Divina Comédia - Paraíso I - VI

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—PARAÍSO—

CANTO I



Invocando Apolo, o Poeta conta como do Paraíso Terrestre ele e Beatriz se alçaram ao Céu, atravessando a esfera do fogo. Beatriz explica-lhe como possa vencer o próprio peso e subir. É atraído pelo invencível amor.


Seguindo as teorias de Ptolomeu, Dante põe a terra imóvel no centro do Universo e, em redor dela, em órbitas concêntricas, os céus da Lua, de Mercúrio, de Vênus, do Sol, de Marte, de Júpiter, de Saturno, a oitava esfera, que é a das estrelas fixas, a nona, ou primeiro móvel, e finalmente o Empíreo, que é imóvel. Transportado pela força que faz rodar os céus e pela luz sempre crescente de Beatriz, Dante eleva-se de um céu para outro, e em cada um deles aparecem-lhe os espíritos bem-aventurados que, quando vivos, possuíram a virtude própria do respectivo planeta.



À GLÓRIA de quem tudo, aos seus acenos,
Move, o mundo penetra e resplandece,
3 Em umas partes mais em outras menos.

No céu onde sua luz mais aparece,
Portentos vi que referir, tornando,
6 Não sabe ou pode quem à terra desce;

Pois, ao excelso desejo se acercando,
A mente humana se aprofunda tanto
9 Que a memória se esvai, lembrar tentando.

Os tesouros, porém, do reino santo,
Que arrecadar-me pôde o entendimento,
12 Serão matéria agora de meu canto.

Faz-me neste final cometimento,
Bom Febo, do teu estro eleito vaso,
15 Que tenha ao louro amado valimento.

Fora-me assaz um cimo do Parnaso;
Daquele e do outro necessito agora
18 Para vencer na liça a que me emprazo.

Cala em meu peito, alenta o que te exora!
Sê como quando a Marsias arrancado
21 Hás do corpo a bainha protetora!

Se, divinal virtude, eu for entrado
Tanto de ti, que a sombra represente
24 Do reino que em minha alma está gravado,

Ao teu querido lenho eu, diligente,
Irei, por ter a c’roa merecida
27 De ti e deste assunto preminente.

Tão rara vez é, Padre, igual colhida
Quando triunfa César ou poeta
30 (Culpa e vergonha do querer nascida)

Que à Délfica Deidade a predileta
Fronde excitar devera alta alegria,
33 Se um coração por tê-la se inquieta.

Grande incêndio em centelha principia;
Voz, após mim, talvez, mais eloqüente
36 Mais graça em Cirra alcance e mais valia!

Por várias portas surge refulgente
A lâmpada do mundo; mas daquela,
39 Onde orbes quatro brilham juntamente

Com três cruzes, caminha sob estrela
Melhor, em modo que a mundana cera
42 Mais ao seu jeito retempera e assela.

Dali nascia a luz; daqui viera
A noite; e um hemisfério branquejava
45 Enquanto ao outro a treva enegrecera,

Eis vi que à esquerda Beatriz fitava
Olhos no sol: jamais águia afrontara
48 Tanto desse astro o lume, que ofuscava.

Como o raio, que a luz de si despara,
Reflete outro, que preito retrocede,
51 Qual romeiro, que à volta se prepara,

Esse ato, com que assim Beatriz procede,
Meu se tornou nos olhos infundido,
54 E o fitei mais que a um homem se concede.

Muito do que é na terra defendido,
No Paraíso é dado à humana gente,
57 A quem fora por dote prometido.

Fitar o sol não pude longamente.
Mas assaz para o ver fulgir no espaço,
60 Qual ferro, que do fogo sai candente.

Eis cuidei ver um dia, ao mesmo passo,
Luzir com outro, qual se Deus fizera
63 Do céu um sol segundo no regaço.

Sorvidos Beatriz na eterna esfera
Os olhos tinha; os meus que eu desviara
66 Dali no seu semblante embevecera.

Contemplando-a, o meu ser se transformara;
Tal Glauco, portentosa erva comendo,
69 Igual do mar aos Deuses se tornara.

Significar per verba não podendo
O que é transumanar o exemplo baste
72 Ao que o exp’rimente, a graça recebendo.

De ti, que por teu lume me exaltaste,
Amor do meu Senhor é conhecido,
75 Se em mim somente havia o que criaste.

Quando as Sferas, no giro, conduzido
Por ti no eterno anelo, me enlevaram
78 Com hino ao teu compasso dirigido,

Tantos etéreos plainos se mostraram
Inflamados do sol, que nunca os rios,
81 Nem as chuvas um lago igual formaram.

Essa luz, esses sons (jamais ouvi-os)
De saber tais desejos me acenderam
84 Que tão pungentes de antes não senti-os.

Ela em meu coração os viu como eram:
Por serenar-me o ânimo agitado,
87 Sem me escutar, seus lábios se moveram,

E disse: — “O teu espírito anda errado
Com falso imaginar: ’starias vendo
90 O que não vês, se houveras afastado.

“Te enganas, sobre a terra achar-te crendo:
O raio tão veloz do céu não desce,
93 Como tu que p’ra o céu vais ascendendo.” —

Se a dúvida primeira desaparece,
À voz que o riso segue, lhe escutando,
96 Inda mais outra a mente me escurece.

— “Modera-se o meu pasmo” — lhe tornando
Falei — “mas ora muito mais me admira
99 Como estes corpos leves vou passando.” —

Ouvindo, Beatriz terna suspira
E me encara piedosa, com semblante
102 De mãe que fala ao filho que delira.

— “Conservam” — respondeu-me — “ordem constante
As cousas entre si: esta é a figura
105 Que o universo ao Senhor faz semelhante.

“Ali vê cada uma alta criatura
Do Poder Sumo, bem ao claro, o selo,
108 Alvo sublime, que essa lei procura.

“Cada um entre na ordem, que eu revelo,
Se vai por modos vários inclinando,
111 Mais ou menos, ao seu princípio belo.

“Para portos dif’rentes navegando
No vasto mar do ser, cada qual segue
114 Os instintos que Deus lhe deu, criando.

