Divina Comédia - Purgatório XXX - XXXIII

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CANTO XXX



Acolhida festivamente pelos anjos e pelos bem-aventurados, desce do Céu, Beatriz (a divina sabedoria) e pousa no carro. Nisto Virgílio (a humana sabedoria) desaparece. Ela dirige-se a Dante e lhe exprobra os seus desvios. Dante chora; e os anjos se compadecem dele. Beatriz, dirigindo-se a eles, expõe mais particularmente quais foram as suas faltas depois da sua morte.



QUANDO o setentrião do céu primeiro,
Que, jamais tendo ocaso, nem nascente,
3 Da culpa só nublou-se em nevoeiro,

E ali fazia cada qual ciente
Do dever seu, bem como o deste mundo
6 Do nauta ao porto é guia permanente,

Parou, a santa grei, que ia em segundo
Lugar antes do Grifo, dirigia,
9 Como à paz sua ao carro olhar profundo.

Um, que do céu arauto parecia,
Veni, sponsa de Libano — cantando,
12 Três vezes disse, e a turba repetia.

Como, ao soar o derradeiro bando,
Hão de os eleitos ressurgir ligeiros,
15 Com renovada voz aleluiando,

Assim, da vida eterna mensageiros,
Cem anjos, ad vocem tanti senis
18 Elevaram-se ao carro sobranceiros.

Diziam todos: — Benedictus qui venis!
Modulavam, lançando em torno flores:
21 Manibus, oh, date lilia plenis!

Já vi do dia aos lúcidos albores
Em parte o céu de rosicler tingido,
24 Estando em parte azul e sem vapores,

E o sol, nascendo em nuvens envolvido,
Permitir que se encare em seu semblante,
27 Entre véus nebulosos escondido:

Tal, em nuvem de flores odorante,
Que de angélicas mãos sobe fagueira
30 E cai no carro e em torno a cada instante,

De véu neves cingida e de oliveira,
Uma dama esguardei com verde manto
33 E veste em cor igual à da fogueira.

E o espírito meu que, tempo tanto
Havia já, não fora ao seu conspeito,
36 Trêmulo, entrando de soçobro e espanto,

Antes que aos olhos se mostrasse o aspeito,
Sentiu, por força oculta que desprende,
39 Do antigo amor, o poderoso efeito.

Quando essa alta influência em mim descende,
Que desde o alvor primeiro da existência
42 Da alma as potências me avassala e rende,

À sestra me voltei com diligência,
Qual infante da mãe correndo ao seio,
45 Se dor ou medo assalta-lhe a inocência,

Por dizer a Virgílio: — “Neste enleio,
Meu sangue em cada gota é convulsado,
48 De amor na antiga flama eu me incendeio.”

Mas ai! Virgílio havia-se ausentado,
Virgílio, o pai dulcíssimo e amoroso,
51 Virgílio, a quem, por me salvar, fui dado!

Quanto perdeu neste lugar formoso
Eva, não tolhe as lágrimas no rosto,
54 Que o rocio me lavara milagroso.

— “Não haja por Virgílio ir-se, desgosto;
Não te entregues ao pranto agora, ó Dante;
57 Por dor mais viva ao pranto sê disposto.” —

Como em revista às naus sábio almirante
Nas manobras feroz a dura gente
60 E os corações esforça vigilante,

Do carro à borda, à esquerda, incontinênti,
Quando voltei-me ao nome proferido,
63 Que por ser dito aqui vem simplesmente,

A dama vi que tinha aparecido
Velada em meio da divina festa,
66 Tendo, além-rio, o gesto a mim volvido.

Conquanto o véu, que lhe cingia a testa,
Que de Minerva fronde coroava,
69 A face não deixasse manifesta,

No régio continente que ostentava
Desta arte prosseguiu; porém dizendo
72 O mais acerto para o fim guardava:

— “Oh! Sou eu! Sim! Beatriz stás vendo!
Pois te hás dignado de ascender ao monte
75 Ter aqui dita o homem já sabendo?” —

Os olhos inclinando à pura fonte
Vi minha imagem; logo os volto a um lado,
78 Tanta vergonha me acendia a fronte!

