INFERNO ... Cantos I-V ... VI-XI ... XII-XVII ... XVIII-XXIII ... XIV-XXIX ... XXX-XXXIV
PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII
PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII
CANTO
XXIV
Encaminham-se
os Poetas pelo rochedo e chegam ao sétimo compartimento no qual estão os
ladrões, os quais, picados por serpentes horríveis, inflamam-se e, depois,
ressurgem das cinzas. Entre eles Dante reconhece Vanni Fucci, o qual por
desafogar o despeito de ser colhido em tal vergonha e miséria, prediz-lhe a
derrota dos Brancos.
NAQUELA
parte do ano incipiente,
Em
que as comas do sol se fortalecem
3
No Aquário, e a noite iguala o dia ausente,
Quando
as geadas matinais parecem
Da
alva irmã figurar a imagem pura,
6
Mas tais feições em breve se esvaecem.
Campino,
que a indigência já tortura,
Ergue-se,
e vendo o prado embranquecido.
9
No coração calar sente a amargura.
Torna
ao tugúrio e carpe-se abatido,
Como
quem toda a esp’rança já perdera;
12
Mas vendo em breve o campo estar despido
Do
triste manto, o alento recupera.
Revigorado
então, corre ao cajado
15
E as ovelhas ao pascigo acelera.
De
temor me senti, dessa arte, entrado
Do
mestre merencóreo ante o semblante;
18
Mas logo ao mal foi bálsamo aplicado.
À
ruína chegamos: nesse instante
Virgílio
volve àquele doce gesto,
21
Que eu da colina ao pé vira ofegante.
Reflete
um pouco, o estado manifesto
Da
rocha examinando: eis-me, estendendo
24
Os braços, resoluto ergueu-me presto.
Como
aquele que uma obra entre mãos tendo.
Logo
noutra tarefa põe o intento,
27
Num rochedo Virgílio me sustendo,
Já
de outro acima me avisava atento.
“Mais
alto agora sobe” — me dizia —
30
“Vê se a rocha está firme! Toma tento!”
De
capa ali ninguém transitaria;
Pois
nós, leves e eu sempre transportado,
33
Subíamos a custo a penedia.
Se
mais alto o declive do outro lado
Não
fora do que esse outro, em que ora estamos,
36
— Dele não sei — ficara eu lá prostrado.
Que
Malebolge inclina-se notamos
À
boca enorme do profundo poço;
39
As encostas, são tais — expr’imentamos —
Que
uma é baixa, outra excelsa em cada fosso.
Vimos,
enfim, do topo à roca extrema,
42
Dessa ruína ao último destroço.
Lá
chegado, afã tanto o peito prema,
Que
avante um passo dar eu mais não pude;
45
Sentei-me então na inanição suprema.
“Eia!
toda a fraqueza em ti se mude!
Em
ócio” — disse o Mestre — “ou sobre a pluma
48
Prêmios ninguém conquista da virtude.
“Aquele
que a existência assim consuma,
Tal
vestígio de si deixa na terra,
51
Como o fumo no ar e na água a espuma.
“Ergue-te,
pois! Torpor de ti desterra!
Recobra
o esforço que os perigos vence!
54
Impere alma no corpo em que se encerra!
“Que
vais subir muito alto a mente pense;
Desse
abismo não basta haver saído.
57
Será teu prol, se a minha voz convence”.
Alço-me
então, mostrando-me impelido
De
alento, que não tinha; e ao Mestre digo:
60
“Avante! Forte já me sinto e ardido!”
Pela
rocha asperíssima prossigo
Mais
estreita, inda menos acessível
63
Que a outra: os passos de Virgílio sigo.
Por
provar-me às fadigas insensível
Falando
andava. Eis ouço de outra cava
66
Ressoar voz bem pouco perceptível.
O
que disse não sei, posto me achava
Da
ponte sobre a parte culminante;
69
Mais parecia iroso quem falava.
Curvei-me
para ver no fosso hiante,
Mas
alcançar não pude o fundo escuro.
72
Ao Mestre disse então. “Se apraz-te, avante
Passando,
desceremos deste muro;
Daqui
ouço uma voz, mas não a entendo;
75
Fito os olhos, mas nada me afiguro”.
“Respondo
aos teus desejos, acedendo;
Que
o pedido discreto assim declaro
78
Se cumpre, não falando, mas fazendo”.
Fomos
da ponte à parte, donde é claro
Que
se vai ter à ribanceira oitava:
81
Ficou patente a cava ao meu reparo.
De
serpes tal cardume se enroscava,
Horríficas
na infinda variedade,
84
Que ao sangue, inda ao lembrar, terror me trava.
Não
tenha a Líbia de criar vaidade,
De
quersos, fares, cencris no seu seio
87
E anfisbenas, tamanha quantidade.
Nem
do mar Roxo* em plagas, nem no meio
Da
Etiópia, tropel tão pavoroso
90
De flagelos jamais a lume veio:
Por
entre o enxame atroce e temeroso
Almas
corriam nuas e transidas,
93
Heliotrópia não sperando ou pouso.
Atrás
as mãos por serpes são tolhidas,
Que,
transpassando os rins, cauda e cabeça,
96
Lhes tinham por diante em laços unidas.
Eis
uma de repente se arremessa
Ao
prescito, que perto nos demora:
99
Morde-lhe o colo aonde a espádua cessa.
Um
O traçar ou I mais custa agora
Do
que ser o mesquinho incendiado:
102
Em cinzas cai o pecador, que chora.
Stando
em terra desta arte derribado,
Juntando-se
a cinza e logo reformou-se,
105
Como de antes, o triste condenado.
Dos
sábios na escritura já narrou-se
Que
a Fênix morre e logo após renasce,
108
Quando aos anos quinhentos acercou-se.
Viva,
já nunca em cibo ela se pasce,
Em
lágrimas, porém, de incenso e amono;
111
De nardo e mirra em ninho extremo apraz-se.