“Por Ele a flama à lua alar consegue,
Por Ele o coração mortal se agita
117 E a terra em sua contração prossegue.

“Seu poder não somente se exercita,
Qual arco em seta, em bruto inconsciente,
120 Mas nos entes, que amor, razão concita.

“Tudo ordenando, o Autor Onipotente
Com sua luz tem o céu sempre aquietado,
123 Em que gira o que vai mais velozmente.

“Até lá, como a um alvo decretado,
Desse arco impele a força poderosa,
126 Quem conduz tudo a venturoso estado.

“Mas, como, às mais das vezes, revoltosa
A forma não responde ao intento da arte,
129 Porque a matéria é na surdez teimosa,

“Assim desta vereda se desparte
A criatura, para o bem guiada,
132 Que pode propender para outra parte,

“Se, de falso prazer sendo arrastada,
Baixa à terra, qual fogo desprendido,
135 De súbito, da nuvem carregada.

“Não seja mais de espanto possuído:
Como ao val rio cai de monte altivo,
138 Para a esfera estelífera és erguido.

“De maravilha fora em ti motivo
Não subindo; pois stás de estorvo isento;
Não fica imoto em terra o fogo vivo.” —

142 Disse e os olhos fitou no firmamento.



14. Febo, Apolo. — 16. Parnaso, o monte Parnaso tinha dois cimos; num moravam as Musas com Baco, no outro (Elicão ou Cirra) morava Apolo. — 20 Marsias, o sátiro Marsias desafiou Apolo e foi esfolado pelo deus. — 31. Délfica deidade, Apolo. — 36. Cirra, parte do Parnaso consagrada a Apolo. — 38. A lâmpada do mundo, o sol, 38-41. Daquela onde orbes quatro, etc. o ponto do céu no qual se conjuntam quatro círculos celestes, os quais entrecortando-se formam três cruzes. Caminha sob estrela melhor, a constelação do Áries. — 41. Mundana cera, a matéria terrestre. — 43-45. Dali nascia a luz; daqui viera a noite, no hemisfério do Purgatório amanhecia; no nosso hemisfério caía a noite. — 68. Glauco, pescador mitológico, ao comer uma erva marinha transformou-se em deus do mar. — 122-23. O Céu sempre aquietado, em que gira o que vai mais velozmente, o Empíreo imóvel, dentro ou embaixo do qual gira o primeiro móvel, que é o mais veloz dos céus.



CANTO II



Sobem à lua. Exortação aos leitores. Dante pergunta a Beatriz se as manchas da lua dependem da maior ou menor densidade do astro. Beatriz confuta o erro. Todos os astros são iluminados pela virtude que do primeiro móvel se difunde aos céus sotopostos. Na lua a virtude é menor que nos outros céus.



VÓS, que em frágil barquinha navegando,
Desejosos de ouvir, haveis seguido
3 Meu baixel, que proeja e vai cantando,

Volvei à plaga, donde haveis partido,
O pélago evitai; que, em me perdendo,
6 Vosso rumo talvez tereis perdido.

Ondas ninguém cortou, que vou correndo,
Sopra Minerva e me conduz Apolo
9 E o Norte as Musas mostram-me, a que eu tendo.

Vós, que, raros, a tempo haveis o colo
Erguido ao pão dos anjos, que alimenta,
12 Mas não sacia, no terráqueo solo,

A vossa nau guiai, de medo isenta,
No salso argento, após a minha esteira,
15 Enquanto água o seu sulco inda apresenta.

A que em Colcos surgiu gente guerreira,
Menos que vós, atônita ficara
18 Jasão vendo aplicado à sementeira.

Perpétua, inata sede nos tomara
Do império deiforme e nos levava
21 Quase bem como o céu, que jamais pára.

Olhava o céu Beatriz, eu a encarava.
Tão depressa talvez, quanto arrojada
24 Ao ar, a seta do arco se destrava,

Cousa vi, que prendeu maravilhada
A vista minha súbito; e então ela,
27 Que do meu cogitar stava inteirada,

Voltou-se e disse leda, quanto bela:
“A Deus eleva a mente, agradecido,
30 Chegados somos à primeira estrela.”

Lúcido, espesso, sólido e polido
Vulto, qual nuvem, nos cobrir parece,
33 Quase diamante pelo sol ferido.

Na per’la eterna entramos: assim desce
Raio de luz pela água, que recebe
36 No seio, mas unida permanece.

Se eu era corpo, e aqui se não percebe
Como uma dimensão outra compreende,
39 Senão se um corpo em outro corpo embebe,

Com mais razão desejo em nós se acende
De ver aquela essência, que é patente
42 Como a nossa natura a Deus se prende.

Ali o que por fé se crê somente
Sem provas por si mesmo será noto,
45 Como a verdade prima o que o home’ assente.

— “Ante o Senhor com ânimo devoto
Humilho-me” — tornei-lhe — “enternecido,
48 Pois do mundo mortal me tem remoto.

“Mas dizei: neste corpo o que tem sido
As manchas negras, com que lá na terra
51 Sobre Caim se hão fábulas urdido.” —

Sorriu-se e respondeu: — “Se assim tanto erra
Dos mortais o juízo no que a chave
54 Dos sentidos verdade não descerra,

“Não mais depois o espanto em ti se agrave;
Pois vês como, aos sentidos se rendendo,
57 Nos curtos vôos a razão se trave.

“Mas fala, idéias tuas me dizendo.” —
— “O que parece aqui ser diferente
60 De corpo raro e denso vir stou crendo.” —

— “Tu verás” — replicou — “bem claramente
Ser falsa a crença tua, se escutares
63 Os argumentos, que lhe oponho em frente.

— “Na oitava esfera há muitos luminares,
Nos quais, por qualidade e por grandeza,
66 Notam-se aspetos vários, singulares.

“Se o denso e o raro atua, com certeza
Virtude única em todos tem regência,
69 Influindo com mais, menos graveza:

“São as virtudes várias conseqüência
Dos princípios formais que destruídos
72 Seriam, exceto esse: é de evidência.

