A Invenção do Cristo Celeste no Prólogo de João

Importações de Provérbios, Sabedoria e Eclesiástico em contexto polêmico

Doutorando Osvaldo Luiz Ribeiro

Teologia Bíblica – PUC-Rio

(comunicação elaborada para apresentação no Congresso Internacional de Literatura Comparada da ABRALIC, em 03/07/2006. Por motivos de força maior, estive impedido de me apresentar à mesa, para a leitura da comunicação, aceita pela Dra. Salma Ferraz)

Resumo: a comunicação defende a tese de que o Prólogo de João constrói-se pelo recurso à identificação de Jesus com a Sabedoria encarnada, conforme consignada em Provérbios, Sabedoria e Eclesiástico. Tal identificação teria atendido à polêmica com os discípulos de João, o batizador, respondendo ao argumento da maior idade deste em relação a Jesus, o que configuraria ao mais velho a proeminência: a pré-existência do Verbo coopta e vence o argumento.

INTRODUÇÃO

Olho para o Prólogo de João (Jo 1,1-18), e faço três perguntas: o que se diz sobre o Cristo?[1] Como se chega a dizer isso que se diz?[2] Por que se diz isso que se chega a dizer?[3] Já para a primeira pergunta, uma aproximação metodologicamente apenas literária é insuficiente[4]. Se, em face dos demais outros três discursos evangélico-canônicos, desconsidero o caráter singular do discurso joanino, me aproximo dele reconsiderando-o em outras bases, que não aquelas, segundo e sobre as quais, supondo-se, teria se articulado[5].

Sim, porque há uma progressão teológico-discursiva entre Mateus-Marcos, de um lado, passando por Lucas, e João, de outro. Lá, Jesus é um messias, homem, escolhido por Deus no batismo ou na ressurreição[6]. Em Lucas, Jesus torna-se uma figura maravilhosa, nascido de virgem[7]. Aqui, o Prólogo de João faz de Jesus a encarnação da Sabedoria divina. A progressão teológica fica evidente: escolhido – maravilhoso – pré-existente.

1. O QUE SE DIZ SOBRE O CRISTO?

O Prólogo de João pode ser analisado sob a forma de uma “cebola”: em torno de um miolo “teológico”, rodelas “discursivas”[8]. O conjunto sustenta a mensagem consignada:

A

1,1-5

O Verbo pré-encarnado estava com Deus

B

1,6-13

João: testemunha do Verbo

C

1,14

“O Verbo se fez carne”

B’

1,15

João: testemunha do Verbo

A’

1,16-18

O Verbo encarnado dá a conhecer Deus

O centro teológico está no v. 14. Ali se afirma a encarnação do Verbo: “e o verbo se fez carne, e habitou entre nós”[9]. Das molduras externas (v. 1-5 e 16-18), concluiu-se a intenção de o texto afirmar a exclusividade desse Jesus Celeste encarnado como porta-voz divino: ele é o único a ter visto a Deus – logo, é o único com autoridade para falar de Deus: “Ninguém jamais viu a Deus: o Filho único que está voltado para o seio do Pai, este o deu a conhecer” (v. 18). Tendo estado no e desde o princípio com o Pai (v. 1-2), é encarnando (v. 14) que o Verbo, agora, dá o Pai a conhecer (v. 18).

Nas molduras internas (v. 6-13 e 15), quatro declarações de circunstância:

(1) Jesus esteve no mundo, criação sua, sem ter sido reconhecido: “Ele estava no mundo, e o mundo foi feito por meio dele, mas o mundo não o reconheceu” (v. 10).

(2) Jesus veio para os judeus, e não foi aceito por eles: “veio para o que era seu e os seus não o receberam” (v. 11).

(3) A comunidade do Prólogo o recebeu e viu a sua graça: “mas a todos os que o receberam deu o poder de se tornarem filhos de Deus (...) e nós vimos a sua glória” (v. 12a.14b).

(4) Tendo sido anunciado por João, o batizador, Jesus, Celeste, é, contudo, mais antigo e, logo, maior do que João: “João dá testemunho dele e clama: ‘Este é aquele de quem eu disse: o que vem depois de mim, passou adiante de mim, porque existia antes de mim” (v. 15).

Essa estrutura teológico-polêmica permite considerar a agenda de leitura pressuposta pelo Prólogo: à exclusividade de Jesus como porta-voz de Deus, corresponde a exclusividade da comunidade como porta-voz do testemunho do Verbo encarnado – é na recepção do Cristo Celeste encarnado que se encontra a chave para o testemunho, e está a condição especial que se arroga a comunidade do Prólogo de João.

2. Como se chega a dizer isso que se diz?

Tem-se identificado um pressuposto grego no Prólogo, e isso por conta da expressão Logos. Penso em outra abordagem histórico-traditiva. É perfeitamente possível a (re)construção do discurso teológico do Prólogo de João, recorrendo-se à tradição do judaísmo. Em especial, Provérbios, Sabedoria e Eclesiástico.

2.1 Provérbios

A passagem tomada é Pr 8,22-31, que descreve a Sabedoria falando. A Sabedoria diz-se a primeira criatura de Yahweh (v. 22), sendo gerada por ele antes de os abismos existirem (v. 24). Desde então, torna-se o seu “mestre-de-obras” (v. 30). Dada essa sua condição, “lá estava” ela, quando Yahweh criava desde os céus até os fundamentos da terra.

A relação com o Prólogo dá-se inicialmente pela identificação implícita da Sabedoria com a Palavra. Avançando, a sua caracterização como suprema criação de Deus: a Sabedoria é criatura de Yahweh, e é gerada por ele. Essa mesma maneira de se pensar o Cristo Celeste, particularidade relevante da cristologia adocionista na cristandade dos primeiros séculos, pode ser observada no hino de Colossenses: “Ele é a Imagem do Deus invisível, o Primogênito de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis” (Cl 1,15-16a). É compreensível que a história da recepção do Prólogo de João, e mesmo do hino de Colossenses, passa pelo processo dogmático levado a termo em Nicéia, que afiançou, em termos ontológicos, a identidade de Jesus e Deus. Se, contudo, tanto o Prólogo de João quanto aquele hino de Colossenses forem tomados em sua fase receptiva pré-nicênica, a sua dependência histórico-traditiva da tradição judaica fica mais evidente, e é mais fácil de ser pressuposta em termos teórico-metodológicos[10].

A identificação continua pela declaração do caráter criador do Verbo, como o era, o da Sabedoria. A Sabedoria é apresentada como “o mestre-de-obras” de Yahweh, o que equivale, no Prólogo, à afirmação de que “Tudo foi feito por meio dele, e sem ele nada foi feito” (v. 2).

2.2 Sabedoria

Uma série de citações de Sabedoria ecoa no Prólogo. A Sabedoria é artífice do mundo (7,21b). Sua condição divina fica evidente, quando se reconhece que “ela é um eflúvio do Poder de Deus, uma emanação puríssima da glória do Onipotente” (7,25). Quando Salomão a quis, isso se deveu ao fato de que, ele sabia, “a união (dela) com Deus realça sua nobre origem, pois o Senhor de tudo a amou; ela é iniciada na ciência de Deus, ela é quem seleciona suas obras” (8,3-4a).

É possível que, além dos mesmos elementos anteriores discerníveis em Pr 8,22-31, o Prólogo de João tenha ido buscar em Sabedoria o testemunho de Jesus, encarnado, como a “glória”. Sb 8,25 descreve a Sabedoria como “uma emanação puríssima da glória do Onipotente”. O termo grego para “glória” é doxa. Quando a comunidade do Prólogo dá o testemunho de que recebera o Cristo encarnado, afirma que “nós vimos a sua glória”. De novo, o termo grego é doxa. Se a dependência histórico-traditiva ou ainda a intertextualidade se confirmarem, o Prólogo descreve o Cristo encarnado como a “emanação” glória de Yahweh: “e nós vimos a sua glória, glória que ele tem junto ao Pai, como Filho único” (v. 14b).

2.3 Eclesiástico

É aqui que se encontram as mais extraordinárias evidências da dependência histórico-traditiva e, aposto, literária, entre o Prólogo de João e a tradição judaica. Com base em Provérbios e Sabedoria, apenas, poder-se-ia alegar que, sim, o caráter criatura-criador do Verbo enquanto Sabedoria divina está presente, mas que o verdadeiramente inusitado, a encarnação do Verbo, não se pode fundamentar ali.

Eclesiástico resolve a crise. Eco 24,1-12 é mais um elogio que a própria Sabedoria se faz. “Na assembléia do Altíssimo abre a boca” (v 2) e fala. O que ela diz? “Saí da boca do Altíssimo” (v. 3a). Essa passagem é importante, porque vincula a Sabedoria ao Logos na qualidade de Palavra, logo, Verbo divino. A Sabedoria diz que, tendo saído da boca do Altíssimo, arma sua tenda nas alturas (v. 4a). É desse modo que “o criador de todas as coisas” (v. 8a) cria todas as coisas (v. 4b-7). Há, naturalmente, uma dependência dessa teologia da Sabedoria como palavra criadora e a narrativa sacerdotal da criação (Gn 1,1-2,4a). Ali, em termos teológicos, ‘Elohim cria o mundo por meio da palavra: “e disse ‘Elohim: seja a luz, e a luz foi” (Gn 1,3). Novamente, se a dependência histórico-traditiva ou a intertextualidade entre o Prólogo de João e Eclesiástico se confirmarem, explica-se, por tabela, a estruturação do início do Prólogo nos mesmos termos de Gn 1,1-3: “No princípio do criar de ‘Elohim os céus e a terra (...) e disse ‘Elohim: seja a luz, e a luz foi”. A comunidade do Prólogo conhece a dependência de Eclesiástico 24,1-12 de Gênesis 1,1-2,4a. Num movimento criativo, enquanto articula (constrói) a sua cristologia celeste, passa por Eclesiástico e, daí, estrutura-se a partir da narrativa que, por sua vez, lhe servia de base.

O discurso da Sabedoria vai mais longe: “Então, o criador de todas as coisas deu-me uma ordem, aquele que me criou armou a minha tenda e disse: ‘instala-te em Jacó. Em Israel terás a tua herança’” (v. 8). Num primeiro nível de dependência, pode-se entrever o Prólogo de João articulando o discurso do Jesus Celeste encarnado com base nessa passagem. Num segundo nível, pode-se constatar que a “encarnação” do Jesus Celeste constrói-se com o recurso ao mesmo termo grego com que ali se descreve a “instalação” da Sabedoria-Palavra-Lei de Deus em Jacó. Jo 1,14 dá corpo ao tema da encarnação do Jesus Celeste dando a saber que o Verbo eskenosen (isto é, “armou tenda”) entre nós. Eskenosen é forma verbal; é com a forma nominal correspondente que Eco 24,8 descreve a “encarnação” da Sabedoria em Jacó: skenen mou, “minha tenda” (TAYLOR, p. 200).

Com isso de dizer que a Sabedoria armou a sua tenda em Jacó, Eclesiástico está afirmando o caráter da Lei de Yahweh, conforme se pode depreender tanto do contexto imediato de Eco 24: “tudo isso é o livro da aliança do Deus Altíssimo, a Lei que Moisés promulgou” (v. 23), quanto de outra tradição judaica: “Depois disso ela (a Sabedoria) apareceu sobre a terra e no meio dos homens viveu. Ela é o livro dos preceitos de Deus, a Lei que subsiste para sempre” (Br 3,38-4,1). A originalidade, digamos assim, do Prólogo de João, é tomar o discurso traditivo judaico aplicado à relação Sabedoria – Palavra – Lei, e aplicá-lo a Jesus: Sabedoria – Palavra – Jesus. O Jesus Celeste está inventado, referendado e justificado.

3. Por que se chega a dizer isso que diz?

Penso que a “causa” histórica para a construção do Prólogo de João seja depreensível da própria narrativa. À dupla presença de João, o batizador, na moldura interna do Prólogo corresponde a dupla referência ao seu testemunho aplicado a Jesus: “’Este é aquele de quem eu disse: o que vem depois de mim, passou adiante de mim, porque existia antes de mim” (Jo 1,15 e 30). Tomo esse discurso como crítica da comunidade de João, o batizador, à tese da messianidade de Jesus[11]. João, o batizador, era mais velho, logo, “maior”. Aliada à tradição de que Jesus é batizado por ele, a crítica é avassaladora.

Para a comunidade do Prólogo, não se trata de contornar a crítica, ou desmenti-la. A polêmica exige que a crítica seja tomada em toda a sua força, e devolvida ainda mais forte. O argumento da crítica é que o mais antigo é “maior”. A saída é, então, relativamente simples: afirmar a antecedência também cronológica de Jesus em relação a João, o batizador. Nesse caso, não basta que seja “homem”, nem ainda que tenha nascido maravilhosamente de Maria, porque, nesses dois casos, João ainda é mais velho. Com um recurso à tradição judaica, que já tratava a Lei como “encarnação” da Sabedoria de Deus (Eclesiástico e Baruc), a comunidade por trás do Prólogo de João articula o discurso contra-crítico: Jesus é a Sabedoria de Deus, que armou a sua tenda entre nós; nós vimos a sua glória.

Se for correta a identificação do tema da Lei de Yahweh como encarnação da Sabedoria de Yahweh em Jacó, é possível, ainda, que a identificação, agora, de Jesus de Nazaré com a encarnação dessa Sabedoria, seja, afinal, uma outra contra-crítica, agora, à crítica judaica genérica do valor da Lei de Moisés em detrimento de Jesus. Já no Prólogo, afirma-se que “a Lei foi dada por meio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Cristo” (v. 17). Como o Cristo encarnado é a única testemunha do Pai, penso que o Prólogo de João esteja, afinal, respondendo a duas comunidades polêmicas, e, com isso, ratificando sua posição teológica e existencial.

CONCLUSÃO

O Prólogo de João é literatura? Sim. O Prólogo de João é literatura? Não. Como assim? É que “depende” do que se considera literatura. Para uma ciência do texto que o trate como uma “bolha” estrutural, dissociada teórico-metodologicamente de sua gênese histórico-social, o Prólogo é “literatura”, no sentido de que consiste numa obra de arte, diante da qual os espíritos se colocam e gozam de uma experiência estética. Nesse caso, não há conteúdo que não aquele articulável depois da experiência estética que o encontro existencial leitor – obra permite.

Para uma ciência do texto que o entenda a partir de um eixo epistemológico que contemple a pragmática gerativa histórico-social do discurso que ele carrega, e em referência ao qual está inexoravelmente articulado, então, não, o Prólogo não é “literatura”, não pelo menos enquanto literatura for o que se definiu como tal no parágrafo anterior. Para uma abordagem pragmática, configurável em termos de análise do discurso, para quem discurso é discurso entre gentes, ainda que consignado na celulose, o Prólogo, por isso mesmo, é instrumento de intervenção social.

Com esse instrumento, quer-se intervir. Aos de fora, desembainha-se a espada do discurso para dizer que não, não têm fundamento os seus respectivos discursos, pelo que se pode depreender de nosso próprio discurso. Aos de dentro, ratifica-se a ideologia da comunidade, sua narrativa existencial, sua história, necessária justamente por força daquelas pressões que, vindo de fora, exigem incessante e criativa ratificação histórico-traditiva.

O tema do sagrado é tema textual. No Prólogo, o sagrado desdobra-se entre o Pai, de um lado, e sua atualização histórico-traditiva, Jesus de Nazaré, encarnação da Sabedoria, do Verbo, da Palavra de Deus, de outro. O Cristo Celeste é articulação criativa da comunidade. Entrar no discurso da comunidade é assumir esse discurso como descrição ontológica do fundamento existencial em que se consubstancia a aposta da vida que se vive. Claro, com isso, assume-se uma criação como ontologia. Mas há pouca diferença entre esse gozo e o gozo estético da obra pressuposto em outras abordagens.

A Teopoética como tem sido introduzida recentemente desperta a comunidade acadêmica para a velha questão da Teoria Literária. Ela requer de nós nos aproximemos dos textos como “meio” – o que queremos é entrever, através deles, o mundo “histórico-social” de que é devedora a sua gênese; ali, contemplar a(s) mão(s), no ato de escrevê-los. Não mais, contudo, mão(s) de “um gênio” singular, mas de consciências em conflito, construindo seus mundos uns pelos outros, uns contra os outros. E a polêmica é justamente o contexto que faz absolutamente dependente do “outro” a articulação do próprio discurso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRENTON, L. C. L. The Septuagint with Apocrypha Greek and English. Grand Rapids: Zondervan, 1988. 1130 p.

BIBLIA SACRA. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1990. 1.574 p.

ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. Trad. da editora. São Paulo: Martins Fontes, 1993. 183 p.

FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias (séculos I-VII). Conflitos ideológicos dentro do Cristianismo. São Paulo: Paulus, 1995. 165 p.

MORIN, Edgar. O Método 3. O conhecimento do conhecimento. Trad. de Juremir Machado da Silva. 2 ed. Porto Alegre: Sulina, 2002. 286 p.

MORIN, Edgar. O Método 4. As idéias: habitat, vida, costumes, organização. Trad. de Juremir Machado da Silva. 3 ed. Porto Alegre: Sulina, 2002. 319 p.

RIBEIRO, O. L. Rascunhos Joaninos. www.ouviroevento.pro.br. 2005.

TAYLOR, W. C. Dicionário do Novo Testamento Grego. 9 ed. Rio de Janeiro: JUERP, 1991. 247 p.

TILLICH, P. História do Pensamento Cristão. Trad. J. C. Maraschin. São Paulo: Aste, 1988. 265 p.




[1] O acesso metodológico a essa pergunta tem um caráter histórico-crítico. O método histórico-crítico articula-se em torno de eixos epistemológicos precisos: consciência do caráter do texto como literatura; tratamento do caráter literário do texto como fenômeno de cultura; concepção da cultura por trás do caráter literário do texto como condicionamento histórico. Evidentemente, abandonam-se pretensões ontológicas ou metafísicas que o discurso textual se arrogue.

[2] Tomado o texto como fenômeno cultural e histórico, impõe-se a necessidade de se lhe serem apreendidas as articulações. O texto situa-se entre os mundos da história – a que(m) se destina – e da tradição – a que apela. Antevê-se, pois, a necessidade de se pensar a articulação histórico-traditiva do texto à luz de sua intenção ideológica: a tradição aparece no texto como instrumento do discurso ideológico direcionado à dimensão histórica em que se situa.

[3] A compreensão que se pretende do texto tem por referencial o seu contexto histórico-social. Sob esse pressuposto teórico-metodológico, o “sentido” do texto é função histórico-social no entroncamento de grandezas históricas e histórico-traditivas. Do texto, porque se condensaram nele, emergem os protagonistas do discurso textual, de um lado; as referências traditivas (inclusive intertextuais) de que dispõem os protagonistas do discurso em sua estratégia discursiva; e, incontornavelmente, sob perda do referencial determinante do discurso, os discurso deuteragonistas, em face e em razão dos quais se articula o discurso consubstanciado no texto em análise.

[4] Cujas razões já se depreendem das três notas anteriores. Em termos de Teoria Literária, aposta-se na intentio auctoris (ECO, 1993), mas não na “genialidade romântica” do(s) autor(es). O contexto histórico da produção do texto se apresenta como rede de discursos interdependentes. A compreensão de um discurso depende da reconstrução histórico-social dos discursos que, ao mesmo tempo, determinam a sua origem, quanto lhe servem de destino estratégico. Essa rede de “falantes”, responsáveis por discursos interdependentes, situa-se num eixo comum de tradições, mas não necessariamente comum em termos ideológicos. Além disso, além de estarem situados numa condição de interdependência discursiva – as agendas são sempre dadas pelo discurso alheio –, os atores da rede reagem à situação conjuntural mais ampla, de espectro histórico, cujos efeitos se desdobram de diferentes modos nos seus respectivos “mundos” (hermenêuticos). Assumiria de bom grado o tema da complexidade conforme articulada na série O Método, de Edgar Morin.

[5] É o destino a que se entregam as abordagens que pretendem desconsiderar a manutenção do referencial autoral na compreensão de um texto. Que se pode construir sentidos para um texto sem qualquer referência metodologicamente consciente à figura do seu autor histórico é sabido desde que sistematizadas as abordagens de aproximação ao texto pelo texto (intentio operis) ou pelo leitor (intentio lectoris). Não quero aqui discutir essa questão: apenas assinalar (dado o contexto da mesa em que a Comunicação se dá, Teopoética: o literário como lugar privilegiado para a manifestação do sagrado e do epifânico) que a Teopoética, se pretende recorrer ao “texto” como porta de acesso às articulações de seu autor acerca do sagrado, impõe-se a tarefa ingrata e inglória a que se têm destinado historiadores, de um lado, e exegetas, de outro. Um “teopoeta” (especialista em Teopoética) deve assumir-se como exegeta, e correr todos os riscos dessa profissão (de certo modo, também “profissão de fé”, dado o caráter de inverificabilidade do resultado da profissão). De outro modo, a Teopoética se manterá na linha teórica de um discurso “livre” sobre as estruturas semântico-sintáticas de uma página escrita.

[6] Cristologia adocionista (FRANGIOTTI, 1995, p. 22-26).

[7] Não se trata, a rigor, de uma “nova” cristologia, como o subordinacionismo joanino. Pode-se considerar que a cristologia presente em Mateus e em Marcos recebe desdobramentos míticos em Lucas. Esses desdobramentos podem ser tanto alinhados a tradições além do judaísmo (outros personagens maravilhosos nasceram também de virgens), quanto dentro do judaísmo. No que diz respeito à tradição judaica, a tradução grega de Is 7,14 presta-se como referendo e legitimação para um avanço imagético na descrição do Cristo. A releitura do Cristo como nascido de virgem retroage até o seu nascimento, aquele “sinal” divino de sua messianidade, disponível a partir do batismo ou da ressurreição na tradição dos dois outros sinóticos.

[8] Uma análise mais detalhada do prólogo pode ser consultada na série de artigos Rascunhos Joaninos, disponível em http://www.ouviroevento.pro.br/rascunhosjoaninos/rascunhosjoaninos.htm.

[9] Para a Comunicação, fiz uso da tradução A Bíblia de Jerusalém. Aqui, onde ela traduz como “habitou” o termo grego eskenosen, há um fenômeno de metonímia. A rigor, o texto grego fala de “armar a tenda” (TAYLOR, 1991, p. 200), que, por extensão, faz-se significar “habitar”.

[10] Para uma introdução à história da cristologia na fase mais antiga do cristianismo, cf. TILLICH, História do Pensamento Cristão, p. 1-129.

[11] Bem sabido: não se trata sequer dos discípulos de João, o batizador, em torno dele, nem sequer dos discípulos de Jesus, lá e então. O Evangelho de João foi escrito ou no final do primeiro século, ou no início do segundo. Logo, nada tem a ver, diretamente, com aqueles grupos sociais. Os grupos sociais que se enfrentam ideologicamente arrogam-se, cada um a seu modo, a cadeia traditiva desde Jesus, para o caso da comunidade do Prólogo, e a cadeia traditiva de João, o batizador. Pode-se insistir em “memória”, e reconhecer nesse conflito o debate histórico entre judeus durante o período em que, estando Jesus e João vivos, seus respectivos discípulos disputavam a maior importância relativa de seu mestre. De minha parte, prefiro considerar que o conflito que se pode desdobrar da leitura do Prólogo esteja situado não na memória, mas nos olhos e nos ouvidos dos articuladores da narrativa. Seus deuteragonistas, os discípulos de João, de um lado, porque há ainda os “judeus” de outro, isto é, judeus até como os próprios judeus da comunidade, mas, nesse caso, judeus que não haviam recebido Jesus de Nazaré na qualidade de Cristo Celeste encarnado, esses “adversários” todos, portanto, situam-se como deuteragonistas polêmicos. A invenção do Jesus Celeste não se dá diretamente por via de memória dos primórdios dos cristianismos militantes, mas pelo enfrentamento original e criativo de conflitos históricos.