Como
aquele que cai sem saber como,
Do
demônio ao poder, que à terra o tira,
114
Ou de outra opilação sentindo o assomo;
Levantando-se,
em torno a si remira,
Da
angústia inda aturdido, que o mordera,
117
E, em seu soçobro, pávido suspira:
Assim
parece o pecador, que ardera.
Contra
os pecados na final vingança,
120
Ó Justiça de Deus, quanto és severa!
Quem
fora inquire o Mestre, e dele alcança
Estas
vozes: — “Há pouco, da Toscana
123
Chovi no abismo, onde ninguém descansa.
“Vida
brutal vivi, não vida humana.
Chamei-me
Vanni Fucci, híbrida besta;
126
Pistóia, meu covil, de mim se ufana”.
Ao
Mestre eu disse: — “Referir-nos resta
O
crime, que deu causa à morte sua:
129
Sei que em sangue banhara a mão funesta”.
O
pecador, que me ouve, não se amua:
Volta-me
presto a cara, em que a tristeza
132
Com sinais de vergonha se insinua
E
diz: — “Sinto da dor mais a aspereza,
Porque
em miséria tanta me vês posto,
135
Do que quando da morte hei sido a presa.
“Ao
que exiges respondo com desgosto:
Por
ter roubado alfaias e ornamento
138
Da igreja, aqui estou, sendo meu gosto
“Que
pelo crime houvesse outro tormento.
Se
deste antro saíres algum dia,
141
Por que não sejas do meu mal contento,
“Ouve
bem o que a voz minha anuncia:
De
si Pistóia os Negros expulsando,
144
Povo, modos, Florença então cambia.
“Vapor
de Val de Magra Marte alçando,
O
traz em torvas nuvens envolvido;
147
E, enquanto a tempestade está raivando,
“No
campo de Picen será ferido
Combate;
a névoa logo se esvaece;
Dos
Brancos cada qual será batido.
151
“Sabe-o, pois: certo, a nova te entristece”.
125.
Vanni Fucci, ribaldo que roubou o tesouro de S. Jacopo em Pistóía. — 143-150.
De si Pistóia etc., Vanni Fucci sabendo que Dante era do partido dos Brancos,
lhe prediz que os Brancos serão exilados de Florença e, depois, derrotados em
Campopiano.
—*
NE: Roxo na fonte digitalizada. No original italiano, Mar Rosso [che sopra al
Mar Rosso] (Mar Vermelho) – Traduzido por Roxo para efeito de métrica?
CANTO XXV
Vanni
Fucci depois das negras predições desafia a Deus, pelo que o centauro Caco,
todo coberto de serpentes, lhe corre atrás. Dante reconhece entre os danados
alguns florentinos que, em Florença, desempenharam funções importantes,
aproveitando-se dos dinheiros públicos e descreve suas transformações de homens
em serpentes e vice-versa.
ASSIM
dizia o roubador e, alçando
Ambas
as mãos, que figuravam figas:
3
“Toma, ó Deus” exclamou “o que eu te mando”.
Serpes
me foram desde então amigas:
Porque
logo uma ao colo se enroscava,
6
Como a dizer: — “Não quero que prossigas!”
Tolhendo-lhe
outra os braços, se enlaçava
Diante
sobre o peito, e o movimento
9
Com rebatido vínculo atalhava.
Ah!
Pistóia! ah! Pistóia! o incendimento
Teu
decreto, extinguido nome impuro,
12
Pois dás da extirpe tua ao vício aumento!
Tão
soberbo não vi no abismo escuro,
Contra
Deus outro esp’rito; nem o ousado,
15
Que de Tebas caiu morto do muro.
Sem
mais dizer fugira o condenado.
Eis
rábido centauro vi correndo
18
A gritar: — “onde está o celerado?”
Nem
tem Marema de répteis horrendo
Bando
igual ao que o dorso carregava
21
Té onde a humana forma está-se vendo.
Na
espádua, abaixo da cerviz pousava,
As
asas estendendo, atroce drago,
24
Que fogo a quanto encontra arrevessava.
“É
Caco” — o Mestre diz — “que a imane estrago
Afeito
do Aventino se aprazia,
27
Sob as penhas, de sangue em fazer lago.
“Dos
seus irmãos não segue a companhia,
Por
haver depredado, fraudulento,
30
Armentio, que próximo pascia.
“Tiveram
fim seus crimes: golpes cento
Sobre
ele desfechou de Alcide a clava:
33
Aos dez perdera já a vida o alento”. —
Foi-se
o centauro enquanto assim falava.
Abaixo
eis três espíritos chegando,
36
Nos quais nenhum de nós inda atentava,
“Quem
sois?” — romperam súbito bradando.
A
Narração então suspende o Guia;
39
E só deles curamos, escutando.
Nenhum
dessa companha eu conhecia;
Mas
então, como às vezes acontece,
42
Um, chamando por outro, assim dizia:
“Onde
é Cianfa, que assim desaparece?”
Dedo
nos lábios fiz nesse momento
45
A Virgílio sinal, por que atendesse.
Em
crer o que eu contar se fores lento,
Não
há de ser, leitor, para estranhado;
48
Quase o que eu vi descrê meu pensamento.
Quando
eu dos três a vista era engolfado,
Sobre
seis pés se via uma serpente
51
Contra um deles e o tem todo enlaçado.
Abraçam-lhe
os do meio rijamente
O
ventre; aos braços aos de cima rendem,
54
Ambas as faces morde-lhe furente.
Os
de baixo nas coxas já se estendem,
Interpondo-se
a cauda, que, subindo
57
Por detrás, voltas dá que os rins lhe prendem.
Hera,
de árvores os ramos recingindo.
Não
os enleia tanto, como a fera
60
Alheios membros ao seu corpo unindo.
Fundiram-se
depois, de quente cera
Com
feitos; travando as suas cores,
63
Um nem outro parece o que antes era:
Como
em papel, do fogo ante os ardores
Procede
escura cor; inda não sendo
66
Negro, vão fenecendo os seus albores.
Os
dois, a maravilha percebendo,
Gritavam-lhe:
— “Ai! Agnel, quanto hás mudado!
69
Um já não és mas dois ser não podendo!”
Numa
cabeça as duas se hão tornado;
Confundidos
estavam dois semblantes
72
Num rosto, em que se haviam misturado.
São
dois os braços, que eram quatro de antes,
Foram
coxas e pernas, ventre e peito
75
Membros, que nunca hão tido semelhantes.
Perdeu-se
assim todo o primeiro aspeito;
Seres
dois e nenhum nessa figura
78
Se via; e o montro foi-se a passo estreito.
Quando
o fervor canicular se apura,
Cruza
o lagarto, como o raio, a estrada,
81
E uma mouta deixando, outra procura.
Tal
menor serpe, lívida, inflamada.
Negrejando,
qual bago de pimenta,
84
Aos outros dois se arroja acelerada.
E
na parte, por onde se alimenta
Primeiro
a vida nossa, um dos dois fere
87
E ante ele tomba em queda violenta.
Olha
o ferido, mas nem voz profere;
E
sobre os pés imóvel bocejava,
90
Como quem sono prenda ou febre onere.
Fitava
olhos na serpe, e esta o encarava;
A
chaga de um eu via, do outro a boca
93
Fumegar; e o seu fumo se encontrava.
Emudeça
Lucano, quando toca
Em
Sabelo infeliz mais em Nascídio.
96
Escute: mor portento ora se evoca.
De
Cadmo e Aretusa cale Ovídio:
Se
fonte a esta, àquela fez serpente,
99
Não o invejo: aqui há pior excídio,
Não
converteu dois seres frente a frente,
Tanto
que permutasse formas duas
102
Sua própria matéria de repente.
Desta
sorte compõem-se as partes suas:
A
cauda à serpe fende-se em forquilha,
105
Cerra o ferido em uma as plantas nuas.
Tal
prisão coxas, pernas envencilha
Que
em breve nem vestígio há de juntura,
108
Sinal, ou numa ou noutra, de partilha.
Fendida
a cauda assume essa figura
Que
perde o homem; numa é tão macia
111
A pele, quanto noutro fez-se dura.
Entrar
os braços nas axilas via;
Tanto
estendia os curtos pés a fera,
114
Quanto o outro os seus braços encolhia.
Os
pés o drago extremos retorcera,
Na
parte, que se esconde, se mudando,
117
Que em duas no mesquinho se fendera.
Enquanto
o fumo os dois ia velando
De
nova cor e a serpe o pêlo empresta,
120
Que em todo perde o pecador nefando,
Ergue-se
um, cai o outro e no chão resta,
Os
ímpios olhos sem torcer, que viram
123
Dos gestos seus a conversão funesta.
Ao
que era em pé às frontes lhe subiram
Do
rosto as sobras: cada face afeita
126
Uma orelha, de duas, que saíram.
Quanto
de mais ficara então se ajeita,
O
nariz conformando-lhe na cara
129
E de lábios lhe ornando a boca estreita,
A
beiça o que jazia dilatara;
Qual
caramujo, que as antenas cerra,
132
À cabeça as orelhas retirara.
A
língua unida e no falar não perra
Partiu-se,
enquanto a do outro, forquilhada,
135
Uniu-se; o fumo desde então se encerra.
Essa
alma, que em réptil era mudada,
Pelo
vale arremete sibilando,
138
Falando, a outra escarra e a segue irada.
Depois,
seu novo dorso lhe voltando,
Disse
à terceira sombra: “Corra o Buoso,
141
Como eu, por esta senda rastejando”.
Assim
vi no antro sétimo espantoso
Mútuas
transformações: tanta estranheza
144
Desculpe o canto rude e descuidoso.
Posto
empanar dos olhos a clareza
E
entrar o assombro no ânimo eu sentisse,
147
Não fugiram com tanta sutileza,
Nem
tão prestes que eu bem não discernisse
Puccio
Sciancato, que dos três somente
Fora
o que transmudado se não visse,
151
Deu-te o outro, Gavili, dor pungente.
14.
Nem o ousado etc., Capaneu, V. Inf. XIV. — 25. Caco, ladrão, ao roubar o
rebanho de Hércules, para despistar, puxou as ovelhas pela cauda. — 43. Cianfa
dei Donati, ladrão florentino que veremos transformado em serpente. — 68.
Agnel, Agnello Brunelleschi, ladrão florentino. — 95. Sabelo e Nascidio,
personagens dos “Farsálias” de Lucano que, mordidos por cobras, mudam de
aspecto. — 97. Cádmio e Aretusa, personagens das “Metamorfoses” de Ovídio que
se transformam o primeiro em serpente e o segundo numa fonte. — 149. Puccio
Scianeato, ladrão florentino.
CANTO
XXVI
Chegando
os Poetas ao oitavo compartimento, distinguem infinitas chamas, dentro das
quais são punidos os maus conselheiros. Numa chama bipartida estão Diômedes e
Ulisses. Este último, a pedido de Dante, narra a sua última navegação, na qual
perdeu a vida com os seus companheiros.
FOLGA,
ó Florença! A fama tens tão grande,
Que
asas bates por terra e mar, vaidosa!
3
Até no inferno o nome teu se expande!
Entre
os ladrões, ó cousa vergonhosa!
Principais
cinco achei, que em ti nasceram:
6
Serás por honra tal, vangloriosa?
Se
os veros sonhos por manhã se geram,
Em
breve hás de sentir o que os de Prato,
9
Quanto mais outros, por teu dano esperam.
Presto
que venha, será tarde o fato;
Se
o mal tem de ferir, fira apressado:
12
Mais velho me há de ser mais grave e ingrato.
Partimos:
do rochedo alcantilado
Os
degraus, em que havíamos descido,
15
Sobe o Mestre e por ele eu fui levado.
Em
nosso ermo caminho e desabrido
Prosseguimos
por entre agras fraguras,
18
Pelas mãos sendo o pé favorecido.
Inda
nalma exacerbam-se amarguras,
Do
que hei visto lembranças avivando;
21
E, quanto posso, o coração nas puras
Veredas
da virtude vou guiando,
Por
que o bem, por bom astro ou Deus doado,
24
Eu próprio não converta em mal nefando.
