Divina Comédia - Inferno XVIII-XXIII

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CANTO XVIII



Encontram-se os Poetas no oitavo círculo, chamado Malebolge, o qual é dividido em dez compartimentos concêntricos. Em cada um deles é punida uma espécie de pecadores, condenados por malícia ou fraude. No primeiro compartimento são punidos com açoites pela mão de demônios os alcoviteiros; e entre eles Dante reconhece Venedico Caccianemico e Jasão. No segundo jazem em esterco os aduladores e as mulheres lisonjeiras, entre outros, Alessio Interminelli, de Lucca e Taís.



TEM o inferno, de rocha construído,
De férrea cor, de muro igual cercado
3 Um lugar: Malebolge o nome havido.

Lá no centro do plaino inficionado
Se escancara grão poço, amplo e profundo:
6 Direi a compostura em tempo asado.

Espaço em torno estende-se rotundo
Entre o poço e o penhasco pavoroso:
9 Reparte-se em dez cavas o seu fundo.

Qual de fossos dobrados, cauteloso,
Se apercebendo, o alcáçar se assegura
12 Dos assaltos de imigo poderoso:

De abismos tais o aspecto se afigura.
Como da levadiça ponte entrada,
15 Aos de fora, do mundo na cintura,

Assim, do val no fundo começada,
Cada cava uma rocha atravessava
18 Em arco, para o poço concentrada.

De nós o monstro aqui se descargava:
À sestra mão seguiu logo o poeta,
21 E eu de perto fiel o acompanhava.

Novo tormento à destra me inquieta,
Novos algozes vejo, novas dores,
24 De que a primeira cava era repleta.

Stão lá no fundo nus os pecadores:
Do meio contra nós muitos caminham,
27 Outros conosco, em passos já maiores.

Em Roma, assim, às turbas, que se apinham
Do jubileu no tempo, sobre a ponte
30 Se abriu aos que iam trânsito e aos que vinham:

De um lado andavam, os que tendo em fronte
O castelo, a S. Pedro se endereçam,
33 E do outro lado os que iam para o monte.

Daqui, dali nas bordas, os apressam
Cornígeros demônios, açoitando
36 Com grandes azorragues, que não cessam,

Como aos golpes primeiros cada bando
Se apressa! Como cada qual evita
39 Que se repita o estímulo execrando!

Nesse andar minha vista num se fita,
Da parte oposta vindo, e logo eu disse:
42 — “Hei conhecido esta figura aflita”. —

Atentei mais, por que melhor o visse;
Deteve-se comigo o doce Guia
45 E deu que atrás o passo eu dirigisse.

Aos olhos esquivar-se-me queria,
Os seus baixando; mas foi vão o intento.
48 —“Tu, que te curvas, já te hei visto um dia.

“Se as feições não mudou-te o passamento
Venedico tu és Caccianemico.
51 Por que trato padeces tão cruento?” —

— “De mau grado o que exiges significo;
Mas cedo ao claro som dessa loquela,
54 Que à memória me traz o mundo inico.

“Eu fui aquele, que Ghisola bela
Do Marquês entreguei ao vil desejo:
57 Ora a verdade a minha voz revela.

“Comigo de Bolonha muitos vejo;
Com tantos nesta cava choro e peno,
60 Que a menos lá no mundo dá-se ensejo.

“De dizer sipa entre o Savena e o Reno,
Se a prova queres, lembra-te somente
63 De que em nós da avareza influi veneno”. —

Mas um demônio o atalhou. Furente,
Disse tangendo: — “Ó rufião, avante!
66 Mulher não há que vendas impudente!” —

Ao Mestre me tornei; — pouco distante
Era um rochedo, a que nos acercamos;
69 Da riba se elevava pra diante.

Assaz ligeiramente nos alçamos;
Fomos pela fragura à mão direita
72 E o eterno recinto assim deixamos.

Chegados onde a curva estava feita
Para passagem dar aos fustigados,
75 O sábio Guia disse: — “A face espreita

“Agora desses outros malfadados,
Em que ainda atender não conseguiste,
78 Porque não stavam para nós voltados”. —

Da antiga ponte divisamos triste,
Longa fileira: contra nós andava.
81 Cruel açoite em flagelar persiste.

Virgílio, quando eu nada perguntava,
— “Repara bem” — me diz — “na sombra altiva,
84 A quem pranto de dor faces não lava.

“De Rei conserva a majestade viva!
É Jasão: conquistou por força e manha
87 O velocino em Colcos fera e esquiva.

“A Lenos foi, depois que horrenda sanha
Feminil aos varões cortara a vida,
90 Nenhum poupando aquela fúria estranha.

“Ali, de amor no enlevo embevecida,
Hipsífile enganou, que já iludira
93 Suas irmãs, de compaixão movida.

“Grávida e só deixou-a: atroz mentira
Mereceu-lhe dos tratos a amargura.
96 Vingada está Medéia, a quem traíra.

“Quem perjurou como ele, há pena dura.
Do val primeiro baste o que sabemos
99 E de quantos aqui sofrem tortura”. —

Numa estreita vereda já nos vemos,
Que co’a borda segunda se cruzava,
102 Sustentando outra ponte, a que tendemos.

Turba dali ouvimos, que chorava
De outra cava no encerro e que, assoprando,
105 Com suas próprias mãos se arrepelava.

Estava-lhe as paredes incrustando
A exalação que sobe e ali se prende.
108 Ferindo o olfato e a vista horrorizando.

E tanto pelo abismo a cava estende,
Que só divisa quando está no fundo
111 Quem lá do cimo, perscrutando, atende.

Subimo-nos: então no fosso imundo
Vi gente em tal cloaca mergulhada,
114 Que a sentina figura ser do mundo.

