INFERNO ... Cantos I-V ... VI-XI ... XII-XVII ... XVIII-XXIII ... XIV-XXIX ... XXX-XXXIV
PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII
PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII
CANTO
XIII
Chegam
os Poetas ao segundo compartimento, no qual estão os pecadores que expiam o
pecado da inveja. Os invejosos têm os olhos cosidos com fio de arame. Entre
eles está Sápia, senhora de Siena, com a qual Dante fala.
DA
escada ao topo havíamos chegado,
Onde,
outra vez cortado, o monte estreita,
3
Que alma sobe, expiando o seu pecado.
Como
a primeira, outra cornija feita
Circundava
a colina, só dif’rente
6
Em que a um arco menor ela se ajeita.
Relevo,
formas, como a precedente,
Não
mostra: e, lisa sobre a escarpa a entrada,
9
Lívida cor a pedra tem somente.
—
“Se a presença de alguém fosse esperada,
Que
nos preste conselho” — diz meu Guia —
12
“Temo que fique a escolha retardada.” —
Os
olhos para o sol depois erguia,
E,
sobre o pé direito se firmando,
15
Para a esquerda girava e se volvia.
—
“Tu, de quem tudo fio, ó lume brando
No
caminho conduz-nos que se of’rece
18
Como o exige o lugar” — disse — “guiando!
“Raiando,
o teu calor o mundo aquece:
Se
motivo não surge de embaraço,
21
De conduzir-nos teu fulgor não cesse!”
Vencido
em breve tínhamos espaço,
Que
por milha na terra calculamos,
24
Porque o desejo estimulava o passo:
Em
direitura a nós voar julgamos
Invisíveis
espíritos, chamando
27
De amor à mesa em lépidos reclamos.
A
voz primeira que passou voando,
Vinum
non habent proferiu sonora
30
E ainda muito além foi reiterando.
Mas
antes de perder-se pelo ar fora,
Outra
acercou-se. — “Orestes sou!” — dizia;
33
E apartou-se igualmente sem demora.
—
“Que vozes estas são, Mestre?” — inquiria.
Mas,
apenas falara, eis vem terceira.
36
— “Amai imigos vossos!” — eu lhe ouvia.
—
“Pune este círc’lo a culpa traiçoeira” —
O
Mestre diz — “da inveja; o açoite aplica
39
O amor, que os rigores lhe aligeira.
“Contrário
som, porém, o freio indica.
Antes
que atinjas do perdão a entrada,
42
Terás de ouvi-lo; e disto certo fica.
“Tem
ora a vista para além fitada;
De
espíritos, ao longo do alto muro,
45
Assentados verás soma avultada.” —
Mais
que de antes então a vista apuro;
Almas
distingo, que envolviam mantos,
48
Que a cor imitam do penhasco duro.
Um
pouco avante ouvi de esp’ritos tantos
A
voz bradar: — “Por nós orai, Maria,
51
Pedro, Miguel e todos os mais Santos!”
Na
terra homem tão fero não seria,
Que
não sentisse o coração pungido
54
Em vendo o que aos meus olhos se of’recia.
Acerquei-me
por ser mais distinguido
De
cada sombra o menear e o gesto:
57
Pelos olhos à dor alívio hei tido.
Então
foi claramente manifesto
Que
entre si, uns aos outros se arrimavam,
60
Todos à pedra, em seu cilício mesto.
Assim
os pobres cegos mendigavam
Nos
dias de Perdão da igreja à porta,
63
Mutuamente as cabeças encostavam;
Pois
a piedade o coração nos corta,
Quando
ao som das palavras se acrescenta
66
Da vista a ação que o peito desconforta
E
como o sol aos cegos não se ostenta,
Assim
também às sombras que alivia,
69
Não mais do céu a luz olhos alenta.
Fio
de ferro as pálpebras prendia
A
todas, como ao gavião selvage
72
Para domar-lhe a condição bravia.
Cuidei,
se andasse, lhes fazer ultraje,
Lhes
vendo as faces e ocultando a minha:
75
E o Mestre olhei em tácita linguage.
E
o Mestre, bem sabendo o que convinha,
Antecipou-se
logo ao meu desejo
78
E disse: — “Arguto sê, e fala asinha.” —
Virgílio
caminhava neste ensejo
Do
lado, onde à cornija falta amparo;
81
Dali cair se pode e o risco eu vejo.
As
almas do outro lado eram; reparo
Que
dos olhos a hórrida costura
84
Provoca pranto copioso e amaro.
Voltei-me
e disse: — “Ó almas, que a ventura
De
ver tereis ao certo o excelso Lume;
87
De que somente o vosso anelo cura,
“Dissolva
a Graça em vós todo o negrume
Da
consciência e nela manar faça
90
Da mente o rio em límpido corrume!
“Concedei-me
o que mais me satisfaça:
Dizei-me
qual de vós latina há sido;
93
De eu sabê-lo algum bem talvez lhe nasça.” —
—
“Por pátria, irmão, só hemos conhecido
A
cidade de Deus: dizer quiseste
96
Peregrina na Itália haja vivido.” —
De
mim remota a voz parece deste,
Que
assim disse; e portanto, passo avante
99
Por saber certo a quem atenção preste.
E
uma senhora entre as mais vi, que, distante,
Aguardava-me.
E como eu a distinguia?
102
Qual cego, alçava o mento pra diante.
—
“Tu, que para subir penas” — dizia —
“Quem
foste, onde nasceste diz: te imploro,
105
Se é tua voz que, há pouco, respondia.”
—
“Fui de Siena” — tornou — “com este choro
Os
graves erros de perversa vida,
108
E a Deus que se nos dê, clemente, exoro.
“Chamei-me
Sápia, mas não fui sabida.
Mais
deleite me deu o alheio dano
111
Do que a dita a mim própria concedida.
“E
por que não presumas que te engano,
Se
fui louca verás pelo que digo.
114
Já no declínio do viver humano
“Eu
era, quando a rebater o inimigo
Em
Colle os meus patrícios campearam;
117
A Deus roguei que lhes não fosse amigo.
“Destroçados,
à fuga se lançaram,
E
a mim, que estava aquele transe vendo,
120
Indizíveis prazeres me tornaram,
“Em
modo, que atrevida, olhos erguendo,
—
“Não mais Deus tenho!” — contra o céu gritava
123
Qual melro, instantes de bonança tendo.
“Com
Deus quis paz, mas quando já tocava
Da
vida o termo; e ainda não pudera
126
A dívida solver, que me onerava,
“Se
Pedro Pettinanho não se houvera,
Nas
santas operações de mim lembrado:
129
Em prol meu, caridade o comovera.
“Mas
quem és, que nos tens interrogado,
Que
estando, creio, de olhos não tolhidos
132
E respirando indagas nosso estado?” —
—
“Olhos” — disse — “terei também cerzidos,
Porém
por pouco tempo; que da inveja
135
No mundo hão sido rara vez torcidos,
“Maior
receio o peito me dardeja
De
outro tormento; e tanto me angustia,
138
Que o seu fardo a sentir cuido já steja.” —
—
“Mas quem ao monte” — me tornou — “te guia,
Pois
de voltar ao mundo tens certeza?” —
141
— “Quem tenho ao lado e voz não pronuncia.
“Inda
vivo; e, pois fala com franqueza,
Alma
eleita, se queres que os pés mova
144
Em prol teu lá na terra com presteza.” —
—
“O que dizendo estás, cousa é tão nova
Que
por mim rogues fervorosa peço,
147
Pois da divina dileção dás prova.
“E
pelo que te merecer mais preço
Suplico-te:
ao pisar terra toscana
150
Ao meu nome entre os meus aviva o apreço.
“Terás
de vê-los entre a gente insana,
Que
espera em Talamone, mas como antes,
Quando
buscava as águas do Diana:
154
Mor engano há de ser dos almirantes.” —
29.
Vinum non habent, é a frase que Maria disse a Jesus para incitá-lo a fazer o
milagre da transformação da água em vinho. — 32. Orestes sou, Orestes para
salvar Pílades, condenado à morte, apresentou-se em seu lugar. — 36. Amai
imigos vossos, v. Evang. S. Mateus V. — 44-51. Por nós orais etc., prece. —
109. Sápia, senense, casada com Ghinigaldo Saraceni. — 116. Em Colle, onde os
senenses foram derrotados pelo florentinos. Sápia rejubilou-se disso, pois era
inimiga do senhor de Siena, Provenzano Salvani. — 127. Pedro Pettinanho, morto
em fama de santidade. — 151-154. A gente insana, os senenses. Tendo eles
comprado Telamone, queriam transformar essa cidade em porto de mar, mas não foi
possível devido à insalubridade do clima. Não tiveram êxito também na descoberta
de um rio subterrâneo que devia passar debaixo de Siena e que chamaram Diana.
Mais do que outros serão enganados os almirantes.
CANTO XIV
Dante
conversa com outras almas de invejosos. Respondendo o Poeta a uma pergunta de
Rinieri de Calboli, intervém Guido del Duca, imprecando contra as cidades de
Toscana e lamentando, depois, a degeneração das famílias nobres de Romanha. Os
Poetas ouvem vozes que lembram episódios nos quais o pecado da inveja foi
castigado.
“ESTE
quem é ao nosso monte vindo,
Sem
ter-lhe a morte as asas desatado,
3
Os olhos, quando quer, fechando e abrindo?” —
—
“Ignoro; mas vem de outro acompanhado.
Tu,
que és mais perto, a perguntar começa,
6
E, para nos falar, mostra-lhe agrado.” —
De
dois esp’ritos junto se endereça
A
mim desta arte a voz: stão-me a direita,
9
Cada um para trás alça a cabeça.
—
“Ó alma” — disse-me uma — “que, na estreita
Prisão
corpórea ainda, aos céus ascende,
12
Dá-nos consolo, à caridade afeita.
“Quem
és e donde vens? Porque nos prende
Pasmo
notando a Graça, que te ampara,
15
Portento que ninguém viu, nem compreende.” —
Tornei-lhe:
— “Na Toscana se depara
Rio,
que brota em Falterona escasso
18
E nunca, milhas cem correndo, pára:
“Este
corpo dali conduzo lasso.
Dizer
quem sou discurso vão seria:
21
Meu nome inda não soa em largo espaço.” —
—
“Se bem te entendo” — assim me respondia
A
sombra, que antes de outra eu tinha ouvido —
24
“Ao Arno o dizer teu se referia.” —
—
“Por que” — lhe atalha a outra — “ele escondido
Nos
tem do rio o nome verdadeiro?
27
Cousa horrível se encerra em seu sentido?” —
Disse-lhe
a sombra, que falou primeiro:
—
“Não sei; mas fora bem feliz o instante,
30
Em que o nome pereça ao vale inteiro:
“Dês
que nasce lá onde é redundante
De
águas a serra que o Peloro unira,
33
Noutras partes, porém, pouco abundante,
“Até
que o mar do seu tributo aufira
Reparo
ao que no seio o céu lhe suga,
36
E vida assim pra novos rios tira,
“Todos
ali virtude hão posto em fuga,
Qual
víbora inimiga, ou por efeito
39
Do clima, ou por moral, que o bem refuga.
“Natureza
por vícios se há desfeito
Na
gente desse vale impuro,
42
Como de Circe apascentada a jeito.
“Cava
o rio primeiro o leito escuro
Entre
porcos mais di’nos de bolota
45
Do que de cibo, em que haja humano apuro.
“Baixando,
acha de gozos mó abjeta,
Em
que o furor à força não se iguala,
48
E, como por desdém, busca outra meta.
“Essa
maldita e desgraçada vala
Tantos
mais cães em lobos vê tornados
51
Quanto mais corre e mais caudal resvala.
“Imerge
em princípios mais rasgados,
Onde
encontra raposas tão manhosas,
54
Que os laços mais sutis ficam frustrados.
“Do
porvir direi cousas espantosas,
E
quem me ouvir conserve na lembrança
57
Verdades que há de ver bem dolorosas.
“Teu
neto os lobos a caçar se lança
Desse
rio maldito sobre a riva:
60
Enquanto os não destroça não descansa.
“A
carne sua vende, estando viva,
Como
reses depois mata-os cruento;
63
Muitos da vida e a si da glória priva.
“Da
triste selva sai sanguinolento
E
a deixa, tal que ainda após mil anos
66
Tornar não há de ao primitivo assento.” —
Como,
ao presságio de futuros danos,
Merencório
se mostra o interessado,
69
Onde quer que a fortuna urda os enganos;
Assim
o outro espírito: voltado
Para
escutar se havendo, se entristece,
72
Depois que teve o sócio terminado.
Como
saber seus nomes eu quisesse,
Ouvindo
aquele, ao outro o gesto vendo,
75
A pergunta entre rogos se oferece.
O
que falara respondeu dizendo:
“Pedes
que eu, pronto, quanto anelas faça,
78
A instância minha em pouco apreço tendo.
“Mas
como em ti de Deus transluz a Graça,
Não
te há de ser Guido del Duca esquivo
81
Tanto, que o teu querer não satisfaça.
“Da
inveja o fogo ardeu em mim tão vivo,
Que
ao ver sorriso de outrem no semblante,
84
Em meu rosto o libor era expressivo.
“Semeei:
colho o fruto repugnante.
Oh!
por que, raça humana, o que repele
87
Qualquer partilha almejas ofegante?
“Este
foi Rinieri: estava nele
Dos
Calboli o primor: ao nome honrado
90
Herdeiro não deixou que a glória zele.
“Não
só à prole sua tem faltado,
Entre
o Pó e a montanha, o mar e o Reno
93
O bem para a verdade e o prazer dado;
“Pela
extensa amplidão desse terreno
Alastram
tudo abrolhos perigosos:
96
Quando extirpar se pode um tal veneno?
“Onde
Mainardi e Lizio estão famosos?
Qual
de Carpigna e Traversaro o fado?
99
Ó Romanhóis bastardos desbriosos!
“Quando
um Fabro se tem nobilitado,
Como
em Faenza um Fosco Bernardino,
102
Varas gentis de tronco definhado!
“O
pranto meu não julgues pouco di’no,
Se
com Guido de Prata rememoro
105
O companheiro nosso, Azzo Ugolino;
“Se
Fred’rico Tignoso e a prole choro;
Solares
de Anastagi e Traversara,
108
Sem herdeiros extintos, se eu deploro,
“Cavaleiros
e damas, glória rara,
Que
inspiravam amor e cortesia
111
Na terra, que a virtude desampara!
“Cai
em ruínas, Brettinoro ímpia!
Em
ti viver tua gente não quisera;
114
Com mais outras, temendo o mal, fugia.
“Bem
faz Bagnacaval: prole não gera,
Castrocaro
faz mal e pior Cônio
117
Que a tais condes da vida o lume dera.
“Os
Pagani irão bem, quando o Demônio
Deixá-los;
mais não podem nome puro
120
Já nunca possuir no solo ausônio.”
Ugolin
Fantolin, ficou seguro
Da
fama tua o lustre; pois já agora
123
Não terás filhos pra torná-lo escuro.
“Podes,
Toscano, prosseguir embora:
Pranto,
mais que discursos, me deleita;
126
Lembrando a pátria, o coração me chora.” —
O
passo as almas na vereda estreita
Ouviam-nos,
silêncio elas guardando.
129
Era a jornada com certeza feita.
Já
ficaríamos sós, avante andando,
Eis
brada voz nos ares de repente;
132
Veloz, qual raio, vinha a nós chamando:
—
“Quem me encontrar me mate incontinênti” —
E
fugiu qual trovão que distancia
135
Se o vento a nuvem rasga de repente.
O
terrível clamor cessado havia,
Com
medonho fracasso eis outra brada,
138
Como um trovão que a outro sucedia:
—
“Aglauro sou, em rocha transformada” —
E
a Virgílio acercar-me então querendo,
141
Dei, não avante, um passo atrás na estrada.
Tranqüilo
o ar por toda parte vendo,
—
“Este é” — falou-me o Mestre — “o duro freio,
144
Que os homens deve estar sempre contendo:
“Mas
vós mordeis a isca em triste enleio
E
o prístino inimigo do anzol tira:
147
De conter ou pungir que vale o meio?
“O
céu vos chama, em torno de vós gira,
Esplendores
eternos vos mostrando;
Mas
a vista, enlevada, a terra mira,
151
“E quem vê tudo então vai castigando.” —
17.
Rio que brota em Falterona, o Arno. — 32. Peloro, promontório siciliano. — 42.
Circe, sereia que transformava os homens em animais. — 58. Teu neto, Fulcieri
de Calboli, neto de Rinieri, que foi “podestà” de Florença perseguiu o partido
dos Bancos, ao qual Dante pertencia. — 80. Guido del Duca, senhor de Bertinoro,
na Romanha. — 88. Rinieri dei Paolucci, senhor de Calboli. — 97 e seg. Mainardi
e Lizio, Carpigna e Troversaro, Fabbro, Fosco Bernardino, Guido de Prata, Azzo
Ugolino, Frederico Tignoso, Anastagi e Traversara, senhores e famílias da
Romanha notáveis por cortesia e generosidade. — 115-117. Bagnacaval,
Castrocaro, Cônio, cidades da Romanha cujos senhores eram maus. — 118. Pagani,
nobre família de Faenza, da qual fazia parte Mainardo (Inf. XXVI, 49-51) alcunhado
o demônio pelas suas crueldades. — 121. Ugolin Fantolin, gentil-homem de
Faenza. — 133. Quem me encontrar me mate incontinênti, palavras pronunciadas
por Caim depois de ter assassinado o irmão Abel. — 139. Aglauro, filha de
Eretero rei de Atenas, foi transformada em pedra por Mercúrio, por ter inveja
da irmã Erse que era amada pelo deus.
CANTO XV
Caindo
a noite, os dois Poetas chegam ao terceiro compartimento. Aí Dante, em êxtase,
vê exemplos de mansuetude e misericórdia. Voltando a si, encontra-se imerso num
fumo que obscurece o ar e impede a visão.
QUANTO
caminho faz da tércia hora,
No
giro seu, a luminosa esfera,
3
— Sempre a mover-se qual criança — à aurora,
Tanto,
para acabar o curso, espera
O
sol, e para dar à tarde entrada:
6
Lá vésperas, aqui meia-noite era.
De
luz me estava a face então banhada;
Porque,
em torno à montanha prosseguindo,
9
Do ocaso em direção ia a jornada,
Quando,
mais vivo resplendor fulgindo,
Ofuscado
fiquei mais do que dantes:
12
Desse portento a ação pasmei sentindo.
Acima
de meus olhos, por instantes,
As
mãos alcei — sombreiro, que antepara
15
O mor excesso aos raios deslumbrantes.
Assim
como de espelho ou linfa clara
Ressalta
a luz de encontro à oposta parte,
18
Subindo logo após, como baixara;
Da
linha vertical não se disparte,
Uma
distância igual sempre mantendo,
21
Como nos mostra experiência e arte:
Em
frente à luz, assim, se refrangendo,
Tão
penetrante a vista me feria,
24
Que a dirigi a um lado, olhos volvendo.
“Qual
é” — ao Mestre amado então dizia —
Aquele
objeto, que me ofusca tanto
27
E ao nosso encontro, ao parecer, se envia?” —
—
“Que inda te ofusque não te mova espanto
A
celeste família” — me há tornado: —
30
“Falar-te vem um mensageiro santo.
“A
veres com delícia aparelhado
Serás
em breve um lume refulgente,
33
Quanto ser pode ao ente humano dado.” —
Acercados
ao anjo, alegremente
Nos
disse: — “Aqui passai, menos penosa
36
Subida nesta escada está patente.”
Andando,
atrás cantar em voz donosa
Beati
Misericordes nós ouvimos
39
E “Exulta na vitória gloriosa”,
Para
cima, portanto, nós subimos;
E
eu das vozes do Vate cogitava
42
Colher proveito, enquanto sós nos imos.
E,
me voltando, assim lhe perguntava:
“O
que Guido del Duca nos dizia,
45
Quando em bens não partíveis nos falava?” —
—
“Do seu vício pior” — tornou — “sabia
Os
danos; não se estranhe, se o acusando,
48
Do mal que fazer possa prevenia;
“Porque,
do mundo os bens vós desejando,
A
que partilha todo o apreço tira,
51
Arde a inveja, suspiros provocando.
Mas,
se a esfera imortal vossa alma aspira,
Levantando-se
o anelo àquela altura,
54
Esse temor no peito voz expira.
“Tanto
mais lá cad’um goza ventura,
Quanto
por muitos ela mais se estende,
57
Quanto mais caridade lá se apura.” —
—
“O entendimento” — eu digo — “ora compreende
Menos
do que antes de eu te haver falado;
60
À mente ora mor dúvida descende.
“Como
um bem, que é de muitos partilhado,
A
cada possessor dá mais riqueza
63
Do que se a posse fora apropriado?” —
—
“Teu spírito” — replica — “na rudeza
Das
cousas terreais stando imergido,
66
Vê trevas onde a luz tem mais clareza,
“Esse
inefável bem, no céu fruído,
Infindo,
para o amor, correndo desce,
69
Qual raio a corpo lúcido e polido.
“Se
ardor acha mais vivo, mais se of’rece;
Quanto
mais caridade está fulgindo,
72
Virtude eterna mais sobre ela cresce.
“Quanto
mais vai a multidão subindo,
Mais
amar podem, mais a amor se aplicam,
75
Bem como espelho, um no outro refletindo.
“Se
persistindo as dúvidas te ficam,
Hás
de ver Beatriz: da sábia mente
78
Razão escutarás, que tudo explicam.
“Para
apagares, pois, sê diligente.
As
chagas cinco, que inda em ti stou vendo:
81
Há de cerrá-las contrição pungente.” —
Quando
eu ia dizer — Mestre, compreendo —
No
círculo eis penetro imediato:
84
Calei-me, a vista alucinada tendo.
Julgava
então, de uma visão no rapto,
Extático,
que em templo se mostrava
87
Multidão grande, de oração no ato.
Com
piedoso semblante, à entrada estava
Meiga
matrona. — “Ó filho meu querido,
90
Por que assim procedeste?” — interrogava.
“Eu
e teu pai, com ânimo dorido,
Te
buscamos.” — E como se calara,
93
Logo a visão fugiu-me do sentido.
Depois
de outra no rosto se depara
Pranto
acerbo, que mágoas anuncia
96
De quem de ira no incêndio se inflamara.
“Se
mandas na cidade” — assim dizia —
“Por
cujo nome os deuses contenderam
99
E onde a luz da ciência se irradia,
“Pune
os braços, que ímpios, se atreveram,
Pisístrato,
a estreitar a filha tua!” —
102
Ele, a quem vozes tais não comoveram,
Tranqüilo
respondia à esposa sua:
“O
que faremos a quem mal nos queira,
105
Se ira ao amor corresponder tão crua?”
Vi
depois multidão, que a raiva aceira:
A
pedradas mancebo assassinava,
108
Bradando — morra! morra! — carniceira.
A
dolorida fronte debruçava,
Já
mal ferido, o mártir para a terra:
111
Portas ao céu os olhos seus tornava,
Pedindo
a Deus, naquela horrível guerra,
Que
aos seus perseguidores perdoasse:
114
Riso piedoso os olhos lhe descerra.
Quando
em minha alma o êxtase desfaz-se,
Conheci
que no sonho aparecia,
117
Não da ficção mas da verdade a face.
Virgílio,
a quem talvez eu parecia
Homem,
que o sono deixa de repente,
120
— “Por que estás vacilante?” — me inquiria.
“Tens
meia légua andado certamente
Com
titubante pé, de olhos caídos,
123
Como quem desse ao vinho ou sono a mente.” —
—
“Vou expor, meu bom mestre, aos teus ouvidos” —
Tornei
— “quanto os meus olhos contemplaram,
126
Quando os joelhos tinha enfraquecidos.”
—
“Se másc’ras cento a face te ocultaram” —
Disse
Virgílio — “ocultos não seriam
129
Pensamentos, que, há pouco, te enlevaram.
“As
imagens, que hás visto, te induziam
Águas
da paz a receber no peito,
132
Que as fontes perenais dos céus enviam.
“Não
perguntara, como quem de feito
Somente
vê por olhos, obcecados
135
Quando o corpo da morte jaz no leito;
“Mas
por serem teus pés mais apressados:
Excitar
assim cumpre os preguiçosos,
138
Que se esquivam à ação stando acordados.” —
Nas
horas vespertinas pressurosos
Andávamos,
os olhos alongando,
141
Do sol cadente aos raios luminosos,
Eis
pouco a pouco, um fumo se elevando.
Se
condensa ante nós, qual noite, escuro;
Abrigo
ali de todo nos faltando,
145
A vista nos tolheu, tolhendo o ar puro.
1-5.
Quanto caminho etc., faltavam três horas para o ocaso, pois o Poeta nota que
deveria transcorrer tanto tempo para o pôr do sol quanto transcorre entre o
princípio do dia até a hora terça. — 6. Lá vésperas etc., no Purgatório
faltavam três horas para o ocaso, eram vésperas; na Itália era meia-noite. —
16-21. Assim como etc., o poeta descreve o refletir-se da luz que bate sobre um
espelho ou na água, no qual o ângulo de refração é igual ao ângulo de
incidência. — 38. Beati misericordes, Evang. S. Mateus V, 7. — 80. As chagas
cinco, os cinco PP, que ainda Dante tem na testa. — 89. Meiga matrona, Maria
Virgem, a qual tendo perdido o seu filho, encontrando-o depois de três dias, o
repreende com mansuetude. — 94. De outra etc., a mulher de Pisístrato, príncipe
de Atenas, pediu ao marido vingança contra um jovem que beijara publicamente a
sua filha. — 107. A pedrada mancebo assassinava, Santo Estevão que foi
apedrejado pela multidão.
CANTO XVI
Sempre
ao lado de Virgílio, Dante continua a viagem. Denso fumo envolve os iracundos.
Entre eles está Marco Lombardo, o qual lamenta os tempos, que eram bons e agora
ficaram maus. Dante pergunta de que depende essa mutação, e Marco responde que
a corrupção dos tempos novos procede do mau governo do mundo e especialmente da
confusão entre o poder espiritual e o poder temporal.
SOMBRA
de inferno e noite carregada,
Em
que o céu de um só astro não se aclara,
3
De nuvens, quanto o pode ser, toldada,
Véu
tão grosso ao meu rosto não lançara,
Nem,
ao contacto, fora tão pungente,
6
Como o fumo, que ali nos rodeara.
Fechados
tinha os olhos totalmente:
Fiel
o sábio sócio, me acudindo,
9
Deu-me em seu ombro arrimo diligente.
Qual
cego, que ao seu guia vai seguindo
Por
se não transviar, correr perigo,
12
Ou sofrer morte, de encontrão caindo,
Tal
eu por aquele ar escuro sigo,
Atento
ao Mestre meu, que repetia:
15
— “Cuidado! Não te afastes! Vem comigo!” —
Então
vozes ouvi; me parecia,
Que
paz, misericórdia suplicavam
18
Ao Cordeiro, que as culpas alivia.
Por
Agnus Dei suaves começavam,
A
letra era uma só como a toada,
21
Consonância entre si todas as guardavam.
—
“Por quem esta oração, que ouço, é cantada?” —
Perguntei.
Disse o Mestre: — “É bom que o aprendas:
24
Assim da ira a culpa é mitigada.” —
—
“Quem és para que a névoa nossa fendas
E
assim fales, qual viva criatura,
27
Que inda o tempo calcula por calendas?” —
Disse
uma voz do fundo na negrura.
E
Virgílio falou: — “Responde e exora
30
Se por aqui se sobe para a altura.” —
—
“Ó alma, que” — disse eu — “a graça implora
De
ir a Quem te criou mais pura e bela,
33
Maravilha ouvirás, segue-me embora.” —
—
“Até onde for dado” — tornou-me ela —
“Irei,
e, se te ver não deixa o fumo,
36
Nos tornará propínquos a loquela.” —
—
“Nas mantilhas, que a morte acaba, ao sumo
Assento”
— comecei — “ora me alteio,
39
Do inferno tendo vindo pelo rumo.
“Se
Deus permite, de bondade cheio,
Que
a dita eu goze de lhe ver a corte
42
Por este, hoje de todo estranho, meio,
“Revela-me
quem foste antes da morte
E
qual nos deva ser a melhor via:
45
Guiarás nossos passos desta sorte.” —
—
“Fui Lombardo e de Marco o nome havia;
O
mundo exp’rimentei, feitos amando,
48
Pelos quais ninguém mais hoje porfia.
A
subir bom caminho vais trilhando.” —
Falou-me
assim e acrescentou: — “E rogo
51
Intercedas por mim, ao céu chegando.” —
—
“Quanto me pedes” — lhe replico logo —
“Juro
fazer, mas acho-me oprimido
54
Por dúvida a que anelo desafogo.
“Era
simples; te ouvindo, tem subido
A
duplo grau, e assim me torna certo
57
Do que hei aqui e noutra parte ouvido.
“O
mundo de virtude está deserto;
Tens
sobeja razão, quando o lamentas,
60
Impa de mal, de vícios é coberto.
Dize-me
a causa, se na causa atentas?
Sabendo-a,
aos outros revelá-la quero;
63
Virá do céu ou lá na terra a assentas?”
Suspiro
em que se exprime dó sincero
Com
hui, do peito exala. — “Irmão — prossegue —
66
Que o mundo é cego em ti bem considero.
“Vós,
os vivos, julgais o céu entregue
De
toda causa, a tudo assim movendo
69
Por necessária lei, que o mundo segue.
“Desta
arte o livre arbítrio fenecendo,
Ao
homem não coubera o que merece,
72
No bem prazer, no mal dor recebendo.
“Primeira
inspiração aos atos desce
Do
alto; a todos não; mas quando o diga,
75
No mal, no bem a luz não vos falece.
“Livre
sendo o querer, quem se afadiga
E
a primeira vitória do céu goza,
78
Vencerá tudo, se em querer prossiga.
“Natureza
melhor, mais poderosa
Vos
sujeita — a que cria e vos concede
81
Mente, que ao céu não prende-se humildosa.
“Se
a causa, que do bom caminho arrede
O
mundo em vós a tendes persistente;
84
Explorarei, fiel, o que sucede.
“Alma
surge das mãos do Onipotente
Que,
inda antes de nascida, lhe sorria
87
Qual menina, que ri, chora, inocente.
“Ingênua
e simples, ela só sabia
De
um Deus beni’no ser meiga feitura,
90
E a tudo, que a deleita, se volvia.
“Dos
mais frívolos bens prende-a a doçura,
E,
deles namorada, após lhes corre,
93
Se guia ou freio o amor lhe não segura.
“Nas
leis consiste o freio, que a socorre;
Rei
foi mister, que, ao menos, acertasse
96
Da cidade de Deus em ver a torre.
“Leis
há, mas não quem leis executasse;
Rumina
esse pastor que os mais precede,
99
Mas a unha fendida não lhe nasce.
“E
vendo a grei que o próprio guia a excede
Em
almejar os bens que mais deseja,
102
Nestes se engolfa e mais nem quer nem pede.
“Portanto,
porque mau governo veja,
Fica
o mundo de culpas inquinado,
105
Não porque em vós a corrupção esteja.
“Bens
sobre o mundo havendo derramado,
Tinha
Roma dois sóis, que alumiaram
108
O caminho de Deus e o do Estado.
“Um
ao outro apagou, e se ajuntaram
Do
Bispo o bago e do guerreiro a espada:
111
Por viva força unidos, mal andaram.
“Não
mais se temem na junção forçada:
Vê
a espiga que prova estes efeitos;
114
Pela semente é a planta avaliada.
“Valor
e cortesia altos proveitos
Deram
na terra que Ádige e Pó lavam,
117
Antes que visse de Fred’rico os feitos.
“Por
ali os que outrora se pejavam
De
entrar dos bons na prática e na liga,
120
Livres passam do quanto receavam.
“Só
três velhos opõe a idade antiga,
Como
censura, à nova: é-lhe já tardo
123
Que Deus os chame dessa terra imiga:
“Conrado
de Palazzo, o bom Gherardo
E
Guido de Castel, que foi chamado,
126
Ao estilo francês simples Lombardo.
“De
Roma a Igreja fique proclamado,
Cai
no ceno os poderes confundido,
129
Se enloda a si e o fardo seu pesado.”
—
“Tuas sábias razões, Marcos, ouvindo,
Vejo”
— disse — “por que a Lei da herança
132
Partiu, de Levi os filhos excluindo.
“Mas
qual Gherardo trazes à lembrança,
Como
glória e brasão da antiga gente,
135
Que censura a este séc’lo impuro lança?” —
—
“Queres” — tornou — “tentar-me ou certamente
Iludir-me?
Em toscano me falando
138
Do bom Gherardo dizes-te insciente?
“Sobrenome
de todo lhe ignorando,
Dou-lhe
o de Gaia, sua filha cara.
141
Guarde-vos Deus, que eu vou-me, vos deixando.
“Do
fumo a densidão se torna rara,
Branqueja
o dia: devo já partir-me,
Que
a apresentar-se o anjo se prepara.” —
145
Assim falando, mais não quis ouvir-me.
19.
Agnus dei, Jesus símbolo de mansuetude, virtude contrária ao vício da ira. —
27. Calendas, uma das três partes em que o mês era dividido pelos romanos. —
46. Fui Lombardo e de Marco o nome havia, Marco de Veneza, chamado o Lombardo,
homem sábio e prudente. — 98. Rumina esse pastor etc. A imagem deriva da lei
mosaica pela qual se proibia se comessem os animais não ruminantes e que não
tivessem a unha partida. O ruminar exprime a sabedoria, a unha partida a ação.
— 116. Na terra etc., a Lombardia e o Marca Trevisana. — 117. De Frederico os
feitos, as guerras entre os papas e Frederico II da Suábia. — 124-25. Conrado
de Palazzo, da Brescia; Gherardo de Camino; e Guido de Castello, de Reggio —
131-132. Lei da herança etc., segundo a lei mosaica os descendentes de Levi,
isto é, os levitas (os sacerdotes) não podiam possuir bens temporais.
CANTO
XVII
Saindo
do denso fumo, Dante, novamente em êxtase, vê exemplos de ira punida. Tornando
a si, vê um anjo que está perto da escada do quarto compartimento. Os dois
Poetas continuam a subir. Sobrevindo, porém, a noite, param e Virgílio explica
ao discípulo que o amor é o princípio de todas as virtudes e de todos os
vícios.
LEITOR,
se lá na alpina cordilheira
Te
colheu névoa, que de ver tolhia,
3
Como se olhos tivemos de toupeira,
Lembra
que, quando a úmida e sombria
Cortina
a delgaçar começa, a esfera
6
Do sol escassa luz ao ar envia.
E
mal tua mente imaginar pudera
Como
de novo à vista se mostrava
9
O sol, que ao seu poente descendera.
Ao
lume, que nos planos se finava,
Do
Mestre os passos fido acompanhando
12
Saí da cerração, que me cercava.
Fantasia
que, o espírito enlevando,
Tanto
o homem dominas, que não sente
15
Clangor de tubas mil, juntas soando,
O
que te move, estando o siso ausente?
Luz
que desce por si, no céu formada,
18
Ou por querer do céu onipotente.
Cuidei
súbito ver a que mudada,
Dos
crimes seus em pena, foi nessa ave,
21
Que em trinar mais se mostra deleitada.
Tanto
minha alma, na visão suave,
Extática
ficou, que não sentia
24
Outra impressão qualquer que a prenda e trave.
Naquele
êxtase logo após eu via
Em
cruz um homem de feroz semblante:
27
Nem a morte a arrogância lhe abatia:
Stava
o grande Assuero não distante,
Ester,
a esposa e Mardoqueu prudente,
30
Justo nos feitos, no dizer prestante.
E
fugiu-me esta imagem prontamente,
Como
a bolha, que de água se formara
33
E à falta de água esvai-se de repente.
Donzela
eis na visão se me depara
Que
em prantos exclamava: — “Ó mãe querida
36
Por que tomaste irosa a morte amara?
“Perdes,
por não perder Lavínia, a vida
E
perdida me tens: teu fim deplora,
39
Mas não o de outro, a filha dolorida.” —
Como
se rompe o sono, se de fora
Luz
repentina às pálpebras nos desce;
42
Não morre logo, em luta se demora:
Minha
visão assim se desvanece,
Quando
as faces clarão tão vivo lava,
45
Que na terra outro igual nunca esclarece.
Volvi-me
para ver onde me achava;
Mas,
ouvindo uma voz — “Sobe esta escada” —
48
De qualquer outro intento me apartava.
Por
saber quem falara foi tomada
Minha
alma de um desejo tão veemente,
51
Que fora, se o não viesse, conturbada.
Como
ao sol, que deslumbra em dia ardente,
Sendo-lhe
véu seu lume flamejante,
54
Senti perdida a força incontinênti.
—
“Espírito é celeste: vigilante
Sem
rogos, o caminho nos indica:
57
O próprio brilho esconde-o fulgurante.
“Como
o homem consigo, assim pratica;
Quem,
mal extremo vendo, só rogado
60
Acode, esquivo ser já significa.
“A
tal convite o pé seja apressado!
Antes
da noite rápidos subamos;
63
Depois somente quando o sol for nado.” —
Disse
o meu Guia; e logo encaminhamos
Os
passos, de uma escada em direitura.
66
Ao primeiro degrau quando chegamos
Mover
de asas ao perto se afigura,
Bafejo
sinto; e ouço: — “É venturoso
69
Quem ama a paz, isento de ira impura!” —
No
alto já do céu o luminoso
Rasto,
da noite precursor, surgira,
72
De astros assoma o exército formoso.
—
“Ai de mim! Por que a força minha expira?”
Disse,
entre mim, sentindo que, esgotada,
75
Súbito às pernas o vigor fugira.
Tendo
alcançado o topo já da escada,
Imóveis
nos quedamos, imitando
78
A nau, que aferra a praia desejada.
A
escutar stive um pouco, interrogando
Daquele
novo círc’lo algum sonido;
81
Depois ao Mestre me voltei falando:
—
“No lugar em que estamos, pai querido,
Que
pecado recebe a pena sua?
84
Parando os pés, teu verbo seja ouvido.”
Tornou-me:
— “Se do bem o amor recua
No
seu dever, aqui se retempera;
87
Sobre o remisso a expiação atua.
“Por
melhor compreenderes, considera
No
que digo: a detença, porventura,
90
Dará o fruto, que tua mente espera.
“Ao
Criador, meu filho, e à criatura
Nunca
falece amor — tens já sabido —
93
Ou venha da alma ou venha da natura.
“O
amor natural de erro é despido;
Pode
pecar o outro pelo objeto,
96
Por nímio ardor, por star arrefecido.
“Quando
aos bens principais ele é direto
E
nos bens secundários moderado,
99
Causar não pode criminoso afeto.
“Se
ao mal, porém, se torce ou, desregrado,
De
menos ou de mais ao bem se move,
102
Ofende ao Criador quem foi criado.
“Tens,
pois, o necessário, que te prove
Que
amor em vós semente é de virtude,
105
Como é dos feitos, que o céu mais reprove.
“E
como o amor o bem somente estude
Do
seu sujeito, quando o amor domina,
108
Não pode ser que em ódio a si se mude.
“E
porque nenhum ente se imagina
Sem
ter no que criou a causa sua,
111
Ódio em nenhum contra este se origina:
“Contra
o próximo é, pois, que se insinua
Do
mal o amor, pecaminoso.
114
No humano limo em modos três atua.
“Qual,
da grandeza, e glória cobiçoso,
As
espera em ruína de outro, e anela
117
Vê-lo em terra prostrado e desditoso;
“Qual,
temor de perder, triste, revela
Valia,
honra e poder, se outro os partilha
120
E em querer-lhe o contrário se desvela;
“Mágoa
sentindo de uma injúria filha,
Qual
porfia em vingar-se, e, de ira ardendo,
123
De mal fazer os meios esmerilha.
“Do
mal este amor tríplice nascendo,
Lá
embaixo se expia; mas atende
126
Ao que vai desregrado, ao bem correndo.
“Confusamente
cada qual se acende
Por
certo bem e sôfrego o deseja:
129
Por ter-lhe a posse, afana-se e contende.
“O
que do bem no amor inerte seja
Depois
que do pesar sofrerá agrura,
132
É justo que em martírio aqui se veja.
“Há
outro bem; não dá, porém, ventura.
Felicidade
não é, não é a essência
135
De todo o bem, o fruto, a raiz pura.
“O
amor, que a tal bem vota a existência,
Acima
em círc’los três há seu tormento:
Por
que assim se divide, a inteligência,
139
Sem te eu dizer, dar-te-á conhecimento.” —
20.
Nessa ave etc., Filomena, por vingar-se de ter sido ultrajada por Teseu,
deu-lhe de comer os próprios filhos e foi por isso transformada pelos deuses em
rouxinol. — 26. Em cruz um homem etc. Aman, ministro do rei Assuero, foi
crucificado na cruz que ele havia mandado levantar para o inocente Mardoqueu
(Ester II, 5). — 34. Donzela, Lavínia, filha do rei Latino e da rainha Amata. —
37-39. Perdes etc., A rainha Amata supondo que Turno, noivo de Lavínia, tivesse
sido morto por Enéias, suicidou-se.
CANTO
XVIII
Virgílio
continua a falar sobre o amor. No entanto as almas dos preguiçosos vão passando
diante dos Poetas, lembrando exemplos da virtude contrária à preguiça, e, depois,
de punição da preguiça. Uma das almas dá-se a conhecer a Dante. É o abade de S.
Zeno, em Verona. Dante cai em profundo sono.
PALAVRAS
tais já proferido havia
O
Vate excelso e, atento, me observava
3
Por ver se eu satisfeito parecia;
E
eu, em maior sede me inflamava,
Calando-me,
entre mim dizia: “O excesso,
6
Que nas perguntas há, talvez o agrava.” —
Mas
o sincero pai, sempre indefeso,
Meu
silêncio notando e o que o motiva
9
Logo animou-me a lho fazer expresso.
—
“Minha vista” — falei — “tanto se aviva
À
luz do verbo teu, Mestre, que ao claro
12
Vejo o que da razão tua deriva.
—
“Rogo-te, pois, ó pai beni’no e caro,
Me
ensines esse amor, de que descende
15
Todo o mal, todo o bem ao mundo ignaro.” —
—
“Volve a mim” — disse — “a luz, que mais se acende
No
espírito e há de ser-te bem patente
18
Quanto erra o cego que guiar pretende.
“Alma
criada para amar ardente,
A
tudo corre, que lhe dá contento,
21
Se despertada do prazer se sente.
“Do
que é real o vosso entendimento
Colhe
imagens que em modo tal desprega,
24
Que alma pra elas sente atraimento.
“Se
alma, enlevada, ao seu pendor se entrega,
Esse
efeito é amor, própria natura,
27
Em que o prazer novo liame emprega.
“E,
como o fogo se ala para a altura
Por
sua forma, que a elevar-se tende
30
Ao foco, onde o elemento seu mais dura,
Assim
pelo desejo a alma se acende,
Ação
esp’ritual que não se aquieta,
33
Se não consegue a posse, que pretende.
“Vê,
pois, que da verdade excede a meta
Quem
acredita e aos outros assevera
36
Que todo o amor de si é cousa reta.
“Em
gênero talvez se considera
O
amor sempre bom; mas todo selo
39
É bom, inda que seja boa a cera?
—
“Se, te ouvindo” — tornei — “com mor desvelo
Do
que ser pode o amor fico inteirado,
42
Dúvidas hei, que esclarecer anelo.
“Pois
que amor é de fora derivado,
Pois
que a alma de outra sorte não procede,
45
No bem, no mal o mérito é frustrado.” —
—
“Dizer-te posso o que a razão concede” —
Tornou
— “do mais a Beatriz somente,
48
Por ser ato de fé, solução pede.
“Forma
substancial, não depende
Da
matéria, porém com ela unida,
51
Specífica virtude tem latente.
“Só,
quando atua, pode ser sentida;
Denúncia
do que seja dá no efeito,
54
Como em planta a verdura indica a vida.
“Das
primeiras noções onde o conceito
Nasceu?
Donde apetites vêm primeiros,
57
A que o homem no mundo está sujeito?
“Como
o instinto do mel na abelha, inteiros
Em
vós estão, louvor não merecendo,
60
Nem censura também, ínscios obreiros.
“Tudo
desses pendores dependendo,
Inata
a faculdade é que aconselha,
63
A porta do consenso em guarda tendo.
“Em
tal princípio a causa se aparelha,
De
que procede em vós merecimento:
66
Repele o mau amor, no bom se espelha.
“Os
sábios, estudando o fundamento
Das
cousas, vendo inata a liberdade,
69
Da moral vos tem dado o ensinamento.
“E,
supondo que por necessidade
Nascesse
todo o amor, que vos incende,
72
Tendes para contê-lo potestade.
“Nobre
virtude ser Beatriz entende
O
livre arbítrio; e, quando lhe falares,
75
A isto mesma a memória atento prende.” —
Como
alcanzia a flamejar nos ares,
A
lua à meia-noite, já tardia,
78
Escurecia os outros luminares;
E,
contra o céu, caminho percorria,
Por
onde o sol vai pôr-se, quando a Roma,
81
Entre Sardenha e Córsega, alumia.
Havia
a sombra ilustre, por quem toma
A
fama Ande à cidade mantuana,
84
Do peso meu aliviado a soma:
Quando
eu, que explicação lúcida e plana
Sobre
as minhas questões tinha alcançado,
87
Sinto que a mente sonolência empana.
Desse
quebranto súbito arrancado
Por
turba fui, que, após se encaminhando,
90
A nós vinha com passo acelerado.
E
como o Ismeno e Asopo, outrora, em bando,
Correr
viam Tebanos ofegantes,
93
Por noite Baco em alta voz cantando,
A
multidão, assim, dos caminhantes,
De
bom querer e justo amor tocados
96
Pelo círc’lo apressavam-se anelantes.
E,
pois, tinham-se em breve apropinquado;
Na
carreira chorando afadigosa,
99
Assim gritavam dois mais avançados:
—
“Maria corre ao monte pressurosa;
César
rende Marselha, e contra Ilerda
102
Rápido voa à Espanha revoltosa. —
—
“Pressa; pressa! De tempo já sem perda!
Pouco
zelo não haja!” — outros clamaram —
105
“Não refloresce a Graça nalma lerda!” —
—
“Vós, em que tais fervores se deparam,
Que
talvez negligência ides remindo
108
Dos tempos, que no bem não se empregaram,
“Dizei
a um vivo (estais verdade ouvindo),
Que
partir-se pretende à nova aurora.
111
Se é perto a entrada, donde vá subindo.”
A
voz do Mestre meu desta arte exora.
Dos
espíritos um lhe respondia:
114
— “Vem conosco: não longe ela demora.
“Anelo
de ir avante nos desvia
De
detença: perdoa, por bondade,
117
Se há, cumprindo um dever, descortesia.
“De
S. Zeno em Verona fui abade
De
Barba-roxa, o bom, sob o reinado
120
De quem Milão se lembra sem saudade.
“Alguém
que à sepultura está curvado
Há
de em breve chorar esse mosteiro
123
E o poder, com que o tinha dominado;
“Pois,
em dano ao pastor seu verdadeiro,
Ao
filho mal nascido, o cometera,
126
No corpo horrendo, na maldade useiro.”
Não
sei se inda falou, se emudecera,
De
nós já velozmente se alongara,
129
Mas ouvi-lo e notá-lo me aprazara.
Então
disse-me quem me guia e ampara:
—
“Volve-te, atenta nestes dois: correndo
132
Nos lentos mordem com censura amara.” —
—
“Avante!” — os dois no couce vêm dizendo —
Os
que se abrir o mar viram, morreram,
135
A herança do Jordão não recebendo,
“E
os que o filho de Anquises não quiseram
Seguir
até seu fim nas árdua jornada
138
Fama e glória por gosto seu perderam.” —
Depois,
daquela grei stando afastada
Tanto,
que eu divisá-la não podia,
141
De nova idéia a mente foi tomada,
Outras
surgindo após de romaria;
E
tanto de uma em outra vagueava.
Que
pouco a pouco o sono me invadia,
145
E o pensamento em sonho se mudava.
76.
Alcanzia, bola de barro. — 77. A lua a meia noite, etc., a lua que demorava a
surgir até quase meia-noite, com o seu fulgor escurecia as outras estrelas. —
79. E contra o céu etc., corria de ponente para o levante por aquele caminho do
Zodíaco no qual está o sol quando o habitante de Roma o vê descer entre a
Sardenha e a Córsega. — 83. Ande (depois Pietola) aldeia perto de Mântua, na
qual Virgílio nasceu. — 91. Ismeno e Asopo, rios da Beócia. — 100. Maria corre
ao monte etc., a Virgem Maria, logo depois do anúncio do nascimento de Jesus,
correu a visitar a sua prima Isabel (Evang. S. Lucas I, 39). — 101. César rende
etc., Júlio César, com grande celeridade, deixando parte do seu exército no
assédio de Marselha, com a outra parte dirige-se para Ilerda. — 118. De S. Zeno
em Verona etc., Geraldo, abade de S. Zeno. — 119. Barba-roxa o imperador
Frederico I, que em 1162 destruiu a cidade de Milão. — 121. Alguém que à
sepultura está curvado etc., o velho Alberto della Scala, que destituiu Geraldo
do seu cargo de abade, substituindo-o por um seu filho bastardo que, além de
coxo, era malvado. — 134-135. Os que se abrir o mar viram etc., os filhos de
Israel que, pela sua preguiça, morreram no deserto, não alcançando a Terra
Prometida. — 136. E os que o filho de Anquise etc., os Troianos que não tiveram
a coragem de seguir a Enéias (Eneida V, 604).
A DIVINA COMÉDIA...
INFERNO ... Cantos I-V ... VI-XI ... XII-XVII ... XVIII-XXIII ... XIV-XXIX ... XXX-XXXIV
PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII
PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII