Divina Comédia - Purgatório XIII - XVIII

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CANTO XIII



Chegam os Poetas ao segundo compartimento, no qual estão os pecadores que expiam o pecado da inveja. Os invejosos têm os olhos cosidos com fio de arame. Entre eles está Sápia, senhora de Siena, com a qual Dante fala.



DA escada ao topo havíamos chegado,
Onde, outra vez cortado, o monte estreita,
3 Que alma sobe, expiando o seu pecado.

Como a primeira, outra cornija feita
Circundava a colina, só dif’rente
6 Em que a um arco menor ela se ajeita.

Relevo, formas, como a precedente,
Não mostra: e, lisa sobre a escarpa a entrada,
9 Lívida cor a pedra tem somente.

— “Se a presença de alguém fosse esperada,
Que nos preste conselho” — diz meu Guia —
12 “Temo que fique a escolha retardada.” —

Os olhos para o sol depois erguia,
E, sobre o pé direito se firmando,
15 Para a esquerda girava e se volvia.

— “Tu, de quem tudo fio, ó lume brando
No caminho conduz-nos que se of’rece
18 Como o exige o lugar” — disse — “guiando!

“Raiando, o teu calor o mundo aquece:
Se motivo não surge de embaraço,
21 De conduzir-nos teu fulgor não cesse!”

Vencido em breve tínhamos espaço,
Que por milha na terra calculamos,
24 Porque o desejo estimulava o passo:

Em direitura a nós voar julgamos
Invisíveis espíritos, chamando
27 De amor à mesa em lépidos reclamos.

A voz primeira que passou voando,
Vinum non habent proferiu sonora
30 E ainda muito além foi reiterando.

Mas antes de perder-se pelo ar fora,
Outra acercou-se. — “Orestes sou!” — dizia;
33 E apartou-se igualmente sem demora.

— “Que vozes estas são, Mestre?” — inquiria.
Mas, apenas falara, eis vem terceira.
36 — “Amai imigos vossos!” — eu lhe ouvia.

— “Pune este círc’lo a culpa traiçoeira” —
O Mestre diz — “da inveja; o açoite aplica
39 O amor, que os rigores lhe aligeira.

“Contrário som, porém, o freio indica.
Antes que atinjas do perdão a entrada,
42 Terás de ouvi-lo; e disto certo fica.

“Tem ora a vista para além fitada;
De espíritos, ao longo do alto muro,
45 Assentados verás soma avultada.” —

Mais que de antes então a vista apuro;
Almas distingo, que envolviam mantos,
48 Que a cor imitam do penhasco duro.

Um pouco avante ouvi de esp’ritos tantos
A voz bradar: — “Por nós orai, Maria,
51 Pedro, Miguel e todos os mais Santos!”

Na terra homem tão fero não seria,
Que não sentisse o coração pungido
54 Em vendo o que aos meus olhos se of’recia.

Acerquei-me por ser mais distinguido
De cada sombra o menear e o gesto:
57 Pelos olhos à dor alívio hei tido.

Então foi claramente manifesto
Que entre si, uns aos outros se arrimavam,
60 Todos à pedra, em seu cilício mesto.

Assim os pobres cegos mendigavam
Nos dias de Perdão da igreja à porta,
63 Mutuamente as cabeças encostavam;

Pois a piedade o coração nos corta,
Quando ao som das palavras se acrescenta
66 Da vista a ação que o peito desconforta

E como o sol aos cegos não se ostenta,
Assim também às sombras que alivia,
69 Não mais do céu a luz olhos alenta.

Fio de ferro as pálpebras prendia
A todas, como ao gavião selvage
72 Para domar-lhe a condição bravia.

Cuidei, se andasse, lhes fazer ultraje,
Lhes vendo as faces e ocultando a minha:
75 E o Mestre olhei em tácita linguage.

E o Mestre, bem sabendo o que convinha,
Antecipou-se logo ao meu desejo
78 E disse: — “Arguto sê, e fala asinha.” —

Virgílio caminhava neste ensejo
Do lado, onde à cornija falta amparo;
81 Dali cair se pode e o risco eu vejo.

As almas do outro lado eram; reparo
Que dos olhos a hórrida costura
84 Provoca pranto copioso e amaro.

Voltei-me e disse: — “Ó almas, que a ventura
De ver tereis ao certo o excelso Lume;
87 De que somente o vosso anelo cura,

“Dissolva a Graça em vós todo o negrume
Da consciência e nela manar faça
90 Da mente o rio em límpido corrume!

“Concedei-me o que mais me satisfaça:
Dizei-me qual de vós latina há sido;
93 De eu sabê-lo algum bem talvez lhe nasça.” —

— “Por pátria, irmão, só hemos conhecido
A cidade de Deus: dizer quiseste
96 Peregrina na Itália haja vivido.” —

De mim remota a voz parece deste,
Que assim disse; e portanto, passo avante
99 Por saber certo a quem atenção preste.

E uma senhora entre as mais vi, que, distante,
Aguardava-me. E como eu a distinguia?
102 Qual cego, alçava o mento pra diante.

— “Tu, que para subir penas” — dizia —
“Quem foste, onde nasceste diz: te imploro,
105 Se é tua voz que, há pouco, respondia.”

— “Fui de Siena” — tornou — “com este choro
Os graves erros de perversa vida,
108 E a Deus que se nos dê, clemente, exoro.

“Chamei-me Sápia, mas não fui sabida.
Mais deleite me deu o alheio dano
111 Do que a dita a mim própria concedida.

“E por que não presumas que te engano,
Se fui louca verás pelo que digo.
114 Já no declínio do viver humano

“Eu era, quando a rebater o inimigo
Em Colle os meus patrícios campearam;
117 A Deus roguei que lhes não fosse amigo.

“Destroçados, à fuga se lançaram,
E a mim, que estava aquele transe vendo,
120 Indizíveis prazeres me tornaram,

“Em modo, que atrevida, olhos erguendo,
— “Não mais Deus tenho!” — contra o céu gritava
123 Qual melro, instantes de bonança tendo.

“Com Deus quis paz, mas quando já tocava
Da vida o termo; e ainda não pudera
126 A dívida solver, que me onerava,

“Se Pedro Pettinanho não se houvera,
Nas santas operações de mim lembrado:
129 Em prol meu, caridade o comovera.

