Divina Comédia - Inferno XII-XVII

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CANTO XII



O Minotauro está de guarda ao sétimo círculo. Vencida a ira dele, chegam os Poetas ao vale, em cujo primeiro compartimento vêem um rio de sangue fervendo, no qual são punidos os que praticaram violências contra a vida ou as coisas do próximo. Uma esquadra de Centauros anda em volta do paul vigiando os condenados, frechando-os se tentam sair do rio de sangue. Alguns desses Centauros pretendem deter os Poetas, porém Virgílio os domina, conseguindo que um deles os escolte e transporte na garupa a Dante. Na passagem o Centauro, que é Nesso, fala a respeito dos danados que sofrem a pena no rio de sangue.



DA descida era o passo tão fragoso
E tal por quem lá estava à guarda e atento,
3 Que se fazia à vista pavoroso.

Como a ruína, que daquém de Trento,
O Ádige feriu, por terremoto
6 Ou por faltar de chofre o fundamento;

Do viso ao val do monte, que foi roto,
Tão derrocada vê-se a penedia,
9 Que a descê-la o caminho é quase imoto.

A ribanceira assim nos parecia.
E à borda do penedo fracassado
12 De Creta o monstro infame se estendia,

Da falsa vaca torpemente nado.
Apenas viu-nos, se mordeu fremente,
15 Como quem pela raiva é devorado.

“Cuidas” — bradou-lhe o sábio incontinente —
“Ser de Atenas o príncipe, o que à morte
18 Lá sobre a terra te arrojou valente?

“Arreda, bruto! Que este é de outra sorte;
Da tua irmã não recebera ensino;
21 De vós outros vem ver a pena forte”.

Qual touro desprendido, quando o tino
Mortal golpe lhe rouba, que não pode
24 Correr, mas salta a vacilar mofino:

Assim o Minotauro. O Mestre acode
Dizendo-me: “Demanda presto a entrada
27 E desce, enquanto em vascas se sacode”. —

A quebrada descíamos formada
De pedras soltas; cada qual, movida,
30 Cedia, em sendo por meus pés calcada.

E eu cismava. Ele disse: — “Tens sorvida
A mente na ruína, que do horrendo
33 Monstro a ira defende já vencida.

“Deves saber que, de outra vez descendo
Até o extremo lá do baixo inferno,
35 Esta rocha não vi, como a estás vendo,

“Mas, pouco antes de vir se bem discerno,
Aquele que há tomado a grande presa,
39 A Dite, lá no círculo superno,

“Deste val tremeu tanto a profundeza,
Que sentisse pensei todo o universo
42 O amor, com que alguém diz ter certeza

“De que ao caos muita vez será converso.
Foi aqui, noutras partes, nesse instante,
45 Roto o velho penhasco em treva imerso.

“Mas olha o vale: o rio é não distante
De sangue, onde verás fervendo aquele,
48 Que violência exerceu no semelhante.

“Ó ira louca, ó ambição, que impele
Na curta vida nossa, ao inferno arrasta
51 E para sempre nos submerge nele!” —

Eis uma cava divisei mui vasta,
Que abrangia, arqueada, o plano inteiro,
54 Como dissera quem do mal me afasta.

No espaço, a que o penhasco é sobranceiro,
Centauros correm, setas agitando,
57 Como soíam no viver primeiro.

Descer nos vendo, pára o ardido bando.
Três de entre eles então nos demandaram,
60 Os arcos e arremessos preparando.

Os brados de um de longe nos soaram:
— “Vós, que desceis, dizei a pena vossa;
63 De lá falai, ou tiros se disparam!” —

Virgílio respondeu: — “Resposta nossa
Terá Quiron de perto, sem demora.
66 Sempre te dana a pressa que te apossa”. —

Tocou-me e disse: — “Quem nos fala agora
É Nesso, o que morreu por Dejanira;
69 Mas se vingou de quem fatal lhe fora.

“Esse do meio, que o seu peito mira,
Aio de Aquiles, é Quiron famoso;
72 Esse outro é Folo, sempre aceso em ira”. —

Aos mil em volta ao rio sanguinoso
As almas seteavam, que excediam,
75 Mais do que é dado, o líquido horroroso.

Àqueles monstros que ágeis se moviam,
Chegamo-nos. Quiron com seta ajeita
78 Os cabelos, que os lábios lhe encobriam.

Quando desta arte a larga boca afeita,
Disse à companha: — “Haveis já reparado
81 Que move aquele tudo, em que os pés deita?

“Nunca assim pés de morto hão caminhado”.
O Guia meu, que junto já lhe estava
84 Do peito, onde era um ser noutro enleado,

— “Vivo está, vem comigo” — lhe tornava —
“A visitar o val maldito, escuro
87 Para cumprir dever, que lho ordenava.

“Deixando de cantar o hosana puro
Alguém me há cometido o cargo novo.
90 Não é ladrão, nem eu esp’rito impuro:

Em nome do poder, por quem eu movo
Os passos meus em tão medonha estrada,
93 Envia algum, que escolhas no teu povo,

“Por nos mostrar a parte acomodada
Ao vau, e no seu dorso haver transporte
96 Quem não é sombra ao vôo aparelhada”.

Quiron volveu-se à destra e a Nesso forte
— “Torna atrás” — disse — “e serve-lhes de guia:
99 Que outro bando o caminho lhes não corte!” —

Já partimos na fida companhia,
As ondas costeando rubras, quentes,
102 Donde agudo estridor ao ar subia.

Té os cílios no sangue os padecentes
Eu vi. Disse o Centauro: — “São tiranos
105 Truculentos e em roubo preminentes.

