíamos
ainda a sombra mesta,
De
mais dizer cuidando houvesse o intento.
111
Eis sentimos rumor, que nos molesta.
Assim
monteiro, à caça pouco atento,
Do
javardo e dos cães ouve o estrupido
114
E das ramadas o estalar violento.
Súbito
vejo à esquerda, espavorido,
Fugindo
esp’ritos dois nus, lacerados,
117
Ramos rompendo ao bosque denegrido.
“Ó
morte!” um clama — “acode aos desgraçados!”
O
segundo, que tardo se julgava:
120
“Ninguém, ó Lano, os pés tanto apressados
“De
Toppo nas refregas te observava!”
Porém,
de todo já perdido o alento,
123
Numa sarça acolheu-se que ali stava.
Corria,
enchendo a selva, em seguimento
De
famintas cadelas negro bando,
126
Quais alões da cadeia ao todo isento
A
sombra homiziada se enviando,
A
fez pedaços a matilha brava,
129
E logo após levou-os ululando.
Então
meu Guia pela mão me trava,
Conduz-me
à sarça, que se em vão carpia
132
Pelas roturas, que o seu sangue lava.
“Ó
Jacó Santo André!” triste dizia —
“Podia
eu ser-te acaso amparo certo?
135
Em mim por crimes teus que culpa havia?” —
Disse-lhe
o Mestre, quando foi mais perto:
“Quem
és tu, que o teu sangue e mágoas exalas
138
Por golpes tantos, de que estás coberto?” —
Tornou-lhe:
“Ó alma que dessa arte falas
E
tu que o dano vês, que me separa,
141
Da fronde minha, agora amontoá-las
“Dignai-vos
junto à rama, que as brotara.
Na
cidade nasci que por Batista
144
Deixou prisco patrão, que da arte amara
“Sempre
pelos efeitos a contrista.
E
se do Arno na ponte não restasse
147
Um vestígio, que traz seu culto à vista
“Talvez
ela à existência não tornasse,
E
quem das cinzas, que Átila há deixado,
Levantou-a
os esforços malograsse.
151
“Na minha própria casa hei-me enforcado”. —
58.
Fui quem do coração de Frederico etc., Pedro des Vignes, secretário de
Frederico II que se suicidou por ter sido acusado de trair o seu rei. — 118. Um
clama etc., Lano de Siena, que morreu em Pieve del Toppo, na batalha entre Senenses
e Aretinos. — 119. O segundo etc., Giacomo di S. Andrea, morto por Ezzelino de
Romano. — 143. Por Batista etc., Florença, antes de tornar-se cidade protegida
por S. João Batista, tinha como protetor Marte, do qual restava uma estátua
sobre a ponte Vecchio.
CANTO XIV
O
terceiro compartimento no qual agora chegam os Poetas é um campo de areia
ardente, devastado por grandes chamas de fogo. Aí estão os violentos contra
Deus, contra a natureza e contra a arte. Entre os primeiros está Capaneo, que
desafia a Deus. Seguindo, Dante e Virgílio chegam a um regato sangüíneo. Deste
e dos outros rios do Inferno Virgílio narra a origem misteriosa.
DE
amor do pátrio ninho comovido,
Essas
dispersas folhas reunindo,
3
À sarça as dei, que tinha a voz perdido.
Ao
limite, dali, fomos seguindo,
Em
que parte o recinto co’ terceiro,
6
Onde a justiça horrível stá punindo.
Para
expressar-lhe o aspecto verdadeiro,
Eu
digo que à charneca então chegamos,
9
De plantas nua em seu espaço inteiro.
Da
dor a selva a cerca dos seus ramos,
Como
o fosso a torneia sanguinoso:
12
Ali, rente co’a borda, os pés firmamos.
O
plaino era tão árido e arenoso,
Como
o que de Catão os pés outrora
15
Na jornada calcaram fadigoso.
Ó
vingança de Deus, quem não te adora
Nos
tremendos efeitos meditando,
18
Que eu próprio olhei, que a minha voz memora!
