INFERNO ... Cantos I-V ... VI-XI ... XII-XVII ... XVIII-XXIII ... XIV-XXIX ... XXX-XXXIV
PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII
PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII
CANTO
XVIII
Encontram-se
os Poetas no oitavo círculo, chamado Malebolge, o qual é dividido em dez
compartimentos concêntricos. Em cada um deles é punida uma espécie de
pecadores, condenados por malícia ou fraude. No primeiro compartimento são
punidos com açoites pela mão de demônios os alcoviteiros; e entre eles Dante
reconhece Venedico Caccianemico e Jasão. No segundo jazem em esterco os
aduladores e as mulheres lisonjeiras, entre outros, Alessio Interminelli, de
Lucca e Taís.
TEM
o inferno, de rocha construído,
De
férrea cor, de muro igual cercado
3
Um lugar: Malebolge o nome havido.
Lá
no centro do plaino inficionado
Se
escancara grão poço, amplo e profundo:
6
Direi a compostura em tempo asado.
Espaço
em torno estende-se rotundo
Entre
o poço e o penhasco pavoroso:
9
Reparte-se em dez cavas o seu fundo.
Qual
de fossos dobrados, cauteloso,
Se
apercebendo, o alcáçar se assegura
12
Dos assaltos de imigo poderoso:
De
abismos tais o aspecto se afigura.
Como
da levadiça ponte entrada,
15
Aos de fora, do mundo na cintura,
Assim,
do val no fundo começada,
Cada
cava uma rocha atravessava
18
Em arco, para o poço concentrada.
De
nós o monstro aqui se descargava:
À
sestra mão seguiu logo o poeta,
21
E eu de perto fiel o acompanhava.
Novo
tormento à destra me inquieta,
Novos
algozes vejo, novas dores,
24
De que a primeira cava era repleta.
Stão
lá no fundo nus os pecadores:
Do
meio contra nós muitos caminham,
27
Outros conosco, em passos já maiores.
Em
Roma, assim, às turbas, que se apinham
Do
jubileu no tempo, sobre a ponte
30
Se abriu aos que iam trânsito e aos que vinham:
De
um lado andavam, os que tendo em fronte
O
castelo, a S. Pedro se endereçam,
33
E do outro lado os que iam para o monte.
Daqui,
dali nas bordas, os apressam
Cornígeros
demônios, açoitando
36
Com grandes azorragues, que não cessam,
Como
aos golpes primeiros cada bando
Se
apressa! Como cada qual evita
39
Que se repita o estímulo execrando!
Nesse
andar minha vista num se fita,
Da
parte oposta vindo, e logo eu disse:
42
— “Hei conhecido esta figura aflita”. —
Atentei
mais, por que melhor o visse;
Deteve-se
comigo o doce Guia
45
E deu que atrás o passo eu dirigisse.
Aos
olhos esquivar-se-me queria,
Os
seus baixando; mas foi vão o intento.
48
—“Tu, que te curvas, já te hei visto um dia.
“Se
as feições não mudou-te o passamento
Venedico
tu és Caccianemico.
51
Por que trato padeces tão cruento?” —
—
“De mau grado o que exiges significo;
Mas
cedo ao claro som dessa loquela,
54
Que à memória me traz o mundo inico.
“Eu
fui aquele, que Ghisola bela
Do
Marquês entreguei ao vil desejo:
57
Ora a verdade a minha voz revela.
“Comigo
de Bolonha muitos vejo;
Com
tantos nesta cava choro e peno,
60
Que a menos lá no mundo dá-se ensejo.
“De
dizer sipa entre o Savena e o Reno,
Se
a prova queres, lembra-te somente
63
De que em nós da avareza influi veneno”. —
Mas
um demônio o atalhou. Furente,
Disse
tangendo: — “Ó rufião, avante!
66
Mulher não há que vendas impudente!” —
Ao
Mestre me tornei; — pouco distante
Era
um rochedo, a que nos acercamos;
69
Da riba se elevava pra diante.
Assaz
ligeiramente nos alçamos;
Fomos
pela fragura à mão direita
72
E o eterno recinto assim deixamos.
Chegados
onde a curva estava feita
Para
passagem dar aos fustigados,
75
O sábio Guia disse: — “A face espreita
“Agora
desses outros malfadados,
Em
que ainda atender não conseguiste,
78
Porque não stavam para nós voltados”. —
Da
antiga ponte divisamos triste,
Longa
fileira: contra nós andava.
81
Cruel açoite em flagelar persiste.
Virgílio,
quando eu nada perguntava,
—
“Repara bem” — me diz — “na sombra altiva,
84
A quem pranto de dor faces não lava.
“De
Rei conserva a majestade viva!
É
Jasão: conquistou por força e manha
87
O velocino em Colcos fera e esquiva.
“A
Lenos foi, depois que horrenda sanha
Feminil
aos varões cortara a vida,
90
Nenhum poupando aquela fúria estranha.
“Ali,
de amor no enlevo embevecida,
Hipsífile
enganou, que já iludira
93
Suas irmãs, de compaixão movida.
“Grávida
e só deixou-a: atroz mentira
Mereceu-lhe
dos tratos a amargura.
96
Vingada está Medéia, a quem traíra.
“Quem
perjurou como ele, há pena dura.
Do
val primeiro baste o que sabemos
99
E de quantos aqui sofrem tortura”. —
Numa
estreita vereda já nos vemos,
Que
co’a borda segunda se cruzava,
102
Sustentando outra ponte, a que tendemos.
Turba
dali ouvimos, que chorava
De
outra cava no encerro e que, assoprando,
105
Com suas próprias mãos se arrepelava.
Estava-lhe
as paredes incrustando
A
exalação que sobe e ali se prende.
108
Ferindo o olfato e a vista horrorizando.
E
tanto pelo abismo a cava estende,
Que
só divisa quando está no fundo
111
Quem lá do cimo, perscrutando, atende.
Subimo-nos:
então no fosso imundo
Vi
gente em tal cloaca mergulhada,
114
Que a sentina figura ser do mundo.
Enquanto
olhava ali tão conspurcada
Cara
notei, que distinguir não pude,
117
Se padre ou leigo fora a alma danada.
—
“Dizei por que tua vista não se mude
De
mim, a imundos tantos desatenta!” —
120
Gritou-me. — E eu: — “Se a mente não me ilude,
“Te
vi sem cabeleira tão nojenta.
Alessio
Interminei de Lucca hás sido:
123
Em ti por isso a vista é mais atenta”. —
Ferindo
a face, disse-me o descrido:
—
“Aqui lisonjas vis me submergiram;
126
Língua indefessa em bajular hei tido”. —
Logo
depois que vozes tais se ouviram,
Meu
Guia: — “Olhos dirige um pouco avante,
129
E as feições me declara se atingiram
“De
mulher desgrenhada e petulante
Que
de unhas asquerosas se lacera,
132
Mudando de postura a cada instante.
“É
Taís, a meretriz, que respondera
Ao
namorado seu, quando dizia:
—
“Te devo gratidão?” — “Muita e sincera!” —
136
Mas vamos: temos visto em demasia”. —
50.
Venedico Caccianemico, bolonhês, que induziu sua irmã Ghisola a entregar-se a
Obizzo d’Este, marquês de Ferrara. — 61. Dizer sipa etc., palavra do dialeto
bolonhês que vale por sim ou seja. — 86. Jasão, chefe dos argonautas, que,
auxiliado por Medéia, que ele seduziu e depois enganou, conquistou em Cólquida
o velocino de ouro. — 92. Hipsífiles, enganada por Jasão. — 122. Aléssio
Interminei, patrício de Lucca. — 133. Taís, meretriz, personagem de uma peça de
Terêncio.
CANTO XIX
No
terceiro compartimento, onde os Poetas chegam, são punidos os simoníacos. Estão
eles, de cabeça para dentro, metidos em furos feitos no fundo e nas encostas do
compartimento. As plantas dos pés, que estão fora dos buracos, são queimadas
por chamas. Dante quer saber quem era um danado que mais do que os outros
agitava os pés. É o papa Nicolau III da Casa Orsini, o qual diz que estava à
espera de ser rendido por outros papas simoníacos. O Poeta, indignado, rompe
numa veemente invectiva contra a avareza e os escândalos dos papas romanos.
Virgílio, depois, o leva novamente para a ponte.
Ó
SIMÃO MAGO, ó míseros sequazes
Por
quem de Deus os dons só prometidos
3
A virtude, em rapina contumazes,
Por
ouro e prata estão prostituídos!
Por
vós tange ora a tuba sonorosa:
6
Jazeis na tércia cava subvertidos.
À
outra tumba chegamos temerosa,
Da
rocha nos subindo àquela parte,
9
Que, a prumo ao centro, eleva-se alterosa.
Saber
supremo! Que inefável arte
Mostras
no céu, na terra e infernal mundo!
12
Oh! teu poder quão justo se reparte!
Por
toda a cava, aos lados e no fundo
Furos
na pedra lívida se abriam,
15
De igual largura e cada qual rotundo.
Semelhar
na grandeza pareciam
Aos
que em meu S. João belo e esplendente
18
Para batismo ministrar serviam.
Quebrei
um, não há muito, mas somente
Para
infante salvar, que ali morria:
21
Fique a verdade a todos bem patente.
De
cada um orifício eu sair via
Os
pés, até das pernas a grossura,
24
De um pecador: o resto se sumia.
Stavam
ardendo as plantas na tortura,
E
tanto as juntas rijo se estorciam,
27
Que romperiam a prisão mais dura.
Do
calcanhar aos dedos percorriam
As
chamas, como a superfície inteira.
30
Em corpo de óleo ungido morderiam.
—
“Quem padece” — disse eu — “por tal maneira,
Que
mais que os sócios estorcer-se vejo
33
Em mais rúbida flama e mais ligeira?
—
“Se ao fundo eu te levar, por teu desejo,
Por
declive, que jaz mais inclinado,
36
De ouvir-lhe o nome e os crimes dou-te ensejo”. —
—
“Aceito o que te praz, muito a meu grado:
Senhor
do meu querer, és quem conhece
39
Quanto hei mister e a mente há reservado”. —
Passando
à quarta borda, ali se desce
Para
a esquerda voltando, até chegar-se
42
Lá onde tanto furo se oferece.
De
mim não quis o Mestre aligeirar-se
Senão
quando daquele, que gemia
45
Pelos pés, conseguiu apropinquar-se.
—
“Tu, és assim voltada” — eu lhe dizia —
“Como
estaca plantada, ó alma opressa,
48
Responder-me possível te seria?” —
Eu
stava aí, qual monge, que confessa
Assassino,
que em cova já fincado
51
O chama, pois, em tanto, a pena cessa.
—
“Já tens” — gritou: já tens aqui chegado?
Já,
Bonifácio, como tens descido?
54
Em anos muitos tenho a conta errado.
“Tão
depressa desse ouro te hás enchido,
Pelo
qual bela esposa atraiçoando,
57
A tens por tantos crimes afligido?”
Eu
fiquei como quem, não penetrando
No
sentido do que outro respondera,
60
Enleado e corrido fica olhando.
Mas
Virgílio: — “Depressa lhe assevera:
Eu
não sou, eu não sou quem tu cogitas” —
63
Respondi como o Vate prescrevera.
Ouvindo,
as plantas estorceu malditas;
Depois
a suspirar, com voz de pranto
66
— “Por que” — disse — “a falar assim me excitas?
“Se
conhecer quem sou anelas tanto,
Que
assim baixaste ao vale tenebroso,
69
De Papa sabe que hei vestido o manto.
“Filho
de Ursa, deveras, cobiçoso
Em
bolsa tudo pus por meus Ursinhos,
72
Lá ouro, aqui o esp’rito criminoso.
“Sob
a cabeça minha estão vizinhos,
Em
simonia os que me antecederam,
75
Sobrepondo-se um no outro esses mesquinhos.
“Hei
de ao fundo descer, como desceram,
Logo
em chegando aquele, que eu cuidara
78
Seres tu, quando as vozes me romperam.
“Mas,
ardendo-me os pés se me depara
Intervalo
mais longo, assim voltado,
81
Do que em tormento igual se lhe prepara.
“Virás
de mores culpas outro inçado,
Pastor
sem lei, das partes do ocidente
84
Que há de ser sobre nós depositado.
“Jasão
novo será: condescendente
Teve
o outro seu Rei, diz a Escritura,
87
Da França este o senhor terá potente”.
Não
sei se ousado fui e se foi dura
A
resposta, que dei ao condenado.
90
— “Tesouros exigira porventura
“Nosso
Senhor de Pedro, ao seu cuidado
E
zelo quando as chaves cometia?
93
— Segue-me — apenas lhe há recomendado.
“Dinheiro
não tomaram de Matia
Pedro
e os outros, por ser o preferido
96
Ao lugar, que o traidor perdido havia.
“Pena,
pois: mereceste ser punido;
E
guarda a que extorquiste, vil moeda
99
Que te fez contra Carlos atrevido.
“Não
fora a referência, que me veda,
Das
santas chaves, que empunhaste outrora,
102
No tempo, em que fruíste a vida leda,
“Voz
mais severa eu levantava agora
Contra
a avidez, que o mundo assaz contrista,
105
Que os bons oprime, o vício exalta e adora.
“A
vós vos figurava o Evangelista,
Quando
a que é sobre as águas assentada
108
Prostituir-se aos Reis foi dele vista:
“Nascera
de cabeças sete ornada,
E
o valor nos dez cornos possuía,
111
Enquanto ao esposo seu virtude agrada.
“De
ouro a vossa cobiça um Deus fazia:
Por
um dos que os gentios adoraram
114
Abrange cento a vossa idolatria.
“Constantino!
Ah! que males derivaram,
Não
do batismo teu, mas da riqueza
117
Que deste a um Papa e a quem outras se juntaram!”
Sentindo
destas notas a aspereza,
Ele
tomado de remorso ou de ira,
120
Agitava os dois pés com mor braveza.
Virgílio,
creio, com prazer me ouvira:
Aplaudir
seu semblante revelava
123
Verdades que eu, sincero, proferira.
Jubiloso
nos braços me levava,
E,
depois que apertara-me ao seu peito,
126
Por onde descendera, se tornava.
Sempre
cingido desse abraço estreito,
Do
arco ao cimo transportou-me o Guia:
129
Caminho à quinta cava era direito.
Ali
suavemente me descia
Em
rochedo tão íngreme e empinado,
Que
às cabras ínvio ser me parecia,
133
De lá foi-me outro val descortinado.
1.
Simão Mago queria comprar dos Apóstolos a virtude de chamar o Espírito Santo. O
mercado das coisas sagradas é, por isso, chamado simonia. — 17. São João, pia
na qual Dante foi batizado. — 53. Bonifácio, Bonifácio VIII, que o danado
(Nicolau III) pensa seja vindo para substituí-lo. — 83. Pastor sem lei,
Clemente V, ligado a Filipe, o Belo, rei de França e que mudou a sede do papado
para Avinhão. — 85. Jasão, que comprou o sumo sacerdócio de Antíoco, rei da
Síria. — 106. O Evangelista, S. João. — 115-117. Constantino, no tempo de Dante
se acreditava que Constantino, ao mudar-se para Bizâncio, teria doado ao papa
Roma e o domínio temporal.
CANTO XX
No
quarto compartimento são punidos os impostores que se dedicaram à arte
divinatória. Eles têm o rosto e o pescoço voltados para as costas, pelo que são
obrigados a caminhar ao reverso. Virgílio mostra a Dante alguns entre os mais
famosos, entre os quais a tebana Manto, da qual se origina Mântua, cidade natal
de Virgílio.
NOVA
pena convém dizer em versos
E
dar matéria ao meu vinteno canto,
3
Do cântico onde punem-se os perversos.
Eu
era já disposto tanto, quanto
Fora
preciso para ver o fundo
6
Da cava, que banhava amargo pranto.
De
almas vi turba, pelo val rotundo,
Que
taciturna vinha e lacrimosa
9
Ao passo usado em procissões no mundo.
Mirei
mais baixo e cada desditosa
Notei
que fora o mento retorcido
12
Do colo ao começar: cousa espantosa!
Para
o dorso era o rosto seu volvido:
Só
recuando caminhar podia;
15
Que em frente olhar estava-lhe tolhido.
Talvez
por força já de par’lisia
De
alguém o corpo ao todo se torcesse;
18
Não vi: crê-lo difícil me seria.
Que
te seja, Leitor, a Deus prouvesse
Proveitosa
a lição! Pensa, atilado,
21
Quanto em mim, vendo, a compaixão crescesse,
O
parecer humano tão mudado,
Que
o pranto, que dos olhos derivava
24
Banhava o tergo a cada condenado.
Do
rochedo eu a um ângulo chorava
Com
tanta dor, que o Mestre de repente
27
— “Insensato és também?” — me interrogava.
“Aqui
piedade é morte em toda mente:
Quando
Deus condenou, quem mais malvado
30
Do que esse, que ternura por maus sente?
“Alça
a fronte, alça, atento ao condenado,
Que
ante os Tebanos se abismou na terra.
33
Gritavam-lhe: — Como andas apressado,
“Anfiarau?
Como assim foges da guerra? —
Ele
tombava entanto, ao val descendo,
36
Onde Minos os réprobos aferra.
“Pelo
futuro penetrar querendo,
Tem
o dorso adiante em vez do peito,
39
E a recuar caminha, atrás só vendo.
“Eis
Tirésias, o que mudara o aspeito,
Femíneas
formas e feições tomara,
42
Sendo-lhe o que era varonil desfeito.
“Ao
sexo seu tornou, quando encontrara,
Inda
uma vez, travadas serpes duas
45
E outra vez com bordão as separara.
“Volta-lhe
Arons ao ventre as costas nuas:
De
Luni em monte, aos agros iminentes,
48
Onde o Carrara ergueu moradas suas,
“Teve
em gruta marmórea permanente
Estância,
donde contemplar podia
51
As estrelas, as ondas livremente.
“Essa
mulher” — continuou meu Guia —
“Que
o seio oculta em traça flutuante
54
E de velos a pele tem sombria,
“Foi
Manto, que vagara incerta e errante
Até
pousar na terra, em que hei nascido.
57
No que ora digo irei um pouco avante.
“Vendo
o pai já da vida despedido
E
a cidade de Baco em jugo triste,
60
O mundo largo tempo há percorrido.
“Junto
ao Alpes na bela Itália existe,
Além
Tirol, já perto da Alemanha,
63
Um lago, que chamar Benaco ouviste.
“Veia
de fontes mil, que a plaga banha
Entre
Garda, Camônica e Apenino,
66
De águas conduz ao lago cópia manha.
“Ilha
há no meio, em que o Pastor trentino,
E
com ele os de Bréscia e de Verona,
69
Possuem de benzer juro divino.
“Onde
é mais baixa do Benaco a zona,
A
Bérgamo fazendo e a Bréscia frente,
72
Pesqueira, forte em bastiões, se entona.
“É
dali que das águas o excedente,
Que
ter em si não pode o lago, brota
75
Em rio e cobre os prados largamente.
“Quando
prossegue, outro apelido adota,
Chama-se
Míncio, perde o nome antigo:
78
No Pó junto a Governol, há fim sua rota.
“No
verão à saúde traz perigo;
Em
vasto plaino o álveo dilatando,
81
Forma paul, das infeções amigo.
“Manto,
a virgem selvage ali passando,
Terreno
viu desabitado, inculto
84
Naquele pantanal, que o está cercando
“Esquiva
a humano trato e estranho vulto,
Fez
ali de suas artes oficina
87
E viveu té sofrer da morte o insulto.
“Povo,
ao diante, para ali se inclina,
Em
torno esparso, e abrigo, o julga forte:
90
De águas cercado com pauis confina.
“Onde
aqui o elegeu colhera a morte,
A
cidade erigiram, que chamaram
93
Mântua, do nome seu sem tirar sorte.
“Os
habitantes lá mais avultaram,
Quando
ainda os ardis de Pinamonte
96
De Casalodis a insânia não fraudaram.
“Ciente
fica, pois: se de outra fonte
A
pátria minha originar quiserem,
99
A mentira à verdade nunca afronte”. —
—
“As cousas, que tuas vozes me referem,
Tão
certas são” — disse eu — “que me parece
102
Carvão extinto o que outros me disserem.
“Mais
dize, ó Mestre: acaso não merece
Dos
que avançam nenhum reparo ou nota?
105
Na mente de o saber desejo cresce”. —
—
“Aquele, a quem do mento ao dorso brota
Barba
esquálida, um áugur se dizia,
108
Quando de homens a Grécia tal derrota
Teve,
que infantes só no berço havia.
Em
Áulide com Calcas indicara
111
Tempo, em que a frota desferrar devia.
“Eurípilo
chamou-se: assim narrara
Num
dos seus cantos, a tragédia minha,
114
Bem sabes, pois tua mente a arrecadara.
“Esse,
que, tão delgado, se avizinha,
Miguel
Escotto foi, que, certamente,
117
Perícia em fraudes da magia tinha.
“Olha
Guido Bonati, encara Asdente
Que
cuidar só devera da sovela:
120
Arrepende-se agora inutilmente.
“Das
tristes ora a turba se revela,
Que,
desdenhando a agulha, a horrível arte
123
De encantos infernais acharam bela.
“Mas
no limite, que hemisférios parte,
É
Caim com seu fardo, o mar tocando,
126
Lá de Sevilha além do baluarte.
“A
lua, a face plena já mostrando
(Te
lembras?) ontem viste na sombria
Selva,
em que te ajudou seu fulgor brando”. —
130
Assim falando, a passo igual seguia.
34.
Anfiarau, que morreu no sítio de Tebas, e prevendo a sua morte tentara
esquivar-se de tomar parte nesse sítio. — 40. Tirésias, adivinho tebano, que
foi transformado em mulher e depois retornou homem. — 46. Arons, adivinho
lembrado na “Farsália” de Lucano. — 55. Manto, filha de Tirésias, que a
tradição diz ter fundado a cidade natal de Virgílio, Mântua. — 63. Benaco, hoje
lago de Garda. — 95-96. Quando ainda etc. Pinamonte dei Bonacolsí para apoderar-se
de Mântua induziu o governador Alberto de Casalodi a praticar atos violentos
que revoltaram o povo contra ele. — 110. Calcas, adivinho da antigüidade. —
112. Eurípilo, outro célebre adivinho.— 116. Miguel Escotto, célebre adivinho
do tempo de Frederico II. — 118. Guido Bonati, astrólogo do conde Guido de
Montefeltro. — Asdente, sapateiro e adivinho de Parma.
CANTO XXI
No
quinto compartimento são punidos os trapaceiros que negociaram os cargos
públicos ou roubaram aos seus amos. Eles estão mergulhados em piche fervendo.
Os dois Poetas presenciam a tortura de um trapaceiro luquense por obra de um
demônio. Virgílio domina os demônios que queriam avançar contra eles. Virgílio
e Dante, escoltados por um bando de demônios, tomam o caminho ao longo do aterro.
ASSIM,
de ponte em ponte, discursando
Do
que nesta comédia se não cura,
3
De outro arco acima nos subimos, quando
Detemo-nos
por ver a cava escura,
Por
ouvir de outros prantos vão sonido;
6
Com pasmo olhei a hórrida negrura.
No
arsenal de Veneza, derretido
Como
referve o pez na estação fria
9
Para reparo ao lenho combalido,
Incapaz
de vogar: qual com mestria
Baixel
novo constrói; qual alcatroa
12
O que teve em viagens avaria;
Qual
pregos bate à popa qual à proa;
Qual
remos faz, qual linho torce ou parte;
15
Qual mezena e artemão aperfeiçoa:
Assim,
por fogo não, por divina arte
Betume
espesso, ao fundo refervia,
18
As bordas enviscando em toda parte.
Mas
no pez só na tona eu distinguia
Borbulhão,
que a fervura levantava,
21
Que ora inchava, ora rápido abatia.
No
fundo enquanto os olhos eu fitava,
Exclamando
Virgílio: — Eia! Cuidado! —
24
Para si donde eu era me tirava.
Voltei-me
então como homem, que apressado
É
por saber o que fugir convenha,
27
De súbito pavor sendo atalhado,
Olha
sem que por isso se detenha,
E
logo atrás de nós eu vi correndo
30
Negro demônio sobre aquela penha.
Ah!
que aspecto feroz! Ah! quanto horrendo
Nos
meneios parece e temeroso,
33
Veloz nos pés e as asas estendendo!
No
dorso agudo e enorme um criminoso,
Escarranchado,
em peso, carregava:
36
Dos pés prendia o nervo ao desditoso.
—
“Malebranche!” já perto ele bradava —
—
“Eis um dos anciões de S. Zita!
39
Mergulhai-o, pois torna à gente prava,
“Que
nessa terra em grande soma habita.
Venais
todos lá são menos Bonturo.
42
O no, por ouro, lá se muda em ita“.
Ao
pez o arroja, e pelo escolho duro
Se
torna: após ladrão tanto apressado
45
Não vai mastim, que estava antes seguro:
O
maldito afundou; surdiu curvado.
Sob
a ponte os demônios lhe gritaram:
48
— “Não acharás aqui Vulto Sagrado,
“Nem
banhos, quais no Serchio se deparam.
Se
não queres no pez star imergido.
51
A te espetar as fisgas se preparam”. —
Com
croques cem mordendo esse descrido
—
“Bailar” — disseram — “deves bem coberto;
54
Se puderes furtar, furta escondido”. —
Tal
ordem em cozinha o mestre esperto
Aos
ajudantes seus que na caldeira
57
Mergulhem naco à tona descoberto.
—
“Por que” — falou-me o Guia — “alguém não queira
Molestar-te
em te vendo, busca abrigo:
60
Num recanto o acharás desta pedreira.
“Não
temas que me ofenda o bando imigo;
Muito
bem sei como o furor lhe afronte;
63
Já venci de outra vez igual perigo”. —
Até
o extremo então passou da ponte;
Mas,
quando a sexta borda já subia,
66
Mister lhe foi mostrar serena fronte.
Qual
fremente matilha, que se envia
Ao
pobre, quando pára esbaforido
69
E pede alívio à fome que o crucia:
De
baixo arremeteu-lhe o bando infido,
Aceso
em ira, os croques seus brandindo.
72
Mas gritou-lhes: — “Nenhum seja atrevido!
“Os
croques suspendi: até mim vindo
Me
preste algum de vós atenção toda.
75
Fere, se ousais porém antes me ouvindo”.
Clamaram
todos: — “Ouça — o Malacoda!”
Enquanto
os mais ficavam no seu posto,
78
— “Que queres?” — disse alguém que sai da roda;
E
o Mestre: — “És, Malacoda, a crer disposto
Que
as ameaças vossas superasse
81
Para aqui vir, se por celeste gosto
E
supremo querer não caminhasse?
Deixa-me
ir; pois a lei divina ordena.
84
Que eu nesta agra jornada outrem guiasse”.
De
Malacoda o orgulho já serena;
Aos
pés lhe cai o croque; aos ais voltado
87
Lhes disse: — “Este não pode sofrer pena”.
E
o Mestre me falou: — “Tu, que abrigado
Estás
entre os penedos cauteloso,
90
Volve a mim, do temor descativado”.
Corri
para Virgílio pressuroso.
Eis
os demônios todos investiram:
93
Roto o concerto, pois, cria ansioso.
De
Caprona os soldados, que saíram
A
partido assim vi que estremeciam,
96
Quando envoltos de imigos se sentiram.
Nos
sevos gestos seus se me prendiam
Os
olhos, e a Virgílio vinculado
99
Os braços o meu corpo todo haviam.
Os
croques inclinados: — “No costado
Fisguemo-lo”
— entre si dois prorromperam.
102
E os outros: — “Oh! pois não! seja espetado!”
Ao
que o Mestre falava desprouveram
Palavra
tais, e então bradou depressa:
105
“Sê quedo, Scarmiglione!” — Emudeceram.
Depois
assim nos disse: — “Andar por essa
Rocha
não podereis; jaz destruído
108
Todo arco sexto sem restar-lhe peça.
Se
avante quereis ir, seja seguido
Desta
borda o caminho: não distante
111
Está rochedo ao passo apercebido.
“Ontem,
cinco horas mais do que este instante
Mil
e duzentos com sessenta e seis
114
Anos houve: é então a rocha hiante.
“Dos
sócios meus na companhia ireis;
Vão
ver se alguém ao banho quer furtar-se.
117
Ide em paz: molestados não sereis.
“Calcabrina,
Alichino vão juntar-se
Com
Cagnazzo, a decúria comandando
120
Barbariccia! E não podem separar-se
“Droghinaz,
Libicocco, deste bando!
Graffiacane,
o dentudo Ciriatto,
123
Farfarel, Rubicante vão marchando!
“Na
ronda cada qual se mostre exato!
Sejam
a salvo os dois encaminhados
126
Da ponte ao arco até agora intato!”
“Que
vejo, ó Mestre!” — eu disse — “Acompanhados!”
Se
sabes ir só, vamos prontamente;
129
De guias tais dispensam-se os cuidados.
“Se
tu és, como sóis, Mestre, prudente,
Não
vês que os dentes seus estão rangendo,
132
Que nos encaram com furor crescente?”
“Não
temas” — disse o Mestre, respondendo —
“Ranger
os dentes deixa-os a seu gosto:
135
É contra os que ardem lá no pez horrendo”.
À
sestra os dez então fizeram rosto;
Nos
dentes cada qual mostra primeiro,
Por
mofa a língua ao cabo já disposto;
139
E ele trompa fazia do traseiro.
38.
Anciões de S. Zita, supremos magistrados de Lucca, cidade de que S. Zita é
protetora. — 41. Bonturo, Bonturo Dati, magistrado mais venal do que os outros.
— 42. O no, por ouro etc., por dinheiro o não se transforma em sim. — 112-114.
Ontem, etc., o demônio falava cinco horas antes do meio-dia de 26 de março de
1300. Ao meio-dia teriam transcorrido 1266 anos da morte de Cristo.
CANTO
XXII
Andando
os dois Poetas pelo aterro à esquerda, vêem muitos trapaceiros, que, por
aliviar-se, boiam acima do piche fervendo. Sobrevêem os diabos e um deles é
lacerado. É este Ciampolo, de Navarra, que consegue, depois, livrar-se das
garras dos diabos, o que dá motivo a uma briga entre os demônios.
MARCHAR
vi cavaleiros à peleja,
Travar
luta, enlear-se no combate
3
E até pedir à fuga que os proteja;
Em
vossa terra esquadras dar rebate
Vi,
Aretinos; vi as cavalgadas,
6
Torneios, justas no mavórtico embate,
De
tubas ao clangor, às badaladas,
Com
sinais de castelos, de tambores,
9
Com artes novas ou entre nós usadas:
Não
vi mover peões, nem corredores,
Nem
baixéis, que regula a terra ou estrela,
12
De igual clarim aos sons atroadores.
Com
dez demônios (que companha bela!)
Partimo-nos,
porém rezar com santo,
15
Urrar com lobos discrição revela.
Minha
atenção no pez se engolfa, entanto,
Por
saber quanto encerra a negra cava,
18
Ali quem pena, quem derrama pranto.
Como
o delfim, que da tormenta brava
O
nauta avisa, o dorso recurvando,
21
Presságio do mau tempo, que se agrava.
Um
lenitivo à pena, assim, buscando,
Mostrava
o tergo algum dos condenados,
24
Qual relâmpago, logo se esquivando.
Como
à borda de charcos enlodados
A
fronte deixa à rã ver da água fora,
27
Pernas e corpo tendo resguardados:
Assim
no pez a gente pecadora.
Mas,
Barbariccia próximo já sendo,
30
Na resina se esconde abrasadora.
Eu
vi (e ainda agora estou tremendo!)
Em
cima retardar-se um desditoso
33
Qual rã, que fica, as mais desparecendo.
Perto
ali stava Grafiacane iroso:
Fisgou-o
na enviscada cabeleira,
36
E alçou, qual lontra, ao ar o criminoso.
Sabia
os nomes da caterva inteira;
Ouvindo-os,
atentei nos escolhidos:
39
Distingui-los podia de carreira.
“Eia!
depressa os teus ferrões compridos
No
costado lhe crava, ó Rubicante!”
42
Os demônios gritaram-lhe incendidos.
“Ó
Mestre” — disse — “inquire insinuante
Quem
seja aquele mísero e mesquinho
45
Que em mãos caiu da turba petulante”.
Moveu-se
o Mestre e, à cava já vizinho,
Perguntou-lhe
em que terra ele nascera.
48
— “Em Navarra” — tornou-lhe — eu tive o ninho.
“De
um fidalgo ao serviço me pusera
Minha
mãe, quando o pai meu devastara
51
Fazenda e a própria vida com mão fera.
“D’El-rei
Tebaldo eu na privança entrara:
Vendia
os seus favores fraudulento;
54
Sofro a pena do mal, que praticara”.
Então
os dentes lhe cravou cruento,
De
javardo quais presas, Ciriatto:
57
Armam-lhe a boca, servem de instrumento:
Nas
mãos de imigo seu caíra o rato:
Barbariccia,
entre os braços o estreitando,
60
— “Alto!” — lhe diz — “A mim cabe seu trato”.
E
o rosto para o Mestre meu voltando,
Falou:
— “Pergunta, se ainda mais desejas
63
Antes que o tenha lacerado o bando”.
“Algum
dos pecadores, com quem stejas”
Virgílo
interrogou — “Latino há sido?”
66
Tornou: — “Vou contentar-te no que almejas.
“No
pez deixei alguém por tal havido...
Ah!
não temera, estando lá coberto,
69
Ser de unhas e farpões ora ferido”.
—
“É demais!” — Libicocco diz, que perto
Estava;
e um braço ao triste dilacera,
72
Do croque ao golpe, aquele algoz esperto.
Às
pernas Draghignaz também quisera
Do
mísero investir; o cabo iroso
75
Acesos olhos volve e os dois modera.
Cessa
um pouco o rumor e pessuroso
Pergunta
o Mestre àquela sombra aflita,
78
Que do golpe olha o efeito doloroso:
“Quem
foi essa alma, como tu prescita,
Que,
por vires à tona, hás lá deixado?”
81
Responde o pecador: — “Foi Frei Gomita
De
galura, nas fraudes consumado
Que
do seu amo a imigos poupou dano,
84
E, traidor, foi por eles premiado.
“Por
ouro os deixou ir, como de plano
Confessa;
e em tudo o mais provou ter foro
87
Nas tretas, ser nos dolos soberano.
“Miguel
Zanche, o Juiz de Logodoro,
Com
ele ostenta, em práticas freqüentes
90
De crimes, em Sardenha, o seu tesouro.
“Ai!
vede como esse outro range os dentes!
Iria
por diante; mas receio
93
Na pele a fúria dos ferrões pungentes”.
Atenta
o cabo de olhos no meneio
Com
que a ferir se apresta Farfarello.
96
“Vai daí!” — lhe gritou — “pássaro feio!”
—
“Se Toscanos, Lombardos tens anelo
De
ver e ouvir” — o triste prosseguia —
99
“Traça darei, com que satisfazê-lo.
Suspendam
Malebranche essa porfia;
Não
temam sócios meus dura vingança,
102
Que eu, sentado, um só não, muitos faria
“De
lá surdir, segundo a nossa usança,
Ao
sinal de assovio, que de ausente
105
Perigo ao vir à tona dá fiança”.
Cagnazzo
alça o focinho, de repente,
E,
abanando a cabeça, diz — “Cuidado!
108
Astúcia é por lançar-se ao pez fervente”.
Ele,
que em cópia ardis tinha guardado,
Tornou:
— “Sutil astúcia, na verdade,
111
Causar aos meus tormento redobrado!”
Dos
outros contra o aviso, por vaidade,
Alichino
lhe disse: — “Se abalares,
114
Não provarei de pés agilidade,
“Hei
de, voando, te agarrar nos ares.
Vamos
do cimo e à riba retiremos:
117
Maravilha, se a tantos enganares!“
Leitor,
logração nova contemplemos.
Já
todos volvem de outro lado a vista:
120
Quem mais avesso assim primeiro vemos.
O
Navarro estudara-o como invista;
E
arrancando, de súbito, ao betume
123
Se arroja e a liberdade então conquista.
Da
afronta sentem todos o azedume,
Inda
mais quem motivo dera ao feito,
126
Gritando: — “Preso estás!” — salta do cume,
Porém
do medo se avantaja o efeito
Ao
das asas: um baixa ao fundo presto,
129
No ar sustém-se o outro, alçando o peito.
Assim
mergulha o pato na água lesto,
Quando
avista o falcão: perdida a presa,
132
Se torna o caçador cansado e mesto.
Calcabrina,
da raiva na braveza,
Após
o sócio voa, por ter briga,
135
Se a alma como deseja, vence empresa.
Vendo
que ao fundo o malfeitor se abriga,
As
garras volta contra o companheiro:
138
Furor à luta sobre o lago o instiga.
As
unhas o outro, gavião ligeiro,
Lhe
crava e, entrelaçando-se espantosos,
141
Tombam ambos no pez, de corpo inteiro.
Separa
o grão fervor os dois raivosos;
Em
vão, porém, subir-se pretenderam,
144
Que as asas prendem borbulhões viçosos.
Os
outros vendo o caso, se doeram:
Envia
quatro o cabo diligente;
147
E de croques armados acorreram.
De
um lado e de outro chegam velozmente.
Tendem
farpões aos sócios enviscados,
Cozidos
já naquela crusta ardente,
151
E desta arte os deixamos atalhados.
48-54.
Em Navarra etc., Ciampo de Navarra, o qual serviu na corte do rei Tebaldo II de
Navarra. 81. Frei Gomita, vicário de Ugolino Visconti, por dinheiro deu
liberdade aos inimigos do seu senhor. — 88. Miguel Zangue, vicário do rei Enzo
em Logodoro.
CANTO
XXIII
Prosseguem
os dois Poetas o seu caminho, descartando-se dos diabos. Vendo-os, porém,
voltar novamente, Virgílio abraça-se com Dante e deixam-se resvalar pelo
declive do precipício. Encontram os hipócritas vestidos de pesadas capas de
chumbo dourado. Falam com dois frades, Catalano e Loderigo, bolonheses. Um dos
frades, inquirido por Vigílio, indica-lhe o modo de subir ao sétimo
compartimento.
EM
silêncio, a companha má deixada,
Seguíamos,
após um do outro andando,
3
Como frades menores em jornada.
Meu
pensamento à rixa se voltando,
A
fábula de Esopo relembrava,
6
Em que ao rato arma a rã laço nefando.
Se
aqueles casos dois eu confrontava,
Como
issa e mo, iguais me pareciam,
9
Quando o princípio e fim seus recordava.
E,
como os pensamentos se associam,
Outros
logo daquele me brotaram,
12
Que em dobrado temor a alma envolviam.
Pensava:
— esses demônios que passaram,
Por
causa nossa, tal vergonha e dano,
15
Do fato certamente se enojaram.
Se
a maldade agravar rancor insano,
Eles
no encalço nos virão ferozes,
18
Qual cão, que a lebre aboca enfim no plano.
Aguardando
os horríficos algozes,
Arrepiam-se
as carnes e o cabelo.
21
— “Ó Mestre meu, as garras temo atrozes!”
Exclamo:
— “Ache depressa o teu desvelo
Para
nós contra o bando amparo e abrigo.
24
Após os passos nossos cuido vê-lo”.
“Se
espelho eu fora, a imagem tua, amigo,
Tanto
não refletira claramente,
27
Quanto às idéias na tua alma sigo.
“Agora
iguais me estão surgindo à mente,
Concordes
tanto nas feições, em tudo,
30
Que um parecer entre ambos há somente.
“À
destra inclina a encosta, ou eu me iludo:
Por
lá baixando à mais vizinha cava,
33
Teremos contra assaltos seus escudo”.
Não
acabava, quando a turba prava
Assoma:
de asas pandas se enviando
36
Contra nós, não mui longe a divisava.
De
súbito nos braços me tomando,
Qual
mãe, que ao despertar se vê cercada
39
De furiosas flamas, e, apertando
Ao
seio o filho, foge acelerada,
E
ao pudor véus esquece angustiosa,
42
Só por salvar aquela prenda amada:
Lá
do cimo da riba alta e fragosa
Resvala
o Mestre pela penha dura,
45
Muralha de outra cava tenebrosa.
Água
não corre mais veloz da altura
Por
canal a impulsar de engenho a roda,
48
Quando, vizinha aos cubos, se apressura,
Do
que a descer o Guia meu se açoda,
Como
a filho estreitando-me ao seu peito,
51
Não como a companheiro a quem se engoda.
Da
cava, apenas atingira o leito,
Quando
ao cimo os demônios se mostraram:
54
Mas de iras suas malogrou-se o efeito.
Por
lei da Providência terminaram
Funções,
que exercem na caverna quinta,
57
Toda vez que o recinto seu deixaram.
Gente,
que de brilhante cor se pinta
Vemos,
que a tardo passo em torno andava;
60
Chorava e em forças parecia extinta.
Capa
e capuz trazia, que ocultava
Seus
olhos, dessa forma de vestidos
63
De Colônia entre os monges mais se usava.
De
ouro por fora, dentro guarnecidos
De
chumbo: comparando a peso tanto,
66
De palha os de Fred’rico eram tecidos.
Por
toda a eternidade, ó duro duro manto!
Com
tais almas, à sestra, caminhamos,
69
Atentos escutando o triste pranto.
Tanto
as oprime o peso, que as passamos
No
lento caminhar; e a cada instante
72
De nova companhia ao lado estamos.
“Mostra-me
— eu disse ao Guia, suplicante —
Algum
por nome ou feitos afamado;
75
Busca, sem te deter, Mestre prestante!” —
Tendo
vozes toscanas escutado,
Um
atrás nos gritou: — “Cessai da pressa,
78
Com que ides a correr pelo ar cerrado!
“Cousa
talvez direi, que te interessa”.
Volta-se
o Mestre e diz-me: — “Agora espera;
81
Para o passo igualar-lhes não te apressa”.
Cessando,
vejo um par que se acelera;
Seus
gestos dizem que acercar-se aspiram,
84
Malgrado a estrada e o peso, que os onera.
Aqueles
dois, já próximos, remiram
Com
vesgos olhos, sem falar, meu rosto;
87
Depois entre eles vozes tais se ouviram:
“O
que respira ainda em vida é o posto?
Se
mortos ambos são, por que motivo
90
Da plúmbea capa evadem-se ao desgosto?”
E
disseram: — “Toscano, que, inda vivo,
Vens
de hipócritas ver o grêmio triste,
93
Dizer quem sejas, não recusa esquivo”.
—
“Nasci na grã cidade, à qual assiste
Com
suas belas margens o Arno ameno,
96
E o corpo, em que hei crescido, lá persiste.
“Quem
sois que da aflição tanto veneno
Na
face amargo pranto denuncia?
99
Qual penar tendes de esplendor tão pleno?”
“Tanto
chumbo se encobre” — um me dizia —
Destas
capas sob o ouro, que oscilamos,
102
Qual balança, que ao peso hesitaria.
“De
Bolonha e Godente, nos chamamos
Um
Loderigo e o outro Catalano:
105
Juntos ambos Florença governamos,
“Por
que ficasse a paz livre de dano.
Em
vez de um regedor; do que hemos sido
108
O Gardingo dá prova e desengano”.
“Ó
irmãos” — comecei — “o mal nascido...”
Atalhei-me:
jazendo um condenado
111
Com puas três em cruz via estendido.
Em
vendo-me estorceu-se angustiado.
Altos
suspiros arrancou do peito.
114
Catalano acercou-se apressurado.
“Este”
— disse — “que geme em duro leito,
Que
a um homem dessem morte, aconselhara
117
Aos Fariseus, do povo por proveito.
“Através
do caminho é nu, repara:
De
quem passa, desta arte, ele conhece
120
O peso, quando por calcá-lo pára.
“Igual
martírio o sogro seu padece,
Assim
como cada um desse concilio,
123
Semente pra os Judeus de horrenda messe”.
Maravilhar-se
então mostrou Virgílio,
Posto
em cruz o prescito contemplando
126
Com tanto opróbrio lá no eterno exílio,
Voltou-se
a Catalano assim falando:
“Dizei,
se assim vos apraz e é permitido,
129
Se à direita há vereda, onde, passando,
Deste
recinto vamo-nos temido,
Sem
que os anjos perversos obriguemos
132
Caminho a nos mostrar não conhecido”.
Tornou:
— “Mais perto do que julgas temos
Rochedo,
que, do muro se estendendo,
135
Dá ponte a cada val, em que gememos.
“Este
não cobre, outrora se rompendo;
Mas
subir podereis pela ruína,
138
Que do declive ao fundo se está vendo”.
Ouvindo,
o Guia um pouco a fronte inclina
E
diz: — “Bem más explicações nos dava
141
Quem tanto os pecadores amofina”.
Logo
o frade: “Em Bolonha me constava
Que
o demônio, entre os vícios com que stenta,
144
De ser pai da mentira se ufanava”.
A
passo largo o Mestre já se ausenta;
Ira
ressumbra o rosto carregado.
Deixa
a turba, que em capas se atormenta,
148
As pegadas seguindo-lhe apressado.
8.
“Mo” e “issa” advérbios que, ambos, significam: agora. — 66. De Frederico etc.,
em comparação, as capas que Frederico II mandara colocar nos presos eram
levíssimas. — 104. Loderigo e Catalano, frades que foram chamados a governar
Florença, depois da derrota de Manfredo (1266) e que se aproveitaram da sua
posição, causando um motim no qual foi incendiada a casa dos Uberti, perto do
Gardingo. — 115. Este etc., Caifás, o sumo sacerdote de Israel, que aconselhou
a morte de Jesus. — 121. O sogro seu etc., Anah, sogro de Caifás.
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