“Mas quem és, que nos tens interrogado,
Que estando, creio, de olhos não tolhidos
132 E respirando indagas nosso estado?” —

— “Olhos” — disse — “terei também cerzidos,
Porém por pouco tempo; que da inveja
135 No mundo hão sido rara vez torcidos,

“Maior receio o peito me dardeja
De outro tormento; e tanto me angustia,
138 Que o seu fardo a sentir cuido já steja.” —

— “Mas quem ao monte” — me tornou — “te guia,
Pois de voltar ao mundo tens certeza?” —
141 — “Quem tenho ao lado e voz não pronuncia.

“Inda vivo; e, pois fala com franqueza,
Alma eleita, se queres que os pés mova
144 Em prol teu lá na terra com presteza.” —

— “O que dizendo estás, cousa é tão nova
Que por mim rogues fervorosa peço,
147 Pois da divina dileção dás prova.

“E pelo que te merecer mais preço
Suplico-te: ao pisar terra toscana
150 Ao meu nome entre os meus aviva o apreço.

“Terás de vê-los entre a gente insana,
Que espera em Talamone, mas como antes,
Quando buscava as águas do Diana:

154 Mor engano há de ser dos almirantes.” —



29. Vinum non habent, é a frase que Maria disse a Jesus para incitá-lo a fazer o milagre da transformação da água em vinho. — 32. Orestes sou, Orestes para salvar Pílades, condenado à morte, apresentou-se em seu lugar. — 36. Amai imigos vossos, v. Evang. S. Mateus V. — 44-51. Por nós orais etc., prece. — 109. Sápia, senense, casada com Ghinigaldo Saraceni. — 116. Em Colle, onde os senenses foram derrotados pelo florentinos. Sápia rejubilou-se disso, pois era inimiga do senhor de Siena, Provenzano Salvani. — 127. Pedro Pettinanho, morto em fama de santidade. — 151-154. A gente insana, os senenses. Tendo eles comprado Telamone, queriam transformar essa cidade em porto de mar, mas não foi possível devido à insalubridade do clima. Não tiveram êxito também na descoberta de um rio subterrâneo que devia passar debaixo de Siena e que chamaram Diana. Mais do que outros serão enganados os almirantes.

CANTO XIV



Dante conversa com outras almas de invejosos. Respondendo o Poeta a uma pergunta de Rinieri de Calboli, intervém Guido del Duca, imprecando contra as cidades de Toscana e lamentando, depois, a degeneração das famílias nobres de Romanha. Os Poetas ouvem vozes que lembram episódios nos quais o pecado da inveja foi castigado.



“ESTE quem é ao nosso monte vindo,
Sem ter-lhe a morte as asas desatado,
3 Os olhos, quando quer, fechando e abrindo?” —

— “Ignoro; mas vem de outro acompanhado.
Tu, que és mais perto, a perguntar começa,
6 E, para nos falar, mostra-lhe agrado.” —

De dois esp’ritos junto se endereça
A mim desta arte a voz: stão-me a direita,
9 Cada um para trás alça a cabeça.

— “Ó alma” — disse-me uma — “que, na estreita
Prisão corpórea ainda, aos céus ascende,
12 Dá-nos consolo, à caridade afeita.

“Quem és e donde vens? Porque nos prende
Pasmo notando a Graça, que te ampara,
15 Portento que ninguém viu, nem compreende.” —

Tornei-lhe: — “Na Toscana se depara
Rio, que brota em Falterona escasso
18 E nunca, milhas cem correndo, pára:

“Este corpo dali conduzo lasso.
Dizer quem sou discurso vão seria:
21 Meu nome inda não soa em largo espaço.” —

— “Se bem te entendo” — assim me respondia
A sombra, que antes de outra eu tinha ouvido —
24 “Ao Arno o dizer teu se referia.” —

— “Por que” — lhe atalha a outra — “ele escondido
Nos tem do rio o nome verdadeiro?
27 Cousa horrível se encerra em seu sentido?” —

Disse-lhe a sombra, que falou primeiro:
— “Não sei; mas fora bem feliz o instante,
30 Em que o nome pereça ao vale inteiro:

“Dês que nasce lá onde é redundante
De águas a serra que o Peloro unira,
33 Noutras partes, porém, pouco abundante,

“Até que o mar do seu tributo aufira
Reparo ao que no seio o céu lhe suga,
36 E vida assim pra novos rios tira,

“Todos ali virtude hão posto em fuga,
Qual víbora inimiga, ou por efeito
39 Do clima, ou por moral, que o bem refuga.

“Natureza por vícios se há desfeito
Na gente desse vale impuro,
42 Como de Circe apascentada a jeito.

“Cava o rio primeiro o leito escuro
Entre porcos mais di’nos de bolota
45 Do que de cibo, em que haja humano apuro.

“Baixando, acha de gozos mó abjeta,
Em que o furor à força não se iguala,
48 E, como por desdém, busca outra meta.

“Essa maldita e desgraçada vala
Tantos mais cães em lobos vê tornados
51 Quanto mais corre e mais caudal resvala.

“Imerge em princípios mais rasgados,
Onde encontra raposas tão manhosas,
54 Que os laços mais sutis ficam frustrados.

“Do porvir direi cousas espantosas,
E quem me ouvir conserve na lembrança
57 Verdades que há de ver bem dolorosas.

“Teu neto os lobos a caçar se lança
Desse rio maldito sobre a riva:
60 Enquanto os não destroça não descansa.

“A carne sua vende, estando viva,
Como reses depois mata-os cruento;
63 Muitos da vida e a si da glória priva.

“Da triste selva sai sanguinolento
E a deixa, tal que ainda após mil anos
66 Tornar não há de ao primitivo assento.” —

Como, ao presságio de futuros danos,
Merencório se mostra o interessado,
69 Onde quer que a fortuna urda os enganos;

Assim o outro espírito: voltado
Para escutar se havendo, se entristece,
72 Depois que teve o sócio terminado.

Como saber seus nomes eu quisesse,
Ouvindo aquele, ao outro o gesto vendo,
75 A pergunta entre rogos se oferece.