De
almas nuas eu via infindo bando,
Por
modos diferentes torturadas,
21
Miseráveis, mesquinhas pranteando.
Jaziam
sobre o dorso umas deitadas,
Outras,
dobrando os membros, se assentavam,
24
Muitas andavam sempre aceleradas.
Maior
a turba destas se mostrava,
Menor
a que, prostrada no tormento.
27
Maior dor nos lamentos denotava.
Largas
flamas com tardo movimento
Choviam
do areal em todo o espaço,
30
Qual neve em serra, quando é mudo o vento.
Na
Índia sobre o exército, já lasso,
Fogos
cair viu Alexandre outrora,
33
No chão ardendo livres de embaraço.
Que
aos pés no solo os calquem sem demora
Suas
falanges avisado ordena:
36
Matá-los um por um fácil lhes fora.
Assim
baixava, para agravo à pena,
Lume
eterno que à areia se prendia,
39
Como à isca a fagulha mais pequena.
Cada
qual sem repouso se estorcia,
A
um lado e a outro os braços revolvendo
42
A cada chama, que do ar chovia.
“Mestre”
— falei — “que vais tudo vencendo,
Somente
exceto a legião furente,
45
Que em Dite a entrada estava-nos tolhendo,
“Diz
quem seja a grã sombra, que não sente,
Ao
parecer, o incêndio, e não domado
48
Pela chuva, já rápido, insolente?” —
Reconhecendo
o próprio condenado
Que
da minha pergunta fora objeto,
51
“Morto sou qual fui vivo!” clama irado.
“Que
Jove canse o armeiro seu dileto,
De
quem tomou fremente o agudo raio
54
Para em mim saciar rancor abjeto;
“Que
os seus cíclopes sintam já desmaio
De
Mongibello na oficina negra,
57
Aos gritos — “Bom Vulcano, acode ou caio!” —
“Como
fez na peleja lá de Flegra;
Que
me fulmine de ódio e sanha cheio:
60
No gozo da vingança em vão se alegra”. —
Virgílio
então, com voz, como não creio
Lhe
ter ouvido, sonorosa e forte,
63
Bradou-lhe: “Capaneu, pois no teu seio
“Não
mitiga a soberda a própria morte,
Sofre
mor pena; igual não há castigo
66
Ao que a raiva te inflige desta sorte!” —
Para
mim se voltou; com gesto amigo
Falou:
— “Dos Reis que Tebas sitiaram
69
Foi um; de Deus se declarara imigo.
“Os
crimes seus no inferno se agravaram;
Já
disse-lhe, as blasfêmias, os furores
72
Digno prêmio em seu peito lhe deparam.
“Vem
agora após mim; pelos fervores
Não
caminhes da areia incandescente;
75
Da selva ao longo evitas-lhe os ardores”. —
Fomos
andando, cada qual silente,
Até
onde jorrar do bosque eu via
78
Rubro arroio, que lembro inda tremente.
Do
Bulicame qual o que saía,
Das
pecadoras em serviço usado:
81
Tal pela adusta areia este corria.
As
margens e orlas são de cada lado
Feitas
de pedra e assim também seu leito:
84
Caminho ali notei ao passo azado.
“De
quanto aqui te conhecer hei feito,
Depois
que atrás deixamos essa porta,
87
A cujo ingresso todos têm direito,
“Não
se há mostrado à tua vista absorta
Maravilha
que iguale a desta veia,
90
Em que a flama adurente fica morta”. —
O
Mestre diz e assim desejo ateia
De
rogar-lhe me preste esse alimento,
93
Que excitado, o apetite haver anseia.
“Do
mar em meio jaz” — ouvi-lhe atento —
“Destruído
país, Creta afamada.
96
Com seu rei foi do mal o mundo isento.
“Alça-se
ali montanha outrora ornada
De
fontes e verdor: chama-se Ida:
99
Erma está, como cousa desprezada.
“Foi
ao filho pra berço preferida
De
Réia, que abafava o seu vagido
102
Fazer mandando grita desmedida.
