INFERNO ... Cantos I-V ... VI-XI ... XII-XVII ... XVIII-XXIII ... XIV-XXIX ... XXX-XXXIV
PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII
PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII
—PARAÍSO—
CANTO I
Invocando
Apolo, o Poeta conta como do Paraíso Terrestre ele e Beatriz se alçaram ao Céu,
atravessando a esfera do fogo. Beatriz explica-lhe como possa vencer o próprio
peso e subir. É atraído pelo invencível amor.
Seguindo
as teorias de Ptolomeu, Dante põe a terra imóvel no centro do Universo e, em
redor dela, em órbitas concêntricas, os céus da Lua, de Mercúrio, de Vênus, do
Sol, de Marte, de Júpiter, de Saturno, a oitava esfera, que é a das estrelas
fixas, a nona, ou primeiro móvel, e finalmente o Empíreo, que é imóvel.
Transportado pela força que faz rodar os céus e pela luz sempre crescente de
Beatriz, Dante eleva-se de um céu para outro, e em cada um deles aparecem-lhe
os espíritos bem-aventurados que, quando vivos, possuíram a virtude própria do
respectivo planeta.
À
GLÓRIA de quem tudo, aos seus acenos,
Move,
o mundo penetra e resplandece,
3
Em umas partes mais em outras menos.
No
céu onde sua luz mais aparece,
Portentos
vi que referir, tornando,
6
Não sabe ou pode quem à terra desce;
Pois,
ao excelso desejo se acercando,
A
mente humana se aprofunda tanto
9
Que a memória se esvai, lembrar tentando.
Os
tesouros, porém, do reino santo,
Que
arrecadar-me pôde o entendimento,
12
Serão matéria agora de meu canto.
Faz-me
neste final cometimento,
Bom
Febo, do teu estro eleito vaso,
15
Que tenha ao louro amado valimento.
Fora-me
assaz um cimo do Parnaso;
Daquele
e do outro necessito agora
18
Para vencer na liça a que me emprazo.
Cala
em meu peito, alenta o que te exora!
Sê
como quando a Marsias arrancado
21
Hás do corpo a bainha protetora!
Se,
divinal virtude, eu for entrado
Tanto
de ti, que a sombra represente
24
Do reino que em minha alma está gravado,
Ao
teu querido lenho eu, diligente,
Irei,
por ter a c’roa merecida
27
De ti e deste assunto preminente.
Tão
rara vez é, Padre, igual colhida
Quando
triunfa César ou poeta
30
(Culpa e vergonha do querer nascida)
Que
à Délfica Deidade a predileta
Fronde
excitar devera alta alegria,
33
Se um coração por tê-la se inquieta.
Grande
incêndio em centelha principia;
Voz,
após mim, talvez, mais eloqüente
36
Mais graça em Cirra alcance e mais valia!
Por
várias portas surge refulgente
A
lâmpada do mundo; mas daquela,
39
Onde orbes quatro brilham juntamente
Com
três cruzes, caminha sob estrela
Melhor,
em modo que a mundana cera
42
Mais ao seu jeito retempera e assela.
Dali
nascia a luz; daqui viera
A
noite; e um hemisfério branquejava
45
Enquanto ao outro a treva enegrecera,
Eis
vi que à esquerda Beatriz fitava
Olhos
no sol: jamais águia afrontara
48
Tanto desse astro o lume, que ofuscava.
Como
o raio, que a luz de si despara,
Reflete
outro, que preito retrocede,
51
Qual romeiro, que à volta se prepara,
Esse
ato, com que assim Beatriz procede,
Meu
se tornou nos olhos infundido,
54
E o fitei mais que a um homem se concede.
Muito
do que é na terra defendido,
No
Paraíso é dado à humana gente,
57
A quem fora por dote prometido.
Fitar
o sol não pude longamente.
Mas
assaz para o ver fulgir no espaço,
60
Qual ferro, que do fogo sai candente.
Eis
cuidei ver um dia, ao mesmo passo,
Luzir
com outro, qual se Deus fizera
63
Do céu um sol segundo no regaço.
Sorvidos
Beatriz na eterna esfera
Os
olhos tinha; os meus que eu desviara
66
Dali no seu semblante embevecera.
Contemplando-a,
o meu ser se transformara;
Tal
Glauco, portentosa erva comendo,
69
Igual do mar aos Deuses se tornara.
Significar
per verba não podendo
O
que é transumanar o exemplo baste
72
Ao que o exp’rimente, a graça recebendo.
De
ti, que por teu lume me exaltaste,
Amor
do meu Senhor é conhecido,
75
Se em mim somente havia o que criaste.
Quando
as Sferas, no giro, conduzido
Por
ti no eterno anelo, me enlevaram
78
Com hino ao teu compasso dirigido,
Tantos
etéreos plainos se mostraram
Inflamados
do sol, que nunca os rios,
81
Nem as chuvas um lago igual formaram.
Essa
luz, esses sons (jamais ouvi-os)
De
saber tais desejos me acenderam
84
Que tão pungentes de antes não senti-os.
Ela
em meu coração os viu como eram:
Por
serenar-me o ânimo agitado,
87
Sem me escutar, seus lábios se moveram,
E
disse: — “O teu espírito anda errado
Com
falso imaginar: ’starias vendo
90
O que não vês, se houveras afastado.
“Te
enganas, sobre a terra achar-te crendo:
O
raio tão veloz do céu não desce,
93
Como tu que p’ra o céu vais ascendendo.” —
Se
a dúvida primeira desaparece,
À
voz que o riso segue, lhe escutando,
96
Inda mais outra a mente me escurece.
—
“Modera-se o meu pasmo” — lhe tornando
Falei
— “mas ora muito mais me admira
99
Como estes corpos leves vou passando.” —
Ouvindo,
Beatriz terna suspira
E
me encara piedosa, com semblante
102
De mãe que fala ao filho que delira.
—
“Conservam” — respondeu-me — “ordem constante
As
cousas entre si: esta é a figura
105
Que o universo ao Senhor faz semelhante.
“Ali
vê cada uma alta criatura
Do
Poder Sumo, bem ao claro, o selo,
108
Alvo sublime, que essa lei procura.
“Cada
um entre na ordem, que eu revelo,
Se
vai por modos vários inclinando,
111
Mais ou menos, ao seu princípio belo.