O que falara respondeu dizendo:
“Pedes que eu, pronto, quanto anelas faça,
78 A instância minha em pouco apreço tendo.

“Mas como em ti de Deus transluz a Graça,
Não te há de ser Guido del Duca esquivo
81 Tanto, que o teu querer não satisfaça.

“Da inveja o fogo ardeu em mim tão vivo,
Que ao ver sorriso de outrem no semblante,
84 Em meu rosto o libor era expressivo.

“Semeei: colho o fruto repugnante.
Oh! por que, raça humana, o que repele
87 Qualquer partilha almejas ofegante?

“Este foi Rinieri: estava nele
Dos Calboli o primor: ao nome honrado
90 Herdeiro não deixou que a glória zele.

“Não só à prole sua tem faltado,
Entre o Pó e a montanha, o mar e o Reno
93 O bem para a verdade e o prazer dado;

“Pela extensa amplidão desse terreno
Alastram tudo abrolhos perigosos:
96 Quando extirpar se pode um tal veneno?

“Onde Mainardi e Lizio estão famosos?
Qual de Carpigna e Traversaro o fado?
99 Ó Romanhóis bastardos desbriosos!

“Quando um Fabro se tem nobilitado,
Como em Faenza um Fosco Bernardino,
102 Varas gentis de tronco definhado!

“O pranto meu não julgues pouco di’no,
Se com Guido de Prata rememoro
105 O companheiro nosso, Azzo Ugolino;

“Se Fred’rico Tignoso e a prole choro;
Solares de Anastagi e Traversara,
108 Sem herdeiros extintos, se eu deploro,

“Cavaleiros e damas, glória rara,
Que inspiravam amor e cortesia
111 Na terra, que a virtude desampara!

“Cai em ruínas, Brettinoro ímpia!
Em ti viver tua gente não quisera;
114 Com mais outras, temendo o mal, fugia.

“Bem faz Bagnacaval: prole não gera,
Castrocaro faz mal e pior Cônio
117 Que a tais condes da vida o lume dera.

“Os Pagani irão bem, quando o Demônio
Deixá-los; mais não podem nome puro
120 Já nunca possuir no solo ausônio.”

Ugolin Fantolin, ficou seguro
Da fama tua o lustre; pois já agora
123 Não terás filhos pra torná-lo escuro.

“Podes, Toscano, prosseguir embora:
Pranto, mais que discursos, me deleita;
126 Lembrando a pátria, o coração me chora.” —

O passo as almas na vereda estreita
Ouviam-nos, silêncio elas guardando.
129 Era a jornada com certeza feita.

Já ficaríamos sós, avante andando,
Eis brada voz nos ares de repente;
132 Veloz, qual raio, vinha a nós chamando:

— “Quem me encontrar me mate incontinênti” —
E fugiu qual trovão que distancia
135 Se o vento a nuvem rasga de repente.

O terrível clamor cessado havia,
Com medonho fracasso eis outra brada,
138 Como um trovão que a outro sucedia:

— “Aglauro sou, em rocha transformada” —
E a Virgílio acercar-me então querendo,
141 Dei, não avante, um passo atrás na estrada.

Tranqüilo o ar por toda parte vendo,
— “Este é” — falou-me o Mestre — “o duro freio,
144 Que os homens deve estar sempre contendo:

“Mas vós mordeis a isca em triste enleio
E o prístino inimigo do anzol tira:
147 De conter ou pungir que vale o meio?

“O céu vos chama, em torno de vós gira,
Esplendores eternos vos mostrando;
Mas a vista, enlevada, a terra mira,

151 “E quem vê tudo então vai castigando.” —



17. Rio que brota em Falterona, o Arno. — 32. Peloro, promontório siciliano. — 42. Circe, sereia que transformava os homens em animais. — 58. Teu neto, Fulcieri de Calboli, neto de Rinieri, que foi “podestà” de Florença perseguiu o partido dos Bancos, ao qual Dante pertencia. — 80. Guido del Duca, senhor de Bertinoro, na Romanha. — 88. Rinieri dei Paolucci, senhor de Calboli. — 97 e seg. Mainardi e Lizio, Carpigna e Troversaro, Fabbro, Fosco Bernardino, Guido de Prata, Azzo Ugolino, Frederico Tignoso, Anastagi e Traversara, senhores e famílias da Romanha notáveis por cortesia e generosidade. — 115-117. Bagnacaval, Castrocaro, Cônio, cidades da Romanha cujos senhores eram maus. — 118. Pagani, nobre família de Faenza, da qual fazia parte Mainardo (Inf. XXVI, 49-51) alcunhado o demônio pelas suas crueldades. — 121. Ugolin Fantolin, gentil-homem de Faenza. — 133. Quem me encontrar me mate incontinênti, palavras pronunciadas por Caim depois de ter assassinado o irmão Abel. — 139. Aglauro, filha de Eretero rei de Atenas, foi transformada em pedra por Mercúrio, por ter inveja da irmã Erse que era amada pelo deus.

CANTO XV



Caindo a noite, os dois Poetas chegam ao terceiro compartimento. Aí Dante, em êxtase, vê exemplos de mansuetude e misericórdia. Voltando a si, encontra-se imerso num fumo que obscurece o ar e impede a visão.



QUANTO caminho faz da tércia hora,
No giro seu, a luminosa esfera,
3 — Sempre a mover-se qual criança — à aurora,

Tanto, para acabar o curso, espera
O sol, e para dar à tarde entrada:
6 Lá vésperas, aqui meia-noite era.

De luz me estava a face então banhada;
Porque, em torno à montanha prosseguindo,
9 Do ocaso em direção ia a jornada,

Quando, mais vivo resplendor fulgindo,
Ofuscado fiquei mais do que dantes:
12 Desse portento a ação pasmei sentindo.

Acima de meus olhos, por instantes,
As mãos alcei — sombreiro, que antepara
15 O mor excesso aos raios deslumbrantes.

Assim como de espelho ou linfa clara
Ressalta a luz de encontro à oposta parte,
18 Subindo logo após, como baixara;

Da linha vertical não se disparte,
Uma distância igual sempre mantendo,
21 Como nos mostra experiência e arte:

Em frente à luz, assim, se refrangendo,
Tão penetrante a vista me feria,
24 Que a dirigi a um lado, olhos volvendo.

“Qual é” — ao Mestre amado então dizia —
Aquele objeto, que me ofusca tanto
27 E ao nosso encontro, ao parecer, se envia?” —

— “Que inda te ofusque não te mova espanto
A celeste família” — me há tornado: —
30 “Falar-te vem um mensageiro santo.

“A veres com delícia aparelhado
Serás em breve um lume refulgente,
33 Quanto ser pode ao ente humano dado.” —

Acercados ao anjo, alegremente
Nos disse: — “Aqui passai, menos penosa
36 Subida nesta escada está patente.”

Andando, atrás cantar em voz donosa
Beati Misericordes nós ouvimos
39 E “Exulta na vitória gloriosa”,

Para cima, portanto, nós subimos;
E eu das vozes do Vate cogitava
42 Colher proveito, enquanto sós nos imos.

E, me voltando, assim lhe perguntava:
“O que Guido del Duca nos dizia,
45 Quando em bens não partíveis nos falava?” —

— “Do seu vício pior” — tornou — “sabia
Os danos; não se estranhe, se o acusando,
48 Do mal que fazer possa prevenia;

“Porque, do mundo os bens vós desejando,
A que partilha todo o apreço tira,
51 Arde a inveja, suspiros provocando.

Mas, se a esfera imortal vossa alma aspira,
Levantando-se o anelo àquela altura,
54 Esse temor no peito voz expira.

“Tanto mais lá cad’um goza ventura,
Quanto por muitos ela mais se estende,
57 Quanto mais caridade lá se apura.” —

— “O entendimento” — eu digo — “ora compreende
Menos do que antes de eu te haver falado;
60 À mente ora mor dúvida descende.

“Como um bem, que é de muitos partilhado,
A cada possessor dá mais riqueza
63 Do que se a posse fora apropriado?” —

— “Teu spírito” — replica — “na rudeza
Das cousas terreais stando imergido,
66 Vê trevas onde a luz tem mais clareza,

“Esse inefável bem, no céu fruído,
Infindo, para o amor, correndo desce,
69 Qual raio a corpo lúcido e polido.

“Se ardor acha mais vivo, mais se of’rece;
Quanto mais caridade está fulgindo,
72 Virtude eterna mais sobre ela cresce.

“Quanto mais vai a multidão subindo,
Mais amar podem, mais a amor se aplicam,
75 Bem como espelho, um no outro refletindo.

“Se persistindo as dúvidas te ficam,
Hás de ver Beatriz: da sábia mente
78 Razão escutarás, que tudo explicam.

“Para apagares, pois, sê diligente.
As chagas cinco, que inda em ti stou vendo:
81 Há de cerrá-las contrição pungente.” —

Quando eu ia dizer — Mestre, compreendo —
No círculo eis penetro imediato:
84 Calei-me, a vista alucinada tendo.

Julgava então, de uma visão no rapto,
Extático, que em templo se mostrava
87 Multidão grande, de oração no ato.

Com piedoso semblante, à entrada estava
Meiga matrona. — “Ó filho meu querido,
90 Por que assim procedeste?” — interrogava.

“Eu e teu pai, com ânimo dorido,
Te buscamos.” — E como se calara,
93 Logo a visão fugiu-me do sentido.

Depois de outra no rosto se depara
Pranto acerbo, que mágoas anuncia
96 De quem de ira no incêndio se inflamara.

“Se mandas na cidade” — assim dizia —
“Por cujo nome os deuses contenderam
99 E onde a luz da ciência se irradia,

“Pune os braços, que ímpios, se atreveram,
Pisístrato, a estreitar a filha tua!” —
102 Ele, a quem vozes tais não comoveram,

Tranqüilo respondia à esposa sua:
“O que faremos a quem mal nos queira,
105 Se ira ao amor corresponder tão crua?”

Vi depois multidão, que a raiva aceira:
A pedradas mancebo assassinava,
108 Bradando — morra! morra! — carniceira.

A dolorida fronte debruçava,
Já mal ferido, o mártir para a terra:
111 Portas ao céu os olhos seus tornava,

Pedindo a Deus, naquela horrível guerra,
Que aos seus perseguidores perdoasse:
114 Riso piedoso os olhos lhe descerra.

Quando em minha alma o êxtase desfaz-se,
Conheci que no sonho aparecia,
117 Não da ficção mas da verdade a face.

Virgílio, a quem talvez eu parecia
Homem, que o sono deixa de repente,
120 — “Por que estás vacilante?” — me inquiria.

“Tens meia légua andado certamente
Com titubante pé, de olhos caídos,
123 Como quem desse ao vinho ou sono a mente.” —

— “Vou expor, meu bom mestre, aos teus ouvidos” —
Tornei — “quanto os meus olhos contemplaram,
126 Quando os joelhos tinha enfraquecidos.”

— “Se másc’ras cento a face te ocultaram” —
Disse Virgílio — “ocultos não seriam
129 Pensamentos, que, há pouco, te enlevaram.

“As imagens, que hás visto, te induziam
Águas da paz a receber no peito,
132 Que as fontes perenais dos céus enviam.

“Não perguntara, como quem de feito
Somente vê por olhos, obcecados
135 Quando o corpo da morte jaz no leito;

“Mas por serem teus pés mais apressados:
Excitar assim cumpre os preguiçosos,
138 Que se esquivam à ação stando acordados.” —

Nas horas vespertinas pressurosos
Andávamos, os olhos alongando,
141 Do sol cadente aos raios luminosos,

Eis pouco a pouco, um fumo se elevando.
Se condensa ante nós, qual noite, escuro;
Abrigo ali de todo nos faltando,

145 A vista nos tolheu, tolhendo o ar puro.



1-5. Quanto caminho etc., faltavam três horas para o ocaso, pois o Poeta nota que deveria transcorrer tanto tempo para o pôr do sol quanto transcorre entre o princípio do dia até a hora terça. — 6. Lá vésperas etc., no Purgatório faltavam três horas para o ocaso, eram vésperas; na Itália era meia-noite. — 16-21. Assim como etc., o poeta descreve o refletir-se da luz que bate sobre um espelho ou na água, no qual o ângulo de refração é igual ao ângulo de incidência. — 38. Beati misericordes, Evang. S. Mateus V, 7. — 80. As chagas cinco, os cinco PP, que ainda Dante tem na testa. — 89. Meiga matrona, Maria Virgem, a qual tendo perdido o seu filho, encontrando-o depois de três dias, o repreende com mansuetude. — 94. De outra etc., a mulher de Pisístrato, príncipe de Atenas, pediu ao marido vingança contra um jovem que beijara publicamente a sua filha. — 107. A pedrada mancebo assassinava, Santo Estevão que foi apedrejado pela multidão.

