Romanos 2.14-16

por João Calvino

Porque, quando os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei, tornam-se lei para si mesmos, embora não possuam a lei; nisso eles mostram a obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua consciência e os seus pensamentos, ora acusando-os, ora defendendo-os; no dia em que Deus julgará os segredos dos homens, segundo o meu evangelho, por meio de Jesus Cristo.

14. Porque, quando os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei. Ele agora repete a prova da primeira parte da sentença, porquanto não se satisfaz em condenar-nos por mera afirmação e em pronunciar o justo juízo divino sobre nós, senão que diligencia por convencer-nos dele por meio de argumentos, a fim de despertar-nos um grande desejo e amor por Cristo. Ele mostra que a ignorância é apresentada pelos gentios como fútil justificativa, visto que declaram, por seus próprios feitos, que possuem alguma norma de justiça. Não existe nação tão oposta a tudo quanto é humano que não se mantenha dentro dos limites de algumas leis. Visto, pois, que todas as nações de dispõem a promulgar leis para si próprias, de seu próprio alvitre, e sem serem instruídas para agirem assim, é além de toda e qualquer dúvida que elas conservam certa noção de justiça e retidão, ao que os gregos se referem como prolh/yeij, e que é implantado por natureza nos corações humanos. Eles, portanto, possuem uma lei, sem a Lei; porque, embora não possuam a lei escrita por Moisés, não são completamente destituídos de conhecimento da retidão e da justiça. De outra forma, não poderiam distinguir entre vício e virtude - restringem aquele com castigo, enquanto que a esta exaltam, mostrando-lhe sua aprovação e honrando-a com recompensas. Paulo contrasta a natureza com a lei escrita, significando que os gentios possuíam a luz natural da justiça, a qual supria o lugar da lei [escrita], por meio da qual os judeus são instruídos, de modo a se tornarem lei para si próprio.

15. Nisto eles mostram a obra de lei escrita em seus corações, ou seja: eles provam que há impressa em seus corações certa discriminação e juízo, por meio dos quais podem distinguir entre justiça e injustiça, honestidade e desonestidade. Paulo não diz que a obra da lei se acha esculpida em sua vontade, de modo a buscarem-na e perseguirem-na diligentemente, mas que se acham tão assenhoreados pelo poder da verdade, que não têm como desaprová-la. Não teriam instituído ritos religiosos, se não estivessem convencidos de que Deus deve ser adorado; nem se envergonhariam de adultério e de latrocínio, se os não considerassem como algo em extremo nocivo.

Não há qualquer base para deduzir-se desta passagem o poder da vontade, como se Paulo dissesse que a observância da lei é algo que se acha em nosso poder, visto que ele não está falando de nosso poder de cumprir a lei, e, sim, de nosso conhecimento dela. O termo corações não deve ser considerado como a sede das afeições, mas simplesmente como se referindo ao entendimento, como em Deuteronômio 29.4: “Porém, o Senhor não vos deu coração para entender”; e Lucas 24.25: “Ó néscios e tardos de coração para crer [=entender] tudo o que os profetas disseram!”

Não podemos concluir desta passagem que há no ser humano um pleno conhecimento da lei, mas tão-somente que há algumas sementes de justiça implantadas em sua natureza. Isto é evidenciado por fatos como estes, a saber: que todos os gentios, igualmente, instituem ritos religiosos, promulgam leis para a punição do adultério, do latrocínio e do homicídio, e louvam a boa fé nas transações e contratos comerciais. Assim, eles provam seu conhecimento de que Deus deve ser cultuado, que o adultério, o latrocínio e o homicídio são ações perversas, e que a honestidade deve ser valorizada. Não é o nosso propósito inquirir sobre que tipo de Deus eles o tomam, ou quantos deuses têm eles inventado. É suficiente saber que acreditam que há um Deus, e que honra e culto lhe são devidos. Pouco importa, também, que não permitam que se cobice a mulher do próximo, possessões, ou alguma coisa que tenham como sua, se toleram as faltas sem rancor e ódio, porque tudo aquilo que julgam como sendo ruim sabem também que não deve ser cultivado.

Sua consciência e seus pensamentos, ora acusando-os, ora defendendo-os. O testemunho de sua própria consciência, que é equivalente a mil testemunhas, era a mais forte pressão que poderá ter causado neles. Os homens são sustentados e confortados por sua consciência e boas ações, porém, interiormente, são molestados e atormentados quando sentem ter praticado o mal - daí, o aforismo pagão de que a boa consciência é um espaçoso teatro, e que a má [consciência] é um dos piores verdugos, e atormenta os perversos com a mais feroz de todas as fúrias. Há, pois, [no homem], um certo conhecimento da lei, o qual confirma que uma ação é boa e digna de ser seguida, enquanto que outra será evitada com horror.

Notemos como Paulo define a consciência de forma judiciosa. Adotamos, diz ele, certos argumentos com o fim de defender certo curso de ação que assumimos, enquanto que, por outro lado, há outros que nos acusam e nos convencem de nossos maus feitos. Ele se refere a estes argumentos de acusação e defesa no dia do Senhor, não só pelo fato de que somente então é que aparecerão, porquanto são constantemente ativos no cumprimento de sua função nesta vida, mas porque, então, também entrarão em vigor. O propósito do argumento de Paulo, aqui, é impedir que alguém menospreze tais argumentos como sendo de pouca importância ou permanente significação. Como já vimos, ele pôs no dia em vez de até ao dia.

16. No dia em que Deus julgará os segredos dos homens. Esta descrição ampliada do juízo divino é mais apropriada para a presente passagem. Ele informa aos que intencionalmente se ocultam nos refúgios de sua insensibilidade moral, que as intenções mais íntimas, que presentemente se acham inteiramente escondidas no recôndito de seus corações, serão, estão, trazidas à plena luz. Assim, em outra passagem, Paulo procura mostrar aos coríntios de quão pouco mérito é o juízo humano que se deixa fascinar pelas aparências exteriores. Ele os conclama a que aguardem até à vinda do Senhor, “o qual não somente trará à plena luz as coisas ocultas das trevas, mas também manifestará os desígnios dos corações” [1 Co 4.5]. Ao ouvirmos isto, lembremo-nos daquela admoestação, a saber: se aspiramos a real aprovação por parte de nosso Juiz, empenhemo-nos por cultivar a sinceridade de coração.

Ele adiciona a expressão, segundo o meu evangelho, para provar que está a oferecer uma doutrina que corresponder aos juízos inatos do gênero humano, e a chama de meu evangelho em consideração ao seu ministério. Deus verdadeiro é unicamente aquele que possui a autoridade de dar o evangelho aos homens. Os apóstolos só tinham a administração dele. Não carece que fiquemos surpresos de dizer-se ser o evangelho, em parte, tanto mensageiro como a proclamação do juízo futuro. Se o cumprimento e completação de suas promessas são suspensos até à plena revelação do reino celestial, então tal fato precisa necessariamente ser relacionado com o juízo final. Além do mais, Cristo não pode ser proclamado sem demonstrar ser Ele, ao mesmo tempo, ressurreição para alguns e destruição para outros. Ambas estas - ressurreição e destruição - se referem ao dia do juízo. Aplico as palavras por meio de Jesus Cristo ao dia do juízo, ainda que haja outras explicações, significando que o Senhor executará Seu juízo por meio de Cristo, o qual foi designado pelo Pai para ser o Juiz tanto dos vivos como dos mortos. Este juízo por meio de Cristo é sempre posto pelos apóstolos entre os principais artigos do evangelho. Se porventura adotarmos esta interpretação, então a sentença, que de outra forma seria inadequada, ganhará em profundidade.

Fonte: CALVINO, João. Romanos. Trad. Valter Graciano Martins. 1ed. São Paulo: PARACLETOS Ed., 1997. 524p.; pp. 89-93.

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