Qual mãe, que o filho increpa em tom maguado,
Pareceu-me: porque se torna amara,
81 A piedade que pune, ao castigado.

Calou-se ela e dos anjos a voz clara
— “In te, Domine, speravi” — de repente
84 Entoa, mas em pedes meos pára.

Da terra italiana em serra ingente
Da esclavônia por ventos contraída
87 Entre as selvas congela a neve algente;

Depois liquesce e corre derretida
Ao quente sopro, que do sul procede,
90 Como cera de flamas aquecida;

Tal o soçobro as lágrimas me impede
Antes de ouvir a angélica toada,
93 Que o hino dos eternos orbes mede.

Mas quando, em seus concentos expressada,
Compaixão vejo mais do que se houvessem
96 Dito: — “Senhora, por que és tanto irada?”,

No peito meu os gelos se amolecem;
Dos lábios e dos olhos irrompendo,
99 Com lágrimas soluços aparecem.

Firme no carro, à destra se volvendo,
Ela aos pios espíritos dizia,
102 Do cântico às palavras respondendo:

— “Vigilantes estais no eterno dia;
Jamais por noite ou sono distraída,
105 Do tempo os passos vossa vista espia.

“Minha resposta, pois, vai dirigida
Àquele, que ora ao pranto os olhos solta:
108 A culpa seja pela dor medida.

“Dos céus, não pela ação, na imensa volta,
Que para um fim conduz cada semente,
111 Segundo os astros, que lhe vão na escolta,

“Se não de graças por divina enchente,
Que chovem sobre nós dessa eminência,
114 A que se alar nem pode a nossa mente,

“Este homem foi na aurora da existência,
De tais dotes ornado, que pudera
117 Da virtude alcançar toda a excelência.

“Se, porém, a incultura se apodera
Ou semente ruim do bom terreno,
120 Plantas mali’nas, peçonhentas gera.

“Conservou-se ante mim puro e sereno:
Meus olhos, em menina, o conduziram
123 Pelo caminho mais seguro e ameno.

“Tanto que umbrais à vista se me abriram
Da idade segunda e desta vida,
126 Deixou-me; outros enlevos o atraíram.

“Quando em espírito eu fora convertida
E beleza e virtude em mim crescera,
129 Em menos preço fui por ele havida.

“Por fraguras fugiu da estrada vera,
Em fingidas imagens enlevado,
132 De que jamais se alcança o que se espera.

“Inspirações em vão hei-lhe impetrado
Em sonhos, em vigília o bem mostrando:
135 Cego, correu pelo caminho errado.

“Já todo o esforço meu se malogrando,
Para salvá-lo do perigo eterno
138 Quis que baixasse ao reino miserando.

“Foi neste empenho que desci ao inferno,
E à sombra, que de guia lhe há servido,
141 Fiz o meu rogo lacrimoso eterno.

“O preceito de Deus fora infringido,
Se ele do Letes transcendesse as águas,
Se lhe fosse prová-las permitido,

145 Sem seu preço pagar em pranto e mágoas.” —



11. Veni, sponsa, etc., convite do esposo à esposa no Cântico dos Cânticos de Salomão. — 17. Ad vocem tanti senis, à voz de velho tão venerando como era Salomão. — 19. Benedictus qui venis, cantavam os hebreus a Jesus quando entrou em Jerusalém, S. Mateus, Evang. XXI, 9. — 21. Manibus, oh, date lilia plenis, espalhai lírios às mãos cheias. — 39. Do antigo amor etc., Dante se enamorou de Beatriz, quando tinha a idade de nove anos. — 83. In te, Domine, speravi, Salmo XXX, até às palavras: pedes meus, exprime o arrependimento e a esperança na misericórdia de Deus.

CANTO XXXI



Beatriz continua repreendendo a Dante, o qual confessa os seus pecados. Matilde o mergulha, então, no rio Letes. Depois as sete damas que participavam da procissão (as quatro virtudes cardiais e as três virtudes teologais) o levam até Beatriz, pedindo a ela que se desvele diante do seu fiel. Beatriz tira o véu.



“Ó TU que estás além da água sagrada”
— Prosseguiu Beatriz incontinênti,
3 A ponta a mim voltando dessa espada,

Que de revés já fora assaz pungente —
“Diz se é verdade, diz! À culpa unida
6 Esteja a confissão do penitente.” —

Tanta a força mental foi confrangida,
Que a voz desfaleceu, se erguer tentando,
9 Expirou-me nas fauces inanida.

Esperou; disse após: — “Que estás pensando?
Responde: inda não tens nágua apagado
12 Lembranças do passado miserando?” —

No meu enleio, de temor travado,
Um tão confuso sim, trêmulo, expresso,
15 Que houve mister dos olhos ajudado.

Como em besta entesada em grande excesso,
Quebrando-se arco e corda, parte a seta
18 E no alvo dá sem força do arremesso,

Stando minha alma em tanto extremo inquieta
E em suspiros e lágrimas rompendo,
21 Perdeu a voz o som, que a língua enceta.

— “Se ao meu querer” — prossegue — “obedecendo
Tinhas fanal, que ao bem te conduzisse,
24 De anelos teus a mira ser devendo,

“Onde o poder de estorvos, que impedisse
Teus passos? Quais grilhões que os retivessem
27 Na vereda, que avante ir permitisse?

“Houve encantos, que a outros te prendessem,
E delícias, que tanto te atraíram,
30 Que a tua alma enlear assim pudessem?” —

Do peito agros suspiros me saíram;
Para falar-lhe apenas tive alento,
33 E a voz a custo os lábios exprimiram.

Tornei chorando: — “O engano, o fingimento
Ao terreno prazer me hão transviado,
36 Em vos nublando a face o passamento.” —

— “Se ocultaras” — falou-me — “o teu pecado,
A graveza da culpa ao claro vira
39 Aquele, por quem deves ser julgado.

“Mas se o réu, confessando, tem na mira
O pesar do mau feito, em nossa corte
42 Contra o fio da espada a mó se vira.

“Entanto, por que seja em ti mais forte
De errar o pejo e, no porvir ouvindo
45 Sereias, não procedas de igual sorte,

“Escuta-me, os teus prantos consumindo:
Verás que, inda sepulta, eu te guiara,
48 Pela contrária rota conduzindo.

“Jamais arte ou natura te mostrara
Enlevo, quanto a rara formosura
51 Do corpo, em pó tornado, em que eu morara.

“Se comigo baixara à sepultura
Teu supremo prazer, como arrastar-te
54 Pôde, após si, mortal delícia impura?

“Enganos tais sentindo saltear-te,
Aos céus alçando a mente deverias
57 Té minha eternidade sublimar-te,

“E não baixar do vôo, em que subias
Te expondo a novos tiros, atraída
60 Por jovem, por vaidades fugidias.

“Será duas, três vezes iludida
Ave inexperta; mas a seta, o laço
63 Pássaro velho esquiva, apercebido.” —

Qual menino, que a mãe por largo espaço
Increpa; e, baixa a fronte, envergonhado
66 Reconhece em silêncio o errado passo,

Tal me achava. — “De ouvir se estás magoado.
Levanta a barba!” — ainda prosseguia —
69 “Olhando-me, hás de ser mais castigado!” —

Com menos resistência abateria
De Europa o vendaval carvalho altivo
72 Ou da terra, que a Jarba obedecia,

Do que eu alcei o rosto pensativo;
Quando ela disse barba e não semblante
75 A malícia notei e o seu motivo.

Olhos erguendo alfim, do mesmo instante
Aos ares vi que flores não lançava
78 A falange dos anjos radiante.

Tímida a vista a Beatriz achava
Voltada ao Grifo, que uma só pessoa
81 Em naturezas duas encerrava.

Além do rio sob o véu e a c’roa
Tanto excede a beleza sua antiga
84 Quanto em vida as que mais fama apregoa.

E do pesar pungiu-me tanto a urtiga,
Que das cousas, que mais na terra amara
87 A mais cara odiei como inimiga.

Remorso tal a mente me assaltara,
Que vencido tombei: qual fiquei sendo
90 Sabe quem dor tão viva motivara.

Ao coração a força me volvendo
Notei a dama, que primeiro eu vira
93 Ao lado meu, — “Abraçai-me!” — dizendo.

Té ao colo no rio me imergira;
E correndo, qual leve lançadeira,
96 Das águas sobre a tona a si me tira.

Já próximo à beatífica ribeira,
Ouvi Asperges me tão docemente,
99 Que o não descrevo ou lembro, inda que o queira.

Matilde, abrindo os braços de repente,
Cingiu-me a fronte e súbito afundou-me;
102 Era dessa água haurir conveniente.

Assim purificado, ela guiou-me
Das damas quatro para a dança bela,
105 E cada uma nos braços estreitou-me.

— “Cada qual, ninfa aqui, nos céus estrela,
Antes que Beatriz descesse ao mundo,
108 Servas de ordem suprema somos dela.

“Os seus olhos verás; mas no jucundo
Lume interno hás de ter vista aguçada
111 Pelas três cujo olhar é mais profundo.” —

Modulando na angélica toada,
Ante o Grifo consigo me levaram:
114 Lá Beatriz para nós era voltada.

— “Em contemplar sacia-te!” — falaram —
“As esmeraldas que ora tens presentes,
117 Donde os farpões de amor te vulneraram.” —

Mais que a flama desejos mil ardentes
Prenderam olhos meus aos seus formosos,
120 Na adoração do Grifo persistentes.

Qual sol no espelho, nesses luminosos
Astros o Grifo se alternando, eu via
123 Seres dois refletir misteriosos:

Meu espanto, ó leitor, qual não seria
Vendo o objeto na imagem transmutado,
126 Quando constante em si permanecia?

Enquanto eu de prazer e pasmo entrado,
Esse doce manjar stava gozando,
129 Que sacia mas sempre é desejado,

De ordem mais alta ser manifestando
Pelo meneio, as três se adiantaram,
132 Por angélico estilo modulando.

“Os olhos santos, Beatriz” — cantaram —
“Oh! volve ao servo teu leal constante
135 A quem por ver-te os passos não custaram.

“Nos dá por grã mercê que o fido amante
Sem véu segunda formosura
138 Contemple nesse divinal semblante!” —

Ó resplendor da luz eterna e pura!
Quem do Parnaso à sombra descorando
141 E da água sua haurindo alma doçura,

Aturdido não fora, se arrojando
A tentar descrever qual te mostraste,
Quando o céu de harmonias te cercando,

145 Ao ar patente a face revelaste?



71-72. De Europa etc. Ao vento boreal que sopra na nossa região, ou ao vento meridional que sopra na África, onde reinou Jarbas. — 75. A malícia notei etc., Beatriz disse “barba” e não semblante, querendo referir-se à idade madura de Dante.

CANTO XXXII



Dante olha com amor a Beatriz. No entanto o carro, seguido pela procissão dos bem-aventurados, se move em direção a um árvore elevadíssima e despida de folhagem. O grifo ata o carro à árvore e esta logo cobre-se de flores. O Poeta adormece. Ao despertar vê Beatriz, rodeada das sete damas, sentada ao pé da árvore. Acontecem, depois, no carro fatos maravilhosos que causam ao Poeta surpresa e medo.



COM tão sôfregos olhos saciava
A sede, em que anos dez eu me incendia,
3 Que aos mais sentidos toda a ação cessava.

Quase murada a vista se imergia
No santo riso ao mais indiferente,
6 E nos laços de outrora me prendia.

Desse êxtase arrancou-me de repente
A voz das santas, que da esquerda soa:
9 — “Demais contemplativa tens a mente!” —

Os ofuscados olhos me nevoa
Torvação semelhante ao vivo efeito,
12 Que do sol causa a face em quem fitou-a.

Mas quando à pouco luz estive afeito
(Pouca em confronto ao lume deslumbrante,
15 Que por força deixara e a meu despeito),

Vi que à destra volvia o triunfante
Exército celeste à frente estando
18 Os candelabros sete e o sol flamante.