Enquanto olhava ali tão conspurcada
Cara notei, que distinguir não pude,
117 Se padre ou leigo fora a alma danada.

— “Dizei por que tua vista não se mude
De mim, a imundos tantos desatenta!” —
120 Gritou-me. — E eu: — “Se a mente não me ilude,

“Te vi sem cabeleira tão nojenta.
Alessio Interminei de Lucca hás sido:
123 Em ti por isso a vista é mais atenta”. —

Ferindo a face, disse-me o descrido:
— “Aqui lisonjas vis me submergiram;
126 Língua indefessa em bajular hei tido”. —

Logo depois que vozes tais se ouviram,
Meu Guia: — “Olhos dirige um pouco avante,
129 E as feições me declara se atingiram

“De mulher desgrenhada e petulante
Que de unhas asquerosas se lacera,
132 Mudando de postura a cada instante.

“É Taís, a meretriz, que respondera
Ao namorado seu, quando dizia:
— “Te devo gratidão?” — “Muita e sincera!” —

136 Mas vamos: temos visto em demasia”. —



50. Venedico Caccianemico, bolonhês, que induziu sua irmã Ghisola a entregar-se a Obizzo d’Este, marquês de Ferrara. — 61. Dizer sipa etc., palavra do dialeto bolonhês que vale por sim ou seja. — 86. Jasão, chefe dos argonautas, que, auxiliado por Medéia, que ele seduziu e depois enganou, conquistou em Cólquida o velocino de ouro. — 92. Hipsífiles, enganada por Jasão. — 122. Aléssio Interminei, patrício de Lucca. — 133. Taís, meretriz, personagem de uma peça de Terêncio.

CANTO XIX



No terceiro compartimento, onde os Poetas chegam, são punidos os simoníacos. Estão eles, de cabeça para dentro, metidos em furos feitos no fundo e nas encostas do compartimento. As plantas dos pés, que estão fora dos buracos, são queimadas por chamas. Dante quer saber quem era um danado que mais do que os outros agitava os pés. É o papa Nicolau III da Casa Orsini, o qual diz que estava à espera de ser rendido por outros papas simoníacos. O Poeta, indignado, rompe numa veemente invectiva contra a avareza e os escândalos dos papas romanos. Virgílio, depois, o leva novamente para a ponte.



Ó SIMÃO MAGO, ó míseros sequazes
Por quem de Deus os dons só prometidos
3 A virtude, em rapina contumazes,

Por ouro e prata estão prostituídos!
Por vós tange ora a tuba sonorosa:
6 Jazeis na tércia cava subvertidos.

À outra tumba chegamos temerosa,
Da rocha nos subindo àquela parte,
9 Que, a prumo ao centro, eleva-se alterosa.

Saber supremo! Que inefável arte
Mostras no céu, na terra e infernal mundo!
12 Oh! teu poder quão justo se reparte!

Por toda a cava, aos lados e no fundo
Furos na pedra lívida se abriam,
15 De igual largura e cada qual rotundo.

Semelhar na grandeza pareciam
Aos que em meu S. João belo e esplendente
18 Para batismo ministrar serviam.

Quebrei um, não há muito, mas somente
Para infante salvar, que ali morria:
21 Fique a verdade a todos bem patente.

De cada um orifício eu sair via
Os pés, até das pernas a grossura,
24 De um pecador: o resto se sumia.

Stavam ardendo as plantas na tortura,
E tanto as juntas rijo se estorciam,
27 Que romperiam a prisão mais dura.

Do calcanhar aos dedos percorriam
As chamas, como a superfície inteira.
30 Em corpo de óleo ungido morderiam.

— “Quem padece” — disse eu — “por tal maneira,
Que mais que os sócios estorcer-se vejo
33 Em mais rúbida flama e mais ligeira?

— “Se ao fundo eu te levar, por teu desejo,
Por declive, que jaz mais inclinado,
36 De ouvir-lhe o nome e os crimes dou-te ensejo”. —

— “Aceito o que te praz, muito a meu grado:
Senhor do meu querer, és quem conhece
39 Quanto hei mister e a mente há reservado”. —

Passando à quarta borda, ali se desce
Para a esquerda voltando, até chegar-se
42 Lá onde tanto furo se oferece.

De mim não quis o Mestre aligeirar-se
Senão quando daquele, que gemia
45 Pelos pés, conseguiu apropinquar-se.

— “Tu, és assim voltada” — eu lhe dizia —
“Como estaca plantada, ó alma opressa,
48 Responder-me possível te seria?” —

Eu stava aí, qual monge, que confessa
Assassino, que em cova já fincado
51 O chama, pois, em tanto, a pena cessa.

— “Já tens” — gritou: já tens aqui chegado?
Já, Bonifácio, como tens descido?
54 Em anos muitos tenho a conta errado.

“Tão depressa desse ouro te hás enchido,
Pelo qual bela esposa atraiçoando,
57 A tens por tantos crimes afligido?”

Eu fiquei como quem, não penetrando
No sentido do que outro respondera,
60 Enleado e corrido fica olhando.

Mas Virgílio: — “Depressa lhe assevera:
Eu não sou, eu não sou quem tu cogitas” —
63 Respondi como o Vate prescrevera.

Ouvindo, as plantas estorceu malditas;
Depois a suspirar, com voz de pranto
66 — “Por que” — disse — “a falar assim me excitas?

“Se conhecer quem sou anelas tanto,
Que assim baixaste ao vale tenebroso,
69 De Papa sabe que hei vestido o manto.

“Filho de Ursa, deveras, cobiçoso
Em bolsa tudo pus por meus Ursinhos,
72 Lá ouro, aqui o esp’rito criminoso.