“Se são por corpo raro produzidos
Tais sinais, ou neste astro muitos postos
75 De matéria estão destituídos,

“Ou, como o gordo e o magro sobrepostos
No corpo vês, quadernos diferentes
78 Este astro em seu volume tem dispostos.

“Nesse caso estariam bem patentes
Nos eclipses do sol da luz efeitos,
81 Que são, nos corpos raros, transparentes.

“Assim não é. No outro, se desfeitos
Forem seus fundamentos, demonstrado
84 Terei teu erro em ambos os respeitos.

“Não indo o raro de um ao outro lado
Limite deve haver onde, já denso,
87 Não possa o corpo ser atravessado;

“E sobre si o lume torne intenso,
Bem como a cor, por vidro refletida,
90 Ao qual o chumbo é por detrás apenso.

“Dirás que a luz se mostra escurecida
Aí, mais do que outra e em qualquer parte,
93 Por ser de mais distância refrangida.

“Desta instância consegue libertar-te
Experiência, se dela te ajudares,
96 Por ser sói a fonte de toda arte.

“De espelhos três se a dois tu colocares
Com igual intervalo, e o derradeiro
99 Mais longe, entre os primeiros encarares;

“Se houveres pelas costas um luzeiro,
Que os espelhos já ditos esclareça,
102 Dos dois repercutido e do terceiro:

Conquanto uma extensão menor pareça
No espelho que se avista mais distante,
105 Verás como igual luz o resplandeça.

“Como aquecida do astro rutilante,
A neve se derrete e se esvaece,
108 A frigidez perdendo e a cor brilhante,

“Assim, pois que o teu erro desparece,
Mostra-te clarão vou tão refulgente,
111 Que cintila qual luz que do céu desce.

“No céu da paz divina um corpo ingente
Gira: em sua virtude está guardado
114 O ser de quanto é ele o continente.

“O céu seguinte, de astros marchetado,
Aquele ser reparte por essências
117 Distintas, mas que tem nele encerrado.

“Os outros céus, por várias influências,
Distinções que contêm, dispõe, lhes dando
120 Quanto serve aos seus fins e conseqüências.

“Esses órgãos do mundo (estás notando)
Seguem, pois, gradação, que não varia;
123 Vêm de cima os que abaixo vão passando.

“Comprendes já como é segura a via,
Por onde ir à verdade desejada:
126 Depois o vau tu passarás sem guia.

“Deve aos santos motores imputada
Ser, como ao fabro o efeito do martelo,
129 Dos céus a ação, desta arte revelada.

“E o céu, que tantos lumes fazem belo,
Do Ser Supremo, que no espaço o agita.
132 A imagem toma e a insculpe como selo.

“E como alma, que a humana argila habita,
Por diferentes membros atuando,
135 Faculdades diversas exercita,

“A Inteligência assim multiplicando
Dos astros nos milhões sua bondade,
138 Sobre a Unidade sua vês girando.

“Cada virtude, em sua variedade,
A cada precioso corpo é unida
141 A que dá, como em vós vitalidade.

“A virtude, em tais corpos infundida
Refulge, de um ser ledo procedente
144 Qual ledice em pupila refletida.

“Daí vem que uma luz de outra é dif’rente,
Não por efeito do que é denso e raro:
Esse é formal princípio eficiente

148 Conforme a sua ação o turvo e o claro.” —



11. Pão dos anjos, teologia. — 14. Salso argento, o mar. — 16. A que em Colcos surgiu gente guerreira, os Argonautas que se espantaram quando Jasão arou o campo com dois touros que expeliam flamas pelas narinas e semeou os dentes do monstro que havia matado, do que surgiram guerreiros (Ovídio, Met. VII). — 34. Per’la eterna, a lua. — 51. Sobre Caim se hão fábulas urdido, segundo uma crendice popular, as manchas da lua representavam Caim carregando um feixe de espinhos. — 60. De corpo raro e denso, Dante havia escrito no Convívio que as manchas lunares eram partes rarefeitas do astro. — 73-90. Se a lua tivesse algumas partes transparentes não haveria possibilidade de verificar-se o eclipse do sol. Se as partes rarefeitas não são transparantes deveria haver ao oposto delas, como num espelho, partes densas que impediriam a transparência. Nesse último caso, porém, os raios externos, como no espelho, deveriam refletir-se. — 112. No céu da paz, o Empíreo. — 112-13. Um corpo ingente gira, o primeiro móvel, que influencia os outros céus. — 127. Santos motores, os anjos que agem em cada um dos céus. — 130-132. E o céu, que tantos lumes fazem belo etc., aquele Céu que tantas estrelas fazem belo, recebe da divina inteligência a virtude e a imprime nos outros céus.



CANTO III



Na lua estão as almas daqueles que não cumpriram plenamente seus votos religiosos. Aparece ao Poeta a alma de Picarda Donati, que resolve uma sua dúvida sobre o contentamento dos espíritos bem-aventurados. Narra-lhe como foi violentamente tirada do mosteiro. Indica-lhe a alma da imperatriz Constança.



O SOL por quem primeiro ardeu meu peito,
Provando e refutando, me mostrara
3 Da formosa verdade o doce aspeito.

Por confessar-me do erro, em que vagara,
Quanto possível fosse, convencido,
6 Mais alto a fronte para a sua alçara.

Eis fui de uma visão tal possuído,
Que olvidei meu desejo inteiramente,
9 Ficando em contemplá-la submergido.

Bem como em cristal puro e transparente,
Ou nágua clara, límpida e tranqüila,
12 Que deixa à vista o fundo seu patente,

A imagem nossa quase se aniquila,
Em modo, que uma per’la em nívea fronte
15 Se faz mais perceptível à pupila,

Assim, dispostas a falar defronte
Várias figuras vi: eu no erro oposto
18 De Narciso caí amando a fonte.

Eu, cuidando as feições do seu composto
Ver num espelho, súbito volvia,
21 Por bem saber quem fosse, atrás o rosto.