Qual hoste a se salvar broquéis alçando,
Se volta, e co’a bandeira não prossegue
21 Senão mudada a direção, girando;

A celeste milícia avante segue,
Na marcha procedendo desfilava
24 Antes que o santo carro a volver chegue.

Cada coréia as rodas escoltava,
E o Grifo a carga santa removia
27 Sem parecer que as penas agitava.

Quem pelo rio me arrastado havia,
Estácio e eu a roda acompanhamos,
30 Que por arco menor volta fazia.

Na alta floresta caminhando vamos,
Erma por culpa da que a serpe ouvira:
33 Pelo cântico os passos regulamos.

Andáramos espaço que medira
Uma seta três vezes disparada:
36 Desceu Beatriz do carro, em que eu a vira.

“Adam!” — disse em murmúrio a grei sagrada,
Todos depois uma árvore cercaram,
39 De folhas e de flores despojada.

Tanto aos lados seus ramos se alargaram,
Quanto erguiam-se ao céu: como portento
42 índios nas selvas suas os mostrariam.

“Ó Grifo! Glória a ti! De culpa isento,
Não provaste do lenho doce ao gosto,
45 Que tanta dor causou, tão cru tormento!” —

Daquele tronco excelso em torno posto,
Diz o préstito; e o Grifo lhe contesta:
48 — “Assim justiça é sempre no seu posto.” —

E ao carro que tirara na floresta,
Voltou-se e o conduziu ao tronco anoso:
51 Dele foi parte, a ele atado resta.

Quando o astro rebrilha poderoso,
Juntando os seus clarões aos que desprende,
54 Depois do Peixe o signo luminoso,

Brotando as plantas cada qual resplende
De esmalte novo, e ainda de outra estrela
57 Abaixo os seus frisões o sol não prende:

Súbito assim refloresceu aquela
Árvore nua, gradações formando
60 Entre rosa e violeta em cópia bela.

Então de um hino as notas escutando,
Quais nunca sobre a terra se cantaram,
63 Não pude resistir a som tão brando.

Se eu narrasse como olhos se fecharam
De Argo impiedosos, de Sírius ao conto
66 Que o seu nímio velar caro pagaram,

Pintor, tirara ao natural e em ponto
O sono em que engolfei-me docemente;
69 Mas faça-o quem nessa arte forma pronto!

Passo ao momento em que espertou-se a mente:
Fulgor ao sono intenso o véu rompia,
72 — “Eia! que fazes?” — ouço incontinênti.

Quais vendo que de flores se cobria
O linho cujo pomo apetecido
75 Na boda eterna os anjos extasia,

João, Pedro e Tiago ao seu sentido,
Depois da prostração à voz tornaram,
78 Que sono inda maior tinha vencido,

E a companhia decrescida acharam
De Elias e Moisés enquanto as cores
81 Sobre a estola do Mestre se mudaram:

Tal despertei da luz aos esplendores,
Vi perto a dama que me fora guia
84 Do rio à margem sobre a relva e as flores.

— “Onde é Beatriz?” — cuidoso lhe dizia.
— “Da fronde nova à sombra a vês sentada,
87 Junto à raiz” — Matilde respondia.

“Da companhia sua é rodeada;
Ao céu após o Grifo os mais subiram,
90 Com mais doce canção, mais sublimada.” —

Não sei se as vozes suas prosseguiram
Pois aquela aos meus olhos se mostrara,
93 Em quem meus pensamentos se imergiram.

Sobre a terra bendita se assentara,
Só, como em guarda ao plaustro portentoso,
96 Que ao tronco antigo o Grifo vinculara.

Rodeiam-na, com círculo formoso,
As ninfas sete, os lumes empunhando,
99 Seguros de Austro e de Aquilão ruidoso.

— “Na selva a tua estada abreviando,
Serás comigo na eternal morada
102 Da Roma, onde tem Cristo o régio mando.

“Do mundo em prol, perdido em rota errada,
O carro observa e cada cousa atento
105 Guarda, por ser ao mundo registrada.” —

Falou Beatriz; e eu, pois, que o entendimento
Do seu querer aos pés tinha prostrado,
108 Fitei no carro a vista e o pensamento.

Dos etéreos confins arremessado,
Não rasga o raio à densa nuve, o seio,
111 Com tanta rapidez precipitado,

Como da alta ramada pelo meio,
Córtice fronde, flores destruindo,
114 O pássaro de Jove irado veio.

Com força imane o carro foi ferindo,
Que aos golpes, qual navio, se agitava,
117 Que o mar combate os bordos lhe investindo.

E logo após eu vi que se enviava
Ao carro triunfal uma raposa,
120 Que bom cibo não ter manifestava.

Increpando-lhe a vida criminosa,
Beatriz pô-la em fuga, e em tanta pressa,
123 Quanto sofreu-lhe a ossada cavernosa.

Depois do carro à caixa a Águia se apressa
A vir por onde, há pouco, descendera;
126 De inçar de plumas seus coxins não cessa.

Qual gemido que a dor no peito gera,
Ouvi do céu baixar voz, que dizia:
129 — “Ó barca! bem má carga ora se onera!” —

A terra então me pareceu se abria,
Entre as rodas um drago arrevessando
132 Que pelo carro a cauda introduzia.

Depois a cauda atroce retirando,
Qual vespa o seu ferrão, feita a ferida,
135 Arranca o fundo e vai-se coleando.

Como em terra vivaz relva crescida,
Cobre o resto plumagem de repente,
138 Com tenção casta e pura oferecida;

Timão e rodas vestem-se igualmente
Tão presto, que um suspiro vem lançado
141 À flor dos lábios menos prontamente.

Daquele plaustro santo, assim mudado,
Nos ângulos cabeças irromperam,
144 Três no timão e uma em cada lado.

Essas, como as de boi, armadas eram;
Uma só ponta as quatro guarnecia:
147 Monstros iguais já nunca apareceram.

Qual penhasco em montanha excelsa, eu via
No carro nua meretriz sentada,
150 Lascivos olhos em redor volvia.

Como para não ser-lhe arrebatada
Em pé ao lado seu stava um gigante,
153 Com quem trocava beijos despejada.

Que os olhos requebrava a torpe amante
Pra mim notando, fero a flagelava
156 Dos pés a fronte o barregão farfante.

No ciúme e na ira, que o inflamava
Desprende o carro e à selva o vai tirando,
Que depressa aos meus olhos ocultava

160 A prostituta e o novo monstro infando.



38-39. Uma árvore etc., a árvore do bem e do mal, cujo fruto Adam comera, pelo que foi expulso do Paraíso. — 64-66. Como os olhos se fecharam etc., como adormeceu e se fecharam os olhos de Argos ao ouvir o conto de Mercúrio a respeito de Sírio, — 73-81. Quais vendo etc., como os apóstolos João, Pedro e Tiago, ao assistirem à transfiguração de Jesus Cristo, no monte Tabor, e ao vê-lo em companhia de Moisés e Elias, desmaiaram e despertando, depois, o viram em sua forma natural havendo os dois profetas desaparecido, etc. — 102. Da Roma onde tem Cristo o régio mando, o Paraíso. — 114. O pássaro de Jove, a águia, símbolo do império. — 119. Uma raposa, símbolo da heresia. — 126. De inçar de plumas seus coxins não cessa, provável alusão ao poder temporal outorgado por Constantino à Igreja Romana. — 142-147. Daquele clastro etc., Dante nesta visão, que imita as visões do Apocalipse, pretende simbolizar os funestos efeitos das riquezas que foram oferecidas à Igreja. As sete cabeças do monstro provavelmente simbolizam os sete pecados capitais originados pela corrupção. — 149. Meretriz, a Cúria Romana. — 152. Um gigante, a casa real de França e, talvez, mais particularmente, Felipe o Belo que umas vezes foi amigo, outras inimigo dos Papas, conseguindo que o Papa Clemente V, em 1305, transportasse a Santa Sé para Avinhão.

CANTO XXXIII



Beatriz anuncia, com linguagem misteriosa, que brevemente aparecerá quem libertará a Igreja e a Itália da servidão e da corrupção. Impõe-lhe que escreva o que viu. Pede, depois, a Matilde que o mergulhe nas águas do rio Eunoé. Dante, depois da imersão, sente-se mais forte e disposto a subir às estrelas.



DEUS, venerunt gentes, alternando,
Em coros dois, suave melodia
3 Cantam as ninfas, pranto derramando.

E Beatriz, a suspirar, ouvia
Tão dorida, que pouco mais, outrora
6 Junto da Cruz mostrara-se Maria.

Quando lhe coube alçar a voz canora,
Entre as formosas virgens posta em pé,
9 Com santo ardor, que as faces lhe colora:

“Modicum et non videbitis me,
Caras irmãs, et iterum” — tornava —
12 “Modicum et vos videbitis me”.

Depois, antes de si as colocava,
E a mim e a dama e ao Vate, que restara,
15 Pra seguir os seus passos acenava.

Ia assim: que ela houvesse eu não julgara
O seu décimo passo em terra posto,
18 Eis sua vista na minha se depara.

— “Mais perto” — disse com sereno rosto —
“Caminha; pois falar quero contigo,
21 E o leves a me ouvir star bem disposto.” —

Beatriz, logo em tendo-me contigo,
— “Por que” — prossegue —“irmão não hás querido
24 Me inquirir, quando vens assim comigo?” —

Fiquei, como o que o espírito aturdido,
Ao seu superior falando sente,
27 E apenas balbucia confundido.

Falei, com voz cortada, reverente:
— “Quanto hei mister sabeis mui bem, senhora,
30 O que seja em prol meu sabeis prudente.” —

— “De temor e vergonha desde agora” —
Tornou — “isento sê, stando ao meu lado:
33 Como quem sonha as vozes não demora!

“A caixa, que a serpente há devastado,
Já foi: de Deus castigo aos criminosos
36 Ser não pode por sopa obliterada.

“Não faltarão herdeiros cuidadosos
Da águia, que ao carro as suas plumas dera,
39 E o tornou monstro e presa aos cobiçosos.

“Vejo o porvir e a voz minha assevera
O que propínquos astros anunciam:
42 Nada os estorva, nem seu curso altera.

“Um quinhentos dez cinco prenunciam,
Que o céu manda a punir a depravada
45 E o gigante: ambos juntos delinquiam.

“A narração, talvez, de treva inçada,
Como as do Esfinge e Têmis não a entendas,
48 Por parecer-te ao spírito enleada.

“Farão, porém, os fatos que a compreendas;
Quais Náiades, darão do enigma a chave,
51 Sem dano ao trigo, ao gado, sem contendas

“Que na memória tua isto se grave:
Como te falo, assim o ensina aos vivos
54 Que se afanam em buscar morte insuave.

“Lembra os que hás visto feitos aflitivos.
Da árvore o stado narra, que te espanta,
57 Quanto sofreu assaltos dois esquivos.

“Quem despoja ou mutila a sacra planta
Blasfema a Deus, de fato o ofende ousado:
60 Para o seu uso só a criou santa.

“Sperou a primeira alma, que há provado
Do seu fruto, anos mil cinco gemendo
63 Por quem penas em si deu do pecado.

“Tua alma dorme, se não stá sabendo
A causa singular, que a planta há feito
66 Tão alta, o cimo tal largura tendo.

“Se da água d’Elsa não trouxesse o efeito
O teu vão cogitar sobre essa mente,
69 Que escurece, qual sangue à amora o aspeito

“Fora o que eu disse já suficiente
Para o justo preceito compreenderes,
72 Que Deus há posto sobre o tronco ingente.

“Como te ofusca a luz dos meus dizeres.
Porque de pedra tens o entendimento,
75 Que, afeito à culpa, não permite veres,

“Uma imagem te guarde o pensamento,
Como palma ao bordão junta, voltando,
78 Peregrino, em remédio ao esquecimento.” —

— “No cérebro, qual cera conservando” —
Tornei — “a marca do sinete impresso,
81 Vosso verbo se irá perpetuando.

“Mas por que se sublima em tanto excesso
Vossa palavra, sempre apetecida,
84 Que, alcançá-la tentando, desfaleço?” —

— “Por veres” — diz — “que escola pervertida,
Hás cursado, o que, pois, sua doutrina
87 Ao verbo meu não pode ser erguida;

“Pois a vereda vossa da divina
É tão remota, quanto está distante
90 Da terra o céu que ao alto mais se empina” —

— “Não me lembro” — respondo à excelsa amante
“De ter-me às vossas leis nunca esquivado:
93 Não diz-mo a consciência vigilante.” —

— “Possível é que estejas olvidado” —
Respondeu-me a sorrir — “tem na lembrança
96 Que inda há pouco, hás do Lete água tragado,

“E se de flama o fumo dá fiança,
Que o teu querer no erro andou perdido
99 Demonstra o olvido teu com segurança.

“Será da minha voz claro o sentido,
Por que mais facilmente de ora avante
102 Da rude mente seja percebido.” —

Mais demorado, entanto, e coruscante
No círc’lo entrava o sol do meio-dia,
105 Como os climas diversos variante,

Quando as damas, bem como astuto espia,
Que, precedendo a tropa, de andar cessa,
108 Se acaso novidade se anuncia,

Paravam, ao sair da sombra espessa,
Qual aos frios arroios murmurantes
111 Dos Alpes bosque verde-negro of’reça.

Julguei ver Tigre e Eufrates não distantes
Brotar da mesma fonte juntamente
114 E separar-se lentos, quais amantes.

— “Ó glória! ó esplendor da humana gente!
Qual é, dizei-me, essa água, bipartida
117 Depois de proceder de uma nascente?” —

— “Ser-te deve a pergunta respondida
Por Matilde” — tornou-me então, falando
120 Em tom de quem por falta fosse argüida,

A dama disse: — “Tudo lhe explicando
Já stive: não podia haver efeito
123 Do Letes, a lembrança lhe apagando.” —

E falou Beatriz: — “Pode ter feito
Escura a mente sua o mor cuidado,
126 Que o entendimento às vezes torna estreito.

“Eis Eunoé, que o curso há derivado:
Conduze-o e, como sabes, o imergindo,
129 Seu coração alenta desmaiado.” —

Como alma nobre, ao bem nunca fugindo,
Faz do estranho querer própria vontade,
132 Quando um simples sinal o está pedindo,

A gentil dama, usando alta bondade,
Guiou-me e a Estácio disse, que atendia:
135 — “Segue-o também” — com garbo e majestade

Esse doce licor, que não sacia,
Eu cantara, leitor, se desse ensejo
138 Da página uma parte inda vazia.

Mas, porque todas ocupadas vejo
E ao meu segundo Cântico aplicadas
141 Da arte o freio me tolhe esse desejo.

Como de planta as folhas renovadas
Mais frescas na hástea mostram-se, mais belas,
Puro saí das águas consagradas

145 Pronto a me alar às lúcidas estrelas.




1. Deus venerunt gentes, Salmo 78, no qual David lamenta a contaminação do templo de Jerusalém: “Senhor, as nações entraram no teu domínio e contaminaram o teu templo.” — 10. Modicus et non videbitis me, “pouco tempo passará e não me vereis mais”, S. João Ev. XVI, 16; Beatriz responde: “e novamente passará pouco tempo e me vereis.” Provável alusão ao pouco tempo que a Santa Sé teria ficado em Avinhão. — 36. Sopa, a sopa que, em sinal de expiação, o homicida comia sobre o túmulo do assassinado. — 43. Um quinhentos dez cinco, um DVX, isto é, um chefe, um capitão, enviado de Deus, o qual punirá a Cúria Romana e o rei da França. — 47. Esfinge, que propôs o enigma a Édipo. — Têmis, que respondeu em forma obscura a Deucalião, que a foi consultar. — 49-51. Náiades, ninfas das fontes. — 61. A primeira alma, etc. Adam esperou cinco mil anos a vinda de Jesus Cristo, que tomou sobre si o seu pecado. — 67. Elsa, confluente do Arno. — 112. Tigre e Eufrates etc., o Letes e o Eunoé pareciam esses dois rios; pois nasciam na mesma fonte e, depois, se afastavam, aos poucos, um do outro.


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