INFERNO ... Cantos I-V ... VI-XI ... XII-XVII ... XVIII-XXIII ... XIV-XXIX ... XXX-XXXIV
PURGATÓRIO ... Cantos I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXV ... XXVI-XXIX ... XXX-XXXIII
PARAÍSO ... Canto I-VI ... VII-XII ... XIII-XVIII ... XIX-XXIII ... XXIV-XXVIII ... XXIX-XXXIII
CANTO XXX
No
décimo compartimento são punidos outras espécies de falsários. Os
falsificadores de moedas, tornados hidrópicos, são constantemente atormentados
por furiosa sede; entre eles está mestre Adão de Brescia, o qual narra que, à
instigação dos condes Guidi, falsificou o florim de Florença. Os que falaram
falsamente são perseguidos por febre ardentíssima. O canto termina com uma
altercação entre mestre Adão e o grego Sinon. Virgílio repreende Dante pois
este pára, escutando as injúrias que os dois trocam entre si.
QUANDO
Juno, de Semele ciosa,
Contra
o sangue tebano se inflamava,
3
Como o provou por vezes impiedosa,
Tanta
insânia Atamante perturbava,
Que
a esposa ao ver, ao colo seu trazendo
6
Os filhos dois, que a ele encaminhava,
Gritou:
“Redes tendamos! Já stou vendo
Leoa
e leõzinhos da embosacada!”
9
Disse e, raivoso, os braços estendendo
De
um, Learco, travava e de pancada
Rodou-o
e o percutiu em penedia.
12
Ao mar lançou-se a mãe com outro abraçada
Quando
a fortuna a cinzas reduzia
A
pujança de Tróia, em tudo altiva,
15
E com seu reino o morto rei jazia,
Hécuba
triste, mísera, cativa,
Depois
de morta Polixena vira,
18
Do Polidoro seu em plaga esquiva,
Súbito
quando o corpo descobrira
Uivou
qual cão, de angústia possuída.
21
Tanto a pungente dor nalma a ferira!
Mas
em Tebas ou Tróia destruída
Homens
ou feras nunca revelaram
24
Raiva, em tantos extremos desmedida,
Como
almas duas lívidas, que entraram
Nuas
correndo, os dentes amostrando,
27
Quais cerdos, que à pocilga se esquivaram.
Uma
alcançou Capocchio e, lhe cravando
No
colo as presas, rábida, arrastava
30
Sobre o ventre na rocha o miserando.
Mas
o de Arezzo, que tremendo estava
“É
Gianni Schicchi” — disse — esse raivoso:
33
De outros a pena o seu furor agrava!”
“Possas
livrar-te do outro esp’rito iroso!”
Falei
— “Se não te causa assim fadiga,
36
Diz quem seja, antes de ir-se o furioso”.
“Aquele
é” — respondeu — “uma alma antiga;
É
Mirra infame, que paixão impia
39
Instigou ser do pai a sua amiga.
“Para
o seu crime consumar fingia
De
outra pessoa as formas e o semblante.
42
Igual ardil usara Schicchi um dia:
“Para
em prêmio alcançar égua farfante:
Contrafez
Buoso morto e ao testamento
45
Falso a norma legal deu, que é prestante”.
Aos
dois raivosos estivera atento
Até
que de ante os olhos se apartaram;
48
De outros volvi-me ao cru padecimento.
Num
do alaúde as formas se notaram
Se
as pernas lhe tivessem cerceado
51
Na parte, em que do tronco se separam.
Da
grave hidropisia molestado,
Que
tanto o humor vicia e tanto ofende,
54
Que o rosto estreita e faz o ventre inchado,
A
boca ter cerrada em vão pretende,
Qual
hético de sede ressequido.
57
A quem um lábio se alça e o outro pende.
“Ó
vós, que ao negro abismo haveis descido
(Não
sei por que razão) de pena isentos,
60
Olhai” — disse — “prestando atento ouvido,
“De
mestre Adam miséria e sofrimentos
Tive
abastança; agora, ai! desejando
63
De água uma gota, passo mil tormentos,
“Dos
ribeiros, que ao Arno, murmurando
Do
Casentino lá na verde encosta
66
Se vão, por moles álveos inclinando,
“Na
mente a imagem sempre tenho posta.
Não
em vão: mais me seca e me fustiga
69
Que o mal, de que esta face é descomposta.
“Quer
Justiça, que austera me castiga,
Que
o teatro, onde hei crimes cometido,
72
Mais me acendendo anelos, me persiga.
“Lá
demora Romena, onde hei fingido
Em
falso cunho a imagem do Batista;
75
Assim meu corpo o fogo há consumido.
“Se
a sombra achasse aqui, se aqui já exista,
De
Guido ou de Alexandre ou seu germano!
78
Fonte-Branda esquecera ante essa vista.
“Mas
um já veio, se induzir-me a engano
Os
raivosos, que giram, não quiseram.
81
Que importa? Para andar em vão me afano.
“Se
os meus pés transportar-me inda puderam,
De
um sec’lo ao cabo, espaço de uma linha,
84
Já postos a caminho se moveram,
“A
fim de o ver na multidão mesquinha
Do
val, que milhas onze em torno amplia,
87
Com largura, que de uma se avizinha.
“Star
lhes devo em tão triste companhia:
Florins
cunhei, aos três obedecendo,
90
Nos quais quilates três de liga havia”.
“Quem
são” — lhe disse — os dois que ora estou vendo?
Quais
no inverno mãos úmidas fumegam,
93
À destra tua próximos jazendo”.
“Já
stavam quando vim: eles se entregam,
Dês
que desci, a quietação completa;
96
E creio, assim a eternidade empregam.
“Uma
acusou José, falsária abjeta,
Outro
é Sinon, de Tróia o Grego tredo:
99
Lançam por febre essa fumaça infecta”.
Anojado
um do par, que estava quedo,
Por
ver em vozes tais afronta e ofensa,
102
À pança o punho lhe vibrou sem medo:
Soou,
qual de zabumba a pele tensa.
O
braço Mestre Adam lhe envia à face
105
E assim lhe dá condi’na recompensa.
“Inda
que” — disse — os membros meus enlace
Moléstia,
que me tolhe o movimento,
108
Presteza a destra tem, com que rechace”.
“Foste”
— o outro tornava — “mais que lento
Quando
forçado ao fogo caminhavas.
111
Só presto eras no ofício fraudulento”.
“É
certo; mas verdade não falavas”
O
hidrópico diz — “quando exigiram
114
Em Tróia essa verdade, que ocultavas”.
“Se
os lábios meus perjúrio proferiram,
Tu
falsaste moeda: eu fiz um crime,
117
Aos teus nunca em demônio iguais se viram”.
“Do
cavalo a façanha inda te oprime”
—
Responde o que a barriga tinha inchada —
120
Sobre o teu nome infâmia o mundo imprime”.
“Arda
em sede tua língua já gretada!”
Grita
o Grego — “Hajas de água saniosa
123
O ventre impando, a vista embaraçada!”
“Escancaras
a boca venenosa”
O
moedeiro diz — “por mal somente;
126
Se sede eu tenho e a pança volumosa
“Ardes
tu e a cabeça tens fervente.
Por
lamberes o espelho de Narciso
129
A um aceno correras de repente”.
Atento
estava aos dois mais do preciso,
Eis
Virgílio me fala: — “Oh! toma tento!
132
Quase que eu contra ti me encolerizo!”
Iroso
assim falar neste momento
O
Mestre ouvindo, voltei-me corrido:
135
Ainda sinto rubor em pensamento.
Como
quem sonha danos ter sofrido,
Que
em sonho espera que sonhando esteja
138
E anela que o que é já não tenha sido,
A
mente, sem dizer, falar deseja.
Desculpas
aspirando à falta sua;
141
Stá desculpada e cuida que o não seja.
“Menos
rubor lavara a culpa tua”
Disse
o Mestre — “se houvera mor graveza:
144
Fique-te a mente da tristeza nua.
“E
quando queira o acaso que à torpeza
De
iguais debates se ofereça ensejo.
De
que eu steja ao teu lado faz certeza,
148
Que é ter querendo ouvi-los, vil desejo”.
1-2.
Juno etc., por ciúme de Semele, tebana, mãe de Baco, vingou-se de toda a sua
estirpe, tornando louco a Atamante, rei de Tebas, o qual matou um dos filhos, e
no entanto a mulher com outro filho se lançou ao mar. — 16. Hécuba, viúva de
Príamo, ao ver mortos todos os seus filhos, pela dor foi transformada em
cadela. — 32. Gianni Schicchi, florentino, de acordo com o filho do morto,
fingiu-se de Buoso Donati moribundo, ditando o testamento. — 38. Mirra, filha
de Cinira, rei de Chipre, apaixonou-se pelo pai. — 61. Adam, de Brescia,
falsificador de moedas. — 77. Guido etc., dos condes Guidi, induziu mestre Adam
a falsificar o dinheiro de Florença. — 97. Falsária abjecta etc., mulher de
Putifar, que acusou injustamente a José. — 98. Sinon de Tróia, que com as suas
mentiras induziu os troianos a introduzirem na cidade o cavalo de madeira.
CANTO
XXXI
Dando
as costas ao oitavo círculo, caminham os Poetas para o centro, onde se abre o
poço pelo qual se desce ao nono. Em torno do poço estão os gigantes rebeldes,
cujas figuras horrendas Dante descreve. Um deles, Anteu, a pedido de Virgílio,
toma nos braços os dois poetas e suavemente os depõe sobre a orla do último
reduto internal.
A
LÍNGUA, que me havia vulnerado
E
a vergonha nas faces me acendera,
3
O bálsamo aplicava ao mal causado:
Assim
de Aquiles e seu pai fizera,
Dizem,
outrora a lança portentosa:
6
Sarava o corpo, que cruel rompera.
Damos
costas à estância desditosa,
Sem
proferir palavra atravessando
9
Sobre a borda, que em torno jaz fragosa.
Noite
não sendo e dia não reinando,
Pouco
distante eu divisar podia,
12
Eis som de trompa escuto, retumbando
Tão
alto, que o trovão transcenderia,
Donde
irrompera contra a parte andava
15
E sôfrego a um só ponto olhos prendia.
A
de Orlando tão forte não soava
Na
derrota fatal, que a santa empresa
18
De Carlos Magno o desbarato dava.
Já
assim por diante: eis a grandeza
De
muitas e altas torres me aparece.
21
“Qual é” — digo — “essa vasta fortaleza?”
“Pois
de tão longe e em trevas te apetece
Julgar”
— Virgílio diz — “um erro agora
24
Imaginando estejas acontece.
“Verás
ali chegado, sem demora,
Quanto
a distância a vista nos engana:
27
O passo acelerar convém por ora”.
Da
mão travou-me e em voz suave e lhana
O
Mestre prosseguiu: “Antes que avante
30
Passes, dessa ilusão te desengana.
“O
que torre imaginas é gigante.
Da
cinta aos pés imergem-se no poço,
33
E alçam bustos em torno ao espaço hiante”.
Quando
o sol gasta o nevoeiro grosso,
Pouco
a pouco se mostra e é discernido
36
Quanto oculta o vapor ao olhar nosso:
Vendo
assim por esse ar escurecido,
Da
borda mais e mais me apropinquando,
39
Fugia o erro, o horror tinha crescido.
Como
torres em roda se elevando,
Montereggion
guarnecem de coroa:
42
Assim do poço a margem circundando,
Torreiam
com metade da pessoa
Os
horríveis gigantes, que ameaça
45
Do céu ainda Jove, quando troa.
Distingo
a cara de um (e me transpassa
O
medo), logo os braços, peitos e parte
48
Do ventre, que da borda a altura passa.
Bem
fez a natureza, quando essa arte
De
tais monstros criar há descurado,
51
De iguais agentes desarmando Marte.
Se
ainda a selva e mar têm povoado
Do
elefante e baleia, sutilmente
54
Quem pensa justa e sábia a tem julgado.
Mal
seria aos humanos permanente,
Se
perspicaz engenho encaminhasse
57
Maligno instinto em robustez ingente.
Larga
e comprida, pareceu-me a face,
Qual
de S. Pedro, em Roma, a brônzea pinha:
60
A proporção nas outras partes dá-se.
O
corpo, que da borda acima vinha,
Tanto
ao ar elevava a grã figura,
63
Que três Frisões, por lhe atingir a linha
Da
cerviz, não fariam tanta altura,
Porquanto
eu esmava em trinta grande palmos
66
Do colo ao pescoço a válida estatura.
Rafael
mai amècch zabi almos
A
pavorosa boca assim bradava;
69
Não podia entoar mais doces salmos.
Disse-lhe
o Mestre: “Ó alma bruta e brava!
Tange
a trompa, se queres lenitivo
72
À paixão, que te acende ardente lava.
“A
roda busca do pescoço altivo
O
loro, a que se prende alma confusa!
75
Vê que te cruza o vasto peito esquivo”.
Depois
a mim: “De quanto fez se acusa,
É
Nemrod; por tomar estulta empresa
78
O mundo uma linguagem só não usa.
“Deixêmo-lo:
falar-lhe é vã despesa.
Como
idioma de outros não compreende,
81
A quem o escuta o seu move estranheza”.
Vamos
então caminho, que se estende
À
sestra. Outro, de besta quase a tiro,
84
Está mais fero, o ar mais alto fende.
Que
mão cativa o monstro, que admiro
Dizer
não sei: o seu direito braço
87
Ao dorso preso vi, e ao peito diro
O
outro, de grilhão no estreito laço,
Que
com círculos cinco lhe cercava
90
Do enorme corpo o descoberto espaço.
“Esse
réprobo” — diz Virgílio — “ousava
Medir
forças com Jove soberano:
93
Eis o fruto do orgulho, que o danava!
“Era
Efialto: executou seu plano,
Quando
aos Deuses gigantes aterraram.
96
Jamais os braços mover pode o insano”.
“Os
meus olhos, ó Mestre, assaz folgaram,
De
Briaréu se vissem desmarcado
99
As formas” vozes minhas lhe tornaram.
“Anteu
verás”, — me diz — muito afamado:
Stá
solto, fala e nos demora perto,
102
Há de ao fundo levar-nos de bom grado.
“Remoto
esse outro fica, e tem por certo
Que
em grilhões e estatura àquele iguala:
105
Mais fero em vulto, em mal é mais esperto”.
Jamais
um terremoto a torre abala
Em
convulsões tão rápido, tão forte,
108
Como Efialto a mover-se. Eu já sem fala,
Assombrado,
cuidei ter perto a morte;
E
de pavor sem dúvida expirara,
111
Se ele preso não fosse, e de tal sorte.
Presto
ao lugar seguimos, onde pára
Anteu:
fora a cabeça, em cinco braças
114
À borda sobreleva, o que separa.
“Tu,
que no val feliz, aonde as graças
E
as palmas de Cipião colheu da glória,
117
Quando Aníbal vexavam só desgraças,
“Mil
leões apresaste por memória;
Que,
aos irmãos se ajudaras na alta guerra,
120
Se crê triunfo registrasse a história
“Dos
fortes filhos da fecunda Terra!
Ao
fundo transportar-nos sê servido,
123
Onde ao Cocito o frio as águas cerra:
“Te
hemos a Tifo e a Tício preferido.
Dar
pode este varão o que mais se ama:
126
Curvando-te compraz ao seu pedido.
“No
mundo pode restaurar-te a fama,
Pois
vive e ainda longa vida espera,
129
Salvo se a Graça antes do tempo o chama”.
Falara
o Mestre. Anteu não considera:
Toma-o
logo nas mãos, que lesto of’rece
132
E a que sentira Alcide a força fera.
Quando
entre os dedos seus Virgílio vê-se,
Diz-me:
“Faze-te prestes, que eu te abrace!”
13S
Ao Mestre o meu querer pronto obedece.
Quem
Carisenda, em seu pendor olhasse,
Cuidara,
ao passar nuvem, que iminente
138
Ruína ao lado oposto ameaçasse:
Tal
Anteu parecia de repente
Do
corpo ao menear; quando o inclinava,
141
Estrada eu preferia diferente.
Mas
de leve no fundo nos pousava,
De
Judas e de Lúcifer assento.
A
postura deixando, que o dobrava,
145
Qual mastro empertigou-se num momento.
4-6.
Assim etc., a lança de Peleu e do seu filho Aquiles curava as feridas que
produzia. — 16-18. A de Orlando etc., a trompa de Orlando, ferido em
Roncisvalle foi ouvida a oito milhas de distância por Carlos Magno. — 41.
Montereggion, castelo do val d’Elsa. — 63. Prisões, habitantes da Frísia, de
elevada estatura. — 67. Rafael, etc., palavras cujo significado é ignorado [NE:
No original: «Raphèl mai amècche zabi almi”]. — 77. Nemrod, que edificou a
torre de Babel, da qual adveio a confusão das línguas. — 94. Efialto, um dos
gigantes que moveram guerra aos deuses. — 98. Briareu, gigante com cem mãos. —
100. Anteu, gigante que lutou com Hércules. — 124. Tifo e Tício, outros
gigantes. — 136. Carisenda, torre pendente de Bolonha.
CANTO
XXXII
Os
dois Poetas se encontram no círculo, em cujo pavimento de duríssimo gelo estão
presos os traidores. O círculo é dividido em quatro partes; na Caina, de Caim,
que matou o irmão, estão os traidores do próprio sangue; na Antenora, de
Antenor, troiano que ajudou os Gregos a conquistar Tróia, os traidores da
pátria e do próprio partido; na Ptoloméia, de Ptolomeu, que traiu Pompeu, os
traidores dos amigos; na Judeca, de Judas, traidor de Jesus, os traidores dos
benfeitores e dos seus senhores. Dante fala com vários danados, enquanto
atravessam o gelo procedendo para o centro.
SE
usasse rimas ásperas, rouquenhas,
Próprias
do poço lôbrego e tristonho,
3
Que do inferno sustém as outras penhas,
Melhor
idéia do lugar medonho
Dera;
mas tal vantagem me falece.
6
O meu conceito, pois, tímido exponho.
É
árdua empresa, em que o ânimo esmorece
O
centro descrever do mundo inteiro:
9
Para empenho infantil ser não parece.
Das
Musas se ajudar poder fagueiro,
Como
a Anfião em Tebas o mostraram,
12
Fiel serei dizendo e verdadeiro.
Ó
malfadada turba, a quem tocaram
Deste
abismo os castigos, bruto gado
15
Sendo, fados melhores te aguardaram.
Descidos
nós ao poço negregado
Das
plantas muito abaixo do gigante,
18
O alto muro mirava-lhe espantado,
Quando
ouvi: “Tem cuidado, ó caminhante!
Não
calques de irmãos teus desventurados
21
As frontes”. Eu, voltando-me, adiante
E
sob os pés, de um lago vi gelados
Os
planos tanto, que os dizer podia,
24
Não de água, de cristal, porém, formados.
Do
Danúbio a corrente não seria
Tanto
em Áustria no inverno enrijecida,
27
Nem do Tanais, na zona sempre fria.
Do
lago sobre a face empedernida
Caísse
ou Tambernich ou Pietrana:
30
Não fora ao peso enorme combalida.
Qual
rã, que no paul coaxando, ufana
Um
pouco emerge, enquanto a camponesa
33
Sonhando está que a respigar se afana:
Tais
gemiam as sombra na frieza
Té
a cintura lívidas, batendo,
36
Como a cegonha, os queixos com presteza.
Para
o seio a cabeça lhes pendendo,
Do
frio a boca indícios claros dava,
39
Nos olhos a tristeza está-se vendo.
Quando
atentei no quanto em roda estava,
Duas
vi aos meus pés, em tal abraço,
42
Que, travado, o cabelo se enleava.
“Quem
sois que os peitos nesse estreito laço
Apertais?”
— perguntei. Então, voltando
45
Os colos para trás, um curto espaço
Me
encararam; porém dos olhos quando
Lhes
brotavam as lágrimas, a neve
48
Cerrou-os entre os cílios as coalhando.
Nunca
dois lenhos tanto unidos teve
Cavilha:
eles, de irados, se investiram,
51
Quais capros, que a marrar o furor leve.
Terceiro,
a quem, geladas lhe caíram
As
orelhas, com rosto baixo fala:
54
“Por que teus olhos sôfregos nos miram?
“O
par desejas conhecer, que cala?
Próprio
lhes fora e ao genitor Alberto
57
O vale, onde o Bisênzio faz escala.
“De
um só ventre nasceram; tu, por certo,
Não
acharás mais di’nos em Caína,
60
De ter de gelo o vulto seu coberto,
“Nem
esse, a quem de Artus destra assassina
De
um bote o peito e a sombra transpassara;
63
Nem Focácia e o que a fronte agora inclina,
“A
vista me tolhendo, e se chamara
Mascheroni
Sassol, bem conhecido:
66
Se és Toscano, esse nome te bastara.
“Fique,
por vozes escusar, sabido
Que
Pazzi eu sou e que, em Carlin chegando,
69
Serei por menos criminoso havido”.
Mil
outros via roxos tiritando:
Desde
então de arrepios sou tomado
72
Ante gélidos vaus, este lembrando,
E
o centro demandando, em que firmado
Do
universo gravita todo o peso,
75
Trêmulo havia a treva eterna entrado,
Eis,
sem querer, da sorte ou por desprezo,
Entre
tantas cabeças caminhando,
78
A face de um calquei no gelo preso.
“Por
que me pisas?” reclamou chorando,
“De
Monte Aperti ao feito por vingança
81
Inda me estás desta arte molestando?
“Mestre,
espera-me aqui” — disse — “Me lança
Em
dúvida este mau: solvê-la quero.
84
Eu depois correrei, se houver tardança”.
Parou;
e ao pecador falei, que fero,
Duras
blasfêmias proferia agora:
87
“Quem és tu, que me increpas tão severo?”
“E
tu mesmo quem és, que na Antenora”
Tornou
— “dessa arte as faces me espezinhas?
90
Um vivo, certo, menos cru me fora”.
“Sou
vivo e posso entre as memórias minhas
Do
nome teu apregoar a fama”
93
Respondi — “se te aprazem louvaminhas”.
“Só
quer o olvido quem te fala” — exclama
“Vai-te!
De sobra já me estás molesto.
96
Aqui não cabe da lisonja a trama”.
Travei
da nuca ao pecador infesto
E
disse: — “Ou perderás todo o cabelo,
99
Ou quem tu foste me declara presto!”
“Mil
vezes podes arrancar-me o pêlo,
De
ver-me a face não terás o gosto
102
E de saber qual foi meu nome e apelo”.
As
mãos lhe havia no cabelo posto;
Da
guedelha uma parte arrepelara:
105
Ganindo ele abaixava sempre o rosto,
Quando
outro brada: “Ó, Boca, isso não pára?
Pois
os queixos bater não te é bastante?
108
Já lates! Que demônio em ti dispara?”
“Não
mais, ímpio traidor” — no mesmo instante
Respondo
— “exijo; o que de ti stou vendo
111
Contarei por te ser mais infamante”.
“Vai!
Se saíres deste abismo horrendo,
Quanto
queiras refere, do apressado,
114
Que de língua assim foi, não te esquecendo.
“Ouro
chora, que a França lhe há doado.
Eu
vi — podes dizer — Boso Duera
117
De outros muitos no gelo acompanhado.
“Se
perguntarem quem aqui mais era,
Olha
e terás ao lado Beccaria,
120
A quem Florença degolar fizera.
“Gian
del Soldanier, há pouco eu via
Além
com Ganellon e Tribaldello.
123
Que abriu Faenza, enquanto se dormia”.
Deixâmo-lo;
mas súbito de gelo
Postos
em furna vi dois condenados:
126
Cabeça de uma a de outra era cabelo.
Como
a pão se agarrando os esfaimados,
Por
cima um no outro os dentes aferrava
129
Onde a cerviz e o crânio estão ligados.
Qual
Tideu, que a dentadas lacerava
De
Menalipo a fronte enraivecido,
132
Ele o cérebro e os ossos mastigava.
“Tu,
que, de ódio tão sevo possuído,
Te
encarniças feroce no inimigo,
135
“Dize — exclamo — por que foi produzido.
“Se
eu souber que a justiça está contigo
E
houver da culpa e réu conhecimento,
No
mundo a compensar-te ora me obrigo,
139
Se não perder a língua o movimento”.
11.
Anfião, foi auxiliado pelas Musas na edificação dos muros de Tebas. — 27.
Tanais, o rio Don, na Rússia. — 55-60. O par etc, filhos de Alberto degli
Alberti, os quais brigaram e se mataram reciprocamente. — 61. Nem esse Mordrec,
filho do rei Artur, morto pelo pai. — 63. Focaia, dei Cancellieri matou alguns
parentes do partido inimigo. — 65. Mascheroni Sassuol, florentino, assassinou
traiçoeiramente um seu primo. — 68. Pazzi, Comicion dei Pazzi matou o seu primo
Ubertino. — Carlin, Carlino dei Pazzi traiu os seus companheiros, entregando
várias fortalezas aos florentinos Negros. — 88. Antenora, onde são punidos os
traidores da pátria, de Antenor, troiano, que favoreceu os gregos que sitiavam
Tróia. — 106. Boca, Bocca degli Abati, na batalha de Montaperti (1260) causou a
derrota dos florentinos, passando ao inimigo. — 116. Boso Duera, traiu o rei
Manfredo, por ter recebido dinheiro de Carlos d’Anjou. — 119. Beccaria, de
Pavia, legado pontifício na Toscana, foi decapitado pelos florentinos, na
suposição de ter favorecido os gibelinos. — 121. Gian del Soldanier, gibelino,
que em 1266 chefiou uma rebelião em Florença. — 122. Ganellon, Gano de Mogunça,
traidor de Carlos Magno. — Tribaldello, faentino, traiu a sua cidade natal
Faenza.
CANTO
XXXIII
O
conde Ugolino della Gherardesca conta a Dante a sua trágica morte na torre dos
Gualandi. Na Ptoloméia o Poeta encontra o frade Alberico de Manfredi, o qual
lhe explica que a alma dos traidores cai no Inferno logo depois de consumada a
traição e que um diabo toma conta do corpo até chegar o tempo do seu fim no mundo.
DO
fero cevo os lábios desprendendo,
Na
coma o pecador os enxugava
3
Desse crânio, a que estava atrás roendo.
“Queres
de infanda mágoa” — começava —
Renove
a dor, que, só pensando a mente,
6
Antes que falte, o coração me agrava.
“Mas
se a voz minha deve ser semente,
Que
ao traidor, que eu devoro a infâmia brote.
9
Falar, chorar, verás conjuntamente.
“Não
sei quem sejas, não sei como note
Tua
presença aqui, por Florentino
12
Te ouvindo a língua, é força que te adote.
“Saber
deves que fui Conde Ugolino,
Que
Arcebispo Rogério aquele há sido:
15
Direi qual nos juntou cruel destino.
“Contar
não hei mister como iludido
Por
minha confiança, em cárcer posto.
18
Fui morto por maldade deste infido.
“Não
conheces, porém, que atroz desgosto
O
meu fim precedera: atenção presta,
21
Quanto ofendido fui verás exposto.
“Por
vezes da prisão por breve fresta,
Torre
da fome — após o meu tormento,
24
Que há de a outros ainda ser funesta
“Brilhava
a lua em pleno crescimento,
Quando
o véu do futuro horrível sonho
27
Rasgou, do exício meu pressentimento.
“Este,
como senhor, então suponho
Ao
monte, que ver Lucca a Pisa obstava
30
Lobo e pequenos seus correr medonho.
“Magros
cães, destros, feros açulava
Dos
Galandis, Sismondis e Lanfrancos
33
A companha, que à frente cavalgava.
“Em
breve o pai e os filhos, lassos, mancos,
Já
dos famintos galgos mal feridos,
36
Dar pareciam últimos arrancos.
“Desperto
ao primo alvor; dos meus queridos
Filhos
que eram comigo, choro soa:
39
Pedem pão, stando ainda adormecidos.
“És
cruel, se a tua alma não magoa
O
prenúncio da dor, que me aguardava:
42
Se não choras, que pena há que te doa?
“Despertaram;
e a hora já chegava
Em
que alimento escasso nos traziam:
45
O sonho a cada qual nos aterrava.
“Da
horrível torre à porta então se ouviam
Martelos
cravejar: eu mudo e quedo
48
Nos filhos encarei, que esmoreciam.
“Não
chorava; era o peito qual penedo.
Choravam
eles, e Anselmuccio disse:
51
Assim nos olhas, pai? Do que hás tu medo?”
“Nem
lágrimas, nem voz dei, que se ouvisse,
No
dia e noite, que seguiu-se lenta,
54
Até que ao mundo novo sol surgisse.
“Quando
a luz inda escassa se apresenta
No
doloroso carcer, meu semblante
57
Nos quatro rostos seus se representa.
“Mordi-me
as mãos de angústia delirante.
Eles,
cuidando ser a fome o efeito,
60
De súbito e com gesto suplicante,
“Disseram:
“Menos mal nos será feito
Nutrindo-te
de nós, pai; nos vestiste
63
Desta carne: ora sirva em teu proveito”.
“Contendo-me,
evitei lance mais triste.
Em
silêncio dois dias se passaram. ..
66
Ah! por que, terra esquiva, não te abriste?
“Do
quarto dia os lumes clarearam:
Gaddo
caiu-me aos pés desfalecido:
69
“Pai me acode!” os seus lábios murmuraram.
“Morreu;
e, qual me vês, eu vi, perdido
O
sizo, os três, ao quinto e ao sexto dia,
72
Um por um se extinguir exinanido.
“Apalpando
os busquei — cego os não via
Dois
dias, os seus nomes repetindo:
75
Da fome mais que a dor, pôde a agonia”.
Calou-se
e os torvos olhos retorquindo,
Como
de antes cravou no crânio os dentes
78
E os ossos, qual mastim, foi destruindo.
Ah!
Pisa, opróbrio aos povos residentes
Na
bela terra, onde o si ressona!
81
Pois te não vêm punir vizinhas gentes.
Presto
a Capraia mova-se e a Gorgona
Do
Arno à foz, entupindo-lhe a saída
84
Teu povo assim pereça, que se entona.
E
se foi a Ugolino atribuída
De
entregar teus castelos à maldade,
87
Por que à prole em tal cruz tirar a vida?
Tebas
moderna! Pela tenra idade
Ugoccione
e Briga tá insontes eram
90
E os irmãos, em que usaste a feridade.
Seguindo
além, os olhos se of’receram
Outros,
que em gelo têm duro tormento:
93
Destes os rostos para trás penderam.
Lhes
causa o pranto ao pranto impedimento;
E
a dor, que desafogo em vão procura,
96
Lhes cresce, recalcada, o sofrimento.
As
lágrimas coalhando em neve dura
Formam
nos olhos seus vítrea viseira,
99
E todo o espaço interior se obtura.
Conquanto
quase a faculdade inteira
De
sentir no meu rosto se embotasse
102
Dês que era nessa perenal geleira,
Cuidei
que um sopro me tocara a face.
“Do
que este sopro” — inquiro — “se origina?
105
Se aqui não há vapor, donde ele nasce?”
E
o Mestre: “Irás onde a resposta di’na
Os
teus olhos darão; e ali chegando
108
O que virem do sopro a causa ensina”.
Dos
tristes padecentes um gritando,
Nos
disse: “Almas cruéis, almas danadas
111
(Pois que no extremo abismo estais penando)
“Tirai-me
aos olhos gélidas camadas,
Por
desafogo dar-me ao peito aflito,
114
Antes de eu ter as lágrimas coalhadas”.
“Se
o lenitivo queres, que tens dito,
Teu
nome diz: se não me desobrigo,
117
Desça eu do gelo ao pelágio maldito”.
Respondeu
logo: “Eu sou frei Alberigo,
Pelos
pomos famoso do mau horto:
120
Aqui recebo tâmara por figo”.
“Oh!”
— disse — “porventura tu stás morto?”
“Não
sei como é meu corpo lá no mundo”,
123
Tornou “e se vivendo tem conforto.
“Este
condão possui sem ter segundo
Ptoloméia:
aqui star alma é freqüente
126
Antes que a mande Atropos ao profundo.
“E
por que mais de grado e prontamente
Estas
vidradas lágrimas romovas,
129
Sabe que apenas de traição a mente
“Inquina-se,
como eu, por funções novas
Passa
o corpo a demônio, que o governa
132
Té completar da vida últimas provas:
“Rui
a alma, entanto, à lôbrega cisterna,
Talvez
na terra folgue o corpo ledo,
135
Cuja sombra após mim trêmula inverna.
“Se
és recém-vindo, sabe que esse tredo
É
Branca d’Ória: há prolongados anos
138
Jaz enleado no infernal enredo”.
“Este
é” tornei “mais um dos teus enganos:
Desfruta
alegre Branca d’Ória a vida
141
E come e bebe e dorme e veste panos”.
“Dos
Malebranche em cava denegrida,
Não
era“ disse ainda “em pez viscoso
144
Alma de Miguel Zanche submergida,
“E
um demônio esse infame criminoso
Deixou
no corpo; o mesmo um seu parente,
147
Que de traição foi sócio proveitoso.
“Das
mãos auxílio presta ora clemente,
Me
abrindo os olhos!” Tal não fiz; que errara
150
Com tal vilão me havendo cortesmente.
Ah!
Genoveses! raça impura e avara,
Que
nos costumes tem mancha tamanha!
153
Quem da face da terra vos lançara!
Junto
ao pior esp’rito da Romanha
De
entre vós um traidor vi tanto imundo,
Que
a alma sua em Cocito já se banha,
157
Enquanto o corpo vida finge ao mundo.
13.
Conde Ugolino, della Gherardesca, de Pisa, foi acusado pelo arcebispo de Pisa,
Ruggiero degli Ubaldini, de ter traído a sua cidade natal. Preso com dois
filhos e dois netos numa torre, onde todos morreram de fome. — 29. Monte, San
Giuliano, entre Pisa e Luca. — 32. Galandis etc., famílias pisanas. — 118. Frei
Alberigo, Manfredi, de Faenza, convidou dois parentes seus a comerem na sua
casa e, no fim do jantar, ao pedir que trouxessem a fruta, os criados
penetraram na sala e mataram os hóspedes. — 137. Branca d’Ória, genovês,
convidou o sogro Miguel Zanche a comer em sua casa e matou-o para usurpar o
castelo de Logodoro.
CANTO
XXXIV
Na
Judeca estão os traidores dos seus senhores e benfeitores. No meio está
Lúcifer, que com três bocas dilacera três entre os mais horrendos pecadores: de
um lado Judas, do outro Bruto e Cássio, que mataram a Júlio César. Virgílio, ao
qual Dante se agarra, desce pelas costas peludas de Lúcifer até o centro da
terra. Dai seguindo o murmúrio de um regato, saem e avistam as estrelas no
outro hemisfério.
VEXILIA
regis prodeunt inferni
Contra
nós; pra diante os olhos tende
3
Disse o Mestre, se a vista já discerne”.
Como
quando no ar névoa se estende,
Ou
ao nosso hemisfério a noite desce,
6
Um moinho distante a atenção prende.
Um
edifício igual verme parece.
Tanto
era o vento, que eu busquei guarida
9
Atrás do Mestre, que outra não se of’rece.
À
parte era chegado, onde imergida
Cada
alma em gelo está (tremo escrevendo),
12
Bem como aresta no cristal contida.
Erguidas
umas stão, outras jazendo
Qual
sobre a fronte ou sobre os pés firmada
15
Qual com seus pés o rosto arco fazendo.
Quando
distância tal foi superada,
Que
aprouve ao Mestre me tornar patente
18
A criatura bela ao ser formada,
Se
afastando de mim, disse: “Detém-te!
Eis
Satanás! Eis o lugar horrendo
21
Em que deves te armar de esforço ingente!
Quanto
assombrei-me aquele aspecto vendo
Não
inquiras leitor: não te expressara
24
Com verbo humano o que encarei tremendo.
Não
morto, porém vivo não ficara.
Qual
me achava te pinte a fantasia,
27
Se morte ou vida em mim se não depara!
Do
aflito reino o imperador eu via:
Do
gelo acima o seio levantava.
30
A um gigante igualar eu poderia,
Se
um gigante a um seu braço eu comparava!
Do
todo vede a proporção qual fora,
33
Quando tão vasta a parte se ostentava!
Quem
foi tão belo, quanto é feio agora,
Contra
o seu criador a fronte alçando
36
Vera causa é do mal, que o mundo chora.
Qual
meu espanto há sido em contemplando
Três
faces na estranhíssima figura!
39
Rubra cor na da frente está mostrando;
Das
outras cada qual, da pádua escura
Surdindo,
às mais ajunta-se e se ajeita
42
Sobre o crânio da infanda criatura.
Entre
amarela e branca era a direita;
A
cor a esquerda tem que enluta a gente
45
Do Nilo às margens a viver afeita.
Via
asas duas sob cada frente,
Tão
vastas, quanto em ave tal convinham:
48
Velas iguais não abre nau potente.
Plumas,
como em morcego, elas não tinham;
De
contínuo agitadas produziam
51
Os três gélidos ventos, que mantinham
Os
frios, que o Cocito enrijeciam.
Chorava
por seis olhos, por três mentos
54
Pranto e sangüínea espuma se espargiam.
Qual
moinho, com dentes truculentos
Cada
boca um prexito lacerava:
57
Padecem três a um tempo assim tormentos.
Mas
ao da frente a pena se agravava,
Porque
das garras o furor constante
60
Do dorso a pele ao pecador rasgava.
“O
que esperneia em dor mais cruciante”
O
Mestre disse: “É Juda Iscariote:
63
Prende a cabeça a boca devorante.
“Dos
dois, que estão pendendo, coube em dote
A
negra face Bruto: sem gemido
66
Se estorce da dentuça a cada bote.
“O
outro é Cássio, de membros bem fornido.
Mas
a partir a noite insta, assomando:
69
Aqui já tudo havemos conhecido”.
Do
Mestre o colo enlaço por seu mando.
Ele
em lugar e tempo apropriado,
72
De Lúcifer as asas se alargando,
Ao
peito hirsuto havia-se agarrado;
Depois
de velo em velo descendia
75
Entre os ilhais e o lago congelado.
Chegado
àquela parte, em que se unia
Da
coxa o extremo dos quadris à altura,
78
Com grande ofego e mor abalo o Guia
Pôr
a fronte onde os pés firmou procura,
Como
quem sobe às crinas agarrado:
81
Assim tornar cuidei do inferno à agrura.
“Segura-te!
Por tais degraus alado”
Lasso
Virgílio já disse anelante,
84
“Deste império do mal serás tirado”.
De
uma rocha então sai por fresta hiante;
Sobre
a borda me assenta cauteloso;
87
Depois a mim se acerca vigilante.
Olhos
alcei julgando curioso
Ver
Lúcifer, qual de antes o deixara;
90
De pernas para o ar vi-o em seu pouso!
De
que enleio a minha alma se tomara,
Deixo
ao vulgo pensar pouco instruído,
93
Que o ponto não compreende, em que eu passara.
“Eia!
Vamos!” o Mestre diz querido,
“Longa
jornada e mau caminho temos;
96
E a meia terça o sol já tem corrido”.
De
paço em salas nós de andar não temos;
Mas
de antro natural em solo duro
99
Os passos nossos dirigir devemos.
“Antes
que eu deixe em todo o abismo escuro
Erro,
em que estou, meu Mestre, desvanece”
102
Disse erguendo-me um pouco mais seguro.
“Onde
o gelo? Por que nos aparece
Assim
Lúcifer posto? E já tão presto,
105
Cessando a noite, o sol nos esclarece?”
“Tu
cuidas ser, do que ouço é manifesto
Lá
no centro, onde ao pêlo me prendera
108
Do que atravessa o mundo, verme infesto.
“Ali
stiveste, enquanto descendera
Ao
voltar-me do ponto além tens sido,
111
Que o peso atrai na terreal esfera.
“Foste
àquele hemisfério transferido,
Que
se opõe ao que a terra está lançado,
114
Em cujo excelso cume há padecido;
“Quem
nasceu, quem viveu sem ter pecado
Sobre
uma esfera estreita os pés agora,
117
Da Judeca ao reverso, tens firmado.
“É
noite lá; nós temos luz nesta hora;
E
o que nos velos seus nos deu a escada
120
Na postura se firma, em que antes fora.
“Caiu
aqui da altura sublimada,
E
a terra, que se alçava entumescente,
123
Do mar fez véu e veio de enfiada
“Para
o nosso hemisfério de repente.
Também
fugiu de medo, a que se avista;
126
Vácuo deixando aqui, fez monte ingente”.
Lá
no profundo há um lugar, que dista
Tanto
de Belzebú, quanto se estende
129
Seu sepulcro: ali não penetra a vista.
Revela-o
som de arroio, que descende
Por
brecha do rochedo, que escavara,
131
Em torno serpeando, e pouco pende.
Para
voltar do mundo à face clara
Nessa
vereda escusa penetramos:
135
De nós nenhum de repousar cuidara.
Virgílio
e eu, logo após, nos elevamos,
Té
que do ledo céu as cousas belas
Por
circular aberta divisamos:
139
Saindo a ver tornamos as estrelas.
1.
Vexilas etc. — Aparecem os vexilos do rei do Inferno. É o primeiro verso de um
hino da Igreja. — 38. Três faces etc., Lúcifer tem três faces em contraposição
à Trindade divina. — 62. Juda Iscariote, que traiu Jesus. — 65-67. Bruto e
Cássio, que mataram Júlio César. — 80. Como quem sobe etc. Passado o centro da
terra, Virgílio para encaminhar-se ao hemisfério oposto deve subir e não mais
descer. — 113-15. Que se opõe etc., ao hemisfério que cobre a terra em cujo
cume (Jerusalém) foi crucificado Jesus Cristo. — 130. Arroio, o rio Lete que
desce do Purgatório. — 137. As cousas belas, as estrelas que Dante percebia da
pequena abertura a que chegaram.
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