“Nas
entranhas do monte um velho erguido
Está:
voltando à Damieta as costas,
105
Como a espelho, olha Roma embevecido.
“De
ouro faces e fronte são compostas,
De
pura prata são braços e peito,
108
Enéias do busto as partes bem dispostas.
“De
ferro estreme tudo o mais foi feito,
O
pé direito exceto, que é de argila,
111
Mas o corpo sustém, sendo imperfeito.
“Salvo
do ouro, do mais sempre destila
De
lágrimas por fenda crebro fio,
114
Que fura a gruta e rápido desfila.
“Aos
negros vales vem correndo em rio,
Forma
Stige, Aqueronte e Flegetonte,
117
Desce depois neste canal esguio
“Até
do inferno o fundo, aonde é fonte
Do
Cocito. O que o rio acaso seja
120
Verás: mister não é que ora te conte”. —
—
“Se desde o nosso mundo ele serpeja,
Dize,
ó Mestre, a razão por que a torrente
123
Só neste abismo lôbrego se veja”. —
“É
circular este lugar horrente,
E
posto haja vencido extenso trato,
126
Descendo tu à esquerda, inteiramente
“Não
hás feito inda ao círc’lo o giro exato.
Não
revele o teu rosto maravilha.
129
Novas cousas em vendo e estranho fato”. —
Ainda
eu perguntei: — “Por onde trilha
O
Flegetonte e o Letes? De um te calas,
132
E do outro a veia é dessa origem filha”. —
Tornou:
— “Muito me agrada quanto falas;
Da
água rubra o fervor, porém, solvera
135
Uma dessas questões, que me assinalas.
“Do
inferno fora o Letes ver espera:
Na
linfa sua as almas vão lavar-se
138
Depois que a penitência o perdão gera”. —
Disse
depois: “É tempo de deixar-se
A
selva; os passos meus sempre acompanha,
Pela
margem caminho há para andar-se.
142
Do fogo ali se extingue toda sanha”. —
32.
Alexandre, alusão a uma aventura de Alexandre Magno. — 55. Cíclopes, gigantes
com um só olho no meio da testa, que fabricavam armas para Júpiter. — 56.
Mongibello, o vulcão Etna, na Sicília. — 63. Capaneu, um dos sete reis que
sitiaram Tebas. — 79. Bulicame, fonte de água quente perto de Roma. — 101.
Réia, mulher de Saturno e mãe de Júpiter. — 103-105. Velho de Creta, símbolo da
humanidade e, segundo outros, da monarquia, que, em princípio boa e reta, vai
depois degenerando.
CANTO XV
Prosseguindo
os Poetas, encontram um grupo de violentos contra a natureza. Entre estes está
Brunetto Latini, que reconhece o discípulo e lhe pede para aproximar-se dele, a
fim de conversarem. Falam de Florença e das desventuras reservadas a Dante.
Brunetto dá ao Poeta ligeiras notícias a respeito das almas que estão danadas
com ele e foge para reunir-se a elas.
POR
uma dessas margens empedradas
Imos:
vapor do rio resguardava
3
Das chamas o álveo e as bordas elevadas.
Como
do mar temendo a força brava
De
Bruge a Cadsand, Flamengos fazem
6
Os diques, com que o mal se desagrava;
Ou
como o dano atalha, que lhe trazem
Do
Brenta as invasões de Pádua a gente,
9
Se em Quiarentana os gelos se desfazem,
Assim
as bordas desse rio horrente,
Posto
altura e grossura lhes não desse
12
Iguais, quem quer que fosse artista ingente.
A
selva já distante de nós era
Tanto,
que eu divisá-la não podia,
15
Quando os olhos por vê-la atrás volvera,
Eis
encontramos multidão sombria,
Que
a margem costeava, nos olhando,
18
Como sói caminhante, ao fim do dia,
Que
vai, por lua nova, outro encarando:
Para
nos ver os cílios contraindo,
21
Qual a agulha o artesano aparelhando.
Assim,
de mira à turba nós servindo,
Conhecido
fui de um que me travava
24
Da roupa — “Ó maravilha!” — repetindo.
Quando
o seu braço para mim se alçava,
Atentei-lhe
no rosto requeimado;
27
Posto que demudado, não vedava
Que
de mim fosse nas feições lembrado.
À
sua face inclinando a mão, lhe digo,
30
— “Messer Brunetto! vós aqui!” — torvado.
“Filho
meu! complacente sê comigo!
Vir
Brunetto Latini ora consente,
33
Deixando a turba, um pouco assim contigo!” —
Tornei:
— “muito vos rogo; e que me assente
Convosco
se quereis, prazendo ao guia
36
Dos passos meus, assentirei contente”. —
—
“Se um momento um de nós” — me respondia —
Aqui
parasse, imóvel anos cento,
39
Pelo fogo ferido jazeria.
“Caminha:
que eu te irei no seguimento.
Depois
hei de juntar-me à companhia
42
Dos que pranteiam no eternal tormento”. —
Eu
da estrada a descer não me atrevia
Por
ir com ele; mas a fronte inclino
45
Reverente; e, falando prosseguia.
—
“Que fortuna” — me disse — “ou que destino
Antes
da morte aqui te há conduzido?
48
De quem recebes na jornada ensino?”
—
“Antes de haver da idade o tempo enchido
Sobre
a terra na vida sossegada;
51
Num vale” — respondi — “fiquei perdido.
“Ontem
costas lhe dei por madrugada;
Ele
acudiu-me, quando atrás voltava,
54
E me conduz assim por esta estrada”. —
—
“Se bem vaticinei, quando gozava,
Da
vida bela, glorioso porto
57
Te há de o teu astro conduzir” — tornava.
“Se
antes do tempo eu não stivesse morto.
Vendo
que tanto o céu te era benigno,
60
Te dera nos trabalhos o conforto.
“Mas
esse ingrato povo é tão maligno,
Que
outrora de Fiesole viera
63
E tem de penha o coração ferino,
“Em
ti, por seres bom, mal considera.
É
justo: que entre acerbos sovereiros
66
Crescer doce figueira não se espera.
“Velha
fama os diz cegos, sempre useiros
Na
soberba, na inveja, na avareza.
69
Deles te esquiva; em vícios são vezeiros.
“Te
guarda a sorte de honras tal grandeza,
Que
hás de ser dos partidos cobiçado;
72
Mas das garras lhes fica longe a presa.
“Ceve
em si própria o fiesolano gado
Os
instintos brutais; não toque a planta,
75
Que inda haja em tal nateiro germinado,
“E
em que a semente ressuscite santa
Dos
romanos, que ali restaram, quando
78
Teceu-se o ninho de malícia tanta”. —
—
“Se o céu” — tornei — “meus votos escutando,
Deferisse,
da vida o lume agora
81
Ainda aos olhos vos raiara brando;
“Que
a doce imagem vossa inda memora
Saudosa
a mente e o paternal desvelo
84
Com que me heis ensinado de hora em hora
“Como
homem faz-se eternamente belo.
Enquanto
eu vivo for, agradecido
87
Ao mundo bem patente hei de fazê-lo.
“O
vaticínio vosso, reunido
A
outro, há de explicar-me sábia Dama,
90
Quando à sua presença houver subido.
“E
como a consciência me não clama,
Sabei
que, quando a sorte avessa esteja,
93
A todo o mal sou prestes, que ela trama.
“O
que ouvi não cuideis novo me seja:
Volva-se
a roda como a sorte a lança,
96
Lavre a terra o vilão como deseja”. —
Então
meu douto Mestre, que se avança,
Girando
à destra e me encarando, disse:
99
“Bem compreende quem tem boa lembrança!” —
Não
me vedou, porém, que eu prosseguisse
Na
prática; e a Brunetto os mais famosos
102
Pedi que dos seus sócios referisse.
—
“Alguns convém saber, mais numerosos
Em
silêncio deixar louvável sendo:
105
Míngua o tempo aos discursos copiosos.
“Sabe,
em suma, que clérigos havendo
Todos
sido e letrados mui famosos.
108
Se mancharam num só pecado horrendo.
“Vão
na turba daqueles desditosos
Acúrio
e Prisciano; alguns protervos
111
Se ver quiseres, por tal lepra ascosos.
“Olha
o que, como quis servo dos servos,
Pra
Bacchiglione foi do Arno mudado
114
E ali deixou seus deformados nervos.
“Não
mais dizer, nem ir posso ao teu lado,
Pois
do areal já vejo de repente
117
Vapor novo surgir afogueado.
“Não
devo andar com bando diferente.
O
meu Tesouro eu muito te encomendo:
120
Nele inda vivo, e rogo isto somente”. —
Voltou-se;
e foi tão rápido correndo,
Como
os que correm pelo pálio verde
No
campo de Verona, parecendo
124
Mais ser quem vence do que ser quem perde.
30.
Messer Brunetto, Brunetto Latino, autor do “Tesouro”, e mestre de Dante. — 62
Fiesole, pequena cidade perto de Florença. — 110. Acúrcio, Francesco
d’Accursio, jurisconsulto bolonhês. Prisciano, gramático de Cesaréia — 112.
Olha o que, etc. Andréia de Mozzi, bispo de Florença e, depois, de Vicência.
CANTO XVI
Perto
do limite do terceiro compartimento do sétimo círculo os Poetas encontram outro
bando de almas de sodomitas, no qual se destacam três ilustres compatriotas de
Dante. Reconhecendo-o, falam da decadência das virtudes políticas e civis de
Florença. Chegam, depois à orla de outro precipício, onde a um sinal de
Virgílio, sobe, voando pelos ares, uma figura estranhíssima.
EM
lugar stava já donde se ouvia
Rumor,
igual de abelhas ao zumbido,
3
De água, que noutro círculo caía:
Eis
três sombras partir vi comovido,
Correndo,
de uma turba que passava
6
Debaixo do martírio desmedido.
Vinham
a nós, e cada qual gritava:
“Detém-te;
por teus trajos se afigura
9
Seres alguém da nossa terra prava”. —
Ah!
que chagas nos membros, na figura
O
fogo lhes abria, novas e antigas!
12
Só recordando, eu sinto mágoa pura.
O
mestre, que escutara — “Não prossigas!
Cumpre-te”
— disse, o rosto me voltando, —
15
“Aguardando, lhes dar mostras amigas.
“Não
estivesse o fogo dardejando,
Como
o lugar requer, te caberia
18
Mais pressa do que estão manifestando”. —
Paramos.
Renovando a vozeria
Um
círc’lo junto a nós os três formaram,
21
Em que as mãos cada qual dos três unia.
Como
atletas, que, nus, de óleo se untaram,
Mas,
antes de lutar, dos adversários
24
No fraco atentam, no seu prol reparam:
Eles,
se revolvendo em giros vários,
Olhavam-me
em tal modo colocados,
27
Que os colos aos seus pés stavam contrários.
“Se
a miséria, em que somos trateados,
Se
o triste aspecto da tostada face
30
Te move a desdenhar súplices brados,
“Nossa
fama o teu ânimo traspasse;
E
pois, dize quem és que, ufano, o inferno
33
Calcas antes que a vida se finasse.
“Este,
por quem os passos meus governo,
Escoriado
e nu, que ora estás vendo,
36
Mais do que o crês no mundo foi superno.
“Da
famosa Gualdrada o neto sendo,
Chamou-se
Guido Guerra, e foi na vida
39
Por esforço e prudência reverendo.
A
Tegghiaio Aldobrandi, que em seguida
Me
vai, por sua voz, por seus bons feitos
42
Devera ser a pátria agradecida.
Eu
que também da pena sofro efeitos
Jacopo
Rusticucci fui: da esposa
43
O maior mal causaram-me os defeitos”. —
Se
houvesse amparo à chuva pavorosa
(Virgílio
o consentira), eu me lançara
48
Entre eles, da alma na expansão piedosa;
Porém
naqueles fogos me abrasara,
Sobrepujou
temor vivo desejo,
51
Que de abraçá-los súbito me entrara.
“Não
desdém, mas piedade neste ensejo,
Que
não se extinguira, me tem movido”
54
Lhes disse — “o padecer em que vos vejo,
“Tanto
que o Senhor meu há proferido
Palavras,
que a presença me indicaram
57
De almas quais sois neste lugar temido.
“Da
vossa terra sou: sempre exaltaram
Meu
apreço e o dos que vos conheceram
60
Ações que os nomes vossos tanto honraram.
“Por
meu Guia veraz esperançado,
Deixo
o fel por doçura permanente
63
Tendo primeiro o centro visitado”. —
“Que
no teu corpo a vida longamente
Persista!”
— a sombra disse. — “Dure a fama
66
Do nome teu com lume resplendente!
“Na
pátria nossa inda revive a flama
Da
honra, do valor, que ali brilhara,
69
Ou de todo a expeliu ódio que infama?
“Pois
Guilherme Borsiere, que baixara,
Há
pouco, e vai chorando nesta ardência,
72
Cruciou-nos contando o que notara”. —
“Íncolas
novos, súbita opulência,
—
Florença, orgulho e vícios te acenderam,
75
De que tu própria temes a influência!” —
Gritei
alçando a fronte: e os três, que me eram
Atentos,
à resposta se encararam,
78
Como se essas verdades lhes prouveram.
“Se
tão pouco te custa” — me tornaram —
“Sempre
aos outros expor teu pensamento,
81
Feliz tu! Vozes tais assaz te honraram.
“E,
pois, voltando a luz do firmamento,
Se
alfim saíres desta estância horrente,
84
Quando — “Lá fui!” — disseres, de contente,
“Nos
olvidar não deixa a humana gente”. —
Então,
rompendo o círculo, fugiram,
87
Como se asas tiveram, velozmente.
Em
menos tempo aos olhos se esvaíram
Do
que proferir amen se gasta.
90
Logo aos passos do Mestre os meus seguiram.
Dali
distância curta nos afasta,
Eis
da água os sons ouvimos, tão de perto,
93
Que a voz forçar para se ouvir não basta.
Como
o rio que, no álveo próprio aberto,
Em
Veso nasce e vai para o oriente,
96
Ao lado esquerdo do Apenino, e ao certo
Aquaqueta
se chama, da eminente
Parte
enquanto não desce, mas, tomando
99
Nome diverso em Forli de repente,
Rebomba
e cai pela quebrada, quando
Acerca-se
a S. Bento, o grão mosteiro
102
Que dar a mil pudera asilo brando:
Assim
desde um penhasco sobranceiro
Da
água rubra troava alto estampido,
105
Que fora de surdez risco certeiro.
De
uma corda eu me achava então cingido
Com
que outrora prender quis a pantera,
108
De pêlo em malhas várias repartido.
Que
a tirasse Virgílio me dissera:
Eu
descingi-me presto, lha entregando
111
Enrolada, como ele prescrevera.
Então
ele à direita se voltando,
A
distância da borda alcantilada
114
Lançou-a longe para o abismo infando.
—
“Àquela ação não de antes praticada,”
—
Pensei — “há de seguir-se estranho efeito,
117
Que do Mestre a atenção tem despertada”. —
Quanta
cautela deve haver e jeito,
Tratando-se
com quem vê não somente
120
Os atos, mas também o que há no peito!
—
“Surgirá” — disse o Mestre — “brevemente
O
que espero: o que tens no pensamento
123
Logo aos teus olhos ficará patente.”
Verdade,
que pareça fingimento,
Evita
proferir homem discreto:
126
Sofre desar, de culpa estando isento.
Nada
posso omitir, leitor dileto:
Desta
comédia pelos cantos juro
129
(Sejam assim de longo aplauso objeto!)