“Para
portos dif’rentes navegando
No
vasto mar do ser, cada qual segue
114
Os instintos que Deus lhe deu, criando.
“Por
Ele a flama à lua alar consegue,
Por
Ele o coração mortal se agita
117
E a terra em sua contração prossegue.
“Seu
poder não somente se exercita,
Qual
arco em seta, em bruto inconsciente,
120
Mas nos entes, que amor, razão concita.
“Tudo
ordenando, o Autor Onipotente
Com
sua luz tem o céu sempre aquietado,
123
Em que gira o que vai mais velozmente.
“Até
lá, como a um alvo decretado,
Desse
arco impele a força poderosa,
126
Quem conduz tudo a venturoso estado.
“Mas,
como, às mais das vezes, revoltosa
A
forma não responde ao intento da arte,
129
Porque a matéria é na surdez teimosa,
“Assim
desta vereda se desparte
A
criatura, para o bem guiada,
132
Que pode propender para outra parte,
“Se,
de falso prazer sendo arrastada,
Baixa
à terra, qual fogo desprendido,
135
De súbito, da nuvem carregada.
“Não
seja mais de espanto possuído:
Como
ao val rio cai de monte altivo,
138
Para a esfera estelífera és erguido.
“De
maravilha fora em ti motivo
Não
subindo; pois stás de estorvo isento;
Não
fica imoto em terra o fogo vivo.” —
142
Disse e os olhos fitou no firmamento.
14.
Febo, Apolo. — 16. Parnaso, o monte Parnaso tinha dois cimos; num moravam as
Musas com Baco, no outro (Elicão ou Cirra) morava Apolo. — 20 Marsias, o sátiro
Marsias desafiou Apolo e foi esfolado pelo deus. — 31. Délfica deidade, Apolo.
— 36. Cirra, parte do Parnaso consagrada a Apolo. — 38. A lâmpada do mundo, o
sol, 38-41. Daquela onde orbes quatro, etc. o ponto do céu no qual se conjuntam
quatro círculos celestes, os quais entrecortando-se formam três cruzes. Caminha
sob estrela melhor, a constelação do Áries. — 41. Mundana cera, a matéria
terrestre. — 43-45. Dali nascia a luz; daqui viera a noite, no hemisfério do
Purgatório amanhecia; no nosso hemisfério caía a noite. — 68. Glauco, pescador
mitológico, ao comer uma erva marinha transformou-se em deus do mar. — 122-23.
O Céu sempre aquietado, em que gira o que vai mais velozmente, o Empíreo
imóvel, dentro ou embaixo do qual gira o primeiro móvel, que é o mais veloz dos
céus.
CANTO II
Sobem
à lua. Exortação aos leitores. Dante pergunta a Beatriz se as manchas da lua
dependem da maior ou menor densidade do astro. Beatriz confuta o erro. Todos os
astros são iluminados pela virtude que do primeiro móvel se difunde aos céus
sotopostos. Na lua a virtude é menor que nos outros céus.
VÓS,
que em frágil barquinha navegando,
Desejosos
de ouvir, haveis seguido
3
Meu baixel, que proeja e vai cantando,
Volvei
à plaga, donde haveis partido,
O
pélago evitai; que, em me perdendo,
6
Vosso rumo talvez tereis perdido.
Ondas
ninguém cortou, que vou correndo,
Sopra
Minerva e me conduz Apolo
9
E o Norte as Musas mostram-me, a que eu tendo.
Vós,
que, raros, a tempo haveis o colo
Erguido
ao pão dos anjos, que alimenta,
12
Mas não sacia, no terráqueo solo,
A
vossa nau guiai, de medo isenta,
No
salso argento, após a minha esteira,
15
Enquanto água o seu sulco inda apresenta.
A
que em Colcos surgiu gente guerreira,
Menos
que vós, atônita ficara
18
Jasão vendo aplicado à sementeira.
Perpétua,
inata sede nos tomara
Do
império deiforme e nos levava
21
Quase bem como o céu, que jamais pára.
Olhava
o céu Beatriz, eu a encarava.
Tão
depressa talvez, quanto arrojada
24
Ao ar, a seta do arco se destrava,
Cousa
vi, que prendeu maravilhada
A
vista minha súbito; e então ela,
27
Que do meu cogitar stava inteirada,
Voltou-se
e disse leda, quanto bela:
“A
Deus eleva a mente, agradecido,
30
Chegados somos à primeira estrela.”
Lúcido,
espesso, sólido e polido
Vulto,
qual nuvem, nos cobrir parece,
33
Quase diamante pelo sol ferido.
Na
per’la eterna entramos: assim desce
Raio
de luz pela água, que recebe
36
No seio, mas unida permanece.
Se
eu era corpo, e aqui se não percebe
Como
uma dimensão outra compreende,
39
Senão se um corpo em outro corpo embebe,
Com
mais razão desejo em nós se acende
De
ver aquela essência, que é patente
42
Como a nossa natura a Deus se prende.
Ali
o que por fé se crê somente
Sem
provas por si mesmo será noto,
45
Como a verdade prima o que o home’ assente.
—
“Ante o Senhor com ânimo devoto
Humilho-me”
— tornei-lhe — “enternecido,
48
Pois do mundo mortal me tem remoto.
“Mas
dizei: neste corpo o que tem sido
As
manchas negras, com que lá na terra
51
Sobre Caim se hão fábulas urdido.” —
Sorriu-se
e respondeu: — “Se assim tanto erra
Dos
mortais o juízo no que a chave
54
Dos sentidos verdade não descerra,
“Não
mais depois o espanto em ti se agrave;
Pois
vês como, aos sentidos se rendendo,
57
Nos curtos vôos a razão se trave.
“Mas
fala, idéias tuas me dizendo.” —
—
“O que parece aqui ser diferente
60
De corpo raro e denso vir stou crendo.” —
—
“Tu verás” — replicou — “bem claramente
Ser
falsa a crença tua, se escutares
63
Os argumentos, que lhe oponho em frente.
—
“Na oitava esfera há muitos luminares,
Nos
quais, por qualidade e por grandeza,
66
Notam-se aspetos vários, singulares.
“Se
o denso e o raro atua, com certeza
Virtude
única em todos tem regência,
69
Influindo com mais, menos graveza:
“São
as virtudes várias conseqüência
Dos
princípios formais que destruídos
72
Seriam, exceto esse: é de evidência.