O
rústico, no outeiro reclinado,
Na
estação, em que o sol o mundo aclara,
27
Mais lhe mostrando o seu semblante amado,
Já
quando a mosca o sucessor depara,
Pririlampos
não vê tão numerosos
30
No vale, onde vindima, ou ceifa ou ara,
Quando,
no fosso oitavo, os temerosos
Fogos,
que avisto, dos que, ao cimo alçado,
33
Fito no fundo os olhos curiosos.
Como
aquele que de ursos foi vingado,
Quando
voou de Elia o carro ardente,
36
Ao céu por frisões ígneos transportado,
Seguiu
c’a vista o lume, que somente
Dos
ares na extensão aparecia,
39
Qual nuvens se elevando velozmente;
Assim
naquele abismo se agitando
As
flamas via; em cada qual estava
42
Uma alma, em seus fulgores se ocultando.
Para
ver, lá da ponte, me inclinava:
Se
amparado da rocha eu não stivesse,
45
Tombara ao fundo dessa hiante cava.
O
Mestre, ao ver que a mente se embevece,
“Em
cada fogo” — diz-me — “um condenado,
48
Como em hábito, envolto, arde e padece”.
“Sou,
te ouvindo” — tornei — “certificado
Do
que era, há pouco, em mim simples suspeita.
51
Pretendia inquirir, maravilhado,
Que
significa o fogo, que endireita
A
nós, e se partindo, iguala a pira,
54
Para imigos irmãos outrora feita”.
—
“Estão lá dentro dessa flama dira
Diômedes
e Ulisses: em castigo
57
Sócios são, como outrora hão sido em ira.
“Lá
dentro geme o pérfido inimigo,
Inventor
do cavalo, que foi porta,
60
Por onde a Roma veio o início antigo;
“Chora-se
a fraude, que Deidamia morta,
Ainda
exprobra a Aquiles, ressentida;
63
Pelo Paládio a pena se suporta”.
“Se
à labareda, ó Mestre, é permitida
A
fala” — eu disse — “te suplico e rogo
66
Com instância, mil vezes repetida,
“Aguardar
me concedas esse fogo,
Que,
bipartido para nós caminha.
69
Vês meu anelo: ah! dá-lhe o desafogo!”
“Merece
toda a complacência minha
Teu
rogo: eu de bom grado o atendo e aceito.
72
Mas cala-te; que hás de ser contente asinha.
“Falar
me deixa; sei qual teu conceito,
Talvez
que desses Gregos na alma esquiva
75
Produza o teu dizer ingrato efeito”.
Propínqua
estando a nós a flama viva,
E,
asado ao Mestre, parecendo o ensejo,
78
Nesta linguagem disse persuasiva:
“Ó
vós, que nesse fogo eu juntos vejo,
Se
por serviços meus, quando vivia,
81
Revelei de aprazer-vos o desejo,
“Nos
sonoros versos que escrevia,
Detende-vos:
benévolo um nos diga
84
Onde viu fenecer o extremo dia”.
A
parte superior da flama antiga
A
tremular começa murmurando,
87
Como a que o vento lhe assoprando instiga.
E
a um lado e a outro o cimo meneando,
Como
se língua fora, que falasse,
90
Estas vozes profere, e diz-nos: “Quando
“De
Circe a encantos me esquivei fugace,
Em
que um ano passei junto a Gaeta,
93
Antes que assim Enéias a chamasse,
“A
saudade do filho, a mui dileta
Velhice
de meu pai, de alta consorte
96
Santo amor, em que ardia sempre inquieta,
“Não
dominaram esse anelo forte
Que
me impulsava a ser do mundo esperto,
99
Das manhas das nações, da humana sorte.
“Lancei-me
às vagas do alto mar aberto;
Sobre
um só lenho me seguiu companha
102
De poucos, mas de afouto peito e certo.
“As
ondas perlustrando, hei visto a Espanha,
Marrocos,
logo a ínsula dos Sardos
105
E as outras que o cerúleo pego banha.
“Já
da velhice nos sentidos tardos,
Alfim
chegamos ao famoso estreito,
108
Onde Alcides aos nautas pôs resguardos,
“Que
devem respeitar por seu proveito.
Deixei
Septa, que jaz ao esquerdo lado,
111
E Sevilha, que ao lado está direito.
“Perigos
mil vencendo e avesso fado”
Lhes
disse — “irmãos, chegastes ao Ponente!
114
Da existência este resto, já minguado,
“Razão
não seja, que vos tolha a mente
De
além do sol, tentar nobre aventura,
117
E o mundo ver, que jaz órfão de gente.
“Da
vossa raça refleti na altura!
Viver
quais brutos veda-o vossa origem!
120
De glória vos impele ambição pura!
“Com
tanto esforço os ânimos se erigem,
Falar
me ouvindo assim, que ir por diante
123
De entusiasmo sôfregos, exigem.
“Já,
com popa ao Nascente flamejante,
Asas
os remos são na empresa ousada,
126
E o lenho sempre à esquerda voga avante.
“Já
do outro polo a noite levantada,
Via
os astros brilhar: o nosso, entanto,
129
Na planície imergia-se salgada:
“Cinco
vezes a luz do etéreo manto
A
lua difundira e após minguara,
132
Depois que arrosto do oceano o espanto,
“Quando
imensa montanha se depara:
Envolta
em cerração, longe aparece;
135
Na altiveza outra igual nunca avistara.
“O
prazer nosso em pranto se esvaece:
Da
nova terra eis súbito irrompendo
138
Contra o lenho um tufão medonho cresce.
“Vezes
três em voragens o torcendo,
A
quarta a popa levantou-lhe ao alto,
E
a proa, ao querer de outrem, foi descendo”.
142
Cerrou-se o pego sobre nós de salto.
8.
Prato, pequena cidade perto de Florença. — 56. Diômedes e Ulisses, heróis
gregos que combateram juntos no assédio de Tróia. — 58-63. O Poeta lembra três
façanhas astuciosas de Ulisses: o cavalo de madeira para enganar os troianos; a
descoberta de Aquiles disfarçado em mulher entre os companheiros de Deidâmia; e
o roubo de uma estátua de Palas que tornava Tróia inexpugnável. — 92. Gaeta,
Enéias ao fundar a cidade de Gaeta deu-lhe o nome de sua nutriz. — 107. Famoso
estreito, Gibraltar, cujos montes (as colunas de Hércules) eram considerados
como aviso para que não se passasse além.
CANTO
XXVII
Outro
danado, entra a falar com Dante. É Guido de Montefeltro, o qual pede notícias
da Romanha sua terra natal. Conta, depois, que foi condenado por causa de um
mau conselho que, fiado na prévia absolvição, dera ao papa Bonifácio VIII.
A
FLAMA já se erguia e estava quieta,
Não
mais falando, e já se retirava
3
Com permissão do meu gentil Poeta,
Quando
outra, que de perto caminhava,
Pelos
confusos sons, que desprendia,
6
Olhar nos fez seu cimo, que oscilava.
Como
o sículo touro, que mugia
A
vez primeira, o pranto ressoando
9
Do inventor, que seu prêmio recebia;
Berrava
pela voz do miserando,
Na
brônzea forma, em dor tanto pungente,
12
Que parecia vivo estar penando:
Assim
se convertia o som plangente
De
flama no rumor, lhe falecendo
15
Caminho, em que irrompesse prontamente.
Mais
se exalar pelo ápice em podendo
Dar-lhe
impulso por ter já conseguido
18
Desse mesquinho a língua, se movendo,
“Tu,
a quem me dirijo” — hemos ouvido —
“Que,
inda há pouco, dizias em lombardo:
21
Podes ir, tens assaz já respondido.
“Posto
em chegar um tanto eu fosse tardo,
De
ouvir-me não despraza-te a demora;
24
Bem vês, me não despraz: entanto eu ardo.
“Se
a este abismo tenebroso agora
Tombas
saudoso dessa doce terra
27
Latina, onde hei pecado tanto outrora,
“Se
os Romanhóis têm paz, dize-me, se guerra,
Pois
eu fui lá dos montes, entre Urbino
30
E essa, origem do Tibre, altiva serra”.
Para
escutar atento a fronte inclino.
Eis,
tocando-me a um lado, diz meu Guia:
33
“Podes ora falar, que este é Latino”.
Eu,
que já prestes a resposta havia,
Tornei
ao pecador incontinente:
36
“Alma, que o fogo assim veste e crucia,
“Tua
Romanha em guerra permanente
Sempre
é no coração dos seus tiranos.
39
Porém nenhuma agora tem patente.
“Hoje
é Ravena o que era, há longos anos,
De
Polenta a águia forte ali se aninha;
42
Com largas asas cobre à Cérvia os planos.
“A
terra, que no tardo assédio tinha
Pelo
sangue francês sido inundada
45
Sob verde leão, sofre mesquinha.
“Dos
Mastins de Verruchio a subjugada
Gente
os dentes cruéis inda sentia:
48
Morte a Montagna deram desapiedada.
“Em
Lamone, em Santerno inda regia
Do
alvo ninho o leão, se convertendo
51
De um pra outro partido cada dia.
“A
cidade que o Sávio banha, sendo
Entre
o plaino e a montanha, em liberdade
54
Ou vive ou sob o jugo vai sofrendo.
“Ora
nos diz quem foste na verdade;
Condescendente
sê, como hemos sido:
57
No mundo haja o teu nome longa idade”.
O
fogo rumoreja e comovido
De
um lado a outro a ponta aguda agita;
60
Depois emite a voz neste sentido:
“Se
esta resposta minha fosse dita
A
quem do mundo à luz daqui voltasse,
63
Queda ficara a minha língua aflita.
“Mas
como é certo que jamais tornasse
Quem
no inferno caiu, se não me engano,
66
De falar não hei medo, que embarace,
“Homem
de armas, depois fui Franciscano,
Crendo
pelo cordão ser emendado;
69
Por crê-lo certo, me esquivara ao dano,
“Se
o Papa (todo o mal seja-lhe dado!)
Não
me volvesse à primitiva estrada.
72
Como e por que te fique declarado.
“Enquanto
a humana forma era habitada
Por
mim, não provei ser leão por feitos,
75
Mas raposa, por astúcia abalizada.
“Estratégia
sutil, ardis perfeitos
Tantos
soube, que os âmbitos da terra
78
Eram à fama de meu nome estreitos.
“Da
existência na quadra, em que muito erra
Quem,
de surgir no porto esperançado,
81
Nem colhe os cabos nem as velas ferra,
“Odiei
quanto houvera mais amado
E
humilhei-me confesso e arrependido...
84
E o perdão, ai de mim! fora alcançado...
“Dos
novos Fariseus Príncipe infido,
Em
Latrão guerra crua declara:
87
Não contra Mouro, nem Judeu descrido,
“Contra
cristãos as iras ateara;
Nenhum
traidor contra Acre combatera
90
Ou do Soldão na terra traficara.
“Sacras
ordens em si não considera,
Nem
cargo excelso, em mim o da humildade
93
Cordão, que os penitentes seus macera.
“Como
foi de Sirati à soledade
Constantino
a Silvestre pedir cura
96
Da lepra: assim também à enfermidade
“De
seu febril orgulho este procura
Remédio
em meu conselho. Escrupuloso
99
Calei-me: de ébrio vi nele a loucura.
“Fala
— insistiu — não sejas temeroso!
Absolto
és desde já, se Palestrino
102
A vencer me ensinares ardiloso.
“Eu
abro e fecho o céu: poder divino
As
duas chaves têm, a que há negado
105
O meu antecessor preço condi’no.
“Já
destas razões graves abalado,
Pior
partido no silêncio vendo,
108
Lhe tornei: — Padre Santo, se o pecado,
“Em
que ora vou cair, stás-me absolvendo,
Darás
ao sólio teu glória e conforto
111
Prometendo demais, pouco fazendo.
“Francisco
me acudiu, quando fui morto;
Mas
clamou anjo negro apressurado:
114
— Não mo tomes; assim me causas torto!
“Lugar
foi-lhe entre os meus assinalado:
Dês
que há dado o conselho fementido,
117
Ficou pelos cabelos agarrado.
“Perdão
só tem quem geme arrependido;
Pecado
à penitência não se amanha,
120
Não pode aquele andar a esta unido.
“Ai!
qual foi meu pavor, quando, com sanha
Empolgando-me,
disse: — Creste acaso
123
Que me falta de lógico arte e manha?
“A
Minos me arrastou, que sem mais prazo,
Da
cauda em voltas oito o dorso enreda,
126
Raivoso morde-a e diz: — É neste caso
“Que
aos maus prisão se dá na labareda.
Assim
onde me vês, fiquei perdido,
129
Vou chorando, em tais vestes, minha queda”.
Tendo,
pois, desta sorte concluído,
Aquela
flama se partiu gemendo
132
E agitando o seu vórtice estorcido.
Eu
e Virgílio, então, seguido havendo
Pelo
rochedo, ao arco nós subimos,
Que
o nono fosso cobre, onde sofrendo
136
Os que cizânia semearam vimos.
7.
Sículo touro, o touro de bronze de que Falarides, tirano de Agrigento, se
servia para queimar os seus inimigos. — 29. Fui lá dos montes etc., Guido de
Montefeltro, que, depois de valoroso guerreiro, fez-se franciscano. — 41. De
Polenta a águia forte etc., a família de Polenta, que tinha uma águia por
emblema, dominou Ravena e Cérvia. — 46. Mastinos de Verruchio, Malatesta e
Malatestino de Verruchio, senhores de Rímini. — 48. Montagna, prisioneiro
guelfo que Malatestino mandou matar. — 49 Lamone e Santerno, as cidades de
Faenza e Imola. — 52. A cidade etc. Cesena. — 70. O papa, Bonifácio VIII. — 86.
Em Latrão etc., os Colonenses moravam perto da igreja de S. João em Latrão. —
89. Contra Acre, que os Sarracenos tomaram aos cristãos em 1291. — 94. Como foi
de Sirati etc., conforme uma lenda Constantino foi curado da lepra por São
Silvestre, que morava numa gruta do monte Sirati. — 102. Palestrina, onde os
Colonenses se tinham retirado. — 105. O meu antecessor, Celestino V.
CANTO
XXVIII
No
nono compartimento os Poetas encontram os semeadores de cismas e escândalos
civis e religiosos. Dante vê Maomé, que o encarrega de uma embaixada para o
herege rei Dolcino; fala também com outros danados.
DIZER
o sangue e as chagas espantosas,
Que
eu vi neste lugar, quem poderia,
3
Em livre prosa e em vezes numerosas?
Nenhuma
língua, certo, bastaria;
Fraca
a palavra, inábil nossa mente
6
Para horror tanto compreender seria.
Quando
junta estivesse toda gente,
Que
lá da Apúlia na infelice terra,
9
Perdera o sangue seu na luta ingente
Dos
romanos por mãos; e em crua guerra
A
que tantos de anéis deixou vencida,
12
Como refere Lívio, que não erra;
E
a que fora por golpes abatida,
Quando
a Roberto Guiscardo resistia;
15
E a que tem sua ossada inda espargida
De
Ceperan no campo, onde traía
Cada
Apulhês; e que no Tagliacozzo
18
O Velho Alard sem combater vencia:
Das
feridas o aspecto lastimoso
Não
fora, qual no fosso nono imundo
21
Apresentava o bando criminoso.
Qual
tonel, que aduelas perde ao fundo,
Estava
um pecador, que roto eu via
24
Das fauces ao lugar que é menos mundo.
As
entranhas pendiam-lhe; trazia
Patentes
os pulmões e o saco feio,
27
Onde o alimento de feição varia.
A
contemplá-lo estava de horror cheio,
Eis
me encara e me diz, abrindo o peito:
30
“Vê como eu tenho lacerado o seio!
“Mafoma
sou, quase pedaços feito;
Antecede-me
Ali, que se lamenta:
33
Do mento à testa o rosto lhe é desfeito.
“Todos,
que a dor aqui tanto atormenta,
De
escândalos, de cismas inventores,
36
Pendidos têm, qual vês, pena cruenta.
“Demônio
deixo atrás que os pecadores
Aos
fios passa de cruel espada.
39
Da multidão nenhum aos seus furores
“No
giro escapa da afrontosa estrada.
Cerrar-se
em todo cada golpe horrendo
42
Antes que torne a olhar-lhe a face irada.
“Mas
quem és, que, na rocha te detendo,
Estás
dessa arte a dilatar a pena,
45
Que Minos te aplicou, teus crimes vendo?”
—
“Não é morto; sentença o não condena” —
Torna
o Mestre — “não vem por seu castigo,
48
Mas, para ter experiência plena.
“Descendo
ao mais profundo vai comigo,
Que
morto sou, dos círculos temidos:
51
Tão certo é como falo ora contigo”.
Ouvindo
mais de cento dos punidos,
De
espanto a me encarar se demoraram,
54
Dos seus próprios tormentos esquecidos.
—
“A Frei Dolcino diz, pois não findaram
Teus
dias e hás de ao sol tornar em breve,
57
Se desejos de ver-me o não tomaram,
“Que
se aperceba; pois, cercando-o, a neve
Dará
triunfo à gente de Novara,
60
A quem vencê-lo assim há de ser leve”.
Para
partir um pé Mafoma alçara
Ao
tempo, em que palavras tais dizia:
63
Baixou-o e foi-se, apenas rematara.
De
guela golpeada outro acorria;
Té
as celhas nariz tendo truncado,
66
Uma orelha somente possuía.
Como
os mais, contemplando-me pasmado,
Aos
mais se antecipou e, escancarando
69
O canal, que de sangue era inundado,
“Ó
tu” — falou-me — “que não stás penando,
Que
outrora hei visto em região latina,
72
Se eu não erro, aparências aceitando,
“Recorda-te
de Pier de Medicina
Se
tornar-te for dado ao belo plano,
75
Que de Vercello a Marcabó se inclina.
“E
aos dois nobres varões dize de Fano,
Misser
Angiolello e Misser Guido,
78
Se o futuro antevendo, eu não me engano,
“Que
do baixel, que os haja conduzido,
De
Católica ao pé, ao mar lançados
81
Serão por ordem de um tirano infido.
“Por
Gregos, por piratas perpetrados,
Entre
Chipre e Maiorca ao infame feito
84
Não viu Netuno crimes igualados.
“O
traidor, que de um olho tem defeito,
Dessa
terra opressor, que um companheiro
87
Meu tivera em não vê-la mor proveito,
“Irão
a seu convite prazenteiro
Para
acordo; mas votos de Foscara
90
Não fará por temer vento ponteiro”.
“Revela-me”
tornei-lhe — “e me declara,
Desse
favor, que deprecaste, em troca,
93
Quem de ver essa terra se pesara”.
As
mãos de um pecador alçando à boca,
Escancarou-a
e disse-me gritando:
96
— “É este; a voz, porém, se lhe sufoca.
“Exulado,
ele foi quem, dissipando
Hesitações
de César, lhe afirmava
99
Que a ocasião perdia demorando”.
Oh!
quão pávido Cúrio se mostrava,
Tendo
cortada a língua na garganta,
102
Que outrora tanta audácia aconselhava!
Dos
decepados braços alevanta
Outro
os cotos ao ar caliginoso:
105
Banha-lhe o sangue a face, que me espanta.
Gritou:
— “Memora Mosca desditoso!
Fui
quem disse: — O seu fim tem cousa feita!
108
Fatal dito, à Toscana, ai! bem danoso!”
“E
à tua raça, que à morte foi sujeita!”
Atalhei.
Sobre a dor, dor se acendendo
111
Em desesp’rança se partiu desfeita.
Aquela
multidão stava atendendo,
Cousa
assombrosa eis vejo, que inda hesito
114
Em narrar, provas outras eu não tendo.
Da
consciência já me alenta o grito,
Sócia
fiel, que o homem torna forte,
117
Sob o arnês da verdade, sempre invicto.
Eu
via, e cuido ver na mesma sorte
Apropinquar-se
um corpo sem cabeça,
120
Por entre os outros da infeliz coorte,
Caminha,
alçando-a pela coma espessa,
Da
mão pendente a modo de lanterna:
123
Gemendo, os olhos seus nos endereça.
Servia
ele a si próprio de luzerna,
Eram
duas em um, era um em duas:
126
Como ser pode, sabe o que governa.
Chegado
ao pé da ponte, das mãos suas
Um
ao alto a cabeça levantava
129
Para lhe ouvirmos as palavras cruas.
“Vê
meu duro castigo!” — assim falava —
“Tu,
que os mortos visitas, sendo em vida:
132
Outro já viste igual ao que me agrava?
“Eu
sou — faz minha história conhecida,
Voltando
à luz — Bertran de Born, que há dado
135
Ao jovem Rei consulta, em mal tecida.
“Pai
e filho inimigos hei tornado:
As
iras de Absalão mais não movera.
138
Contra Davi Aquitofel malvado.
“Laços
tais como eu, pérfido, rompera,
Meu
cérebro assim levo desunido
Desse
princípio, que no corpo impera:
142
Por lei sou, pois, de talião punido”.
14.
Roberto Guiscardo, combatendo contra os Sarracenos, conquistou o reino de
Nápoles. — 15. De Ceperan, onde Manfredo foi derrotado por Carlos d’Anjou. —
17. Tagliacozzo, onde morreu Corradino. — 31. Mafoma, Maomé, fundador do
Islamismo. — 32. Ali, parente de Maomé. — 55. Frei Dulcino, cismático,
pertencente à seita dos Irmãos Apostólicos. — 73. Pier de Medicina, por
dinheiro fomentou a discórdia entre os senhores da Romanha. — 76-90. E aos dois
etc., Pier de Medicina prediz a morte violenta de Messer Guido del Cassero e de
Messer Angiolello de Carignano. — 106. Mosca dei Lamberti, induziu à matança de
Buondelmonte dei Buondelmonti, dando inicio à luta em Florença entre guelfos e
gibelinos. — 134. Bertran de Born, poeta e guerreiro francês, infiltrou a
discórdia entre o rei Henrique II da Inglaterra e seu filho. — 137-38. As iras
de Absalão, Arquitofel induziu Absalão a rebelar-se contra o seu pai, o rei
Davi.
CANTO XXIX
Chegando
ao décimo compartimento, os Poetas ouvem os lamentações dos falsários, que aí
são punidos com úlceras fétidas e enfermidades nauseantes. Em primeiro lugar
estão os alquimistas, entre os quais Griffolino e Capocchio.
MEUS
olhos tanto inebriado haviam
A
turba enorme e o seu cruel tormento,
3
Que alívio em pranto procurar queriam.
“Por
que assim” — diz Virgílio — “estás atento?
Por
que a vista dos tristes mutilados
6
Prende-te ainda o duro sofrimento?
“Tal
não fizeste em antros já passados.
Estão,
se os resenhar é tenção tua,
9
Por milhas vinte e duas derramados.
“Já
sob os nossos pés evolve a lua;
É-nos
escasso o tempo concedido:
12
O que ainda hás de ver detença exclua”.
“Talvez
se houveras” — torno — “conseguido
Ver
o motivo, por que eu tanto olhava,
15
Mais demora tivesses permitido”.
Já
se partia; e eu logo caminhava,
Enquanto
assim falava-lhe em resposta,
18
Acrescentando: “Lá, naquela cava,
“Onde
a vista cuidosa estava posta,
Da
stirpe minha um spírito carpia
21
Por culpa, a que mor pena está disposta”.
“Não
te confranjas mais” — responde o Guia —
“Nos
males, que padece, cogitando.
24
De aí cuida; estar nesse antro merecia.
“Ao
pé da ponte o vi, que, te indicando,
O
dedo alçava em cominante gesto:
27
Geri del Bello estavam-no chamando.
“Eras
absorto no semblante mesto
Daquele
que senhor foi de Altaforte:
30
Quando atentaste, se ausentara presto”.
“Ó
Mestre” — eu disse — “a violenta morte
Que
ainda não punia justa vingança
33
De quem naquela afronta era consorte,
“Deu
causa a usar, ao ver-me, essa esquivança
Talvez
e ao seu silêncio: assim pensando
36
Maior piedade do seu mal me alcança”.
Ao
rochedo chegamos praticando,
Donde
outro vai divisa-se: o seu fundo
39
Todo se vira, a luz não lhe faltando.
Subidos
do final claustro profundo
De
Malebolge à ponte, onde os conversos
42
Já distinguia do recinto imundo.
Lamentos
e ais feriram-me diversos;
De
mágua tanta o peito assetearam,
45
Que os ouvidos tapei aos sons adversos.
Tão
penetrante dor denunciaram,
Como
se da Marena e da Sardenha
48
Enfermos no verão se incorporaram.
De
outros à turba, que remédio venha
Nos
hospitais buscar de Valdichiana.
51
Odor surdia, igual ao que já tenha
Corrupto
corpo, e se gangrena o dana.
Baixando
à sestra até a riva extrema
54
Mais claramente da caverna insana
Então
vimos o fundo, onde a Suprema
Infalível
Justiça, a raça ímpia
57
Dos falsários em pena infinda prema.
“De
Egina quando o povo adoecia,
E
o ar maligno aos animais a morte
60
Trazendo, os próprios vermes extinguia,
Deserta
sendo a terra de tal sorte
Que
às formigas (poetas o afirmavam)
63
Deveu a antiga gente o alento forte:
Cenas
tais mais tristeza não causavam
Do
que almas ver, que essa prisão sombria
66
Em rumas várias lânguidas juncavam.
Qual
sobre a espalda de outro se estendia,
Qual
sobre o ventre seu, qual se arrastando
69
Na dolorosa estrada se estorcia.
Silentes,
passo a passo caminhando,
Vemos,
ouvimos míseros prostrados,
72
Em vão para se erguerem se esforçando.
Sentados
dois, um no outro recostados,
Quais
torteiras que juntas se aquecessem,
75
Vi do alto aos pés de pústulas manchados
Os
criados, que os amos seus apressem,
Ou
que estejam velando de mau grado
78
Almofaça não vi que assim movessem,
Como
cada um se agita acelerado,
Com
implacáveis unhas se mordendo,
81
De raivoso prurido atormentado.
Iam
da pele as crostas abatendo,
Como
a faca do sargo arranca a escama
84
Ou de peixe, na casca mais horrendo.
“Ó
tu” contra um dos dois Virgílio exclama,
Que
os dedos teus convertes em tenazes
87
Por desmalhar do corpo a extrema trama,
“Diz-me
se entre estas almas contumazes
Existe
algum Latino; eternamente
90
Sejam-te as unhas de servir capazes!”
“Latinos
somos” — torna diligente
Um
dos dois padecentes lacrimoso,
93
“Mas tu quem és? Em declarar consente”.
—
“Eu sou que” — diz Virgílio ao desditoso
“De
círc’lo em círc’lo este homem vivo guia
96
Por lhe mostrar o abismo pavoroso”.
Já
cessa o mútuo arrimo, que os unia:
A
mim volveu-se cada qual tremendo;
99
Turba imitou-os, que em redor ouvia.
Acercou-se-me
o Guia assim dizendo:
“Quanto
quiseres tu agora dize”.
102
Eu logo comecei lhe obedecendo:
“Nunca
a memória vossa finalize!
Na
primeira mansão da humana raça!
105
Mas por sóis numerosos se abalize!
“Quem
sois? E donde? De o dizer a graça
Fazei:
a vossa pena, imunda é certo,
108
De responder-nos pejo vos não faça.
“De
Arezzo fui” disse um “de Siena Alberto
Morte
me deu nas chamas, truculento,
111
Por feito a que não fora o inferno aberto.
“Dissera,
em gracejar só pondo o intento.
“Alçar-me
aos ares posso velozmente”.
114
Essa arte, por ter curto o entendimento,
“Houve
ele de saber desejo ardente.
Como
o não fiz um Dédalo, à fogueira
117
Mandou-me quem seu pai foi certamente.
“Mas
das cavas caí na derradeira
Por
sentença de Minos rigorosa:
120
Foi meu crime a alquimia traiçoeira”.
E
ao Vate eu disse: “Nunca tão vaidosa
Gente,
pôde alguém ver como a de Siena?
123
Nem a de França há sido tão sestrosa!”
O
segundo leproso então me acena
Dizendo:
“Salvo Stricca, homem poupado,
126
Que todo o excesso em desprender condena!
“Salvo
Nicoló, aquele que inventado
Do
cravo tinha a rica especiaria,
129
O seu uso deixando enraizado!
“Salvo
Caccia de Ascian e a companhia,
Com
quem vinhas e bosques esbanjava
132
E o Abbagliato as chanças esgrimia!
“Para
que saibas quem desta arte agrava
Contra
os de Siena o teu severo asserto,
135
No meu triste semblante os olhos crava.
“De
que ora vês Capocchio já estás certo,
Que
alquimista, os metais falsificara,
Sabes
como eu, se em recordar acerto,
139
Natura, hábil bugio, arremedara”.
27.
Geri del Bello, primo do pai de Dante, morto a traição por um da família
Sachetti. — 58. Egina etc. Segundo Ovídio, Egina, despovoada por pestilência,
foi repovoada pelas formigas que se transformaram em homens. — 109. De Arezzo
etc., Griffolino de Arezzo, alquimista, que foi mandado queimar por Alberto de
Siena. — 125-32. Salvo etc., por ironia — Strica, Nicoló Salimbene, Caccio de
Asciano e Bartolomeu dei Folcacchieri, alcunhado o Abbagliato foram todos de
Siena e conhecidos como dissipadores de dinheiro. — 136. Capocchio de Siena,
alquimista que foi queimado vivo.
A DIVINA COMÉDIA...
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PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII
PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII