Salmo 1

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João Calvino

Quem quer que tenha feito a coletânea dos Salmos em um só volume, seja

Esdras ou alguma outra pessoa, parece ter colocado este Salmo no início à

guisa de prefácio, no qual o autor inculca a todos os piedosos o dever de se

meditar na lei de Deus. A suma e substância de todo o Salmo consistem em

que são bem-aventurados os que aplicam seus corações a buscar a sabedoria

celestial; ao passo que, os profanos desprezadores de Deus, ainda que por

algum tempo se julguem felizes, por fim terão o mais miserável fim.

[vv. 1, 2]

Bem-aventurado é o homem que não anda no conselho dos ímpios, nem se detém na vereda

dos pecadores, nem se assenta junto com os escarnecedores. Seu deleite, porém, está na lei de

Jehovah; e em sua lei medita dia e noite.

1. Bem-aventurado é o homem.1 A intenção do salmista, segundo expressei

acima, é que tudo estará bem com os devotos servos de Deus, cuja incansável

diligência é fazer progresso no estudo da lei divina. Já que o maior contingente

do gênero humano vive sempre acostumado a escarnecer da conduta dos

santos como sendo mera ingenuidade e a considerar seu labor como sendo

total desperdício, era de suma importância que o justo fosse confirmado na

vereda da santidade, pela consideração da miserável condição de todos os

homens destituídos da bênção de Deus e da convicção de que Deus a

ninguém é favorável senão àqueles que zelosamente se devotam ao estudo da

verdade divina. Além do mais, como a corrupção sempre prevaleceu no

mundo, a uma extensão tal que o caráter geral da vida humana nada mais é

senão um perene afastar-se da lei de Deus, o salmista, antes de declarar a

ditosa sorte dos estudantes da lei divina, os admoesta a se precaverem para

não se deixar levar pela impiedade da multidão que os cerca. Começando com

uma declaração que revela sua aversão pelos perversos, ele nos ensina quão

impossível é para alguém aplicar sua mente à meditação da lei de Deus, se

antes não recuar e afastar-se da sociedade dos ímpios. Eis aqui sem dúvida

uma admoestação em extremo necessária; porquanto vemos quão

1 Na Septuaginta, a redação é: makariov ajnhr, bem aventurado é o homem. Tanto Calvino quanto

nossos tradutores de língua inglesa adotaram essa redação. Mas a palavra hebraica yrsa, ashre, traduzida

por bem-aventurado, está no plural, enquanto que syah, há-ish, o homem, está no singular.

Consequentemente, as palavras foram traduzidas como uma exclamação, e podem ser expressas

literalmente assim: Oh, bem-aventurança do homem! uma bela e enfática forma de expressão.

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irrefletidamente os homens se precipitam nas armadilhas de Satanás; no

mínimo, quão poucos, comparativamente, há que se protegem contra as

fascinações do pecado. Para que vivamos plenamente conscientes dos perigos

que nos cercam, necessário se faz recordar que o mundo está saturado de

corrupção mortífera, e que o primeiro passo para se viver bem consiste em

renunciar a companhia dos ímpios, de outra sorte é inevitável que nos

contaminemos com sua própria poluição.

Como o profeta, em primeiro lugar, prescreve aos santos precaução

contra as tentações para o mal, seguiremos a mesma ordem. Sua afirmação, de

que é bem-aventurado quem não se enleia com os ímpios, é o que o comum

sentimento e opinião do gênero humano dificilmente admitirá; pois enquanto

todos os homens naturalmente desejam e correm após a felicidade, vemos

com quanta determinação se entregam a seus pecados; sim, todos aqueles que

se afastam ao máximo da justiça, procurando satisfazer suas imundas

concupiscências, se julgam felizes em virtude de alcançarem os desejos de seu

coração. O profeta, ao contrário, aqui ensina que ninguém pode ser

devidamente encorajado ao temor e ao serviço de Deus, e bem assim ao

estudo de sua lei, sem que, convictamente, se persuada de que todos os ímpios

são miseráveis e que os que não se afastam de sua companhia se envolverão

na mesma destruição a eles destinada. Como, porém, não é fácil evitar os

ímpios com quem estamos misturados no mundo, sendo-nos impossível

distanciar-nos totalmente deles, o salmista, a fim de imprimir maior ênfase à

sua exortação, emprega uma multiplicidade de expressões.