“Chora-se aqui por feitos desumanos.
Alexandre aqui está, Dionísio antigo
108 Que gemer fez Sicília tantos anos.

“De negra coma, aqui sofre o castigo
Azzolino; e o que está, louro, ao seu lado
111 Obizzio d’Este, ao qual (verdade eu digo)

“Roubara a vida o pérfido enteado”. —
E o Vate, a quem voltei-me, assim dizia:
114 — “O segundo lugar me é reservado”. —

Pouco além parou Nesso: olhar queria
Uma turba, que, estando submergida,
117 Toda a cabeça para fora erguia,

Disse, indicando uma alma retraída:
“Perante Deus um coração ferira,
120 Que inda Londres venera estremecida”. —

A cabeça vi de outros, que subira
Do rio à superfície e o inteiro busto,
123 Suas feições no mundo eu distinguira:

Ia baixando o sangue até que a custo
Os pés cobria a quem passar quisesse:
126 O fosso ali vencemos já sem custo.

“Se desta parte o borbulhão parece
Do rio escassear, eu te asseguro”
129 — Disse Nesso — “que mais engrossa e desce

“Na parte oposta até juntar-se ao escuro
Pego em que, como hás visto, a tirania
132 As penas dá no seu tormento duro.

“A divina justiça lá crucia
Esse Átila, que açoite foi da terra,
135 Pirro e Sexto; e redobrar-se a agonia

“Dos dois Renatos, que tamanha guerra
Fizeram nas estradas, salteando,
— O Pazzo e o de Corneto”. — E a fala cerra.

139 Voltou depois do rio o vau passando.



12-13. De Creta o monstro infame, o Minotauro, nascido de um touro e de Pasifae, o qual foi morto por Teseu. — 64. Quiron, centauro morto por Hércules, quando do rapto de Dejanira. — 107 Alexandre, tirano de Fere na Tessália ou Alexandre de Macedônia. — Dionísio, tirano de Siracusa. — 110. Azzolino, Ezzelino III de Romano, tirano da Marca Trevisana. — Obizzio, d’Este, tirano de Ferrara. — 118-120 Uma alma, etc., Guido de Monfort, que matou a Arrigo, irmão de Eduardo I, rei da Inglaterra, cujo coração foi colocado num monumento. — 134. Átila, rei dos Hunos, chamado o flagelo de Deus. — Pirro, filho de Aquiles que matou a Príamo.

CANTO XIII



Os dois Poetas entram no segundo compartimento, onde são punidos os violentos contra si mesmos e os dilapidadores dos próprios bens. Os primeiros são transformados em árvores, cujas negras folhas as Hárpias dilaceram; os outros são perseguidos por cães famintos que os despedaçam. Dante encontra Pedro des Vignes, de quem ouve os motivos pelos quais se suicidou e as leis divinas em relação aos suicidas. Vê depois o senense Lano e o paduano Jacob de Sant’Andréa. Ouve, enfim, de um suicida florentino, qual é a causa dos males da sua pátria.



NÃO stava ainda Nesso do outro lado,
Quando nós por um bosque penetramos,
3 Dos vestígios de passos não marcado.

Não fronde verde, mas escura, ramos
Não lisos, mas travados e nodosos,
6 Não pomos, puas com veneno achamos.

Por silvados mais densos, mais umbrosos,
Do Cecina a Corneto, a besta brava,
9 Não foge, agros deixando deleitosos.

Das Hárpias o bando aqui pousava.
Que expeliram de Strófade os Troianos,
12 Vaticinando o mal, que os aguardava.

Asas têm largas, colo e rosto humanos,
Garras nos pés, plumoso e ventre enorme,
15 Soam na selva os uivos seus insanos.

E disse o Mestre: “Convém já te informe
Que o recinto segundo vais entrando,
18 Onde verás spetáculo disforme,

“Até que ao areal chegues infando.
Atenta! E darás fé à narrativa,
21 Que fiz, ainda lá no mundo estando”.

Em toda parte ouvi grita aflitiva:
Como não via quem assim gemesse,
24 Parei e a torvação se fez mais viva.

Creio que o Mestre cria então que eu cresse
Que esses lamentos enviava aos ares
27 Uma turba, que aos olhos se escondesse;

Pois disse-me: “De um tronco se quebrares
Um só raminho, ficarás ciente
30 Desse erro em que se enleiam teus pensares”. —

O braço estendo então e prontamente
Vergôntea quebro. O tronco, assim ferido
33 “Por que razão me arrancas?” diz fremente.

De sangue negro o ramo já tingido,
“Por que me rompes?” — prosseguiu gemendo —
36 Assomos de piedade nunca hás tido?” —

“Fui homem, hoje o lenho, que estás vendo!
Mais compassiva a tua mão seria
39 Se alma aqui fosse de um dragão tremendo”.

Como acha verde, quando se incendia
Num extremo s’estorce, no outro estala,
42 Chiando e a umidade fora envia:

Daquela arvora assim brotava a fala,
E o sangue; a minha mão já desprendera
45 O ramo, e, entanto, o horror no peito cala.

“Se de antes ele acreditar pudera”
Lhe torna o sábio Mestre “alma agravada,
48 O que eu nos versos meus lhe descrevera,

“Por te ferir sua mão não fora alçada.
Não crera eu mesmo, e tanto que o induzira
51 Ao feito, que me pesa e desagrada.

“Diz-lhe quem foste e as dúvidas lhe tira.
O mal te compensando, a fama tua
54 Há de avivar no mundo, a que retira”. —

E o tronco: “Alívio tanto à dor, que atua,
Causais, que de bom grado eu já explico:
57 Ao triste dai que a mágoa exprima sua.

Fui quem do coração de Frederico
As chaves tive e usei com tanto jeito,
60 Fechando e desfechando que era rico

“Da fé com que a mim só rendeu seu peito
No glorioso cargo fui constante,
63 Força, alento exauri por seu proveito.

“A torpe meretriz, que, a todo instante
Ao régio paço olhos venais volvendo,
66 Morte comum, das cortes mal flagrante,

“Contra mim ódio em todos acendendo,
Por eles acendeu iras de Augusto,
69 Que honras ledas tornou-me em luto horrendo.

“Ressentindo-me então do mundo injusto,
Por fugir seus desdéns, buscando a morte,
72 Comigo iníquo fui eu, que era justo.

“Pelo tronco em que peno desta sorte,
Que jamais infiel hei sido, juro,
75 Ao Rei meu, que houve a glória por seu norte,

“De vós o que voltar à luz adjuro
Que a memória me salve ao nome honrado,
78 Que vulnerou da inveja o golpe duro”. —

O vate inda esperou. — “Pois se há calado”. —
Disse-me “fala, se tu mais desejas
81 E pede-lhe: do tempo és apressado”. —

Tornei: “Tu mesmo inquires quanto vejas
Mais convir-me; que eu sinto-me inibido
84 Por mágoas, que em minha alma são sobejas”.

Ele então: “— Se o desejo teu cumprido
For por este homem, nobremente usando,
87 Te apraza, encarcerada alma, ao pedido

“Nosso atender, e como nos mostrando
Se liga ao tronco o esp’rito e se é factível
90 Soltar-se um dia, o vínculo quebrando”. —

Soprou de rijo o lenho; e perceptível
Aquele som desta arte nos dizia:
93 — “Resposta breve dou quanto é possível.

“Quando os laços do corpo uma alma ímpia
Destrói por si, do seu furor no enleio
96 Ao círc’lo sete Minos logo a envia.

“Na selva tomba e aonde acaso veio,
E como o seu destino lhe consente,
99 Aí, qual grão germina de centeio,

“Vai crescendo até ser árvore ingente:
As Hárpias, que a fronde lhe devoram,
102 Causam-lhe dor, que rompe em voz plangente.

“Hemos de ir onde os corpos nossos moram,
Como as outras, mas sem que os revistamos,
105 Mor pena aos que em perdê-los prestes foram.

“Arrastados serão por nós: aos ramos
Pendentes ficarão nesta floresta
108 Nos troncos, em que, assim, vedes, penamos”. —

Ouvíamos ainda a sombra mesta,
De mais dizer cuidando houvesse o intento.
111 Eis sentimos rumor, que nos molesta.

Assim monteiro, à caça pouco atento,
Do javardo e dos cães ouve o estrupido
114 E das ramadas o estalar violento.

Súbito vejo à esquerda, espavorido,
Fugindo esp’ritos dois nus, lacerados,
117 Ramos rompendo ao bosque denegrido.

“Ó morte!” um clama — “acode aos desgraçados!”
O segundo, que tardo se julgava:
120 “Ninguém, ó Lano, os pés tanto apressados

“De Toppo nas refregas te observava!”
Porém, de todo já perdido o alento,
123 Numa sarça acolheu-se que ali stava.

Corria, enchendo a selva, em seguimento
De famintas cadelas negro bando,
126 Quais alões da cadeia ao todo isento

A sombra homiziada se enviando,
A fez pedaços a matilha brava,
129 E logo após levou-os ululando.

Então meu Guia pela mão me trava,
Conduz-me à sarça, que se em vão carpia
132 Pelas roturas, que o seu sangue lava.

“Ó Jacó Santo André!” triste dizia —
“Podia eu ser-te acaso amparo certo?
135 Em mim por crimes teus que culpa havia?” —

Disse-lhe o Mestre, quando foi mais perto:
“Quem és tu, que o teu sangue e mágoas exalas
138 Por golpes tantos, de que estás coberto?” —

Tornou-lhe: “Ó alma que dessa arte falas
E tu que o dano vês, que me separa,
141 Da fronde minha, agora amontoá-las

“Dignai-vos junto à rama, que as brotara.
Na cidade nasci que por Batista
144 Deixou prisco patrão, que da arte amara

“Sempre pelos efeitos a contrista.
E se do Arno na ponte não restasse
147 Um vestígio, que traz seu culto à vista

“Talvez ela à existência não tornasse,
E quem das cinzas, que Átila há deixado,
Levantou-a os esforços malograsse.

151 “Na minha própria casa hei-me enforcado”. —



58. Fui quem do coração de Frederico etc., Pedro des Vignes, secretário de Frederico II que se suicidou por ter sido acusado de trair o seu rei. — 118. Um clama etc., Lano de Siena, que morreu em Pieve del Toppo, na batalha entre Senenses e Aretinos. — 119. O segundo etc., Giacomo di S. Andrea, morto por Ezzelino de Romano. — 143. Por Batista etc., Florença, antes de tornar-se cidade protegida por S. João Batista, tinha como protetor Marte, do qual restava uma estátua sobre a ponte Vecchio.

CANTO XIV



O terceiro compartimento no qual agora chegam os Poetas é um campo de areia ardente, devastado por grandes chamas de fogo. Aí estão os violentos contra Deus, contra a natureza e contra a arte. Entre os primeiros está Capaneo, que desafia a Deus. Seguindo, Dante e Virgílio chegam a um regato sangüíneo. Deste e dos outros rios do Inferno Virgílio narra a origem misteriosa.



DE amor do pátrio ninho comovido,
Essas dispersas folhas reunindo,
3 À sarça as dei, que tinha a voz perdido.

Ao limite, dali, fomos seguindo,
Em que parte o recinto co’ terceiro,
6 Onde a justiça horrível stá punindo.

Para expressar-lhe o aspecto verdadeiro,
Eu digo que à charneca então chegamos,
9 De plantas nua em seu espaço inteiro.

Da dor a selva a cerca dos seus ramos,
Como o fosso a torneia sanguinoso:
12 Ali, rente co’a borda, os pés firmamos.

O plaino era tão árido e arenoso,
Como o que de Catão os pés outrora
15 Na jornada calcaram fadigoso.

Ó vingança de Deus, quem não te adora
Nos tremendos efeitos meditando,
18 Que eu próprio olhei, que a minha voz memora!

De almas nuas eu via infindo bando,
Por modos diferentes torturadas,
21 Miseráveis, mesquinhas pranteando.

Jaziam sobre o dorso umas deitadas,
Outras, dobrando os membros, se assentavam,
24 Muitas andavam sempre aceleradas.

Maior a turba destas se mostrava,
Menor a que, prostrada no tormento.
27 Maior dor nos lamentos denotava.

Largas flamas com tardo movimento
Choviam do areal em todo o espaço,
30 Qual neve em serra, quando é mudo o vento.

Na Índia sobre o exército, já lasso,
Fogos cair viu Alexandre outrora,
33 No chão ardendo livres de embaraço.

Que aos pés no solo os calquem sem demora
Suas falanges avisado ordena:
36 Matá-los um por um fácil lhes fora.

Assim baixava, para agravo à pena,
Lume eterno que à areia se prendia,
39 Como à isca a fagulha mais pequena.

Cada qual sem repouso se estorcia,
A um lado e a outro os braços revolvendo
42 A cada chama, que do ar chovia.

“Mestre” — falei — “que vais tudo vencendo,
Somente exceto a legião furente,
45 Que em Dite a entrada estava-nos tolhendo,

“Diz quem seja a grã sombra, que não sente,
Ao parecer, o incêndio, e não domado
48 Pela chuva, já rápido, insolente?” —

Reconhecendo o próprio condenado
Que da minha pergunta fora objeto,
51 “Morto sou qual fui vivo!” clama irado.

“Que Jove canse o armeiro seu dileto,
De quem tomou fremente o agudo raio
54 Para em mim saciar rancor abjeto;

“Que os seus cíclopes sintam já desmaio
De Mongibello na oficina negra,
57 Aos gritos — “Bom Vulcano, acode ou caio!” —

“Como fez na peleja lá de Flegra;
Que me fulmine de ódio e sanha cheio:
60 No gozo da vingança em vão se alegra”. —

Virgílio então, com voz, como não creio
Lhe ter ouvido, sonorosa e forte,
63 Bradou-lhe: “Capaneu, pois no teu seio

“Não mitiga a soberda a própria morte,
Sofre mor pena; igual não há castigo
66 Ao que a raiva te inflige desta sorte!” —

Para mim se voltou; com gesto amigo
Falou: — “Dos Reis que Tebas sitiaram
69 Foi um; de Deus se declarara imigo.

“Os crimes seus no inferno se agravaram;
Já disse-lhe, as blasfêmias, os furores
72 Digno prêmio em seu peito lhe deparam.

“Vem agora após mim; pelos fervores
Não caminhes da areia incandescente;
75 Da selva ao longo evitas-lhe os ardores”. —

Fomos andando, cada qual silente,
Até onde jorrar do bosque eu via
78 Rubro arroio, que lembro inda tremente.

Do Bulicame qual o que saía,
Das pecadoras em serviço usado:
81 Tal pela adusta areia este corria.

As margens e orlas são de cada lado
Feitas de pedra e assim também seu leito:
84 Caminho ali notei ao passo azado.

“De quanto aqui te conhecer hei feito,
Depois que atrás deixamos essa porta,
87 A cujo ingresso todos têm direito,

“Não se há mostrado à tua vista absorta
Maravilha que iguale a desta veia,
90 Em que a flama adurente fica morta”. —

O Mestre diz e assim desejo ateia
De rogar-lhe me preste esse alimento,
93 Que excitado, o apetite haver anseia.

“Do mar em meio jaz” — ouvi-lhe atento —
“Destruído país, Creta afamada.
96 Com seu rei foi do mal o mundo isento.

“Alça-se ali montanha outrora ornada
De fontes e verdor: chama-se Ida:
99 Erma está, como cousa desprezada.

“Foi ao filho pra berço preferida
De Réia, que abafava o seu vagido
102 Fazer mandando grita desmedida.

“Nas entranhas do monte um velho erguido
Está: voltando à Damieta as costas,
105 Como a espelho, olha Roma embevecido.

“De ouro faces e fronte são compostas,
De pura prata são braços e peito,
108 Enéias do busto as partes bem dispostas.

“De ferro estreme tudo o mais foi feito,
O pé direito exceto, que é de argila,
111 Mas o corpo sustém, sendo imperfeito.

“Salvo do ouro, do mais sempre destila
De lágrimas por fenda crebro fio,
114 Que fura a gruta e rápido desfila.

“Aos negros vales vem correndo em rio,
Forma Stige, Aqueronte e Flegetonte,
117 Desce depois neste canal esguio

“Até do inferno o fundo, aonde é fonte
Do Cocito. O que o rio acaso seja
120 Verás: mister não é que ora te conte”. —

— “Se desde o nosso mundo ele serpeja,
Dize, ó Mestre, a razão por que a torrente
123 Só neste abismo lôbrego se veja”. —

“É circular este lugar horrente,
E posto haja vencido extenso trato,
126 Descendo tu à esquerda, inteiramente

“Não hás feito inda ao círc’lo o giro exato.
Não revele o teu rosto maravilha.
129 Novas cousas em vendo e estranho fato”. —

Ainda eu perguntei: — “Por onde trilha
O Flegetonte e o Letes? De um te calas,
132 E do outro a veia é dessa origem filha”. —

Tornou: — “Muito me agrada quanto falas;
Da água rubra o fervor, porém, solvera
135 Uma dessas questões, que me assinalas.

“Do inferno fora o Letes ver espera:
Na linfa sua as almas vão lavar-se
138 Depois que a penitência o perdão gera”. —

Disse depois: “É tempo de deixar-se
A selva; os passos meus sempre acompanha,
Pela margem caminho há para andar-se.

142 Do fogo ali se extingue toda sanha”. —



32. Alexandre, alusão a uma aventura de Alexandre Magno. — 55. Cíclopes, gigantes com um só olho no meio da testa, que fabricavam armas para Júpiter. — 56. Mongibello, o vulcão Etna, na Sicília. — 63. Capaneu, um dos sete reis que sitiaram Tebas. — 79. Bulicame, fonte de água quente perto de Roma. — 101. Réia, mulher de Saturno e mãe de Júpiter. — 103-105. Velho de Creta, símbolo da humanidade e, segundo outros, da monarquia, que, em princípio boa e reta, vai depois degenerando.

CANTO XV



Prosseguindo os Poetas, encontram um grupo de violentos contra a natureza. Entre estes está Brunetto Latini, que reconhece o discípulo e lhe pede para aproximar-se dele, a fim de conversarem. Falam de Florença e das desventuras reservadas a Dante. Brunetto dá ao Poeta ligeiras notícias a respeito das almas que estão danadas com ele e foge para reunir-se a elas.



POR uma dessas margens empedradas
Imos: vapor do rio resguardava
3 Das chamas o álveo e as bordas elevadas.

Como do mar temendo a força brava
De Bruge a Cadsand, Flamengos fazem
6 Os diques, com que o mal se desagrava;

Ou como o dano atalha, que lhe trazem
Do Brenta as invasões de Pádua a gente,
9 Se em Quiarentana os gelos se desfazem,

Assim as bordas desse rio horrente,
Posto altura e grossura lhes não desse
12 Iguais, quem quer que fosse artista ingente.

A selva já distante de nós era
Tanto, que eu divisá-la não podia,
15 Quando os olhos por vê-la atrás volvera,

Eis encontramos multidão sombria,
Que a margem costeava, nos olhando,
18 Como sói caminhante, ao fim do dia,

Que vai, por lua nova, outro encarando:
Para nos ver os cílios contraindo,
21 Qual a agulha o artesano aparelhando.

Assim, de mira à turba nós servindo,
Conhecido fui de um que me travava
24 Da roupa — “Ó maravilha!” — repetindo.

Quando o seu braço para mim se alçava,
Atentei-lhe no rosto requeimado;
27 Posto que demudado, não vedava

Que de mim fosse nas feições lembrado.
À sua face inclinando a mão, lhe digo,
30 — “Messer Brunetto! vós aqui!” — torvado.

“Filho meu! complacente sê comigo!
Vir Brunetto Latini ora consente,
33 Deixando a turba, um pouco assim contigo!” —

Tornei: — “muito vos rogo; e que me assente
Convosco se quereis, prazendo ao guia
36 Dos passos meus, assentirei contente”. —

— “Se um momento um de nós” — me respondia —
Aqui parasse, imóvel anos cento,
39 Pelo fogo ferido jazeria.

“Caminha: que eu te irei no seguimento.
Depois hei de juntar-me à companhia
42 Dos que pranteiam no eternal tormento”. —

Eu da estrada a descer não me atrevia
Por ir com ele; mas a fronte inclino
45 Reverente; e, falando prosseguia.

— “Que fortuna” — me disse — “ou que destino
Antes da morte aqui te há conduzido?
48 De quem recebes na jornada ensino?”

— “Antes de haver da idade o tempo enchido
Sobre a terra na vida sossegada;
51 Num vale” — respondi — “fiquei perdido.

“Ontem costas lhe dei por madrugada;
Ele acudiu-me, quando atrás voltava,
54 E me conduz assim por esta estrada”. —

— “Se bem vaticinei, quando gozava,
Da vida bela, glorioso porto
57 Te há de o teu astro conduzir” — tornava.

“Se antes do tempo eu não stivesse morto.
Vendo que tanto o céu te era benigno,
60 Te dera nos trabalhos o conforto.

“Mas esse ingrato povo é tão maligno,
Que outrora de Fiesole viera
63 E tem de penha o coração ferino,

“Em ti, por seres bom, mal considera.
É justo: que entre acerbos sovereiros
66 Crescer doce figueira não se espera.

“Velha fama os diz cegos, sempre useiros
Na soberba, na inveja, na avareza.
69 Deles te esquiva; em vícios são vezeiros.

“Te guarda a sorte de honras tal grandeza,
Que hás de ser dos partidos cobiçado;
72 Mas das garras lhes fica longe a presa.

“Ceve em si própria o fiesolano gado
Os instintos brutais; não toque a planta,
75 Que inda haja em tal nateiro germinado,

“E em que a semente ressuscite santa
Dos romanos, que ali restaram, quando
78 Teceu-se o ninho de malícia tanta”. —

— “Se o céu” — tornei — “meus votos escutando,
Deferisse, da vida o lume agora
81 Ainda aos olhos vos raiara brando;

“Que a doce imagem vossa inda memora
Saudosa a mente e o paternal desvelo
84 Com que me heis ensinado de hora em hora

“Como homem faz-se eternamente belo.
Enquanto eu vivo for, agradecido
87 Ao mundo bem patente hei de fazê-lo.

“O vaticínio vosso, reunido
A outro, há de explicar-me sábia Dama,
90 Quando à sua presença houver subido.

“E como a consciência me não clama,
Sabei que, quando a sorte avessa esteja,
93 A todo o mal sou prestes, que ela trama.

“O que ouvi não cuideis novo me seja:
Volva-se a roda como a sorte a lança,
96 Lavre a terra o vilão como deseja”. —

Então meu douto Mestre, que se avança,
Girando à destra e me encarando, disse:
99 “Bem compreende quem tem boa lembrança!” —

Não me vedou, porém, que eu prosseguisse
Na prática; e a Brunetto os mais famosos
102 Pedi que dos seus sócios referisse.

— “Alguns convém saber, mais numerosos
Em silêncio deixar louvável sendo:
105 Míngua o tempo aos discursos copiosos.

“Sabe, em suma, que clérigos havendo
Todos sido e letrados mui famosos.
108 Se mancharam num só pecado horrendo.

“Vão na turba daqueles desditosos
Acúrio e Prisciano; alguns protervos
111 Se ver quiseres, por tal lepra ascosos.

“Olha o que, como quis servo dos servos,
Pra Bacchiglione foi do Arno mudado
114 E ali deixou seus deformados nervos.

“Não mais dizer, nem ir posso ao teu lado,
Pois do areal já vejo de repente
117 Vapor novo surgir afogueado.

“Não devo andar com bando diferente.
O meu Tesouro eu muito te encomendo:
120 Nele inda vivo, e rogo isto somente”. —

Voltou-se; e foi tão rápido correndo,
Como os que correm pelo pálio verde
No campo de Verona, parecendo

124 Mais ser quem vence do que ser quem perde.



30. Messer Brunetto, Brunetto Latino, autor do “Tesouro”, e mestre de Dante. — 62 Fiesole, pequena cidade perto de Florença. — 110. Acúrcio, Francesco d’Accursio, jurisconsulto bolonhês. Prisciano, gramático de Cesaréia — 112. Olha o que, etc. Andréia de Mozzi, bispo de Florença e, depois, de Vicência.

CANTO XVI



Perto do limite do terceiro compartimento do sétimo círculo os Poetas encontram outro bando de almas de sodomitas, no qual se destacam três ilustres compatriotas de Dante. Reconhecendo-o, falam da decadência das virtudes políticas e civis de Florença. Chegam, depois à orla de outro precipício, onde a um sinal de Virgílio, sobe, voando pelos ares, uma figura estranhíssima.



EM lugar stava já donde se ouvia
Rumor, igual de abelhas ao zumbido,
3 De água, que noutro círculo caía:

Eis três sombras partir vi comovido,
Correndo, de uma turba que passava
6 Debaixo do martírio desmedido.

Vinham a nós, e cada qual gritava:
“Detém-te; por teus trajos se afigura
9 Seres alguém da nossa terra prava”. —

Ah! que chagas nos membros, na figura
O fogo lhes abria, novas e antigas!
12 Só recordando, eu sinto mágoa pura.

O mestre, que escutara — “Não prossigas!
Cumpre-te” — disse, o rosto me voltando, —
15 “Aguardando, lhes dar mostras amigas.

“Não estivesse o fogo dardejando,
Como o lugar requer, te caberia
18 Mais pressa do que estão manifestando”. —

Paramos. Renovando a vozeria
Um círc’lo junto a nós os três formaram,
21 Em que as mãos cada qual dos três unia.

Como atletas, que, nus, de óleo se untaram,
Mas, antes de lutar, dos adversários
24 No fraco atentam, no seu prol reparam:

Eles, se revolvendo em giros vários,
Olhavam-me em tal modo colocados,
27 Que os colos aos seus pés stavam contrários.

“Se a miséria, em que somos trateados,
Se o triste aspecto da tostada face
30 Te move a desdenhar súplices brados,

“Nossa fama o teu ânimo traspasse;
E pois, dize quem és que, ufano, o inferno
33 Calcas antes que a vida se finasse.

“Este, por quem os passos meus governo,
Escoriado e nu, que ora estás vendo,
36 Mais do que o crês no mundo foi superno.

“Da famosa Gualdrada o neto sendo,
Chamou-se Guido Guerra, e foi na vida
39 Por esforço e prudência reverendo.

A Tegghiaio Aldobrandi, que em seguida
Me vai, por sua voz, por seus bons feitos
42 Devera ser a pátria agradecida.

Eu que também da pena sofro efeitos
Jacopo Rusticucci fui: da esposa
43 O maior mal causaram-me os defeitos”. —

Se houvesse amparo à chuva pavorosa
(Virgílio o consentira), eu me lançara
48 Entre eles, da alma na expansão piedosa;

Porém naqueles fogos me abrasara,
Sobrepujou temor vivo desejo,
51 Que de abraçá-los súbito me entrara.

“Não desdém, mas piedade neste ensejo,
Que não se extinguira, me tem movido”
54 Lhes disse — “o padecer em que vos vejo,

“Tanto que o Senhor meu há proferido
Palavras, que a presença me indicaram
57 De almas quais sois neste lugar temido.

“Da vossa terra sou: sempre exaltaram
Meu apreço e o dos que vos conheceram
60 Ações que os nomes vossos tanto honraram.

“Por meu Guia veraz esperançado,
Deixo o fel por doçura permanente
63 Tendo primeiro o centro visitado”. —

“Que no teu corpo a vida longamente
Persista!” — a sombra disse. — “Dure a fama
66 Do nome teu com lume resplendente!

“Na pátria nossa inda revive a flama
Da honra, do valor, que ali brilhara,
69 Ou de todo a expeliu ódio que infama?

“Pois Guilherme Borsiere, que baixara,
Há pouco, e vai chorando nesta ardência,
72 Cruciou-nos contando o que notara”. —

“Íncolas novos, súbita opulência,
— Florença, orgulho e vícios te acenderam,
75 De que tu própria temes a influência!” —

Gritei alçando a fronte: e os três, que me eram
Atentos, à resposta se encararam,
78 Como se essas verdades lhes prouveram.

“Se tão pouco te custa” — me tornaram —
“Sempre aos outros expor teu pensamento,
81 Feliz tu! Vozes tais assaz te honraram.

“E, pois, voltando a luz do firmamento,
Se alfim saíres desta estância horrente,
84 Quando — “Lá fui!” — disseres, de contente,

“Nos olvidar não deixa a humana gente”. —
Então, rompendo o círculo, fugiram,
87 Como se asas tiveram, velozmente.

Em menos tempo aos olhos se esvaíram
Do que proferir amen se gasta.
90 Logo aos passos do Mestre os meus seguiram.

Dali distância curta nos afasta,
Eis da água os sons ouvimos, tão de perto,
93 Que a voz forçar para se ouvir não basta.

Como o rio que, no álveo próprio aberto,
Em Veso nasce e vai para o oriente,
96 Ao lado esquerdo do Apenino, e ao certo

Aquaqueta se chama, da eminente
Parte enquanto não desce, mas, tomando
99 Nome diverso em Forli de repente,

Rebomba e cai pela quebrada, quando
Acerca-se a S. Bento, o grão mosteiro
102 Que dar a mil pudera asilo brando:

Assim desde um penhasco sobranceiro
Da água rubra troava alto estampido,
105 Que fora de surdez risco certeiro.

De uma corda eu me achava então cingido
Com que outrora prender quis a pantera,
108 De pêlo em malhas várias repartido.

Que a tirasse Virgílio me dissera:
Eu descingi-me presto, lha entregando
111 Enrolada, como ele prescrevera.

Então ele à direita se voltando,
A distância da borda alcantilada
114 Lançou-a longe para o abismo infando.

— “Àquela ação não de antes praticada,”
— Pensei — “há de seguir-se estranho efeito,
117 Que do Mestre a atenção tem despertada”. —

Quanta cautela deve haver e jeito,
Tratando-se com quem vê não somente
120 Os atos, mas também o que há no peito!

— “Surgirá” — disse o Mestre — “brevemente
O que espero: o que tens no pensamento
123 Logo aos teus olhos ficará patente.”

Verdade, que pareça fingimento,
Evita proferir homem discreto:
126 Sofre desar, de culpa estando isento.

Nada posso omitir, leitor dileto:
Desta comédia pelos cantos juro
129 (Sejam assim de longo aplauso objeto!)

Que subir por aquele ar grosso, escuro
Nadando vi figura temerosa
129 Ao peito mais intrépido e seguro:

Tal quem desceu pela onda perigosa
A desprender de ocultos embaraços,
Lá no fundo, a fateixa vagarosa,

136 Subindo, encolhe as pernas, tende os braços.



38. Guido Guerra, florentino, combateu em Montaperti. — 40. Tegghiaio Atdobrandi, também patriota florentino. — 44. Jacopo Rusticucci, valoroso cavaleiro florentino que combateu também na batalha de Montaperti. — 70. Guilherme Borsiere, gentil-homem florentino. — 135. Fateixa, pequena âncora.



CANTO XVII



Enquanto Virgílio fala com Gerion, para convencer essa horrível fera a levá-los ao fundo do abismo, Dante se aproxima das almas dos violentos contra a arte. Dante reconhece alguns deles. A cada um pende do peito uma bolsa na qual são desenhadas as armas da sua família. Volta depois o Poeta para o lugar onde está Virgílio, que assentado já sobre o dorso de Gerion, põe-no diante de si, e assim descem ao oitavo círculo.



“EIS a fera, que a horrenda cauda enresta,
Que arneses, montes, muros atravessa
3 E com seu bafo impuro o mundo empesta!”

Assim Virgílio a me falar começa.
Para acercar-se logo lhe acenava
6 Ao marmóreo anteparo que ali cessa.

Da fraude o vulto imundo aproximava!
A cabeça avançou e o torpe busto,
9 Porém pendente a cauda lhe ficava

A cara assomos tinha de homem justo,
Tanto era o parecer beni’no e brando!
12 No mais serpe, movia horror e susto.

Grandes, hirsutos braços dilatando,
Alçava peito, ilhais, dorso malhados,
15 Mil rodelas e nós se entrelaçando.

Mais cores nos estofos recamados
Tártaros, Turcos nunca misturaram,
18 Nem Aracne em tecidos variegados.

Como os batéis, que à praia se amarram,
No mar a popa têm, a proa em terra;
21 E, como em regiões, que se deparam

Sob o voraz Tudesco, a fazer guerra
Embosca-se o castor: assim se via
24 O monstro à orla, que as areias cerra.

No ar a extensa cauda revolvia;
E a venenosa ponta bipartida,
27 Do escorpião qual dardo, se erigia

“Té onde a fera atroz jaz estendida.
Convém seja o caminho desviado
30 Da senda” — disse o Vate — “prosseguida” —

Descendo, pois, pelo direito lado
Para o fogo fugir e a areia ardente
33 Passos dez pela borda hemos andado.

Chegados nós de Gerião em frente,
Um tanto além sentado um bando achamos
36 Na areia, perto desse abismo ingente.

— “Do recinto por teres, em que estamos” —
Virgílio disse — “a experiência inteira
39 A sorte vai saber dos que avistamos.

“Os discursos, porém, filho aligeira.
Entanto impetrarei da fera infanda
42 Que prestar-nos seus ombros fortes queira”. —

Só pela borda, como o Vate manda,
Vou do círculo sétimo seguindo,
45 Dos mestos pecadores em demanda.

A dor, que brota em lágrimas, sentindo,
Socorre-se das mãos a aflita gente
48 Contra o solo e o vapor, que está caindo.

Assim lebréus, durante a calma ardente
Dos dentes e unhas valem-se, mordidos
51 De tavões por enxame impertinente.

Quando encarei nos rostos doloridos
De alguns, que os fogos tanto cruciavam,
54 Que eram todos achei desconhecidos.

Bolsas pendentes dos seus colos stavam,
Pelos sinais distintas, pelas cores:
57 Contemplando-as, seus olhos se enlevavam.

E vi já me acercando aos pecadores
Bolsa, na qual em campo de ouro havia
60 Azul, que era leão nos seus lavores,

A vista, que já noutra se embebia,
Em sangüíneo rubor ganso eu notava,
63 Que a brancura do leite escurecia.

Grávida, azul jardava um, que ostentava,
Broslada sobre cândida escarcela,
66 — “Que buscas neste abismo?” perguntava.

“Retira-te! Se a vida gozas bela,
Sabe que à sestra mão Vitaliano,
69 Vizinho meu terá condigna sela.

“Entre estes Florentinos sou Paduano;
A todo instante aturdem-me os ouvidos,
72 Bradando: — O nobre venha, o soberano,

“Que os três bicos na bolsa traz sculpidos”. —
Depois, torcendo a boca, a língua tira,
75 Qual boi, que os beiços lambe, ressequidos.

Não querendo mover desgosto ou ira
Em quem mor brevidade me ordenara,
78 Os mesquinhos deixei: assaz ouvira.

Disse-me o Guia então, que cavalgara
O dorso do animal fero e possante:
81 “Sê forte, a tudo o ânimo prepara!

“Se desce em tal escada de ora avante;
Sobe-te ao colo; ao meio irei sentado:
84 Que não te ofenda a cauda penetrante.”

De quartã qual doente, que, chegado
Supondo o acesso, lívido estremece
87 Somente ao ver lugar fresco, assombrado

Tal quando ouvi, meu peito, desfalece.
Ante o Mestre dá-me o pejo alento:
90 Bom amo o servo esforça que esmorece.

Já sobre a espalda do animal cruento,
Quero ao vate gritar: “Senhor, me abraça!”
93 A voz, porém, não corresponde ao intento.

Ele, que a mente espavorida e lassa
Em circuito mais alto me animara,
96 Sustendo-me, nos braços seus me enlaça,

E disse a Gerião: “Vai, mais não pára.
Em circuitos largos sem ter pressa:
99 Na carga, que ora tens, nova repara!” —

Bem como esquife, que voar começa,
Manso e manso recua: assim moveu-se.
102 Quando ao largo sentiu-se, eis endereça

A cauda aonde o peito seu tendeu-se.
Meneando-a, a retesa como enguia;
105 Das patas agitado o ar fendeu-se.

Feton, quando as rédeas já perdia,
Ao ver do céu o incêndio, ainda aparente;
108 Ícaro, quando lhe cair sentia

Da cera cada pluma ao sol ardente,
Gritando o pai; — “Ai! filho! Erraste a strada!”
111 De pavor não se entraram mais veemente,

Do que eu nessa viagem desusada,
No ar quando me vi, quando enxergava
114 Só a cerviz da fera maculada:

Com tardo movimento ela nadava,
Que gira e baixa pelo vento eu sinto
117 Que em torno ao rosto e abaixo se agitava.

Já ouvia à direita bem distinto,
Troar da catadupa fragorosa:
120 Olhos inclino ao fundo do recinto.

A mente estremeceu mais temerosa
Ao chamejar de fogo, ao som de pranto:
123 Encolhi-me ante a cena pavorosa.

De que descia então, com mor espanto,
Pelos males, que via, fiquei certo,
126 A mim se avizinhar a cada canto.

Qual falcão que no ar pairava incerto,
Sem ver reclamo ou cobiçada presa
129 Perdida a esp’rança ao caçador esperto,

Descamba, fatigado e sem presteza,
Em voltas mil por onde se arrojara,
132 E longe pousa, ou de ira, ou de tristeza:

Tal Gerião, enfim, no fundo pára
Ao pé da penedia alcantilada,
Livre do peso já que carregara,

136 Sumiu-se como seta disparada.




18. Aracne, personagem da mitologia grega, transformada por Minerva em aranha. — 68. Vitaliano, usurário paduano, ainda vivente. — 72. O nobre venha, Giovanni Baiamonti, florentino, que tinha como brasão três bicos de pássaro. — 106. Feton, filho de Apolo, que, no guiar o carro do Sol, precipitou-se. — 108. Ícaro, filho de Dédalo, que voando com as asas de cera fabricadas pelo pai, precipitou ao solo.

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