CANTO XVI



Sempre ao lado de Virgílio, Dante continua a viagem. Denso fumo envolve os iracundos. Entre eles está Marco Lombardo, o qual lamenta os tempos, que eram bons e agora ficaram maus. Dante pergunta de que depende essa mutação, e Marco responde que a corrupção dos tempos novos procede do mau governo do mundo e especialmente da confusão entre o poder espiritual e o poder temporal.



SOMBRA de inferno e noite carregada,
Em que o céu de um só astro não se aclara,
3 De nuvens, quanto o pode ser, toldada,

Véu tão grosso ao meu rosto não lançara,
Nem, ao contacto, fora tão pungente,
6 Como o fumo, que ali nos rodeara.

Fechados tinha os olhos totalmente:
Fiel o sábio sócio, me acudindo,
9 Deu-me em seu ombro arrimo diligente.

Qual cego, que ao seu guia vai seguindo
Por se não transviar, correr perigo,
12 Ou sofrer morte, de encontrão caindo,

Tal eu por aquele ar escuro sigo,
Atento ao Mestre meu, que repetia:
15 — “Cuidado! Não te afastes! Vem comigo!” —

Então vozes ouvi; me parecia,
Que paz, misericórdia suplicavam
18 Ao Cordeiro, que as culpas alivia.

Por Agnus Dei suaves começavam,
A letra era uma só como a toada,
21 Consonância entre si todas as guardavam.

— “Por quem esta oração, que ouço, é cantada?” —
Perguntei. Disse o Mestre: — “É bom que o aprendas:
24 Assim da ira a culpa é mitigada.” —

— “Quem és para que a névoa nossa fendas
E assim fales, qual viva criatura,
27 Que inda o tempo calcula por calendas?” —

Disse uma voz do fundo na negrura.
E Virgílio falou: — “Responde e exora
30 Se por aqui se sobe para a altura.” —

— “Ó alma, que” — disse eu — “a graça implora
De ir a Quem te criou mais pura e bela,
33 Maravilha ouvirás, segue-me embora.” —

— “Até onde for dado” — tornou-me ela —
“Irei, e, se te ver não deixa o fumo,
36 Nos tornará propínquos a loquela.” —

— “Nas mantilhas, que a morte acaba, ao sumo
Assento” — comecei — “ora me alteio,
39 Do inferno tendo vindo pelo rumo.

“Se Deus permite, de bondade cheio,
Que a dita eu goze de lhe ver a corte
42 Por este, hoje de todo estranho, meio,

“Revela-me quem foste antes da morte
E qual nos deva ser a melhor via:
45 Guiarás nossos passos desta sorte.” —

— “Fui Lombardo e de Marco o nome havia;
O mundo exp’rimentei, feitos amando,
48 Pelos quais ninguém mais hoje porfia.

A subir bom caminho vais trilhando.” —
Falou-me assim e acrescentou: — “E rogo
51 Intercedas por mim, ao céu chegando.” —

— “Quanto me pedes” — lhe replico logo —
“Juro fazer, mas acho-me oprimido
54 Por dúvida a que anelo desafogo.

“Era simples; te ouvindo, tem subido
A duplo grau, e assim me torna certo
57 Do que hei aqui e noutra parte ouvido.

“O mundo de virtude está deserto;
Tens sobeja razão, quando o lamentas,
60 Impa de mal, de vícios é coberto.

Dize-me a causa, se na causa atentas?
Sabendo-a, aos outros revelá-la quero;
63 Virá do céu ou lá na terra a assentas?”

Suspiro em que se exprime dó sincero
Com hui, do peito exala. — “Irmão — prossegue —
66 Que o mundo é cego em ti bem considero.

“Vós, os vivos, julgais o céu entregue
De toda causa, a tudo assim movendo
69 Por necessária lei, que o mundo segue.

“Desta arte o livre arbítrio fenecendo,
Ao homem não coubera o que merece,
72 No bem prazer, no mal dor recebendo.

“Primeira inspiração aos atos desce
Do alto; a todos não; mas quando o diga,
75 No mal, no bem a luz não vos falece.

“Livre sendo o querer, quem se afadiga
E a primeira vitória do céu goza,
78 Vencerá tudo, se em querer prossiga.

“Natureza melhor, mais poderosa
Vos sujeita — a que cria e vos concede
81 Mente, que ao céu não prende-se humildosa.

“Se a causa, que do bom caminho arrede
O mundo em vós a tendes persistente;
84 Explorarei, fiel, o que sucede.

“Alma surge das mãos do Onipotente
Que, inda antes de nascida, lhe sorria
87 Qual menina, que ri, chora, inocente.

“Ingênua e simples, ela só sabia
De um Deus beni’no ser meiga feitura,
90 E a tudo, que a deleita, se volvia.

“Dos mais frívolos bens prende-a a doçura,
E, deles namorada, após lhes corre,
93 Se guia ou freio o amor lhe não segura.

“Nas leis consiste o freio, que a socorre;
Rei foi mister, que, ao menos, acertasse
96 Da cidade de Deus em ver a torre.

“Leis há, mas não quem leis executasse;
Rumina esse pastor que os mais precede,
99 Mas a unha fendida não lhe nasce.

“E vendo a grei que o próprio guia a excede
Em almejar os bens que mais deseja,
102 Nestes se engolfa e mais nem quer nem pede.

“Portanto, porque mau governo veja,
Fica o mundo de culpas inquinado,
105 Não porque em vós a corrupção esteja.

“Bens sobre o mundo havendo derramado,
Tinha Roma dois sóis, que alumiaram
108 O caminho de Deus e o do Estado.

“Um ao outro apagou, e se ajuntaram
Do Bispo o bago e do guerreiro a espada:
111 Por viva força unidos, mal andaram.

“Não mais se temem na junção forçada:
Vê a espiga que prova estes efeitos;
114 Pela semente é a planta avaliada.

“Valor e cortesia altos proveitos
Deram na terra que Ádige e Pó lavam,
117 Antes que visse de Fred’rico os feitos.

“Por ali os que outrora se pejavam
De entrar dos bons na prática e na liga,
120 Livres passam do quanto receavam.

“Só três velhos opõe a idade antiga,
Como censura, à nova: é-lhe já tardo
123 Que Deus os chame dessa terra imiga:

“Conrado de Palazzo, o bom Gherardo
E Guido de Castel, que foi chamado,
126 Ao estilo francês simples Lombardo.

“De Roma a Igreja fique proclamado,
Cai no ceno os poderes confundido,
129 Se enloda a si e o fardo seu pesado.”

— “Tuas sábias razões, Marcos, ouvindo,
Vejo” — disse — “por que a Lei da herança
132 Partiu, de Levi os filhos excluindo.

“Mas qual Gherardo trazes à lembrança,
Como glória e brasão da antiga gente,
135 Que censura a este séc’lo impuro lança?” —

— “Queres” — tornou — “tentar-me ou certamente
Iludir-me? Em toscano me falando
138 Do bom Gherardo dizes-te insciente?

“Sobrenome de todo lhe ignorando,
Dou-lhe o de Gaia, sua filha cara.
141 Guarde-vos Deus, que eu vou-me, vos deixando.

“Do fumo a densidão se torna rara,
Branqueja o dia: devo já partir-me,
Que a apresentar-se o anjo se prepara.” —

145 Assim falando, mais não quis ouvir-me.



19. Agnus dei, Jesus símbolo de mansuetude, virtude contrária ao vício da ira. — 27. Calendas, uma das três partes em que o mês era dividido pelos romanos. — 46. Fui Lombardo e de Marco o nome havia, Marco de Veneza, chamado o Lombardo, homem sábio e prudente. — 98. Rumina esse pastor etc. A imagem deriva da lei mosaica pela qual se proibia se comessem os animais não ruminantes e que não tivessem a unha partida. O ruminar exprime a sabedoria, a unha partida a ação. — 116. Na terra etc., a Lombardia e o Marca Trevisana. — 117. De Frederico os feitos, as guerras entre os papas e Frederico II da Suábia. — 124-25. Conrado de Palazzo, da Brescia; Gherardo de Camino; e Guido de Castello, de Reggio — 131-132. Lei da herança etc., segundo a lei mosaica os descendentes de Levi, isto é, os levitas (os sacerdotes) não podiam possuir bens temporais.

CANTO XVII



Saindo do denso fumo, Dante, novamente em êxtase, vê exemplos de ira punida. Tornando a si, vê um anjo que está perto da escada do quarto compartimento. Os dois Poetas continuam a subir. Sobrevindo, porém, a noite, param e Virgílio explica ao discípulo que o amor é o princípio de todas as virtudes e de todos os vícios.



LEITOR, se lá na alpina cordilheira
Te colheu névoa, que de ver tolhia,
3 Como se olhos tivemos de toupeira,

Lembra que, quando a úmida e sombria
Cortina a delgaçar começa, a esfera
6 Do sol escassa luz ao ar envia.

E mal tua mente imaginar pudera
Como de novo à vista se mostrava
9 O sol, que ao seu poente descendera.

Ao lume, que nos planos se finava,
Do Mestre os passos fido acompanhando
12 Saí da cerração, que me cercava.

Fantasia que, o espírito enlevando,
Tanto o homem dominas, que não sente
15 Clangor de tubas mil, juntas soando,

O que te move, estando o siso ausente?
Luz que desce por si, no céu formada,
18 Ou por querer do céu onipotente.

Cuidei súbito ver a que mudada,
Dos crimes seus em pena, foi nessa ave,
21 Que em trinar mais se mostra deleitada.

Tanto minha alma, na visão suave,
Extática ficou, que não sentia
24 Outra impressão qualquer que a prenda e trave.

Naquele êxtase logo após eu via
Em cruz um homem de feroz semblante:
27 Nem a morte a arrogância lhe abatia:

Stava o grande Assuero não distante,
Ester, a esposa e Mardoqueu prudente,
30 Justo nos feitos, no dizer prestante.

E fugiu-me esta imagem prontamente,
Como a bolha, que de água se formara
33 E à falta de água esvai-se de repente.

Donzela eis na visão se me depara
Que em prantos exclamava: — “Ó mãe querida
36 Por que tomaste irosa a morte amara?

“Perdes, por não perder Lavínia, a vida
E perdida me tens: teu fim deplora,
39 Mas não o de outro, a filha dolorida.” —

Como se rompe o sono, se de fora
Luz repentina às pálpebras nos desce;
42 Não morre logo, em luta se demora:

Minha visão assim se desvanece,
Quando as faces clarão tão vivo lava,
45 Que na terra outro igual nunca esclarece.

Volvi-me para ver onde me achava;
Mas, ouvindo uma voz — “Sobe esta escada” —
48 De qualquer outro intento me apartava.

Por saber quem falara foi tomada
Minha alma de um desejo tão veemente,
51 Que fora, se o não viesse, conturbada.

Como ao sol, que deslumbra em dia ardente,
Sendo-lhe véu seu lume flamejante,
54 Senti perdida a força incontinênti.

— “Espírito é celeste: vigilante
Sem rogos, o caminho nos indica:
57 O próprio brilho esconde-o fulgurante.

“Como o homem consigo, assim pratica;
Quem, mal extremo vendo, só rogado
60 Acode, esquivo ser já significa.

“A tal convite o pé seja apressado!
Antes da noite rápidos subamos;
63 Depois somente quando o sol for nado.” —

Disse o meu Guia; e logo encaminhamos
Os passos, de uma escada em direitura.
66 Ao primeiro degrau quando chegamos

Mover de asas ao perto se afigura,
Bafejo sinto; e ouço: — “É venturoso
69 Quem ama a paz, isento de ira impura!” —

No alto já do céu o luminoso
Rasto, da noite precursor, surgira,
72 De astros assoma o exército formoso.

— “Ai de mim! Por que a força minha expira?”
Disse, entre mim, sentindo que, esgotada,
75 Súbito às pernas o vigor fugira.

Tendo alcançado o topo já da escada,
Imóveis nos quedamos, imitando
78 A nau, que aferra a praia desejada.

A escutar stive um pouco, interrogando
Daquele novo círc’lo algum sonido;
81 Depois ao Mestre me voltei falando:

— “No lugar em que estamos, pai querido,
Que pecado recebe a pena sua?
84 Parando os pés, teu verbo seja ouvido.”

Tornou-me: — “Se do bem o amor recua
No seu dever, aqui se retempera;
87 Sobre o remisso a expiação atua.

“Por melhor compreenderes, considera
No que digo: a detença, porventura,
90 Dará o fruto, que tua mente espera.

“Ao Criador, meu filho, e à criatura
Nunca falece amor — tens já sabido —
93 Ou venha da alma ou venha da natura.

“O amor natural de erro é despido;
Pode pecar o outro pelo objeto,
96 Por nímio ardor, por star arrefecido.

“Quando aos bens principais ele é direto
E nos bens secundários moderado,
99 Causar não pode criminoso afeto.

“Se ao mal, porém, se torce ou, desregrado,
De menos ou de mais ao bem se move,
102 Ofende ao Criador quem foi criado.

“Tens, pois, o necessário, que te prove
Que amor em vós semente é de virtude,
105 Como é dos feitos, que o céu mais reprove.

“E como o amor o bem somente estude
Do seu sujeito, quando o amor domina,
108 Não pode ser que em ódio a si se mude.

“E porque nenhum ente se imagina
Sem ter no que criou a causa sua,
111 Ódio em nenhum contra este se origina:

“Contra o próximo é, pois, que se insinua
Do mal o amor, pecaminoso.
114 No humano limo em modos três atua.

“Qual, da grandeza, e glória cobiçoso,
As espera em ruína de outro, e anela
117 Vê-lo em terra prostrado e desditoso;

“Qual, temor de perder, triste, revela
Valia, honra e poder, se outro os partilha
120 E em querer-lhe o contrário se desvela;

“Mágoa sentindo de uma injúria filha,
Qual porfia em vingar-se, e, de ira ardendo,
123 De mal fazer os meios esmerilha.

“Do mal este amor tríplice nascendo,
Lá embaixo se expia; mas atende
126 Ao que vai desregrado, ao bem correndo.

“Confusamente cada qual se acende
Por certo bem e sôfrego o deseja:
129 Por ter-lhe a posse, afana-se e contende.

“O que do bem no amor inerte seja
Depois que do pesar sofrerá agrura,
132 É justo que em martírio aqui se veja.

“Há outro bem; não dá, porém, ventura.
Felicidade não é, não é a essência
135 De todo o bem, o fruto, a raiz pura.

“O amor, que a tal bem vota a existência,
Acima em círc’los três há seu tormento:
Por que assim se divide, a inteligência,

139 Sem te eu dizer, dar-te-á conhecimento.” —



20. Nessa ave etc., Filomena, por vingar-se de ter sido ultrajada por Teseu, deu-lhe de comer os próprios filhos e foi por isso transformada pelos deuses em rouxinol. — 26. Em cruz um homem etc. Aman, ministro do rei Assuero, foi crucificado na cruz que ele havia mandado levantar para o inocente Mardoqueu (Ester II, 5). — 34. Donzela, Lavínia, filha do rei Latino e da rainha Amata. — 37-39. Perdes etc., A rainha Amata supondo que Turno, noivo de Lavínia, tivesse sido morto por Enéias, suicidou-se.

CANTO XVIII



Virgílio continua a falar sobre o amor. No entanto as almas dos preguiçosos vão passando diante dos Poetas, lembrando exemplos da virtude contrária à preguiça, e, depois, de punição da preguiça. Uma das almas dá-se a conhecer a Dante. É o abade de S. Zeno, em Verona. Dante cai em profundo sono.



PALAVRAS tais já proferido havia
O Vate excelso e, atento, me observava
3 Por ver se eu satisfeito parecia;

E eu, em maior sede me inflamava,
Calando-me, entre mim dizia: “O excesso,
6 Que nas perguntas há, talvez o agrava.” —

Mas o sincero pai, sempre indefeso,
Meu silêncio notando e o que o motiva
9 Logo animou-me a lho fazer expresso.

— “Minha vista” — falei — “tanto se aviva
À luz do verbo teu, Mestre, que ao claro
12 Vejo o que da razão tua deriva.

— “Rogo-te, pois, ó pai beni’no e caro,
Me ensines esse amor, de que descende
15 Todo o mal, todo o bem ao mundo ignaro.” —

— “Volve a mim” — disse — “a luz, que mais se acende
No espírito e há de ser-te bem patente
18 Quanto erra o cego que guiar pretende.

“Alma criada para amar ardente,
A tudo corre, que lhe dá contento,
21 Se despertada do prazer se sente.

“Do que é real o vosso entendimento
Colhe imagens que em modo tal desprega,
24 Que alma pra elas sente atraimento.

“Se alma, enlevada, ao seu pendor se entrega,
Esse efeito é amor, própria natura,
27 Em que o prazer novo liame emprega.

“E, como o fogo se ala para a altura
Por sua forma, que a elevar-se tende
30 Ao foco, onde o elemento seu mais dura,

Assim pelo desejo a alma se acende,
Ação esp’ritual que não se aquieta,
33 Se não consegue a posse, que pretende.

“Vê, pois, que da verdade excede a meta
Quem acredita e aos outros assevera
36 Que todo o amor de si é cousa reta.

“Em gênero talvez se considera
O amor sempre bom; mas todo selo
39 É bom, inda que seja boa a cera?

— “Se, te ouvindo” — tornei — “com mor desvelo
Do que ser pode o amor fico inteirado,
42 Dúvidas hei, que esclarecer anelo.

“Pois que amor é de fora derivado,
Pois que a alma de outra sorte não procede,
45 No bem, no mal o mérito é frustrado.” —

— “Dizer-te posso o que a razão concede” —
Tornou — “do mais a Beatriz somente,
48 Por ser ato de fé, solução pede.

“Forma substancial, não depende
Da matéria, porém com ela unida,
51 Specífica virtude tem latente.

“Só, quando atua, pode ser sentida;
Denúncia do que seja dá no efeito,
54 Como em planta a verdura indica a vida.

“Das primeiras noções onde o conceito
Nasceu? Donde apetites vêm primeiros,
57 A que o homem no mundo está sujeito?

“Como o instinto do mel na abelha, inteiros
Em vós estão, louvor não merecendo,
60 Nem censura também, ínscios obreiros.

“Tudo desses pendores dependendo,
Inata a faculdade é que aconselha,
63 A porta do consenso em guarda tendo.

“Em tal princípio a causa se aparelha,
De que procede em vós merecimento:
66 Repele o mau amor, no bom se espelha.

“Os sábios, estudando o fundamento
Das cousas, vendo inata a liberdade,
69 Da moral vos tem dado o ensinamento.

“E, supondo que por necessidade
Nascesse todo o amor, que vos incende,
72 Tendes para contê-lo potestade.

“Nobre virtude ser Beatriz entende
O livre arbítrio; e, quando lhe falares,
75 A isto mesma a memória atento prende.” —

Como alcanzia a flamejar nos ares,
A lua à meia-noite, já tardia,
78 Escurecia os outros luminares;

E, contra o céu, caminho percorria,
Por onde o sol vai pôr-se, quando a Roma,
81 Entre Sardenha e Córsega, alumia.

Havia a sombra ilustre, por quem toma
A fama Ande à cidade mantuana,
84 Do peso meu aliviado a soma:

Quando eu, que explicação lúcida e plana
Sobre as minhas questões tinha alcançado,
87 Sinto que a mente sonolência empana.

Desse quebranto súbito arrancado
Por turba fui, que, após se encaminhando,
90 A nós vinha com passo acelerado.

E como o Ismeno e Asopo, outrora, em bando,
Correr viam Tebanos ofegantes,
93 Por noite Baco em alta voz cantando,

A multidão, assim, dos caminhantes,
De bom querer e justo amor tocados
96 Pelo círc’lo apressavam-se anelantes.

E, pois, tinham-se em breve apropinquado;
Na carreira chorando afadigosa,
99 Assim gritavam dois mais avançados:

— “Maria corre ao monte pressurosa;
César rende Marselha, e contra Ilerda
102 Rápido voa à Espanha revoltosa. —

— “Pressa; pressa! De tempo já sem perda!
Pouco zelo não haja!” — outros clamaram —
105 “Não refloresce a Graça nalma lerda!” —

— “Vós, em que tais fervores se deparam,
Que talvez negligência ides remindo
108 Dos tempos, que no bem não se empregaram,

“Dizei a um vivo (estais verdade ouvindo),
Que partir-se pretende à nova aurora.
111 Se é perto a entrada, donde vá subindo.”

A voz do Mestre meu desta arte exora.
Dos espíritos um lhe respondia:
114 — “Vem conosco: não longe ela demora.

“Anelo de ir avante nos desvia
De detença: perdoa, por bondade,
117 Se há, cumprindo um dever, descortesia.

“De S. Zeno em Verona fui abade
De Barba-roxa, o bom, sob o reinado
120 De quem Milão se lembra sem saudade.

“Alguém que à sepultura está curvado
Há de em breve chorar esse mosteiro
123 E o poder, com que o tinha dominado;

“Pois, em dano ao pastor seu verdadeiro,
Ao filho mal nascido, o cometera,
126 No corpo horrendo, na maldade useiro.”

Não sei se inda falou, se emudecera,
De nós já velozmente se alongara,
129 Mas ouvi-lo e notá-lo me aprazara.

Então disse-me quem me guia e ampara:
— “Volve-te, atenta nestes dois: correndo
132 Nos lentos mordem com censura amara.” —

— “Avante!” — os dois no couce vêm dizendo —
Os que se abrir o mar viram, morreram,
135 A herança do Jordão não recebendo,

“E os que o filho de Anquises não quiseram
Seguir até seu fim nas árdua jornada
138 Fama e glória por gosto seu perderam.” —

Depois, daquela grei stando afastada
Tanto, que eu divisá-la não podia,
141 De nova idéia a mente foi tomada,

Outras surgindo após de romaria;
E tanto de uma em outra vagueava.
Que pouco a pouco o sono me invadia,

145 E o pensamento em sonho se mudava.




76. Alcanzia, bola de barro. — 77. A lua a meia noite, etc., a lua que demorava a surgir até quase meia-noite, com o seu fulgor escurecia as outras estrelas. — 79. E contra o céu etc., corria de ponente para o levante por aquele caminho do Zodíaco no qual está o sol quando o habitante de Roma o vê descer entre a Sardenha e a Córsega. — 83. Ande (depois Pietola) aldeia perto de Mântua, na qual Virgílio nasceu. — 91. Ismeno e Asopo, rios da Beócia. — 100. Maria corre ao monte etc., a Virgem Maria, logo depois do anúncio do nascimento de Jesus, correu a visitar a sua prima Isabel (Evang. S. Lucas I, 39). — 101. César rende etc., Júlio César, com grande celeridade, deixando parte do seu exército no assédio de Marselha, com a outra parte dirige-se para Ilerda. — 118. De S. Zeno em Verona etc., Geraldo, abade de S. Zeno. — 119. Barba-roxa o imperador Frederico I, que em 1162 destruiu a cidade de Milão. — 121. Alguém que à sepultura está curvado etc., o velho Alberto della Scala, que destituiu Geraldo do seu cargo de abade, substituindo-o por um seu filho bastardo que, além de coxo, era malvado. — 134-135. Os que se abrir o mar viram etc., os filhos de Israel que, pela sua preguiça, morreram no deserto, não alcançando a Terra Prometida. — 136. E os que o filho de Anquise etc., os Troianos que não tiveram a coragem de seguir a Enéias (Eneida V, 604).



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