“Sob a cabeça minha estão vizinhos,
Em simonia os que me antecederam,
75 Sobrepondo-se um no outro esses mesquinhos.

“Hei de ao fundo descer, como desceram,
Logo em chegando aquele, que eu cuidara
78 Seres tu, quando as vozes me romperam.

“Mas, ardendo-me os pés se me depara
Intervalo mais longo, assim voltado,
81 Do que em tormento igual se lhe prepara.

“Virás de mores culpas outro inçado,
Pastor sem lei, das partes do ocidente
84 Que há de ser sobre nós depositado.

“Jasão novo será: condescendente
Teve o outro seu Rei, diz a Escritura,
87 Da França este o senhor terá potente”.

Não sei se ousado fui e se foi dura
A resposta, que dei ao condenado.
90 — “Tesouros exigira porventura

“Nosso Senhor de Pedro, ao seu cuidado
E zelo quando as chaves cometia?
93 — Segue-me — apenas lhe há recomendado.

“Dinheiro não tomaram de Matia
Pedro e os outros, por ser o preferido
96 Ao lugar, que o traidor perdido havia.

“Pena, pois: mereceste ser punido;
E guarda a que extorquiste, vil moeda
99 Que te fez contra Carlos atrevido.

“Não fora a referência, que me veda,
Das santas chaves, que empunhaste outrora,
102 No tempo, em que fruíste a vida leda,

“Voz mais severa eu levantava agora
Contra a avidez, que o mundo assaz contrista,
105 Que os bons oprime, o vício exalta e adora.

“A vós vos figurava o Evangelista,
Quando a que é sobre as águas assentada
108 Prostituir-se aos Reis foi dele vista:

“Nascera de cabeças sete ornada,
E o valor nos dez cornos possuía,
111 Enquanto ao esposo seu virtude agrada.

“De ouro a vossa cobiça um Deus fazia:
Por um dos que os gentios adoraram
114 Abrange cento a vossa idolatria.

“Constantino! Ah! que males derivaram,
Não do batismo teu, mas da riqueza
117 Que deste a um Papa e a quem outras se juntaram!”

Sentindo destas notas a aspereza,
Ele tomado de remorso ou de ira,
120 Agitava os dois pés com mor braveza.

Virgílio, creio, com prazer me ouvira:
Aplaudir seu semblante revelava
123 Verdades que eu, sincero, proferira.

Jubiloso nos braços me levava,
E, depois que apertara-me ao seu peito,
126 Por onde descendera, se tornava.

Sempre cingido desse abraço estreito,
Do arco ao cimo transportou-me o Guia:
129 Caminho à quinta cava era direito.

Ali suavemente me descia
Em rochedo tão íngreme e empinado,
Que às cabras ínvio ser me parecia,

133 De lá foi-me outro val descortinado.



1. Simão Mago queria comprar dos Apóstolos a virtude de chamar o Espírito Santo. O mercado das coisas sagradas é, por isso, chamado simonia. — 17. São João, pia na qual Dante foi batizado. — 53. Bonifácio, Bonifácio VIII, que o danado (Nicolau III) pensa seja vindo para substituí-lo. — 83. Pastor sem lei, Clemente V, ligado a Filipe, o Belo, rei de França e que mudou a sede do papado para Avinhão. — 85. Jasão, que comprou o sumo sacerdócio de Antíoco, rei da Síria. — 106. O Evangelista, S. João. — 115-117. Constantino, no tempo de Dante se acreditava que Constantino, ao mudar-se para Bizâncio, teria doado ao papa Roma e o domínio temporal.

CANTO XX



No quarto compartimento são punidos os impostores que se dedicaram à arte divinatória. Eles têm o rosto e o pescoço voltados para as costas, pelo que são obrigados a caminhar ao reverso. Virgílio mostra a Dante alguns entre os mais famosos, entre os quais a tebana Manto, da qual se origina Mântua, cidade natal de Virgílio.



NOVA pena convém dizer em versos
E dar matéria ao meu vinteno canto,
3 Do cântico onde punem-se os perversos.

Eu era já disposto tanto, quanto
Fora preciso para ver o fundo
6 Da cava, que banhava amargo pranto.

De almas vi turba, pelo val rotundo,
Que taciturna vinha e lacrimosa
9 Ao passo usado em procissões no mundo.

Mirei mais baixo e cada desditosa
Notei que fora o mento retorcido
12 Do colo ao começar: cousa espantosa!

Para o dorso era o rosto seu volvido:
Só recuando caminhar podia;
15 Que em frente olhar estava-lhe tolhido.

Talvez por força já de par’lisia
De alguém o corpo ao todo se torcesse;
18 Não vi: crê-lo difícil me seria.

Que te seja, Leitor, a Deus prouvesse
Proveitosa a lição! Pensa, atilado,
21 Quanto em mim, vendo, a compaixão crescesse,

O parecer humano tão mudado,
Que o pranto, que dos olhos derivava
24 Banhava o tergo a cada condenado.

Do rochedo eu a um ângulo chorava
Com tanta dor, que o Mestre de repente
27 — “Insensato és também?” — me interrogava.

“Aqui piedade é morte em toda mente:
Quando Deus condenou, quem mais malvado
30 Do que esse, que ternura por maus sente?

“Alça a fronte, alça, atento ao condenado,
Que ante os Tebanos se abismou na terra.
33 Gritavam-lhe: — Como andas apressado,

“Anfiarau? Como assim foges da guerra? —
Ele tombava entanto, ao val descendo,
36 Onde Minos os réprobos aferra.

“Pelo futuro penetrar querendo,
Tem o dorso adiante em vez do peito,
39 E a recuar caminha, atrás só vendo.

“Eis Tirésias, o que mudara o aspeito,
Femíneas formas e feições tomara,
42 Sendo-lhe o que era varonil desfeito.

“Ao sexo seu tornou, quando encontrara,
Inda uma vez, travadas serpes duas
45 E outra vez com bordão as separara.

“Volta-lhe Arons ao ventre as costas nuas:
De Luni em monte, aos agros iminentes,
48 Onde o Carrara ergueu moradas suas,

“Teve em gruta marmórea permanente
Estância, donde contemplar podia
51 As estrelas, as ondas livremente.

“Essa mulher” — continuou meu Guia —
“Que o seio oculta em traça flutuante
54 E de velos a pele tem sombria,

“Foi Manto, que vagara incerta e errante
Até pousar na terra, em que hei nascido.
57 No que ora digo irei um pouco avante.

“Vendo o pai já da vida despedido
E a cidade de Baco em jugo triste,
60 O mundo largo tempo há percorrido.

“Junto ao Alpes na bela Itália existe,
Além Tirol, já perto da Alemanha,
63 Um lago, que chamar Benaco ouviste.

“Veia de fontes mil, que a plaga banha
Entre Garda, Camônica e Apenino,
66 De águas conduz ao lago cópia manha.

“Ilha há no meio, em que o Pastor trentino,
E com ele os de Bréscia e de Verona,
69 Possuem de benzer juro divino.

“Onde é mais baixa do Benaco a zona,
A Bérgamo fazendo e a Bréscia frente,
72 Pesqueira, forte em bastiões, se entona.

“É dali que das águas o excedente,
Que ter em si não pode o lago, brota
75 Em rio e cobre os prados largamente.

“Quando prossegue, outro apelido adota,
Chama-se Míncio, perde o nome antigo:
78 No Pó junto a Governol, há fim sua rota.

“No verão à saúde traz perigo;
Em vasto plaino o álveo dilatando,
81 Forma paul, das infeções amigo.

“Manto, a virgem selvage ali passando,
Terreno viu desabitado, inculto
84 Naquele pantanal, que o está cercando

“Esquiva a humano trato e estranho vulto,
Fez ali de suas artes oficina
87 E viveu té sofrer da morte o insulto.

“Povo, ao diante, para ali se inclina,
Em torno esparso, e abrigo, o julga forte:
90 De águas cercado com pauis confina.

“Onde aqui o elegeu colhera a morte,
A cidade erigiram, que chamaram
93 Mântua, do nome seu sem tirar sorte.

“Os habitantes lá mais avultaram,
Quando ainda os ardis de Pinamonte
96 De Casalodis a insânia não fraudaram.

“Ciente fica, pois: se de outra fonte
A pátria minha originar quiserem,
99 A mentira à verdade nunca afronte”. —

— “As cousas, que tuas vozes me referem,
Tão certas são” — disse eu — “que me parece
102 Carvão extinto o que outros me disserem.

“Mais dize, ó Mestre: acaso não merece
Dos que avançam nenhum reparo ou nota?
105 Na mente de o saber desejo cresce”. —

— “Aquele, a quem do mento ao dorso brota
Barba esquálida, um áugur se dizia,
108 Quando de homens a Grécia tal derrota

Teve, que infantes só no berço havia.
Em Áulide com Calcas indicara
111 Tempo, em que a frota desferrar devia.

“Eurípilo chamou-se: assim narrara
Num dos seus cantos, a tragédia minha,
114 Bem sabes, pois tua mente a arrecadara.

“Esse, que, tão delgado, se avizinha,
Miguel Escotto foi, que, certamente,
117 Perícia em fraudes da magia tinha.

“Olha Guido Bonati, encara Asdente
Que cuidar só devera da sovela:
120 Arrepende-se agora inutilmente.

“Das tristes ora a turba se revela,
Que, desdenhando a agulha, a horrível arte
123 De encantos infernais acharam bela.

“Mas no limite, que hemisférios parte,
É Caim com seu fardo, o mar tocando,
126 Lá de Sevilha além do baluarte.

“A lua, a face plena já mostrando
(Te lembras?) ontem viste na sombria
Selva, em que te ajudou seu fulgor brando”. —

130 Assim falando, a passo igual seguia.



34. Anfiarau, que morreu no sítio de Tebas, e prevendo a sua morte tentara esquivar-se de tomar parte nesse sítio. — 40. Tirésias, adivinho tebano, que foi transformado em mulher e depois retornou homem. — 46. Arons, adivinho lembrado na “Farsália” de Lucano. — 55. Manto, filha de Tirésias, que a tradição diz ter fundado a cidade natal de Virgílio, Mântua. — 63. Benaco, hoje lago de Garda. — 95-96. Quando ainda etc. Pinamonte dei Bonacolsí para apoderar-se de Mântua induziu o governador Alberto de Casalodi a praticar atos violentos que revoltaram o povo contra ele. — 110. Calcas, adivinho da antigüidade. — 112. Eurípilo, outro célebre adivinho.— 116. Miguel Escotto, célebre adivinho do tempo de Frederico II. — 118. Guido Bonati, astrólogo do conde Guido de Montefeltro. — Asdente, sapateiro e adivinho de Parma.



CANTO XXI



No quinto compartimento são punidos os trapaceiros que negociaram os cargos públicos ou roubaram aos seus amos. Eles estão mergulhados em piche fervendo. Os dois Poetas presenciam a tortura de um trapaceiro luquense por obra de um demônio. Virgílio domina os demônios que queriam avançar contra eles. Virgílio e Dante, escoltados por um bando de demônios, tomam o caminho ao longo do aterro.



ASSIM, de ponte em ponte, discursando
Do que nesta comédia se não cura,
3 De outro arco acima nos subimos, quando

Detemo-nos por ver a cava escura,
Por ouvir de outros prantos vão sonido;
6 Com pasmo olhei a hórrida negrura.

No arsenal de Veneza, derretido
Como referve o pez na estação fria
9 Para reparo ao lenho combalido,

Incapaz de vogar: qual com mestria
Baixel novo constrói; qual alcatroa
12 O que teve em viagens avaria;

Qual pregos bate à popa qual à proa;
Qual remos faz, qual linho torce ou parte;
15 Qual mezena e artemão aperfeiçoa:

Assim, por fogo não, por divina arte
Betume espesso, ao fundo refervia,
18 As bordas enviscando em toda parte.

Mas no pez só na tona eu distinguia
Borbulhão, que a fervura levantava,
21 Que ora inchava, ora rápido abatia.

No fundo enquanto os olhos eu fitava,
Exclamando Virgílio: — Eia! Cuidado! —
24 Para si donde eu era me tirava.

Voltei-me então como homem, que apressado
É por saber o que fugir convenha,
27 De súbito pavor sendo atalhado,

Olha sem que por isso se detenha,
E logo atrás de nós eu vi correndo
30 Negro demônio sobre aquela penha.

Ah! que aspecto feroz! Ah! quanto horrendo
Nos meneios parece e temeroso,
33 Veloz nos pés e as asas estendendo!

No dorso agudo e enorme um criminoso,
Escarranchado, em peso, carregava:
36 Dos pés prendia o nervo ao desditoso.

— “Malebranche!” já perto ele bradava —
— “Eis um dos anciões de S. Zita!
39 Mergulhai-o, pois torna à gente prava,

“Que nessa terra em grande soma habita.
Venais todos lá são menos Bonturo.
42 O no, por ouro, lá se muda em ita“.

Ao pez o arroja, e pelo escolho duro
Se torna: após ladrão tanto apressado
45 Não vai mastim, que estava antes seguro:

O maldito afundou; surdiu curvado.
Sob a ponte os demônios lhe gritaram:
48 — “Não acharás aqui Vulto Sagrado,

“Nem banhos, quais no Serchio se deparam.
Se não queres no pez star imergido.
51 A te espetar as fisgas se preparam”. —

Com croques cem mordendo esse descrido
— “Bailar” — disseram — “deves bem coberto;
54 Se puderes furtar, furta escondido”. —

Tal ordem em cozinha o mestre esperto
Aos ajudantes seus que na caldeira
57 Mergulhem naco à tona descoberto.

— “Por que” — falou-me o Guia — “alguém não queira
Molestar-te em te vendo, busca abrigo:
60 Num recanto o acharás desta pedreira.

“Não temas que me ofenda o bando imigo;
Muito bem sei como o furor lhe afronte;
63 Já venci de outra vez igual perigo”. —

Até o extremo então passou da ponte;
Mas, quando a sexta borda já subia,
66 Mister lhe foi mostrar serena fronte.

Qual fremente matilha, que se envia
Ao pobre, quando pára esbaforido
69 E pede alívio à fome que o crucia:

De baixo arremeteu-lhe o bando infido,
Aceso em ira, os croques seus brandindo.
72 Mas gritou-lhes: — “Nenhum seja atrevido!

“Os croques suspendi: até mim vindo
Me preste algum de vós atenção toda.
75 Fere, se ousais porém antes me ouvindo”.

Clamaram todos: — “Ouça — o Malacoda!”
Enquanto os mais ficavam no seu posto,
78 — “Que queres?” — disse alguém que sai da roda;

E o Mestre: — “És, Malacoda, a crer disposto
Que as ameaças vossas superasse
81 Para aqui vir, se por celeste gosto

E supremo querer não caminhasse?
Deixa-me ir; pois a lei divina ordena.
84 Que eu nesta agra jornada outrem guiasse”.

De Malacoda o orgulho já serena;
Aos pés lhe cai o croque; aos ais voltado
87 Lhes disse: — “Este não pode sofrer pena”.

E o Mestre me falou: — “Tu, que abrigado
Estás entre os penedos cauteloso,
90 Volve a mim, do temor descativado”.

Corri para Virgílio pressuroso.
Eis os demônios todos investiram:
93 Roto o concerto, pois, cria ansioso.

De Caprona os soldados, que saíram
A partido assim vi que estremeciam,
96 Quando envoltos de imigos se sentiram.

Nos sevos gestos seus se me prendiam
Os olhos, e a Virgílio vinculado
99 Os braços o meu corpo todo haviam.

Os croques inclinados: — “No costado
Fisguemo-lo” — entre si dois prorromperam.
102 E os outros: — “Oh! pois não! seja espetado!”

Ao que o Mestre falava desprouveram
Palavra tais, e então bradou depressa:
105 “Sê quedo, Scarmiglione!” — Emudeceram.

Depois assim nos disse: — “Andar por essa
Rocha não podereis; jaz destruído
108 Todo arco sexto sem restar-lhe peça.

Se avante quereis ir, seja seguido
Desta borda o caminho: não distante
111 Está rochedo ao passo apercebido.

“Ontem, cinco horas mais do que este instante
Mil e duzentos com sessenta e seis
114 Anos houve: é então a rocha hiante.

“Dos sócios meus na companhia ireis;
Vão ver se alguém ao banho quer furtar-se.
117 Ide em paz: molestados não sereis.

“Calcabrina, Alichino vão juntar-se
Com Cagnazzo, a decúria comandando
120 Barbariccia! E não podem separar-se

“Droghinaz, Libicocco, deste bando!
Graffiacane, o dentudo Ciriatto,
123 Farfarel, Rubicante vão marchando!

“Na ronda cada qual se mostre exato!
Sejam a salvo os dois encaminhados
126 Da ponte ao arco até agora intato!”

“Que vejo, ó Mestre!” — eu disse — “Acompanhados!”
Se sabes ir só, vamos prontamente;
129 De guias tais dispensam-se os cuidados.

“Se tu és, como sóis, Mestre, prudente,
Não vês que os dentes seus estão rangendo,
132 Que nos encaram com furor crescente?”

“Não temas” — disse o Mestre, respondendo —
“Ranger os dentes deixa-os a seu gosto:
135 É contra os que ardem lá no pez horrendo”.

À sestra os dez então fizeram rosto;
Nos dentes cada qual mostra primeiro,
Por mofa a língua ao cabo já disposto;

139 E ele trompa fazia do traseiro.



38. Anciões de S. Zita, supremos magistrados de Lucca, cidade de que S. Zita é protetora. — 41. Bonturo, Bonturo Dati, magistrado mais venal do que os outros. — 42. O no, por ouro etc., por dinheiro o não se transforma em sim. — 112-114. Ontem, etc., o demônio falava cinco horas antes do meio-dia de 26 de março de 1300. Ao meio-dia teriam transcorrido 1266 anos da morte de Cristo.

CANTO XXII



Andando os dois Poetas pelo aterro à esquerda, vêem muitos trapaceiros, que, por aliviar-se, boiam acima do piche fervendo. Sobrevêem os diabos e um deles é lacerado. É este Ciampolo, de Navarra, que consegue, depois, livrar-se das garras dos diabos, o que dá motivo a uma briga entre os demônios.



MARCHAR vi cavaleiros à peleja,
Travar luta, enlear-se no combate
3 E até pedir à fuga que os proteja;

Em vossa terra esquadras dar rebate
Vi, Aretinos; vi as cavalgadas,
6 Torneios, justas no mavórtico embate,

De tubas ao clangor, às badaladas,
Com sinais de castelos, de tambores,
9 Com artes novas ou entre nós usadas:

Não vi mover peões, nem corredores,
Nem baixéis, que regula a terra ou estrela,
12 De igual clarim aos sons atroadores.

Com dez demônios (que companha bela!)
Partimo-nos, porém rezar com santo,
15 Urrar com lobos discrição revela.

Minha atenção no pez se engolfa, entanto,
Por saber quanto encerra a negra cava,
18 Ali quem pena, quem derrama pranto.

Como o delfim, que da tormenta brava
O nauta avisa, o dorso recurvando,
21 Presságio do mau tempo, que se agrava.

Um lenitivo à pena, assim, buscando,
Mostrava o tergo algum dos condenados,
24 Qual relâmpago, logo se esquivando.

Como à borda de charcos enlodados
A fronte deixa à rã ver da água fora,
27 Pernas e corpo tendo resguardados:

Assim no pez a gente pecadora.
Mas, Barbariccia próximo já sendo,
30 Na resina se esconde abrasadora.

Eu vi (e ainda agora estou tremendo!)
Em cima retardar-se um desditoso
33 Qual rã, que fica, as mais desparecendo.

Perto ali stava Grafiacane iroso:
Fisgou-o na enviscada cabeleira,
36 E alçou, qual lontra, ao ar o criminoso.

Sabia os nomes da caterva inteira;
Ouvindo-os, atentei nos escolhidos:
39 Distingui-los podia de carreira.

“Eia! depressa os teus ferrões compridos
No costado lhe crava, ó Rubicante!”
42 Os demônios gritaram-lhe incendidos.

“Ó Mestre” — disse — “inquire insinuante
Quem seja aquele mísero e mesquinho
45 Que em mãos caiu da turba petulante”.

Moveu-se o Mestre e, à cava já vizinho,
Perguntou-lhe em que terra ele nascera.
48 — “Em Navarra” — tornou-lhe — eu tive o ninho.

“De um fidalgo ao serviço me pusera
Minha mãe, quando o pai meu devastara
51 Fazenda e a própria vida com mão fera.

“D’El-rei Tebaldo eu na privança entrara:
Vendia os seus favores fraudulento;
54 Sofro a pena do mal, que praticara”.

Então os dentes lhe cravou cruento,
De javardo quais presas, Ciriatto:
57 Armam-lhe a boca, servem de instrumento:

Nas mãos de imigo seu caíra o rato:
Barbariccia, entre os braços o estreitando,
60 — “Alto!” — lhe diz — “A mim cabe seu trato”.

E o rosto para o Mestre meu voltando,
Falou: — “Pergunta, se ainda mais desejas
63 Antes que o tenha lacerado o bando”.

“Algum dos pecadores, com quem stejas”
Virgílo interrogou — “Latino há sido?”
66 Tornou: — “Vou contentar-te no que almejas.

“No pez deixei alguém por tal havido...
Ah! não temera, estando lá coberto,
69 Ser de unhas e farpões ora ferido”.

— “É demais!” — Libicocco diz, que perto
Estava; e um braço ao triste dilacera,
72 Do croque ao golpe, aquele algoz esperto.

Às pernas Draghignaz também quisera
Do mísero investir; o cabo iroso
75 Acesos olhos volve e os dois modera.

Cessa um pouco o rumor e pessuroso
Pergunta o Mestre àquela sombra aflita,
78 Que do golpe olha o efeito doloroso:

“Quem foi essa alma, como tu prescita,
Que, por vires à tona, hás lá deixado?”
81 Responde o pecador: — “Foi Frei Gomita

De galura, nas fraudes consumado
Que do seu amo a imigos poupou dano,
84 E, traidor, foi por eles premiado.

“Por ouro os deixou ir, como de plano
Confessa; e em tudo o mais provou ter foro
87 Nas tretas, ser nos dolos soberano.

“Miguel Zanche, o Juiz de Logodoro,
Com ele ostenta, em práticas freqüentes
90 De crimes, em Sardenha, o seu tesouro.

“Ai! vede como esse outro range os dentes!
Iria por diante; mas receio
93 Na pele a fúria dos ferrões pungentes”.

Atenta o cabo de olhos no meneio
Com que a ferir se apresta Farfarello.
96 “Vai daí!” — lhe gritou — “pássaro feio!”

— “Se Toscanos, Lombardos tens anelo
De ver e ouvir” — o triste prosseguia —
99 “Traça darei, com que satisfazê-lo.

Suspendam Malebranche essa porfia;
Não temam sócios meus dura vingança,
102 Que eu, sentado, um só não, muitos faria

“De lá surdir, segundo a nossa usança,
Ao sinal de assovio, que de ausente
105 Perigo ao vir à tona dá fiança”.

Cagnazzo alça o focinho, de repente,
E, abanando a cabeça, diz — “Cuidado!
108 Astúcia é por lançar-se ao pez fervente”.

Ele, que em cópia ardis tinha guardado,
Tornou: — “Sutil astúcia, na verdade,
111 Causar aos meus tormento redobrado!”

Dos outros contra o aviso, por vaidade,
Alichino lhe disse: — “Se abalares,
114 Não provarei de pés agilidade,

“Hei de, voando, te agarrar nos ares.
Vamos do cimo e à riba retiremos:
117 Maravilha, se a tantos enganares!“

Leitor, logração nova contemplemos.
Já todos volvem de outro lado a vista:
120 Quem mais avesso assim primeiro vemos.

O Navarro estudara-o como invista;
E arrancando, de súbito, ao betume
123 Se arroja e a liberdade então conquista.

Da afronta sentem todos o azedume,
Inda mais quem motivo dera ao feito,
126 Gritando: — “Preso estás!” — salta do cume,

Porém do medo se avantaja o efeito
Ao das asas: um baixa ao fundo presto,
129 No ar sustém-se o outro, alçando o peito.

Assim mergulha o pato na água lesto,
Quando avista o falcão: perdida a presa,
132 Se torna o caçador cansado e mesto.

Calcabrina, da raiva na braveza,
Após o sócio voa, por ter briga,
135 Se a alma como deseja, vence empresa.

Vendo que ao fundo o malfeitor se abriga,
As garras volta contra o companheiro:
138 Furor à luta sobre o lago o instiga.

As unhas o outro, gavião ligeiro,
Lhe crava e, entrelaçando-se espantosos,
141 Tombam ambos no pez, de corpo inteiro.

Separa o grão fervor os dois raivosos;
Em vão, porém, subir-se pretenderam,
144 Que as asas prendem borbulhões viçosos.

Os outros vendo o caso, se doeram:
Envia quatro o cabo diligente;
147 E de croques armados acorreram.

De um lado e de outro chegam velozmente.
Tendem farpões aos sócios enviscados,
Cozidos já naquela crusta ardente,

151 E desta arte os deixamos atalhados.



48-54. Em Navarra etc., Ciampo de Navarra, o qual serviu na corte do rei Tebaldo II de Navarra. 81. Frei Gomita, vicário de Ugolino Visconti, por dinheiro deu liberdade aos inimigos do seu senhor. — 88. Miguel Zangue, vicário do rei Enzo em Logodoro.

CANTO XXIII



Prosseguem os dois Poetas o seu caminho, descartando-se dos diabos. Vendo-os, porém, voltar novamente, Virgílio abraça-se com Dante e deixam-se resvalar pelo declive do precipício. Encontram os hipócritas vestidos de pesadas capas de chumbo dourado. Falam com dois frades, Catalano e Loderigo, bolonheses. Um dos frades, inquirido por Vigílio, indica-lhe o modo de subir ao sétimo compartimento.



EM silêncio, a companha má deixada,
Seguíamos, após um do outro andando,
3 Como frades menores em jornada.

Meu pensamento à rixa se voltando,
A fábula de Esopo relembrava,
6 Em que ao rato arma a rã laço nefando.

Se aqueles casos dois eu confrontava,
Como issa e mo, iguais me pareciam,
9 Quando o princípio e fim seus recordava.

E, como os pensamentos se associam,
Outros logo daquele me brotaram,
12 Que em dobrado temor a alma envolviam.

Pensava: — esses demônios que passaram,
Por causa nossa, tal vergonha e dano,
15 Do fato certamente se enojaram.

Se a maldade agravar rancor insano,
Eles no encalço nos virão ferozes,
18 Qual cão, que a lebre aboca enfim no plano.

Aguardando os horríficos algozes,
Arrepiam-se as carnes e o cabelo.
21 — “Ó Mestre meu, as garras temo atrozes!”

Exclamo: — “Ache depressa o teu desvelo
Para nós contra o bando amparo e abrigo.
24 Após os passos nossos cuido vê-lo”.

“Se espelho eu fora, a imagem tua, amigo,
Tanto não refletira claramente,
27 Quanto às idéias na tua alma sigo.

“Agora iguais me estão surgindo à mente,
Concordes tanto nas feições, em tudo,
30 Que um parecer entre ambos há somente.

“À destra inclina a encosta, ou eu me iludo:
Por lá baixando à mais vizinha cava,
33 Teremos contra assaltos seus escudo”.

Não acabava, quando a turba prava
Assoma: de asas pandas se enviando
36 Contra nós, não mui longe a divisava.

De súbito nos braços me tomando,
Qual mãe, que ao despertar se vê cercada
39 De furiosas flamas, e, apertando

Ao seio o filho, foge acelerada,
E ao pudor véus esquece angustiosa,
42 Só por salvar aquela prenda amada:

Lá do cimo da riba alta e fragosa
Resvala o Mestre pela penha dura,
45 Muralha de outra cava tenebrosa.

Água não corre mais veloz da altura
Por canal a impulsar de engenho a roda,
48 Quando, vizinha aos cubos, se apressura,

Do que a descer o Guia meu se açoda,
Como a filho estreitando-me ao seu peito,
51 Não como a companheiro a quem se engoda.

Da cava, apenas atingira o leito,
Quando ao cimo os demônios se mostraram:
54 Mas de iras suas malogrou-se o efeito.

Por lei da Providência terminaram
Funções, que exercem na caverna quinta,
57 Toda vez que o recinto seu deixaram.

Gente, que de brilhante cor se pinta
Vemos, que a tardo passo em torno andava;
60 Chorava e em forças parecia extinta.

Capa e capuz trazia, que ocultava
Seus olhos, dessa forma de vestidos
63 De Colônia entre os monges mais se usava.

De ouro por fora, dentro guarnecidos
De chumbo: comparando a peso tanto,
66 De palha os de Fred’rico eram tecidos.

Por toda a eternidade, ó duro duro manto!
Com tais almas, à sestra, caminhamos,
69 Atentos escutando o triste pranto.

Tanto as oprime o peso, que as passamos
No lento caminhar; e a cada instante
72 De nova companhia ao lado estamos.

“Mostra-me — eu disse ao Guia, suplicante —
Algum por nome ou feitos afamado;
75 Busca, sem te deter, Mestre prestante!” —

Tendo vozes toscanas escutado,
Um atrás nos gritou: — “Cessai da pressa,
78 Com que ides a correr pelo ar cerrado!

“Cousa talvez direi, que te interessa”.
Volta-se o Mestre e diz-me: — “Agora espera;
81 Para o passo igualar-lhes não te apressa”.

Cessando, vejo um par que se acelera;
Seus gestos dizem que acercar-se aspiram,
84 Malgrado a estrada e o peso, que os onera.

Aqueles dois, já próximos, remiram
Com vesgos olhos, sem falar, meu rosto;
87 Depois entre eles vozes tais se ouviram:

“O que respira ainda em vida é o posto?
Se mortos ambos são, por que motivo
90 Da plúmbea capa evadem-se ao desgosto?”

E disseram: — “Toscano, que, inda vivo,
Vens de hipócritas ver o grêmio triste,
93 Dizer quem sejas, não recusa esquivo”.

— “Nasci na grã cidade, à qual assiste
Com suas belas margens o Arno ameno,
96 E o corpo, em que hei crescido, lá persiste.

“Quem sois que da aflição tanto veneno
Na face amargo pranto denuncia?
99 Qual penar tendes de esplendor tão pleno?”

“Tanto chumbo se encobre” — um me dizia —
Destas capas sob o ouro, que oscilamos,
102 Qual balança, que ao peso hesitaria.

“De Bolonha e Godente, nos chamamos
Um Loderigo e o outro Catalano:
105 Juntos ambos Florença governamos,

“Por que ficasse a paz livre de dano.
Em vez de um regedor; do que hemos sido
108 O Gardingo dá prova e desengano”.

“Ó irmãos” — comecei — “o mal nascido...”
Atalhei-me: jazendo um condenado
111 Com puas três em cruz via estendido.

Em vendo-me estorceu-se angustiado.
Altos suspiros arrancou do peito.
114 Catalano acercou-se apressurado.

“Este” — disse — “que geme em duro leito,
Que a um homem dessem morte, aconselhara
117 Aos Fariseus, do povo por proveito.

“Através do caminho é nu, repara:
De quem passa, desta arte, ele conhece
120 O peso, quando por calcá-lo pára.

“Igual martírio o sogro seu padece,
Assim como cada um desse concilio,
123 Semente pra os Judeus de horrenda messe”.

Maravilhar-se então mostrou Virgílio,
Posto em cruz o prescito contemplando
126 Com tanto opróbrio lá no eterno exílio,

Voltou-se a Catalano assim falando:
“Dizei, se assim vos apraz e é permitido,
129 Se à direita há vereda, onde, passando,

Deste recinto vamo-nos temido,
Sem que os anjos perversos obriguemos
132 Caminho a nos mostrar não conhecido”.

Tornou: — “Mais perto do que julgas temos
Rochedo, que, do muro se estendendo,
135 Dá ponte a cada val, em que gememos.

“Este não cobre, outrora se rompendo;
Mas subir podereis pela ruína,
138 Que do declive ao fundo se está vendo”.

Ouvindo, o Guia um pouco a fronte inclina
E diz: — “Bem más explicações nos dava
141 Quem tanto os pecadores amofina”.

Logo o frade: “Em Bolonha me constava
Que o demônio, entre os vícios com que stenta,
144 De ser pai da mentira se ufanava”.

A passo largo o Mestre já se ausenta;
Ira ressumbra o rosto carregado.
Deixa a turba, que em capas se atormenta,

148 As pegadas seguindo-lhe apressado.




8. “Mo” e “issa” advérbios que, ambos, significam: agora. — 66. De Frederico etc., em comparação, as capas que Frederico II mandara colocar nos presos eram levíssimas. — 104. Loderigo e Catalano, frades que foram chamados a governar Florença, depois da derrota de Manfredo (1266) e que se aproveitaram da sua posição, causando um motim no qual foi incendiada a casa dos Uberti, perto do Gardingo. — 115. Este etc., Caifás, o sumo sacerdote de Israel, que aconselhou a morte de Jesus. — 121. O sogro seu etc., Anah, sogro de Caifás.




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