Em primeiro lugar, ele nos proíbe de andarmos em seu conselho; em

segundo lugar, de determo-nos em sua vereda; e, finalmente, de assentarmo-nos junto

deles.

A suma de tudo é: os servos de Deus devem diligenciar-se ao máximo

por cultivar aversão pela vida dos ímpios. Como, porém, a habilidade de

Satanás consiste em insinuar seus embustes, de uma forma muito astuta, o

profeta, a fim de que ninguém se deixe insensivelmente enganar, mostra como

paulatinamente os homens são ordinariamente induzidos a desviar-se de seu

reto caminho. No primeiro passo, não se precipitam em franco desprezo a

Deus; mas, tendo uma vez começado a dar ouvidos ao mau conselho, Satanás

os conduz, passo a passo, a um desvio mais acentuado, até que se lançam de

ponta cabeça em franca transgressão. O profeta, pois, começa com conselho,

termo este, a meu ver, significando a perversidade que ainda não se

exteriorizou abertamente. A seguir ele fala de vereda, o que deve ser tomado no

sentido de habitual modo ou maneira de viver. E coloca no ápice da ilustração

o assento, uma expressão metafórica que designa a obstinação produzida pelo

hábito de uma vida pecaminosa. Da mesma forma, também, devem-se

entender os três verbos: andar, deter e assentar. Quando uma pessoa anda

voluntariamente em consonância com a satisfação de suas corruptoras

luxúrias, a prática do pecado o enfatua tanto que, esquecido de si mesma, se

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torna cada vez mais empedernida na perversidade, o que o profeta denomina

de deter-se no caminho dos pecadores. Então, por fim, segue-se uma desesperada

obstinação, a qual o profeta expressa usando a figura assentar-se. Se porventura

existe a mesma gradação nas palavras hebraicas Myesr, reshaim, Myajx, chataim

e Myul, letsim, ou seja, um aumento gradual do mal, deixo a critério de outrem.

A meu ver, tudo indica que não há, a não ser, talvez, na última palavra. Pois

aqueles que se denominam de escarnecedores, tendo-se desfeito de todo o

temor de Deus, cometem pecado sem qualquer restrição, na esperança de

escapar impunemente, e sem compunção ou temor se divertem do juízo de

Deus como se jamais houvesse um dia em que serão chamados a prestar-lhe

contas. O termo hebraico Myajx, chataim, significando a perversidade franca, é

mui apropriadamente associado ao termo vereda, o qual significa uma professa

e habitual maneira de viver. Ora, se nos dias do salmista necessário se fazia

que os devotos adoradores de Deus evitassem a companhia dos ímpios, a fim

de manterem sua vida bem estruturada, quanto mais no tempo presente,

quando o mundo se transformou em algo muitíssimo mais corrupto, nosso

dever é evitar criteriosamente todas as ameaças da sociedade, para que nos

conservemos incontaminados de todas as suas impurezas. O profeta, contudo,

não só prescreve aos fiéis que se mantenham à distância dos ímpios, temendo

ser contaminados por eles, senão que sua admoestação implica ainda que cada

um seja prudente, a fim de que não se corrompa e nem se entregue à

impiedade. Mesmo que uma pessoa não tenha ainda contraído todo o

aviltamento provindo dos maus exemplos, no entanto é possível que se

assemelhe aos perversos, ao imitar espontaneamente seus hábitos corruptos.

No segundo versículo, o salmista não declara simplesmente ser bemaventurado

aquele que teme a Deus, como faz em outros passos, senão que

designa o estudo da lei como sendo a marca da piedade, nos ensinando que

Deus só é corretamente servido quando sua lei for obedecida. Não se deixa a

cada um a liberdade de codificar um sistema de religião ao sabor de sua

própria inclinação, senão que o padrão de piedade deve ser tomado da Palavra

de Deus. Quando Davi, aqui, fala da lei, não se deve deduzir como se as

demais partes da Escritura fossem excluídas, mas, antes, visto que toda a

Escritura outra coisa não é senão a exposição da lei, ela é como a cabeça sob a

qual se compreende todo o corpo. O profeta, pois, ao enaltecer a lei, inclui

todo o restante dos escritos inspirados. É mister, pois, que ele seja

compreendido como a exortar os fiéis a meditarem também nos Salmos. Ao

caracterizar o santo se deleitando na lei do Senhor, daí podemos aprender que a

obediência forçada ou servil não é de forma alguma aceitável diante de Deus,

e que só são dignos estudantes da lei aqueles que se chegam a ela com uma

mente disposta e se deleitam com suas instruções, não considerando nada

mais desejável e delicioso do que extrair dela o genuíno progresso. Desse

amor pela lei procede a constante meditação nela, o que o profeta menciona na

última cláusula do versículo; pois todos quantos são verdadeiramente

impulsionados pelo amor à lei devem sentir prazer no diligente estudo dela.

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[v. 3]

Ele será como uma árvore plantada junto a ribeiros de águas, que produz seu fruto

na estação própria, cujas folhas não murcharão, e tudo quanto faz prosperará.

Aqui, o salmista ilustra, e ao mesmo tempo confirma pelo uso de

metáfora, a afirmação feita no versículo precedente; pois ele mostra em que

sentido os que temem a Deus são considerados bem-aventurados, ou seja, não

porque desfrutem de evanescente e infantil alegria, mas porque se encontram

numa condição saudável. Há nas palavras um contraste implícito entre o vigor

de uma árvore plantada num sítio bem regado e a aparência decaída de uma

que, embora viceje prazenteiramente por algum tempo, no entanto logo

murcha em decorrência da aridez do solo em que se acha plantada. Com

respeito aos ímpios, como veremos mais adiante [Salmo 37.35], eles são às

vezes como “os cedros do Líbano”. Desfrutam de uma prosperidade tão

exuberante, tanto de riquezas quanto de honras, que nada parece faltar-lhes

para sua presente felicidade. Não obstante, quanto mais alto se ergam e

quanto mais expandam por todos os lados seus galhos, uma vez não

possuindo raízes bem fincadas no chão, nem ainda suficiente umidade da qual

venha a derivar seus nutrientes, toda a sua beleza se esvai e desaparece.

Portanto, é tão-somente pela bênção divina que alguém pode permanecer

numa condição de prosperidade. Os que explicam a figura dos fiéis produzindo

seu fruto na estação própria, significando que sabiamente discernem quando uma

coisa deve ser feita, até onde pode ser bem feita, em minha opinião revela

mais sutileza do que bom senso, impondo às palavras do profeta um sentido

que ele jamais pretendeu. Obviamente, sua intenção nada mais nada menos

era que os filhos de Deus vicejam constantemente, e são sempre regados com

as secretas influências da graça divina, de modo que tudo quando lhes suceda

é proveitoso para sua salvação. Enquanto que, em contrapartida, os ímpios

são arrebatados pelas repentinas tempestades ou consumidos pelo escaldante

calor. E ao dizer: produz seu fruto na estação própria,2 ele expressa o pleno

sazonamento do fruto produzido, ao passo que, embora os ímpios aparentem

precoce fecundidade, contudo nada produzem que conduza à perfeição.

[v. 4]

Os ímpios não são assim; são, porém, como a palha que o vento dispersa.

O salmista bem poderia, com propriedade, ter comparado os ímpios a

uma árvore que rapidamente murcha, à semelhança de Jeremias que os

compara ao arbusto que cresce no deserto [Jr 17.6]. Considerando, porém,

que tal figura não era suficientemente forte, ele os avilta ainda mais,

empregando uma outra [figura] que os exibe por um prisma que os torna

ainda mais desprezíveis. E a razão é porque ele não mantém seus olhos postos

na condição de prosperidade da qual se vangloriam por um curto tempo, mas

2 “E produziu todo o seu produto para a maturidade” – (Street’s New Literal Version of the Psalms).

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sua mente pondera seriamente na destruição que os aguarda e que, finalmente,

os surpreenderá. Portanto, eis o significado: embora os ímpios vivam no

momento prosperamente, todavia vão paulatinamente se transformando em

palha; pois quando o Senhor os derribar, ele os arrojará de um lado para o

outro com sua fulminante ira. Além disso, com essa forma de falar, o Espírito

Santo nos ensina a contemplarmos com os olhos da fé o que de outra forma

nos pareceria incrível; pois ainda que o ímpio se eleve e surja de forma

sobranceira, à semelhança de uma árvore imponente, que descansemos certos

de que ele será com a palha ou o refugo, sabendo que no devido tempo Deus

o arrojará da alta posição em que se encontra, com o sopro de sua boca.

[v. 5, 6]

Portanto, os ímpios não prevalecerão no juízo nem os pecadores, na congregação dos

justos. Porque Jehovah conhece o caminho dos justos; mas o caminho dos ímpios

perecerá.

No quinto versículo, o profeta ensina que uma vida feliz depende de

uma sã consciência, e que, portanto, não é de admirar que o ímpio de repente

se veja sem aquela felicidade que julgara possuir. E há implícita nas palavras

uma espécie de concessão: o profeta tacitamente reconhece que os ímpios se

deleitam e desfrutam e triunfam durante o reinado da desordem moral do

mundo; justamente como os ladrões se regalam nas florestas e esconderijos

enquanto se vêem fora do alcance da justiça. Ele nos assegura, porém, que as

coisas nem sempre correrão bem em seu presente estado de confusão, e que

quando forem reduzidas ao seu real estado, tais pessoas ímpias se verão

inteiramente privadas de seus prazeres e perceberão que foram enfatuadas

imaginando ser felizes. E assim percebemos que o salmista apresenta o ímpio

como sendo um ser miserável, visto a felicidade ser uma bênção interior

procedente de uma sã consciência. Ele não nega que, antes que compareçam a

juízo, todas as coisas foram bem sucedidas com eles; mas nega que sejam de

fato felizes, a menos que tenham substancial e inabalável integridade de

caráter para se manterem; pois a genuína integridade dos justos se manifesta

quando ela finalmente é provada. É deveras verdade que o Senhor exerce

juízo diariamente, quando faz distinção ente os justos e os perversos; visto,

porém, que isso só é feito parcialmente nesta vida, devemos olhar mais alto se

desejamos ver a assembléia dos justos, da qual se faz menção aqui.

Mesmo neste mundo, a prosperidade dos ímpios começa a escoar-se

assim que Deus manifesta os emblemas de seu juízo (porque, sendo despertos

do sono, são constrangidos a reconhecerem, queiram ou não, que não têm

qualquer parte na assembléia dos justos); visto, porém, que isso nem sempre

se concretiza em relação a todos os homens, no presente estado, devemos

pacientemente esperar o dia da revelação final, quando Cristo separará as

ovelhas dos cabritos. Ao mesmo tempo, devemos ter como verdade geral o

fato de que os ímpios estão destinados à miséria; pois suas próprias

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consciências os condenam em virtude de sua perversidade; e, assim que forem

convocados a prestar contas de sua vida, seu sono será interrompido, e então

perceberão que estiveram meramente sonhando quando acreditavam ser

felizes, sem visualizar em seu interior o real estado de seus corações.

Além do mais, as coisas, aqui, parecem ser atiradas à mercê da sorte, e

como não nos é fácil, no meio da confusão prevalecente, reconhecer a ver do

que o salmista havia dito, ele, pois, apresenta, para nossa consideração, o

grande princípio de que Deus é o Juiz do mundo. Isso concedido, segue-se

que não pode haver outra sorte para o reto e o justo senão o bem-estar,

enquanto que, em contrapartida, outra sorte não está reservada ao ímpio

senão a mais terrível destruição. De acordo com toda a evidência externa, os

servos de Deus não podem extrair benefício algum de sua retidão; mas, como

é o ofício peculiar de Deus defende-los e tomar providência em favor de sua

segurança, eles devem viver felizes sob a proteção divina. E de tal fato

podemos também concluir que, como Deus é o inexorável vingador contra os

perversos, ainda que por algum tempo ele pareça não notar o que o ímpio faz,

finalmente o visitará com a destruição. Portanto, em vez de admitirmo-nos ser

enganados com sua imaginária felicidade, tenhamos sempre diante de nossos

olhos, em circunstâncias de estresses, a providência de Deus, a quem pertence

a prerrogativa de estabelecer os negócios do mundo e fazer com que, do caos,

surja a perfeita ordem.

Fonte: O Livro dos Salmos – volume 1, João Calvino,

Editora Paracletos, pág. 49-57.

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