Ninguém vi. Logo o gesto me atraía
Da doce guia, que, a sorir-me estando,
24 Dos santos olhos no esplendor ardia.

— “No sorriso, não pasmes, reparando,
A causa é” — diz — “teu pueril engano,
27 À verdade caminhas vacilando.

“Andas em falso, como sóis, de plano:
Verdadeiras substâncias estás vendo;
30 Trouxe-as aqui dos votos seus o dano.

“Interroga, o que ouvires crer devendo;
Pois da verdade a luz, que as esclarece,
33 As conduz, de todo erro as defendendo.” —

Volto-me então à sombra, que parece
Mais desejosa de falar: torvado
36 Começo, e a voz impaciência empece.

— “Tu, espírito eleito, que, enlevado,
Da vida eterna aqui fruis a doçura,
39 Que entende só quem tem expr’imentado,

“Grã mercê me farás, se porventura
Disseres o teu nome e a sorte vossa.” —
42 A responder-me leda se apressura.

— “Ao bom desejo a caridade nossa,
Como a que manda a corte sua inteira
45 Imitá-la, defere quanto possa.

“Eu era lá no mundo virgem freira:
Diz-te a memória, se as feições me guarda,
48 Que sou, posto mais bela, e verdadeira.

“Atenta bem: verás que sou Picarda:
Estou nesta bendita companhia,
51 Venturosa na esfera, que é mais tarda.

“As nossas afeições que inflama e guia
Somente a inspiração do Esp’rito Santo,
54 Enlevam-se em cumprir ordens que envia.

“A sorte, ao parecer somenos tanto,
Nos coube, por ter sido descurado
57 O sacro voto e em parte posto a um canto.” —

Respondi-lhe: — “No aspeito sublimado
Vosso rebrilha um não sei que divino,
60 Que o tem do que foi de antes transmutado.

“Não fui, pois, em lembrar-me repentino;
Porém, do que disseste me ajudando,
63 Eu do que hás sido em recordar-me atino.

“Mas vós que estais aqui dita logrando
Não sentis de outro céu desejo ardente
66 Por ver mais alto mais amor gozando?” —

Sorriu-se a sombra e as outras docemente;
E disse da alegria radiante,
69 O seu primeiro amor como quem sente:

“Rege o nosso querer, em paz constante,
A caridade, irmão: só desejamos
72 O que ora temos e não mais avante.

“Anelando ir mais alto do que estamos,
Seríamos rebeldes à vontade,
75 A que aprouve esta estância, que habitamos.

“Pois nos cumpre existir na caridade,
Surgir não pode em nós tal pensamento,
78 Dessa virtude oposto à santidade.

“Condição de eternal contentamento
É preceito cumprir do Onipotente:
81 Um só com ele é logo o nosso intento.

“Do reino em cada plaga refulgente
Somos, do reino todo muito ao grado
84 E do Rei, que à sua lei nos molda a mente.

“Seu preceito a paz nossa se há tomado:
Ele é mar a que tudo precipita,
87 Que cria, ou faz natura ao seu mandado.” —

Conheço então que o Paraíso habita
Quem stá do céu em qualquer parte, e vejo
90 Não chover de um só modo a suma dita.

Mas, se um manjar sacia, dado o ensejo,
E de outro resta o apetite vivo,
93 Um se agradece, expondo-se o desejo.

Por gesto e voz assim fiz-me expressivo
Para a tela saber que a lançadeira
96 Não rematara com lavor ativo.

— “Perfeita em vida, em mérito altaneira
Acima santa está, que há regulado
99 Vestes e véus, com que professa freira,

“Até finar-se, vele ou durma ao lado
Desse esposo, que todo voto aceita,
102 Se lhe é por caridade consagrado.

“Menina e moça, à sua regra estreita
Submeti-me, e do mundo me apartando
105 Jurei aos seus preceitos ser sujeita.

“Roubou-me à paz do claustro iníquo bando,
Mais à maldade do que ao bem afeito:
108 Qual foi Deus sabe o meu viver, penando!

“Este fúlgido esp’rito, em cujo aspeito
(À direita demora-me) se acende
111 Quanto lume o céu nosso tem perfeito,

“O que digo de mim de si o entende;
Sendo freira, como eu foi-lhe arrancado
114 O santo véu, que o voto à fronte prende.

“Mas, ao mundo tornando de mau grado,
Que os seus piedosos usos ofendia,
117 Guardou fiel seu peito ao sacro estado.

“É a excelsa Constância a que radia:
Deu de Suábia ao Imperador segundo
120 Herdeiro, em que extinguiu-se a dinastia.” —

Calou-se; e logo do Ave o hino jucundo
Cantou: cantando aos olhos desparece,
123 Qual peso, que mergulha em mar profundo.

Segui-la a vista quis quanto pudesse;
De desejo invencível atraída,
126 Voltou-se, quando em todo se esvaece,

E em Beatriz fitou-se embevecida.
Mas era o rosto seu tão fulgurante,
Que ante o lume sentiu-se esmorecida.

130 Pelo efeito atalhei-me titubante.



1. Sol da beleza, Beatriz — 17-18. No erro oposto de Narciso, Narciso se enamorou da sua imagem na fonte, tomando-a por pessoa verdadeira. Dante caiu no erro oposto. — 49. Picarda Donati, irmã de Forese e de Corso, freira de Santa Clara, foi obrigada pela sua família a casar-se com Rossellino della Tosa. — 95-96. A tela a saber que a lançadeira etc., o motivo pelo qual faltou aos votos que tomara — 98. Acima Santa está, Santa Clara. — 118. Constância, filha de Rogério, rei das Apúlias e de Sicília, casada com Henrique VI e mãe de Frederico II.

CANTO IV



Duas dúvidas agitam o espírito do Poeta. A primeira é relativa à doutrina platônica, segundo a qual todas as almas voltam para as estrelas donde saíram. A outra, se a violência tolhe a liberdade, como pode ser justo que as almas forçadas a romper os votos tenham desconto de glória? Beatriz responde à primeira dúvida restringindo o sentido da doutrina platônica. Relativamente à segunda diz que aquelas almas não consentiram no mal, mas não o repararam, voltando ao claustro, quando tiveram possibilidade de fazê-lo.



DE igual modo distantes e atraentes,
Homem livre entre cibos dois morrera
3 De fome, antes que num metesse os dentes.

Cordeiro assim, sem se mover, temera
No meio de dois lobos truculentos;
6 Um galgo entre dois gamos não correra.

Calando-me entre opostos pensamentos,
Louvor não merecia, nem censura;
9 Necessário era então nos meus intentos,

Mas no semblante o anelo se afigura;
Constrangido silêncio o denuncia
12 Melhor que a voz, quando expressão apura.

Fez Beatriz, qual Daniel fazia
Para os assomos moderar da ira,
15 Que ao mal Nabucodonosor movia.

— “Dos desejos cada um tua alma tira”
— Disse — “e estando em tais laços enleada,
18 Tolhido o raciocínio, não respira.

“Discorres: se a vontade contrastada
No bem persiste, pode porventura
21 Em méritos julgar-se amesquinhada?

“Turbar-te inda outra dúvida procura:
Se das estrelas a alma torna ao meio,
24 Como Platão filósofo assegura.

“Destes problemas dois te nasce o enleio.
No derradeiro o exame principia
27 Porque do erro mais fel há no seu seio.

“Não têm anjo, que em Deus mais se extasia
Moisés e Samuel, João Batista,
30 O Evangelista, nem também Maria,

“Lugar em céu dif’rente do que a vista
De espíritos te deu que hão se mostrado:
33 Num só têm todos a eternal conquista.

“O Empíreo é por todos adornado,
Hão todos doce vida variamente,
36 Conforme o eterno sopro é facultado.

“Se nesta esfera os viste, certamente,
Não foi por destinada lhes ter sido,
39 Grau só denota menos eminente.

“Assim por mente humana comprendido
Será, pois se eleva ao entendimento
42 Do que é pelos sentidos percebido.

“Por ter do que sois vós conhecimento
A Escritura atribui, mas al entende,
45 Pés e mãos ao Senhor do firmamento.

“Em figurar a Igreja condescende
Gabriel e Miguel e o que a Tobia
48 Curou, sob a feição, que à humana tende.

“Timeu esta verdade contraria
No que acerca das almas argumenta;
51 Parece crer à letra o que anuncia.

“Ao seu astro voltar a alma sustenta,
Supondo que ela à terra descendera,
54 Quando, por forma ao corpo unida, o alenta.

“Talvez diversa idéia concebera
Do que nas vozes suas emitira,
57 Escarnecida ser não merecera.

“Se a honra ou vitupério atribuíra
Aos astros de influir na vida humana,
60 Na verdade talvez firmasse a mira.

“Mal entendido, o seu princípio dana
O mundo quase inteiro, que prestara
63 A Jove e a Marte adoração insana.

“A dúvida segunda te depara
Menos veneno, pois o mal, que encerra
66 Para longe de mim não te afastara.

“Que a Justiça Divina lá na terra
Pareça injusta é, de péssima heresia,
69 Argumento de fé, que jamais erra.

“Mas, como a humana mente poderia
Às alturas alar-se da verdade,
72 Vou dar-te, o que o desejo te sacia.

“Constrangimento havendo, se, à maldade
A vítima se opondo, em luta insiste,
75 Desculpa elas não têm, sem dubiedade.

“Não se abate a vontade, se persiste;
Sempre se ergue, qual flama cintilante:
78 A força a estorce, vezes mil resiste.

“Por menos que se dobre vacilante,
Cede à força: voltar ao santo abrigo
81 Puderam, tendo o ânimo constante.

“Se o querer fosse inteiro no perigo,
Como Lourenço no braseiro ardente,
84 Ou Múcio, que à mão sua deu castigo,

“Em livres sendo, a estrada incontinênti
Do dever seguiriam pressurosas;
87 Mas raro é tal valor na humana gente.

“Se atendeste, razões dei poderosas
Para ficar tua dúvida solvida:
90 Causa te fora a angústias afanosas.

“Mas ante os olhos ora vês erguida
Outra ainda mais grave, que, por certo,
93 Não fora por ti só desvanecida.

“Já te hei bem claramente descoberto
Que não pôde mentir alma ditosa
96 Pois da Suma Verdade é sempre perto.

“Narrou depois Picarda que extremosa
No seu amor ao véu fora Constância,
99 Ao revés do que eu disse cautelosa.

“Na existência há mais de uma circunstância,
Em que se faz, perigos receando,
102 O que é vedado ou move repugnância.

“Do pai ardentes rogos respeitando,
A sua mãe Alcmeon cortava a vida,
105 Por piedade impiedoso se tornando.

“Fique, pois, a tua mente convencida
De que ao querer se a força anda ajustada,
108 Não há desculpa à falta cometida.

“A vontade absoluta é declarada
Inimiga do mal: cede temendo
111 Ser, pela oposição, mais lastimada.

“A verdade absoluta em mira tendo,
Picarda discorreu: de outra eu falava.
114 Verdade ambas estamos defendendo.” —

Do santo rio a luz assim manava,
Da Fonte da verdade é derivada:
117 Cada um dos meus desejos contentava.

— “Ó do Primeiro Amante excelsa amada!
Ó santa” — eu disse — “cuja voz me anima,
120 Me inunda e a força aviva à alma abrasada!

“Afeto meu que ao extremo se sublima,
Não basta por tornar graça por graça:
123 Que o Senhor minha dívida redima!

“Não há, bem sei, não há quem satisfaça
A mente, se a Verdade não comprende
126 Fora da qual outra nenhuma passa.

“A mente ali se refocila e prende,
Qual fera, que em seu antro empolga a presa:
129 De outra sorte o desejo em vão se acende.

“E por isso ao pé nasce da certeza,
Como vergôntea, a dúvida e nos leva
132 De cimo em cimo até sublime alteza.

“Com toda a reverência que vos deva,
Ouso pedir-vos me expliques, Senhora,
135 Outra verdade, que me está na treva:

“Os rotos votos, que homem sente e chora,
Pode suprir com mérito dif’rente,
138 Que iguale em peso o que perdera outrora?” —

Beatriz me encarou: tão refulgente
Lhe rebrilhava o olhar e tão divino,
Que me volto, sentindo a força ausente,

142 E, quase aniquilado, a fronte inclino.



13. Qual Daniel etc., Beatriz interpretou o pensamento de Dante, como Daniel o sonho de Nabucodonosor, que queria mandar matar os seus sábios por não terem podido interpretá-lo. — 24. Como Platão filósofo assegura, segundo a teoria platônica as almas são criadas antes dos corpos e habitam as estrelas, a elas voltando, depois da morte do corpo. — 28-32. Não tem anjo etc., todos os anjos e santos não têm, no céu, lugar diferente daquele dos espíritos que agora apareceram. — 47. O que a Tobia curou, o Arcanjo Gabriel que curou a cegueira de Tobias. — 49 Timeu, diálogo de Platão no qual se fala da imortalidade da alma. — 61-63. Mal entendido, o seu princípio dana, etc., a opinião, mal entendida, da ação das estrelas sobre a alma, talvez, leva ao erro, e, por isso, deram-se aos planetas os nomes de Jove e Marte e foram eles adorados. — 83. Lourenço, condenado a morrer queimado vivo. — 84. Muzio, Scevola, para punir-se, fez queimar sua mão sobre um braseiro. — 104. Alcmeon, filho de Anfiarau, matou a mãe Erifiles, v. Purgatório, XII, 50.



CANTO V



Continuando no discurso do canto anterior, Beatriz explica a Dante que o voto é um pacto entre o homem e Deus. Pode mudar-se a matéria do voto, mas deve ser substituída com oferecimentos de maior mérito. Beatriz lamenta a leviandade dos cristãos.

Beatriz e Dante voam depois para a esfera de Mercúrio, onde estão as almas dos homens que viveram uma vida digna, adquirindo fama no mundo. Um espírito fala ao Poeta.



SE no fogo do amor te resplandeço
Em modo, que o terreno amor precede;
3 Se aos olhos teus a força desfaleço;

“Não te espantes: efeito é que procede
Desse perfeito ver, que o bem compreende,
6 E, o compreendendo, em se apurar progrede.

“Já patente me está quanto resplende
Na inteligência tua a Luz eterna,
9 Que, apenas vista, sempre amor acende;

“E, se outro objeto humano amor governa,
Vestígio dela é só mal percebido,
12 Só transluzindo em sua forma externa.

“Saber queres se um voto não cumprido
É de outras obras resgatado, e tanto,
15 Que em juízo de Deus fique absolvido.” —

Começou Beatriz desta arte o canto;
E, como quem no discorrer não pára,
18 Seguiu assim no seu elóquio santo:

“O mor bem que ao universo Deus doara,
O que indicara mais sua bondade
21 O que em preço mais alto avaliara,

“Foi do querer, por certo, a liberdade,
Que a toda criatura inteligente
24 Há dado em privativa faculdade.

“Daqui, por dedução, fica evidente
Do voto a alta valia, quando é feito
27 Por acordo entre Deus e a humana mente.

“Por contrato, entre Deus e o home’ aceito,
Esse tesouro é vítima imolada,
30 Que ao sacrifício vai com ledo aspeito.

“Pode ser porventura compensada?
Se cuidas usar bem do que ofertaste,
33 Crês fazer bem com prata mal ganhada.

“Certo do ponto capital ficaste;
Com a dispensa a Igreja, parecendo
36 Em tal caso contrário ao que escutaste,

“Convém, que um pouco à mesa te detendo,
Para o rijo manjar, que hás ingerido,
39 Socorro aguardes, que te dar pretendo.

“Ao que te explico atento presta ouvido
E guarda-o na alma; pois não dá ciência
42 Ouvir o que depois fica no olvido.

“Exige do sagrado voto a essência
Aquele objeto em sacrifício dado
45 E do próprio contrato a consistência.

“Jamais pode ser este obliterado,
Ainda que infringido: já bem clara
48 Demonstração sobre este ponto hei dado.

“Lei rigorosa a Hebreus determinara
Fazer pia oblação; mas concedida
51 A permuta da oferta lhes ficara.

“Da matéria do voto é permitida
Conversão quando ensejo se oferece,
54 Sem ser por isso falta cometida.

“Mas não se muda, quando bem parece,
O fardo; só se a Igreja, tendo usado
57 Das chaves de ouro e prata, o concedesse.

“Crê que toda permuta é passo errado,
Quando o antigo no novo não se inclua,
60 Bem como quatro em seis vês encerrado.

“Se o voto é tal na gravidade sua,
Que obrigue a se inclinar toda balança,
63 Outro voto não há, que o substitua.

“Não contraí, mortais, votos por chança!
Cumpri-os, mas não Jefté imitando,
66 A quem deu louco voto a desesp’rança.

“— Fiz mal! — dissesse ao voto seu faltando,
Por não fazer pior cumprindo-o. Estulto
69 Foi o potente Rei dos gregos, quando

“À filha fez chorar seu belo vulto
E à piedade moveu quantos ouviram
72 Falar daquele abominável culto.

“A razões pesai bem, que vos inspiram,
Cristãos! não sêde pluma a qualquer vento!
75 As nódoas com toda a água se não tiram!

“Tendes o Velho e o Novo Testamento
E da Igreja o pastor, que os passos guia:
78 Que mais quereis por vosso salvamento?

“Se má cobiça o peito vos vicia,
Homens sêde e não brutos animais:
81 Que entre vós o Judeu de vós não ria.

“Como o cordeiro simples não façais,
Que contra si combate petulante,
84 Da mãe o leite não querendo mais.” —

Beatriz assim disse. Eis anelante
E arrebatada em êxtase voltou-se
87 À parte, onde o universo é mais brilhante.

Ante o enlevo em que o gesto transmutou-se,
Calou-se o meu desejo impaciente:
90 De outras questões, já prestes, refreou-se.

Como a seta, que o alvo de repente
Atinge antes que a corda esteja quieta,
93 No céu segundo entramos velozmente.

Tão leda eu via Beatriz dileta,
Daquele céu nas luzes penetrando,
96 Que mais vivo esplendor mostra o planeta.

E se a estrela sorriu, se transformando,
Como não fiquei eu, que fez natura
99 Mudável, impressões todas tomando?

Como viveiro de água mansa e pura,
Pela esp’rança, de pasto, que se of’reça,
102 Sofregamente o peixe o anzol procura,

Mais de mil esplendores vindo à pressa,
— “Eis aí quem nos traz de amor aumento!” —
105 A voz de cada qual nos endereça.

De cada sombra o alegre sentimento,
Em se acercando a nós, se denuncia
108 No fulgor do seu claro luzimento.

Quão sôfrego o desejo não seria
Em ti leitor, se acaso interrompesse
111 A narração de quanto então se via?

Imaginas, portanto, o que eu tivesse
De conhecer aquela grei formosa,
114 Tanto que ante os meus olhos aparece.

— “Ó criatura, que assim vês ditosa
Os tronos do eternal triunfo, inda antes
117 De finda a terreal guerra afanosa,

“Nos lumes, que no céu há mais brilhantes,
Ardemos: te darei, se as pretenderes,
120 Ao teu desejo informações bastantes.” —

Assim falou. — “Responde que assim queres.” —
A Beatriz ouvi — “diz com franqueza,
123 E crê como divino o que entenderes.”

— “O ninho tens, já vejo com certeza,
Na luz eterna: o seu fulgor revela
126 Dos olhos teus, sorrindo-te a viveza.

“Mas não sei quem tu és, ó alma bela,
Nem por que por degraus tens esta esfera,
129 Que aos mortais nos clarões de outra se vela.”

Assim disse, voltado à luz que houvera
Primeira a voz alçado: refulgindo,
132 Mais coruscante a vi ao que antes era.

Bem como o sol os lumes encobrindo
No seu próprio esplendor quando esvaece
135 As cortinas que estavam-nos cingindo,

Da alegria no excesso desparece
Nos próprios raios a figura santa.
Na sua luz envolta que recresce,

139 Disse o que o canto que se segue canta.



56-57. Só se a Igreja etc., só se a Igreja, que possui a chave de prata (da ciência) e de ouro (da autoridade) o permitir. — 65. Jefté, juiz de Israel, fez o voto, se vencesse os Amonitas, de sacrificar a primeira pessoa que encontrasse no caminho; e esta foi a sua filha. — 69. O potente rei dos Gregos, Agamenon prometeu aos deuses o que possuía de mais belo. Chorou depois a beleza da sua filha Ifigênia.

CANTO VI



A alma do imperador Justiniano fala ao Poeta. Narra-lhe a história do Império, de Enéias a César, a Tibério, a Tito, a Carlos Magno, para mostrar-lhe a santidade da autoridade imperial. Diz-lhe que no Céu de Mercúrio estão os espíritos daqueles que se esforçaram para conseguir fama imortal. Discorre-lhe acerca de Romeu, que administrou a corte de Raimundo Beranguer, conde de Provença.



“DEPOIS que Constatino a Águia voltara
Contra o curso do céu, que ela seguira
3 Pós o herói, que Lavínia conquistara,

“Duzentos anos já passados vira
Da Europa em confins de Deus essa ave,
6 Vizinha aos montes, donde se partira;

“Das plumas sob a sombra ampla e suave,
De mão em mão o mundo há dominado,
9 Té comigo reger do Império a nave.

“César, Justiniano fui chamado.
Do Amor, que sinto, por querer movido,
12 O supérfluo das leis hei cerceado.

“Antes de ter a empresa cometido,
Uma só natureza acreditava
15 Ter Cristo e andava nessa fé perdido.

“Mas de Agapeto santo que mandava
De Roma Santa Igreja, a voz potente
18 Levou-me à crença pura, que eu deixava.

“O que então disse, eu vejo claramente,
Pois, como vês, contradição implica
21 Uma falsa asserção e outra evidente.

“Quando eu cri no que a Igreja certifica,
Minha mente, de Deus por alta graça,
24 Logo à sublime empresa se dedica.

“Belisário a reger as armas passa;
No favor, que lhe deu poder divino
27 Sinal vi que me ordena a paz se faça. —

“A responder-te, o que ouves tem destino;
Mais o que hei dito agora a tanto obriga,
30 Que a mor explicação dar-te me inclino.

“Verás que sem razão vontade imiga
Move-se contra esse estardarte santo,
33 Quando o tenta usurpar, quando o profliga.

“Pelos fatos verás respeito quanto
Mereceu desde a honra em que Palante
36 Morreu por dar-lhe de sob’rano o manto.

“Em Alba sabes como foi constante
Por mais de anos trezentos té lutarem
39 Três contra três por que ele fosse avante.

“Sabes quanto ele fez por se curvarem
Vizinhos desde o roubo das Sabinas
42 Té Lucrécia expirar e os Reis findarem.

“Sabes que glória teve nas mãos di’nas
De heróis, que Breno e Pirro combateram,
45 E de outros reis coligações mali’nas;

“Décios, Fábios, Torquatos lhe deveram
E Quíncio Cincinato, que amo e louvo
48 A fama das vitórias, que tiveram;

“Calcou o orgulho do Africano povo,
Que por fraguras, donde, o Pó, te envias,
51 Sob Aníbal, abriu caminho novo.

“Fez triunfar da juventude em dias
Cipião e Pompeu, e assaz desgosto
54 Causou às tuas pátrias serranias.

“Perto dos tempos, em que o céu disposto
Havia, por seus fins, dar paz ao mundo.
57 Em mãos de César Roma o teve posto.

“O que ele fez do Var ao Rin profundo
Isara há visto e o Era, há o Sena
60 E esse vale, onde o Rone é sem segundo.

“Passando o Rubicon, após Ravena,
Com César a Águia tanto em vôo alçou-se,
63 Que o não pôde seguir nem voz, nem pena.

“Depois que para a Espanha remontou-se,
A Durazzo e a Farsália acometia:
66 Do efeito o ardente Nilo perturbou-se.

“O Simoente e Antandro então revia,
Seu berço, em que a de Heitor cinza descansa;
69 E sem detença a Ptolomeu se envia.

“Dali, qual raio, logo Juba alcança;
Depois volve-se às terras do Ocidente,
72 Onde os sons de Pompeu a tuba lança.

“Nas mãos de outro o que fez essa ave ingente
No inferno Bruto e Cássio estão sentindo,
75 Sofrem Perúgia e Módena tremente.

“Cleópatra inda vai triste carpindo
Atroce morte, que da serpe toma,
78 Da Águia os assaltos pávida fugindo.

“Até o Roxo mar tudo a Águia toma,
E ao mundo tão serena a paz se inclina,
81 Que em fim de Jano as portas fecha Roma.

“O que fez e faria a ave divina
Para trazer à fama sua aumento
84 Nesse império mortal, em que domina,

“Parece escasso em seu merecimento,
Quando em mãos de Tibério a contemplamos
87 Com puro afeto e claro entendimento;

“Pois que a viva justiça, que adoramos
Lhe há nessas mãos a glória concedido
90 De dar vingança às iras, que incitamos.

“Sê, me ouvindo, de espanto possuído:
Águia a vingança do pecado antigo
93 Depois com Tito há por tornar corrido.

“Quando, mordida por lombardo imigo,
Gemia a Santa Igreja, à sombra da ave
96 Salvou-a Carlos Magno do perigo.

“Podes julgar, portanto, do erro grave
Daqueles, cujas faltas hei notado,
99 Causa do mal que vês quanto se agrave.

“Contra o sacro estandarte um tem hasteado
Áureo lírio, outro o quer por seu partido:
102 Custa dizer qual seja o mais culpado.

“Gibelinos, no iníquo andar sabido
Outra bandeira sigam; que à justiça
105 Culto esta exige nunca interrompido.

“Carlos novo a batê-la em vão cobiça
Com Guelfos; temas as garras, que arrancaram
108 A mais forte leão juba inteiriça.

“Mais de uma vez os filhos já choraram
Pelas culpas do pai: é louca a esp’rança, —
111 De que de Deus favor lírios ganharam.

“O planeta, em que habito agora, estança
É de almas generosas que honra e fama
114 Aspiraram do mundo na lembrança.

“Quando os desejos deste modo inflama
O incentivo da glória, aos céus ascende
117 Do vero amor menos ativa a chama.

“Mas nossa dita em parte compreende
Dos méritos e prêmio no confronto:
120 Nem menor, nem maior nenhum se entende

“Pois da viva justiça o feito pronto
Tanto os afetos nos ameiga e apura,
123 Que nequícia os não torce em nenhum ponto.

“Vozes várias de sons formam doçura:
Assim os vários graus na eterna vida
126 Doce harmonia fazem nesta altura.

“Nesta per’la, em que estás, bela e polida,
Rebrilha de Romeu claro luzeiro,
129 Virtude ínclita e mal agradecida.

“Os provençais, pelo ato traiçoeiro,
Não se riram; caminho segue errado
132 Quem o bem de outro inveja sobranceiro.

“Às filhas grato de rainha o estado
Conseguiu Beranguer: tal bem devia
135 A Romeu, nome humilde e não falado.

“Preso na trama que a calúnia urdia,
Que aumentado no quinto o erário havia;
138 Do erário contas exigiu do justo,

“Romeu partiu-se então pobre e vetusto:
Se o mundo o coração lhe aquilatara,
Quando, mendigo, se mantinha a custo,

142 Louvor muito maior lhe dispensara.” —




1-3. Depois que Constantino a Águia voltara etc., depois que Constantino transferiu o Império de Roma para Bizâncio. — 10. Justiniano, imperador romano e grande legislador, que reinou duzentos anos depois de Constantino, pois começou o seu reinado em 527. — 14. Uma só natureza etc., a doutrina de Eutíquio segundo a qual Cristo tinha só a natureza humana. — 16. Agapeto, o papa Agabito. — 25. Belisário, grande capitão que combateu na Itália contra os Godos. — 32. Esse estandarte sacro, o emblema do Império, que representava a águia. — 35. Palante, companheiro de Enéias, morreu combatendo contra Turno. — 37. Alba, cidade fundada por Ascânio, filho de Enéias. — 39. Três contra três, combatimento dos Horácios contra os Curiácios. — 41. O roubo das Sabinas, o rapto das mulheres dos Sabinos, efetuado pelos Romanos. — 42. Lucrécia, mulher de Colatino, foi violentada por Tarquinio, daí resultando a rebelião dos Romanos contra a monarquia. — 44. Breno e Pirro, o primeiro general dos Galos, o segundo rei do Épiro, que invadiram a Itália. — 46-47. Décios, pai, filho e neto morreram pela pátria; Fábios, ilustre família romana; Torquatos, T. Manlio Torquato; Quíncio, Q. Lúcio Cincinato. — 51. Aníbal, general cartaginês que invadiu a Itália. — 67. Simoente, rio perto de Tróia; Antadro, cidade da Frísia. — 73. Nas mãos do outro o que fez César, Augusto vingou a morte de César. — 76. Cleópatra, rainha do Egito, suicidou-se. — 93. Tito, destruiu Jerusalém, cujos habitantes tinham crucificado a Jesus Cristo. — 94. Lombardo imigo, Desidério, último rei longobardo que foi derrotado por Carlos Magno. — 101. Áureo lírio, as armas da Casa de França. — 106. Carlos novo, Carlos II de Anjou, chefe do partido guelfo. — 128. Romeu, segundo conta G. Villani, foi administrador de Raimundo Beranguer, conde de Provença, aumentando-lhe o patrimônio e conseguindo casar as filhas de Raimundo com quatro reis. Caluniado, não quis mais ficar na corte de Provença e, velho e pobre, desapareceu.


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