Que
subir por aquele ar grosso, escuro
Nadando
vi figura temerosa
129
Ao peito mais intrépido e seguro:
Tal
quem desceu pela onda perigosa
A
desprender de ocultos embaraços,
Lá
no fundo, a fateixa vagarosa,
136
Subindo, encolhe as pernas, tende os braços.
38.
Guido Guerra, florentino, combateu em Montaperti. — 40. Tegghiaio Atdobrandi,
também patriota florentino. — 44. Jacopo Rusticucci, valoroso cavaleiro
florentino que combateu também na batalha de Montaperti. — 70. Guilherme
Borsiere, gentil-homem florentino. — 135. Fateixa, pequena âncora.
CANTO
XVII
Enquanto
Virgílio fala com Gerion, para convencer essa horrível fera a levá-los ao fundo
do abismo, Dante se aproxima das almas dos violentos contra a arte. Dante
reconhece alguns deles. A cada um pende do peito uma bolsa na qual são
desenhadas as armas da sua família. Volta depois o Poeta para o lugar onde está
Virgílio, que assentado já sobre o dorso de Gerion, põe-no diante de si, e
assim descem ao oitavo círculo.
“EIS
a fera, que a horrenda cauda enresta,
Que
arneses, montes, muros atravessa
3
E com seu bafo impuro o mundo empesta!”
Assim
Virgílio a me falar começa.
Para
acercar-se logo lhe acenava
6
Ao marmóreo anteparo que ali cessa.
Da
fraude o vulto imundo aproximava!
A
cabeça avançou e o torpe busto,
9
Porém pendente a cauda lhe ficava
A
cara assomos tinha de homem justo,
Tanto
era o parecer beni’no e brando!
12
No mais serpe, movia horror e susto.
Grandes,
hirsutos braços dilatando,
Alçava
peito, ilhais, dorso malhados,
15
Mil rodelas e nós se entrelaçando.
Mais
cores nos estofos recamados
Tártaros,
Turcos nunca misturaram,
18
Nem Aracne em tecidos variegados.
Como
os batéis, que à praia se amarram,
No
mar a popa têm, a proa em terra;
21
E, como em regiões, que se deparam
Sob
o voraz Tudesco, a fazer guerra
Embosca-se
o castor: assim se via
24
O monstro à orla, que as areias cerra.
No
ar a extensa cauda revolvia;
E
a venenosa ponta bipartida,
27
Do escorpião qual dardo, se erigia
“Té
onde a fera atroz jaz estendida.
Convém
seja o caminho desviado
30
Da senda” — disse o Vate — “prosseguida” —
Descendo,
pois, pelo direito lado
Para
o fogo fugir e a areia ardente
33
Passos dez pela borda hemos andado.
Chegados
nós de Gerião em frente,
Um
tanto além sentado um bando achamos
36
Na areia, perto desse abismo ingente.
—
“Do recinto por teres, em que estamos” —
Virgílio
disse — “a experiência inteira
39
A sorte vai saber dos que avistamos.
“Os
discursos, porém, filho aligeira.
Entanto
impetrarei da fera infanda
42
Que prestar-nos seus ombros fortes queira”. —
Só
pela borda, como o Vate manda,
Vou
do círculo sétimo seguindo,
45
Dos mestos pecadores em demanda.
A
dor, que brota em lágrimas, sentindo,
Socorre-se
das mãos a aflita gente
48
Contra o solo e o vapor, que está caindo.
Assim
lebréus, durante a calma ardente
Dos
dentes e unhas valem-se, mordidos
51
De tavões por enxame impertinente.
Quando
encarei nos rostos doloridos
De
alguns, que os fogos tanto cruciavam,
54
Que eram todos achei desconhecidos.
Bolsas
pendentes dos seus colos stavam,
Pelos
sinais distintas, pelas cores:
57
Contemplando-as, seus olhos se enlevavam.
E
vi já me acercando aos pecadores
Bolsa,
na qual em campo de ouro havia
60
Azul, que era leão nos seus lavores,
A
vista, que já noutra se embebia,
Em
sangüíneo rubor ganso eu notava,
63
Que a brancura do leite escurecia.
Grávida,
azul jardava um, que ostentava,
Broslada
sobre cândida escarcela,
66
— “Que buscas neste abismo?” perguntava.
“Retira-te!
Se a vida gozas bela,
Sabe
que à sestra mão Vitaliano,
69
Vizinho meu terá condigna sela.
“Entre
estes Florentinos sou Paduano;
A
todo instante aturdem-me os ouvidos,
72
Bradando: — O nobre venha, o soberano,
“Que
os três bicos na bolsa traz sculpidos”. —
Depois,
torcendo a boca, a língua tira,
75
Qual boi, que os beiços lambe, ressequidos.
Não
querendo mover desgosto ou ira
Em
quem mor brevidade me ordenara,
78
Os mesquinhos deixei: assaz ouvira.
Disse-me
o Guia então, que cavalgara
O
dorso do animal fero e possante:
81
“Sê forte, a tudo o ânimo prepara!
“Se
desce em tal escada de ora avante;
Sobe-te
ao colo; ao meio irei sentado:
84
Que não te ofenda a cauda penetrante.”
De
quartã qual doente, que, chegado
Supondo
o acesso, lívido estremece
87
Somente ao ver lugar fresco, assombrado
Tal
quando ouvi, meu peito, desfalece.
Ante
o Mestre dá-me o pejo alento:
90
Bom amo o servo esforça que esmorece.
Já
sobre a espalda do animal cruento,
Quero
ao vate gritar: “Senhor, me abraça!”
93
A voz, porém, não corresponde ao intento.
Ele,
que a mente espavorida e lassa
Em
circuito mais alto me animara,
96
Sustendo-me, nos braços seus me enlaça,
E
disse a Gerião: “Vai, mais não pára.
Em
circuitos largos sem ter pressa:
99
Na carga, que ora tens, nova repara!” —
Bem
como esquife, que voar começa,
Manso
e manso recua: assim moveu-se.
102
Quando ao largo sentiu-se, eis endereça
A
cauda aonde o peito seu tendeu-se.
Meneando-a,
a retesa como enguia;
105
Das patas agitado o ar fendeu-se.
Feton,
quando as rédeas já perdia,
Ao
ver do céu o incêndio, ainda aparente;
108
Ícaro, quando lhe cair sentia
Da
cera cada pluma ao sol ardente,
Gritando
o pai; — “Ai! filho! Erraste a strada!”
111
De pavor não se entraram mais veemente,
Do
que eu nessa viagem desusada,
No
ar quando me vi, quando enxergava
114
Só a cerviz da fera maculada:
Com
tardo movimento ela nadava,
Que
gira e baixa pelo vento eu sinto
117
Que em torno ao rosto e abaixo se agitava.
Já
ouvia à direita bem distinto,
Troar
da catadupa fragorosa:
120
Olhos inclino ao fundo do recinto.
A
mente estremeceu mais temerosa
Ao
chamejar de fogo, ao som de pranto:
123
Encolhi-me ante a cena pavorosa.
De
que descia então, com mor espanto,
Pelos
males, que via, fiquei certo,
126
A mim se avizinhar a cada canto.
Qual
falcão que no ar pairava incerto,
Sem
ver reclamo ou cobiçada presa
129
Perdida a esp’rança ao caçador esperto,
Descamba,
fatigado e sem presteza,
Em
voltas mil por onde se arrojara,
132
E longe pousa, ou de ira, ou de tristeza:
Tal
Gerião, enfim, no fundo pára
Ao
pé da penedia alcantilada,
Livre
do peso já que carregara,
136
Sumiu-se como seta disparada.
18.
Aracne, personagem da mitologia grega, transformada por Minerva em aranha. —
68. Vitaliano, usurário paduano, ainda vivente. — 72. O nobre venha, Giovanni
Baiamonti, florentino, que tinha como brasão três bicos de pássaro. — 106.
Feton, filho de Apolo, que, no guiar o carro do Sol, precipitou-se. — 108.
Ícaro, filho de Dédalo, que voando com as asas de cera fabricadas pelo pai,
precipitou ao solo.
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