“Se
são por corpo raro produzidos
Tais
sinais, ou neste astro muitos postos
75
De matéria estão destituídos,
“Ou,
como o gordo e o magro sobrepostos
No
corpo vês, quadernos diferentes
78
Este astro em seu volume tem dispostos.
“Nesse
caso estariam bem patentes
Nos
eclipses do sol da luz efeitos,
81
Que são, nos corpos raros, transparentes.
“Assim
não é. No outro, se desfeitos
Forem
seus fundamentos, demonstrado
84
Terei teu erro em ambos os respeitos.
“Não
indo o raro de um ao outro lado
Limite
deve haver onde, já denso,
87
Não possa o corpo ser atravessado;
“E
sobre si o lume torne intenso,
Bem
como a cor, por vidro refletida,
90
Ao qual o chumbo é por detrás apenso.
“Dirás
que a luz se mostra escurecida
Aí,
mais do que outra e em qualquer parte,
93
Por ser de mais distância refrangida.
“Desta
instância consegue libertar-te
Experiência,
se dela te ajudares,
96
Por ser sói a fonte de toda arte.
“De
espelhos três se a dois tu colocares
Com
igual intervalo, e o derradeiro
99
Mais longe, entre os primeiros encarares;
“Se
houveres pelas costas um luzeiro,
Que
os espelhos já ditos esclareça,
102
Dos dois repercutido e do terceiro:
Conquanto
uma extensão menor pareça
No
espelho que se avista mais distante,
105
Verás como igual luz o resplandeça.
“Como
aquecida do astro rutilante,
A
neve se derrete e se esvaece,
108
A frigidez perdendo e a cor brilhante,
“Assim,
pois que o teu erro desparece,
Mostra-te
clarão vou tão refulgente,
111
Que cintila qual luz que do céu desce.
“No
céu da paz divina um corpo ingente
Gira:
em sua virtude está guardado
114
O ser de quanto é ele o continente.
“O
céu seguinte, de astros marchetado,
Aquele
ser reparte por essências
117
Distintas, mas que tem nele encerrado.
“Os
outros céus, por várias influências,
Distinções
que contêm, dispõe, lhes dando
120
Quanto serve aos seus fins e conseqüências.
“Esses
órgãos do mundo (estás notando)
Seguem,
pois, gradação, que não varia;
123
Vêm de cima os que abaixo vão passando.
“Comprendes
já como é segura a via,
Por
onde ir à verdade desejada:
126
Depois o vau tu passarás sem guia.
“Deve
aos santos motores imputada
Ser,
como ao fabro o efeito do martelo,
129
Dos céus a ação, desta arte revelada.
“E
o céu, que tantos lumes fazem belo,
Do
Ser Supremo, que no espaço o agita.
132
A imagem toma e a insculpe como selo.
“E
como alma, que a humana argila habita,
Por
diferentes membros atuando,
135
Faculdades diversas exercita,
“A
Inteligência assim multiplicando
Dos
astros nos milhões sua bondade,
138
Sobre a Unidade sua vês girando.
“Cada
virtude, em sua variedade,
A
cada precioso corpo é unida
141
A que dá, como em vós vitalidade.
“A
virtude, em tais corpos infundida
Refulge,
de um ser ledo procedente
144
Qual ledice em pupila refletida.
“Daí
vem que uma luz de outra é dif’rente,
Não
por efeito do que é denso e raro:
Esse
é formal princípio eficiente
148
Conforme a sua ação o turvo e o claro.” —
11.
Pão dos anjos, teologia. — 14. Salso argento, o mar. — 16. A que em Colcos
surgiu gente guerreira, os Argonautas que se espantaram quando Jasão arou o
campo com dois touros que expeliam flamas pelas narinas e semeou os dentes do
monstro que havia matado, do que surgiram guerreiros (Ovídio, Met. VII). — 34.
Per’la eterna, a lua. — 51. Sobre Caim se hão fábulas urdido, segundo uma
crendice popular, as manchas da lua representavam Caim carregando um feixe de
espinhos. — 60. De corpo raro e denso, Dante havia escrito no Convívio que as
manchas lunares eram partes rarefeitas do astro. — 73-90. Se a lua tivesse
algumas partes transparentes não haveria possibilidade de verificar-se o
eclipse do sol. Se as partes rarefeitas não são transparantes deveria haver ao
oposto delas, como num espelho, partes densas que impediriam a transparência.
Nesse último caso, porém, os raios externos, como no espelho, deveriam
refletir-se. — 112. No céu da paz, o Empíreo. — 112-13. Um corpo ingente gira,
o primeiro móvel, que influencia os outros céus. — 127. Santos motores, os
anjos que agem em cada um dos céus. — 130-132. E o céu, que tantos lumes fazem
belo etc., aquele Céu que tantas estrelas fazem belo, recebe da divina
inteligência a virtude e a imprime nos outros céus.
CANTO III
Na
lua estão as almas daqueles que não cumpriram plenamente seus votos religiosos.
Aparece ao Poeta a alma de Picarda Donati, que resolve uma sua dúvida sobre o
contentamento dos espíritos bem-aventurados. Narra-lhe como foi violentamente
tirada do mosteiro. Indica-lhe a alma da imperatriz Constança.
O
SOL por quem primeiro ardeu meu peito,
Provando
e refutando, me mostrara
3
Da formosa verdade o doce aspeito.
Por
confessar-me do erro, em que vagara,
Quanto
possível fosse, convencido,
6
Mais alto a fronte para a sua alçara.
Eis
fui de uma visão tal possuído,
Que
olvidei meu desejo inteiramente,
9
Ficando em contemplá-la submergido.
Bem
como em cristal puro e transparente,
Ou
nágua clara, límpida e tranqüila,
12
Que deixa à vista o fundo seu patente,
A
imagem nossa quase se aniquila,
Em
modo, que uma per’la em nívea fronte
15
Se faz mais perceptível à pupila,
Assim,
dispostas a falar defronte
Várias
figuras vi: eu no erro oposto
18
De Narciso caí amando a fonte.
Eu,
cuidando as feições do seu composto
Ver
num espelho, súbito volvia,
21
Por bem saber quem fosse, atrás o rosto.
Ninguém
vi. Logo o gesto me atraía
Da
doce guia, que, a sorir-me estando,
24
Dos santos olhos no esplendor ardia.
—
“No sorriso, não pasmes, reparando,
A
causa é” — diz — “teu pueril engano,
27
À verdade caminhas vacilando.
“Andas
em falso, como sóis, de plano:
Verdadeiras
substâncias estás vendo;
30
Trouxe-as aqui dos votos seus o dano.
“Interroga,
o que ouvires crer devendo;
Pois
da verdade a luz, que as esclarece,
33
As conduz, de todo erro as defendendo.” —
Volto-me
então à sombra, que parece
Mais
desejosa de falar: torvado
36
Começo, e a voz impaciência empece.
—
“Tu, espírito eleito, que, enlevado,
Da
vida eterna aqui fruis a doçura,
39
Que entende só quem tem expr’imentado,
“Grã
mercê me farás, se porventura
Disseres
o teu nome e a sorte vossa.” —
42
A responder-me leda se apressura.
—
“Ao bom desejo a caridade nossa,
Como
a que manda a corte sua inteira
45
Imitá-la, defere quanto possa.
“Eu
era lá no mundo virgem freira:
Diz-te
a memória, se as feições me guarda,
48
Que sou, posto mais bela, e verdadeira.
“Atenta
bem: verás que sou Picarda:
Estou
nesta bendita companhia,
51
Venturosa na esfera, que é mais tarda.
“As
nossas afeições que inflama e guia
Somente
a inspiração do Esp’rito Santo,
54
Enlevam-se em cumprir ordens que envia.
“A
sorte, ao parecer somenos tanto,
Nos
coube, por ter sido descurado
57
O sacro voto e em parte posto a um canto.” —
Respondi-lhe:
— “No aspeito sublimado
Vosso
rebrilha um não sei que divino,
60
Que o tem do que foi de antes transmutado.
“Não
fui, pois, em lembrar-me repentino;
Porém,
do que disseste me ajudando,
63
Eu do que hás sido em recordar-me atino.
“Mas
vós que estais aqui dita logrando
Não
sentis de outro céu desejo ardente
66
Por ver mais alto mais amor gozando?” —
Sorriu-se
a sombra e as outras docemente;
E
disse da alegria radiante,
69
O seu primeiro amor como quem sente:
“Rege
o nosso querer, em paz constante,
A
caridade, irmão: só desejamos
72
O que ora temos e não mais avante.
“Anelando
ir mais alto do que estamos,
Seríamos
rebeldes à vontade,
75
A que aprouve esta estância, que habitamos.
“Pois
nos cumpre existir na caridade,
Surgir
não pode em nós tal pensamento,
78
Dessa virtude oposto à santidade.
“Condição
de eternal contentamento
É
preceito cumprir do Onipotente:
81
Um só com ele é logo o nosso intento.
“Do
reino em cada plaga refulgente
Somos,
do reino todo muito ao grado
84
E do Rei, que à sua lei nos molda a mente.
“Seu
preceito a paz nossa se há tomado:
Ele
é mar a que tudo precipita,
87
Que cria, ou faz natura ao seu mandado.” —
Conheço
então que o Paraíso habita
Quem
stá do céu em qualquer parte, e vejo
90
Não chover de um só modo a suma dita.
Mas,
se um manjar sacia, dado o ensejo,
E
de outro resta o apetite vivo,
93
Um se agradece, expondo-se o desejo.
Por
gesto e voz assim fiz-me expressivo
Para
a tela saber que a lançadeira
96
Não rematara com lavor ativo.
—
“Perfeita em vida, em mérito altaneira
Acima
santa está, que há regulado
99
Vestes e véus, com que professa freira,
“Até
finar-se, vele ou durma ao lado
Desse
esposo, que todo voto aceita,
102
Se lhe é por caridade consagrado.
“Menina
e moça, à sua regra estreita
Submeti-me,
e do mundo me apartando
105
Jurei aos seus preceitos ser sujeita.
“Roubou-me
à paz do claustro iníquo bando,
Mais
à maldade do que ao bem afeito:
108
Qual foi Deus sabe o meu viver, penando!
“Este
fúlgido esp’rito, em cujo aspeito
(À
direita demora-me) se acende
111
Quanto lume o céu nosso tem perfeito,
“O
que digo de mim de si o entende;
Sendo
freira, como eu foi-lhe arrancado
114
O santo véu, que o voto à fronte prende.
“Mas,
ao mundo tornando de mau grado,
Que
os seus piedosos usos ofendia,
117
Guardou fiel seu peito ao sacro estado.
“É
a excelsa Constância a que radia:
Deu
de Suábia ao Imperador segundo
120
Herdeiro, em que extinguiu-se a dinastia.” —
Calou-se;
e logo do Ave o hino jucundo
Cantou:
cantando aos olhos desparece,
123
Qual peso, que mergulha em mar profundo.
Segui-la
a vista quis quanto pudesse;
De
desejo invencível atraída,
126
Voltou-se, quando em todo se esvaece,
E
em Beatriz fitou-se embevecida.
Mas
era o rosto seu tão fulgurante,
Que
ante o lume sentiu-se esmorecida.
130
Pelo efeito atalhei-me titubante.
1.
Sol da beleza, Beatriz — 17-18. No erro oposto de Narciso, Narciso se enamorou
da sua imagem na fonte, tomando-a por pessoa verdadeira. Dante caiu no erro
oposto. — 49. Picarda Donati, irmã de Forese e de Corso, freira de Santa Clara,
foi obrigada pela sua família a casar-se com Rossellino della Tosa. — 95-96. A
tela a saber que a lançadeira etc., o motivo pelo qual faltou aos votos que
tomara — 98. Acima Santa está, Santa Clara. — 118. Constância, filha de
Rogério, rei das Apúlias e de Sicília, casada com Henrique VI e mãe de
Frederico II.
CANTO IV
Duas
dúvidas agitam o espírito do Poeta. A primeira é relativa à doutrina platônica,
segundo a qual todas as almas voltam para as estrelas donde saíram. A outra, se
a violência tolhe a liberdade, como pode ser justo que as almas forçadas a
romper os votos tenham desconto de glória? Beatriz responde à primeira dúvida restringindo
o sentido da doutrina platônica. Relativamente à segunda diz que aquelas almas
não consentiram no mal, mas não o repararam, voltando ao claustro, quando
tiveram possibilidade de fazê-lo.
DE
igual modo distantes e atraentes,
Homem
livre entre cibos dois morrera
3
De fome, antes que num metesse os dentes.
Cordeiro
assim, sem se mover, temera
No
meio de dois lobos truculentos;
6
Um galgo entre dois gamos não correra.
Calando-me
entre opostos pensamentos,
Louvor
não merecia, nem censura;
9
Necessário era então nos meus intentos,
Mas
no semblante o anelo se afigura;
Constrangido
silêncio o denuncia
12
Melhor que a voz, quando expressão apura.
Fez
Beatriz, qual Daniel fazia
Para
os assomos moderar da ira,
15
Que ao mal Nabucodonosor movia.
—
“Dos desejos cada um tua alma tira”
—
Disse — “e estando em tais laços enleada,
18
Tolhido o raciocínio, não respira.
“Discorres:
se a vontade contrastada
No
bem persiste, pode porventura
21
Em méritos julgar-se amesquinhada?
“Turbar-te
inda outra dúvida procura:
Se
das estrelas a alma torna ao meio,
24
Como Platão filósofo assegura.
“Destes
problemas dois te nasce o enleio.
No
derradeiro o exame principia
27
Porque do erro mais fel há no seu seio.
“Não
têm anjo, que em Deus mais se extasia
Moisés
e Samuel, João Batista,
30
O Evangelista, nem também Maria,
“Lugar
em céu dif’rente do que a vista
De
espíritos te deu que hão se mostrado:
33
Num só têm todos a eternal conquista.
“O
Empíreo é por todos adornado,
Hão
todos doce vida variamente,
36
Conforme o eterno sopro é facultado.
“Se
nesta esfera os viste, certamente,
Não
foi por destinada lhes ter sido,
39
Grau só denota menos eminente.
“Assim
por mente humana comprendido
Será,
pois se eleva ao entendimento
42
Do que é pelos sentidos percebido.
“Por
ter do que sois vós conhecimento
A
Escritura atribui, mas al entende,
45
Pés e mãos ao Senhor do firmamento.
“Em
figurar a Igreja condescende
Gabriel
e Miguel e o que a Tobia
48
Curou, sob a feição, que à humana tende.
“Timeu
esta verdade contraria
No
que acerca das almas argumenta;
51
Parece crer à letra o que anuncia.
“Ao
seu astro voltar a alma sustenta,
Supondo
que ela à terra descendera,
54
Quando, por forma ao corpo unida, o alenta.
“Talvez
diversa idéia concebera
Do
que nas vozes suas emitira,
57
Escarnecida ser não merecera.
“Se
a honra ou vitupério atribuíra
Aos
astros de influir na vida humana,
60
Na verdade talvez firmasse a mira.
“Mal
entendido, o seu princípio dana
O
mundo quase inteiro, que prestara
63
A Jove e a Marte adoração insana.
“A
dúvida segunda te depara
Menos
veneno, pois o mal, que encerra
66
Para longe de mim não te afastara.
“Que
a Justiça Divina lá na terra
Pareça
injusta é, de péssima heresia,
69
Argumento de fé, que jamais erra.
“Mas,
como a humana mente poderia
Às
alturas alar-se da verdade,
72
Vou dar-te, o que o desejo te sacia.
“Constrangimento
havendo, se, à maldade
A
vítima se opondo, em luta insiste,
75
Desculpa elas não têm, sem dubiedade.
“Não
se abate a vontade, se persiste;
Sempre
se ergue, qual flama cintilante:
78
A força a estorce, vezes mil resiste.
“Por
menos que se dobre vacilante,
Cede
à força: voltar ao santo abrigo
81
Puderam, tendo o ânimo constante.
“Se
o querer fosse inteiro no perigo,
Como
Lourenço no braseiro ardente,
84
Ou Múcio, que à mão sua deu castigo,
“Em
livres sendo, a estrada incontinênti
Do
dever seguiriam pressurosas;
87
Mas raro é tal valor na humana gente.
“Se
atendeste, razões dei poderosas
Para
ficar tua dúvida solvida:
90
Causa te fora a angústias afanosas.
“Mas
ante os olhos ora vês erguida
Outra
ainda mais grave, que, por certo,
93
Não fora por ti só desvanecida.
“Já
te hei bem claramente descoberto
Que
não pôde mentir alma ditosa
96
Pois da Suma Verdade é sempre perto.
“Narrou
depois Picarda que extremosa
No
seu amor ao véu fora Constância,
99
Ao revés do que eu disse cautelosa.
“Na
existência há mais de uma circunstância,
Em
que se faz, perigos receando,
102
O que é vedado ou move repugnância.
“Do
pai ardentes rogos respeitando,
A
sua mãe Alcmeon cortava a vida,
105
Por piedade impiedoso se tornando.
“Fique,
pois, a tua mente convencida
De
que ao querer se a força anda ajustada,
108
Não há desculpa à falta cometida.
“A
vontade absoluta é declarada
Inimiga
do mal: cede temendo
111
Ser, pela oposição, mais lastimada.
“A
verdade absoluta em mira tendo,
Picarda
discorreu: de outra eu falava.
114
Verdade ambas estamos defendendo.” —
Do
santo rio a luz assim manava,
Da
Fonte da verdade é derivada:
117
Cada um dos meus desejos contentava.
—
“Ó do Primeiro Amante excelsa amada!
Ó
santa” — eu disse — “cuja voz me anima,
120
Me inunda e a força aviva à alma abrasada!
“Afeto
meu que ao extremo se sublima,
Não
basta por tornar graça por graça:
123
Que o Senhor minha dívida redima!
“Não
há, bem sei, não há quem satisfaça
A
mente, se a Verdade não comprende
126
Fora da qual outra nenhuma passa.
“A
mente ali se refocila e prende,
Qual
fera, que em seu antro empolga a presa:
129
De outra sorte o desejo em vão se acende.
“E
por isso ao pé nasce da certeza,
Como
vergôntea, a dúvida e nos leva
132
De cimo em cimo até sublime alteza.
“Com
toda a reverência que vos deva,
Ouso
pedir-vos me expliques, Senhora,
135
Outra verdade, que me está na treva:
“Os
rotos votos, que homem sente e chora,
Pode
suprir com mérito dif’rente,
138
Que iguale em peso o que perdera outrora?” —
Beatriz
me encarou: tão refulgente
Lhe
rebrilhava o olhar e tão divino,
Que
me volto, sentindo a força ausente,
142
E, quase aniquilado, a fronte inclino.
13.
Qual Daniel etc., Beatriz interpretou o pensamento de Dante, como Daniel o
sonho de Nabucodonosor, que queria mandar matar os seus sábios por não terem
podido interpretá-lo. — 24. Como Platão filósofo assegura, segundo a teoria
platônica as almas são criadas antes dos corpos e habitam as estrelas, a elas
voltando, depois da morte do corpo. — 28-32. Não tem anjo etc., todos os anjos
e santos não têm, no céu, lugar diferente daquele dos espíritos que agora
apareceram. — 47. O que a Tobia curou, o Arcanjo Gabriel que curou a cegueira
de Tobias. — 49 Timeu, diálogo de Platão no qual se fala da imortalidade da
alma. — 61-63. Mal entendido, o seu princípio dana, etc., a opinião, mal
entendida, da ação das estrelas sobre a alma, talvez, leva ao erro, e, por
isso, deram-se aos planetas os nomes de Jove e Marte e foram eles adorados. —
83. Lourenço, condenado a morrer queimado vivo. — 84. Muzio, Scevola, para
punir-se, fez queimar sua mão sobre um braseiro. — 104. Alcmeon, filho de
Anfiarau, matou a mãe Erifiles, v. Purgatório, XII, 50.
CANTO V
Continuando
no discurso do canto anterior, Beatriz explica a Dante que o voto é um pacto
entre o homem e Deus. Pode mudar-se a matéria do voto, mas deve ser substituída
com oferecimentos de maior mérito. Beatriz lamenta a leviandade dos cristãos.
Beatriz
e Dante voam depois para a esfera de Mercúrio, onde estão as almas dos homens
que viveram uma vida digna, adquirindo fama no mundo. Um espírito fala ao
Poeta.
SE
no fogo do amor te resplandeço
Em
modo, que o terreno amor precede;
3
Se aos olhos teus a força desfaleço;
“Não
te espantes: efeito é que procede
Desse
perfeito ver, que o bem compreende,
6
E, o compreendendo, em se apurar progrede.
“Já
patente me está quanto resplende
Na
inteligência tua a Luz eterna,
9
Que, apenas vista, sempre amor acende;
“E,
se outro objeto humano amor governa,
Vestígio
dela é só mal percebido,
12
Só transluzindo em sua forma externa.
“Saber
queres se um voto não cumprido
É
de outras obras resgatado, e tanto,
15
Que em juízo de Deus fique absolvido.” —
Começou
Beatriz desta arte o canto;
E,
como quem no discorrer não pára,
18
Seguiu assim no seu elóquio santo:
“O
mor bem que ao universo Deus doara,
O
que indicara mais sua bondade
21
O que em preço mais alto avaliara,
“Foi
do querer, por certo, a liberdade,
Que
a toda criatura inteligente
24
Há dado em privativa faculdade.
“Daqui,
por dedução, fica evidente
Do
voto a alta valia, quando é feito
27
Por acordo entre Deus e a humana mente.
“Por
contrato, entre Deus e o home’ aceito,
Esse
tesouro é vítima imolada,
30
Que ao sacrifício vai com ledo aspeito.
“Pode
ser porventura compensada?
Se
cuidas usar bem do que ofertaste,
33
Crês fazer bem com prata mal ganhada.
“Certo
do ponto capital ficaste;
Com
a dispensa a Igreja, parecendo
36
Em tal caso contrário ao que escutaste,
“Convém,
que um pouco à mesa te detendo,
Para
o rijo manjar, que hás ingerido,
39
Socorro aguardes, que te dar pretendo.
“Ao
que te explico atento presta ouvido
E
guarda-o na alma; pois não dá ciência
42
Ouvir o que depois fica no olvido.
“Exige
do sagrado voto a essência
Aquele
objeto em sacrifício dado
45
E do próprio contrato a consistência.
“Jamais
pode ser este obliterado,
Ainda
que infringido: já bem clara
48
Demonstração sobre este ponto hei dado.
“Lei
rigorosa a Hebreus determinara
Fazer
pia oblação; mas concedida
51
A permuta da oferta lhes ficara.
“Da
matéria do voto é permitida
Conversão
quando ensejo se oferece,
54
Sem ser por isso falta cometida.
“Mas
não se muda, quando bem parece,
O
fardo; só se a Igreja, tendo usado
57
Das chaves de ouro e prata, o concedesse.
“Crê
que toda permuta é passo errado,
Quando
o antigo no novo não se inclua,
60
Bem como quatro em seis vês encerrado.
“Se
o voto é tal na gravidade sua,
Que
obrigue a se inclinar toda balança,
63
Outro voto não há, que o substitua.
“Não
contraí, mortais, votos por chança!
Cumpri-os,
mas não Jefté imitando,
66
A quem deu louco voto a desesp’rança.
“—
Fiz mal! — dissesse ao voto seu faltando,
Por
não fazer pior cumprindo-o. Estulto
69
Foi o potente Rei dos gregos, quando
“À
filha fez chorar seu belo vulto
E
à piedade moveu quantos ouviram
72
Falar daquele abominável culto.
“A
razões pesai bem, que vos inspiram,
Cristãos!
não sêde pluma a qualquer vento!
75
As nódoas com toda a água se não tiram!
“Tendes
o Velho e o Novo Testamento
E
da Igreja o pastor, que os passos guia:
78
Que mais quereis por vosso salvamento?
“Se
má cobiça o peito vos vicia,
Homens
sêde e não brutos animais:
81
Que entre vós o Judeu de vós não ria.
“Como
o cordeiro simples não façais,
Que
contra si combate petulante,
84
Da mãe o leite não querendo mais.” —
Beatriz
assim disse. Eis anelante
E
arrebatada em êxtase voltou-se
87
À parte, onde o universo é mais brilhante.
Ante
o enlevo em que o gesto transmutou-se,
Calou-se
o meu desejo impaciente:
90
De outras questões, já prestes, refreou-se.
Como
a seta, que o alvo de repente
Atinge
antes que a corda esteja quieta,
93
No céu segundo entramos velozmente.
Tão
leda eu via Beatriz dileta,
Daquele
céu nas luzes penetrando,
96
Que mais vivo esplendor mostra o planeta.
E
se a estrela sorriu, se transformando,
Como
não fiquei eu, que fez natura
99
Mudável, impressões todas tomando?
Como
viveiro de água mansa e pura,
Pela
esp’rança, de pasto, que se of’reça,
102
Sofregamente o peixe o anzol procura,
Mais
de mil esplendores vindo à pressa,
—
“Eis aí quem nos traz de amor aumento!” —
105
A voz de cada qual nos endereça.
De
cada sombra o alegre sentimento,
Em
se acercando a nós, se denuncia
108
No fulgor do seu claro luzimento.
Quão
sôfrego o desejo não seria
Em
ti leitor, se acaso interrompesse
111
A narração de quanto então se via?
Imaginas,
portanto, o que eu tivesse
De
conhecer aquela grei formosa,
114
Tanto que ante os meus olhos aparece.
—
“Ó criatura, que assim vês ditosa
Os
tronos do eternal triunfo, inda antes
117
De finda a terreal guerra afanosa,
“Nos
lumes, que no céu há mais brilhantes,
Ardemos:
te darei, se as pretenderes,
120
Ao teu desejo informações bastantes.” —
Assim
falou. — “Responde que assim queres.” —
A
Beatriz ouvi — “diz com franqueza,
123
E crê como divino o que entenderes.”
—
“O ninho tens, já vejo com certeza,
Na
luz eterna: o seu fulgor revela
126
Dos olhos teus, sorrindo-te a viveza.
“Mas
não sei quem tu és, ó alma bela,
Nem
por que por degraus tens esta esfera,
129
Que aos mortais nos clarões de outra se vela.”
Assim
disse, voltado à luz que houvera
Primeira
a voz alçado: refulgindo,
132
Mais coruscante a vi ao que antes era.
Bem
como o sol os lumes encobrindo
No
seu próprio esplendor quando esvaece
135
As cortinas que estavam-nos cingindo,
Da
alegria no excesso desparece
Nos
próprios raios a figura santa.
Na
sua luz envolta que recresce,
139
Disse o que o canto que se segue canta.
56-57.
Só se a Igreja etc., só se a Igreja, que possui a chave de prata (da ciência) e
de ouro (da autoridade) o permitir. — 65. Jefté, juiz de Israel, fez o voto, se
vencesse os Amonitas, de sacrificar a primeira pessoa que encontrasse no
caminho; e esta foi a sua filha. — 69. O potente rei dos Gregos, Agamenon
prometeu aos deuses o que possuía de mais belo. Chorou depois a beleza da sua
filha Ifigênia.
CANTO VI
A
alma do imperador Justiniano fala ao Poeta. Narra-lhe a história do Império, de
Enéias a César, a Tibério, a Tito, a Carlos Magno, para mostrar-lhe a santidade
da autoridade imperial. Diz-lhe que no Céu de Mercúrio estão os espíritos
daqueles que se esforçaram para conseguir fama imortal. Discorre-lhe acerca de
Romeu, que administrou a corte de Raimundo Beranguer, conde de Provença.
“DEPOIS
que Constatino a Águia voltara
Contra
o curso do céu, que ela seguira
3
Pós o herói, que Lavínia conquistara,
“Duzentos
anos já passados vira
Da
Europa em confins de Deus essa ave,
6
Vizinha aos montes, donde se partira;
“Das
plumas sob a sombra ampla e suave,
De
mão em mão o mundo há dominado,
9
Té comigo reger do Império a nave.
“César,
Justiniano fui chamado.
Do
Amor, que sinto, por querer movido,
12
O supérfluo das leis hei cerceado.
“Antes
de ter a empresa cometido,
Uma
só natureza acreditava
15
Ter Cristo e andava nessa fé perdido.
“Mas
de Agapeto santo que mandava
De
Roma Santa Igreja, a voz potente
18
Levou-me à crença pura, que eu deixava.
“O
que então disse, eu vejo claramente,
Pois,
como vês, contradição implica
21
Uma falsa asserção e outra evidente.
“Quando
eu cri no que a Igreja certifica,
Minha
mente, de Deus por alta graça,
24
Logo à sublime empresa se dedica.
“Belisário
a reger as armas passa;
No
favor, que lhe deu poder divino
27
Sinal vi que me ordena a paz se faça. —
“A
responder-te, o que ouves tem destino;
Mais
o que hei dito agora a tanto obriga,
30
Que a mor explicação dar-te me inclino.
“Verás
que sem razão vontade imiga
Move-se
contra esse estardarte santo,
33
Quando o tenta usurpar, quando o profliga.
“Pelos
fatos verás respeito quanto
Mereceu
desde a honra em que Palante
36
Morreu por dar-lhe de sob’rano o manto.
“Em
Alba sabes como foi constante
Por
mais de anos trezentos té lutarem
39
Três contra três por que ele fosse avante.
“Sabes
quanto ele fez por se curvarem
Vizinhos
desde o roubo das Sabinas
42
Té Lucrécia expirar e os Reis findarem.
“Sabes
que glória teve nas mãos di’nas
De
heróis, que Breno e Pirro combateram,
45
E de outros reis coligações mali’nas;
“Décios,
Fábios, Torquatos lhe deveram
E
Quíncio Cincinato, que amo e louvo
48
A fama das vitórias, que tiveram;
“Calcou
o orgulho do Africano povo,
Que
por fraguras, donde, o Pó, te envias,
51
Sob Aníbal, abriu caminho novo.
“Fez
triunfar da juventude em dias
Cipião
e Pompeu, e assaz desgosto
54
Causou às tuas pátrias serranias.
“Perto
dos tempos, em que o céu disposto
Havia,
por seus fins, dar paz ao mundo.
57
Em mãos de César Roma o teve posto.
“O
que ele fez do Var ao Rin profundo
Isara
há visto e o Era, há o Sena
60
E esse vale, onde o Rone é sem segundo.
“Passando
o Rubicon, após Ravena,
Com
César a Águia tanto em vôo alçou-se,
63
Que o não pôde seguir nem voz, nem pena.
“Depois
que para a Espanha remontou-se,
A
Durazzo e a Farsália acometia:
66
Do efeito o ardente Nilo perturbou-se.
“O
Simoente e Antandro então revia,
Seu
berço, em que a de Heitor cinza descansa;
69
E sem detença a Ptolomeu se envia.
“Dali,
qual raio, logo Juba alcança;
Depois
volve-se às terras do Ocidente,
72
Onde os sons de Pompeu a tuba lança.
“Nas
mãos de outro o que fez essa ave ingente
No
inferno Bruto e Cássio estão sentindo,
75
Sofrem Perúgia e Módena tremente.
“Cleópatra
inda vai triste carpindo
Atroce
morte, que da serpe toma,
78
Da Águia os assaltos pávida fugindo.
“Até
o Roxo mar tudo a Águia toma,
E
ao mundo tão serena a paz se inclina,
81
Que em fim de Jano as portas fecha Roma.
“O
que fez e faria a ave divina
Para
trazer à fama sua aumento
84
Nesse império mortal, em que domina,
“Parece
escasso em seu merecimento,
Quando
em mãos de Tibério a contemplamos
87
Com puro afeto e claro entendimento;
“Pois
que a viva justiça, que adoramos
Lhe
há nessas mãos a glória concedido
90
De dar vingança às iras, que incitamos.
“Sê,
me ouvindo, de espanto possuído:
Águia
a vingança do pecado antigo
93
Depois com Tito há por tornar corrido.
“Quando,
mordida por lombardo imigo,
Gemia
a Santa Igreja, à sombra da ave
96
Salvou-a Carlos Magno do perigo.
“Podes
julgar, portanto, do erro grave
Daqueles,
cujas faltas hei notado,
99
Causa do mal que vês quanto se agrave.
“Contra
o sacro estandarte um tem hasteado
Áureo
lírio, outro o quer por seu partido:
102
Custa dizer qual seja o mais culpado.
“Gibelinos,
no iníquo andar sabido
Outra
bandeira sigam; que à justiça
105
Culto esta exige nunca interrompido.
“Carlos
novo a batê-la em vão cobiça
Com
Guelfos; temas as garras, que arrancaram
108
A mais forte leão juba inteiriça.
“Mais
de uma vez os filhos já choraram
Pelas
culpas do pai: é louca a esp’rança, —
111
De que de Deus favor lírios ganharam.
“O
planeta, em que habito agora, estança
É
de almas generosas que honra e fama
114
Aspiraram do mundo na lembrança.
“Quando
os desejos deste modo inflama
O
incentivo da glória, aos céus ascende
117
Do vero amor menos ativa a chama.
“Mas
nossa dita em parte compreende
Dos
méritos e prêmio no confronto:
120
Nem menor, nem maior nenhum se entende
“Pois
da viva justiça o feito pronto
Tanto
os afetos nos ameiga e apura,
123
Que nequícia os não torce em nenhum ponto.
“Vozes
várias de sons formam doçura:
Assim
os vários graus na eterna vida
126
Doce harmonia fazem nesta altura.
“Nesta
per’la, em que estás, bela e polida,
Rebrilha
de Romeu claro luzeiro,
129
Virtude ínclita e mal agradecida.
“Os
provençais, pelo ato traiçoeiro,
Não
se riram; caminho segue errado
132
Quem o bem de outro inveja sobranceiro.
“Às
filhas grato de rainha o estado
Conseguiu
Beranguer: tal bem devia
135
A Romeu, nome humilde e não falado.
“Preso
na trama que a calúnia urdia,
Que
aumentado no quinto o erário havia;
138
Do erário contas exigiu do justo,
“Romeu
partiu-se então pobre e vetusto:
Se
o mundo o coração lhe aquilatara,
Quando,
mendigo, se mantinha a custo,
142
Louvor muito maior lhe dispensara.” —
1-3.
Depois que Constantino a Águia voltara etc., depois que Constantino transferiu
o Império de Roma para Bizâncio. — 10. Justiniano, imperador romano e grande
legislador, que reinou duzentos anos depois de Constantino, pois começou o seu
reinado em 527. — 14. Uma só natureza etc., a doutrina de Eutíquio segundo a
qual Cristo tinha só a natureza humana. — 16. Agapeto, o papa Agabito. — 25.
Belisário, grande capitão que combateu na Itália contra os Godos. — 32. Esse
estandarte sacro, o emblema do Império, que representava a águia. — 35.
Palante, companheiro de Enéias, morreu combatendo contra Turno. — 37. Alba,
cidade fundada por Ascânio, filho de Enéias. — 39. Três contra três,
combatimento dos Horácios contra os Curiácios. — 41. O roubo das Sabinas, o
rapto das mulheres dos Sabinos, efetuado pelos Romanos. — 42. Lucrécia, mulher
de Colatino, foi violentada por Tarquinio, daí resultando a rebelião dos
Romanos contra a monarquia. — 44. Breno e Pirro, o primeiro general dos Galos,
o segundo rei do Épiro, que invadiram a Itália. — 46-47. Décios, pai, filho e
neto morreram pela pátria; Fábios, ilustre família romana; Torquatos, T. Manlio
Torquato; Quíncio, Q. Lúcio Cincinato. — 51. Aníbal, general cartaginês que
invadiu a Itália. — 67. Simoente, rio perto de Tróia; Antadro, cidade da
Frísia. — 73. Nas mãos do outro o que fez César, Augusto vingou a morte de
César. — 76. Cleópatra, rainha do Egito, suicidou-se. — 93. Tito, destruiu
Jerusalém, cujos habitantes tinham crucificado a Jesus Cristo. — 94. Lombardo
imigo, Desidério, último rei longobardo que foi derrotado por Carlos Magno. —
101. Áureo lírio, as armas da Casa de França. — 106. Carlos novo, Carlos II de
Anjou, chefe do partido guelfo. — 128. Romeu, segundo conta G. Villani, foi
administrador de Raimundo Beranguer, conde de Provença, aumentando-lhe o
patrimônio e conseguindo casar as filhas de Raimundo com quatro reis.
Caluniado, não quis mais ficar na corte de Provença e, velho e pobre,
desapareceu.
A DIVINA COMÉDIA...
INFERNO ... Cantos I-V ... VI-XI ... XII-XVII ... XVIII-XXIII ... XIV-XXIX ... XXX-XXXIV
PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII
PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII